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Dissertação autismo

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 
 
INSTITUTO DE PSICOLOGIA 
 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE 
 
 
 
 
 
MESTRADO 
 
Pesquisa e Clínica em Psicanálise 
 
 
 
ROSEMARY FIÃES PINTO 
 
 
 
 
CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES AUTISTAS E 
PSICÓTICAS: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA 
CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO CLÍNICO 
 
 
 
 
 
 
Dissertação de Mestrado 
 
 
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 2005 
 
 
 
 
 
 ii
CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES AUTISTAS E 
PSICÓTICAS: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA 
CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO CLÍNICO 
 
 
 
 
 
ROSEMARY FIÃES PINTO 
 
 
 
 
 
“Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade 
do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em 
Psicanálise” 
 
 
 
 
 
 
 
Orientador: Luciano Elia 
 
 
 
 
 
 
 
 
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 2005 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 iii
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DEDICATÓRIA 
 
 
 
Para minha família, com amor e com afeto. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 iv
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
Ao Luciano Elia, por aceitar me orientar e pelo enorme respeito que sempre dedicou ao 
meu trabalho. Mais ainda, pela paciência em ler comigo textos difíceis da psicanálise 
acolhendo minha ignorância, mas me fazendo trabalhar. Serei eternamente grata... 
 
À equipe do CAPSI Eliza Santa Roza, pois sem ela esta dissertação não seria possível. 
Cada um, singularmente, está aqui representado nesta dissertação. O trabalho continua... 
 
Aos residentes e estagiários, que nos ensinam e nos mostram sempre um novo olhar... 
 
Para Marisa, que generosamente ajudou com seu fluente Inglês e com sua palavra sempre 
carinhosa... 
 
À Cristina Ventura, que desde a Especialização apóia este trabalho. 
 
À UERJ e aos mestrandos da minha turma. Agradeço pelo aprendizado compartilhado da 
psicanálise e pelas discussões. 
 
À profª Sonia Alberti e Maria Anita Carneiro Ribeiro, pelas valiosas contribuições na 
Qualificação. 
 
Para Emmanuel, pelo encontro... 
 
À Teresa, pela escuta fundamental... 
 
Aos amigos que sambam, que cantam e me encantam nos momentos mais felizes e difíceis 
também, especialmente Silvia pela disponibilidade em ler este trabalho e Joana, que não 
leu, mas aceitou de pronto a “encomenda”... 
 
Finalmente, devo agradecer aos pacientes do CAPSI, por me deixarem aprender... 
 
 
 
 
 
 
 
 v
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
 
 Esta dissertação pretende demonstrar a contribuição da Psicanálise na constituição 
de um novo dispositivo clínico para o tratamento de crianças e adolescentes autistas e 
psicóticas: O Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSI). A partir da pesquisa 
teórico-clínica realizada num CAPSI da cidade do Rio de Janeiro, o CAPSI Eliza Santa 
Roza, este trabalho visa suscitar novas questões a partir da direção da Psicanálise, com o 
objetivo de sustentar que só haverá uma clínica nesses novos dispositivos se a aposta no 
sujeito do inconsciente estiver presente. 
 
 
 vi
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“ABSTRACT” 
 
This dissertation intends to demonstrate the psychoanalytic contribution to the 
constitution of a new clinical tool for the treatment of autism and psychosis in children and 
adolescents: The Center for Psychosocial Care of Children and Adolescents (Centro de 
Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil - CAPSI). 
 Departing from a theoretical-clinical research accomplished in one specific CAPSI, 
The Capsi Eliza Santa Roza, this work aims at raising new questions in a psychoanalytic 
framework, and supporting the hypothesis that a clinical work based on this new tool will 
only be possible if there is a belief in the Unconscious (in the Subject o f the Unconscious). 
 
 
 vii
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO 1 
 
CAPÍTULO I 
1- CAPSI Para Crianças e Adolescentes: Um Campo em Construção 4 
1.1- O Estado da Arte do CAPSI no Estado do Rio de Janeiro 10 
1.2- O CAPSI Eliza Santa Roza: Seus Impasses e Possibilidades 13 
 
 
 
CAPÍTULO II 
2- Por que a Direção da Psicanálise? 17 
2.1- A Constituição do Sujeito e o Campo Social 24 
2.2- Do Direito ao Desejo: O que Demanda um Benefício? 27 
2.2.1- A Articulação do Benefício e o Nome-do-Pai. 41 
 
 
 
CAPÍTULO III 
3- O CAPSI Eliza Santa Roza: A Construção de uma Clínica 45 
3.1- O Dispositivo Analítico Ampliado: Uma Experiência Pioneira de CAPSI 51 
3.2- O CAPSI Eliza Santa Roza e os Turnos de Atendimento 54 
 
 
CONCLUSÃO 79 
 
BIBLIOGRAFIA 81 
 
 viii
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
 
Considero importante começar falando sobre os motivos que me levaram a escolher 
este tema: CAPSI para Crianças e Adolescentes autistas e psicóticas: A Contribuição da 
Psicanálise na construção de um dispositivo clínico. 
Apresentei uma monografia de conclusão do curso de Especialização em 
Saúde Mental da Infância e Adolescência no Instituto de Psiquiatria da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2002. Neste trabalho iniciei um campo 
de estudo que explorou a importância da construção dos CAPSI (Centro de Atenção 
Psicossocial Infanto-Juvenil), ressaltando a experiência do CAPSI Eliza Santa Roza. 
Contudo, creio que a questão clínica deste dispositivo não foi devidamente 
trabalhada. Fiz um percurso no campo da Reabilitação Psicossocial, que é uma 
bibliografia bastante explorada na área da saúde mental, mas não fiz o percurso que 
me parecia ser o mais interessante e singular, que é o da escuta psicanalítica no 
CAPSI. 
Várias questões ficaram abertas na monografia. Uma delas era entender por 
que a clínica da psicanálise é a mais indicada para esta clientela e o que ela pode 
contribuir de singular, marcando uma diferença radical nesses dispositivos. Como a 
psicanálise pode ser inserida no atendimento das crianças e adolescentes autistas e 
psicóticas, uma vez que a clínica individual do ambulatório não é tomada como 
prioridade de escuta? 
Desde que comecei a trabalhar no CAPSI Eliza Santa Roza tenho me 
deparado com novas e importantes questões e o desejo de continuar estudando a 
inserção do CAPSI, tendo a psicanálise como direção, me trouxe até o Mestrado de 
 ix
Pesquisa e Clínica em Psicanálise. A possibilidade de articular clínica e pesquisa no 
local no qual trabalho foi condição fundamental para a viabilização deste projeto. 
As questões que desenvolvo nesta dissertação surgiram a partir da clínica e 
das discussões realizadas na supervisão dos casos atendidos, bem como dos vários 
encontros com outros profissionais da área da saúde mental infanto-juvenil. Tentei 
dialogar com alguns autores que trabalham com essa clientela buscando sempre a 
articulação teórico-clínica. Os casos atendidos no CAPSI, com diagnósticos de 
neurose, psicose e autismo e a riqueza dessa experiência possibilitaram a prática que 
a clínica exige. Trabalhei seis casos ao longo da tese priorizando as principais 
discussões que atravessam a clínica do CAPSI Eliza Santa Roza, bem como seus 
impasses e construções. 
Falar que num CAPSI há uma clínica implica em nomear uma direção, 
questão que num primeiro momento parece simples, mas que não ocorre com 
freqüência. Nem sempre há uma direção clínica nos CAPSI, o que já nos aponta um 
problema. Como trabalhar sem conceber o CAPSI como um espaço de tratamento? 
Mais ainda, como trabalhar com uma clientela tão grave sem apostar que há um 
sujeito a ser escutado e que é a psicanálise a responsável por essa inclusão? Esta 
questão é muito importante e deve ser assumida em sua radicalidade. Recuar desse 
lugar pode trazer conseqüências irreversíveis na vida de uma criança ou 
adolescente. 
Em 19 de fevereiro de 2002 foi apresentada no Diário Oficial da União a 
Portaria nº 336, que define e orienta a prioridade do CAPS no campo da saúde 
mental infanto-juvenil. O “Serviço de Atenção Psicossocial”, como foi denominado, 
é considerado um serviço de alta complexidade,que além de oferecer um 
atendimento aos pacientes em seu próprio território, busca ampliar contatos com as 
redes sociais que podem fazer parte do universo da criança: escolas, conselhos 
tutelares, abrigos, etc. O objetivo é fazer com que essas crianças e adolescentes 
possam contar com um serviço que modifica uma lógica existente na rede pública 
de saúde, que é o fato do paciente ter que se enquadrar nos “sintomas” já 
previamente constituídos pelos serviços. É a construção do CAPSI que inaugura a 
 x
“acessibilidade e acolhimento universal de toda procura envolvendo grave 
sofrimento psíquico”1 , uma vez que não será o sintoma o norte do tratamento. 
É a Psicanálise que inaugura a escuta do sujeito como condição fundamental 
no acolhimento ao paciente. Uma escuta singular, que inclui o sujeito desde sempre 
na direção do tratamento. 
Essa articulação clínico-política sugere esse lugar inaugural na constituição 
do campo da saúde mental infanto-juvenil e revela a contribuição da psicanálise 
para a direção do tratamento. A partir desse novo olhar é possível sustentar a 
inclusão do enfoque analítico para as crianças e adolescentes com graves 
sofrimentos psíquicos. 
Assim, este trabalho pretende sustentar que a psicanálise é a direção que melhor 
possibilita a constituição do CAPSI como um local de tratamento, uma vez que inclui a 
dimensão do sujeito com um rigor ético imprescindível em casos tão graves. São muitas as 
reflexões e ao longo do trabalho tento desenvolvê-las. Espero que questões tão caras para 
mim, possam servir como um eixo de trabalho fecundo para que possamos escutar melhor 
nossos pacientes. 
 
1 Relatório da Reunião MS-OPAS realizado no dia 03/10/2003 (Preparatória do Seminário em comemoração 
ao Dia mundial da Saúde Mental _ “Saúde Mental da Criança e Adolescente”. 
 xi
CAPÍTULO 1- CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM 
CAMPO EM CONSTRUÇÃO 
 
Resumo: Este capítulo visa mostrar o campo no qual o CAPSI está se constituindo e como 
ocorre a Reforma Psiquiátrica no campo da infância e adolescência. A proposta é apresentar 
as questões atuais presentes no campo da Reforma Psiquiátrica, no que diz respeito ao campo 
infanto-juvenil e apresentar o CAPSI como um dispositivo imprescindível neste cenário. 
 
 
Falar sobre o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como um lugar de escuta e 
cuidado pode parecer para muitos uma redundância, uma vez que as inúmeras experiências 
nesta área falam por si só da qualidade que essa modalidade de atendimento têm oferecido 
a seus usuários, principalmente para aqueles chamados psicóticos. Aliás, o sucesso desta 
clínica parece residir no fato da mesma suportar as idiossincrasias do ser humano, não 
acolhidas em outros Serviços, fazendo falar o sofrimento, ao invés de oferecer-lhe uma 
escuta surda. 
A experiência paradigmática do CAPS Luiz Cerqueira em São Paulo mostra 
isto. Jairo Goldberg2, faz-nos acompanhar a trajetória da construção deste projeto 
que iniciou em 1989 uma importante experiência: atender na rede pública de saúde 
de São Paulo àqueles casos que não “tinham o perfil do ambulatório”, ou seja, os 
psicóticos. Ao longo do livro ele mostra porque o ambulatório não suporta o 
atendimento desses pacientes e como a lógica médica investe no sintoma e não no 
sujeito. Mas o que seria o investimento no sintoma? 
Jairo mostra que investir naquilo que aparece como sintoma não tem sido 
suficiente nos casos de pacientes psicóticos, apesar dos enormes gastos empregados 
na assistência a esta clientela. A modalidade de atendimento ao psicótico na rede 
pública priorizava o ambulatório e a internação num círculo ininterrupto de gastos e 
ineficiência, além de não atender o paciente como ele deveria ser atendido: 
respeitando exatamente a particularidade de sua subjetividade no mundo, mesmo 
sem “sintomas”. 
 
2 GOLDBERG, Jairo. Clínica da Psicose. Rio de janeiro, Te Cora Ed. E IFB, 1994. 
 xii
Para entender melhor a trajetória do discurso que calou o sintoma do sujeito 
aprisionando-o a uma esfera única de “cuidado”, que silenciava os corpos, é preciso 
entender a dinâmica do asilo. Ao mergulharmos no tempo e retomarmos a história 
da psiquiatria esbarramo-nos necessariamente com a “História da loucura” descrita 
por Foucault. Nela entendemos muito bem quão necessário foi o sentido econômico 
que a palavra investimento apresentou nas definições acima e como a construção 
dos CAPS está marcada por esta oposição ao modelo asilar. 
De acordo com Foucault o aparecimento do hospital como um instrumento terapêutico, 
vinculado ao tratamento e à cura dos doentes só é possível no final do século XVIII. Antes, 
o hospital servia para recolher pobres e proteger a sociedade do perigo que estes 
representavam. O “personagem” marginalizado era o pobre e não o doente e a função dos 
que nele trabalhavam era de “salvar o pobre”. O médico não tinha lugar neste cenário, pois 
eram os religiosos e os leigos quem “cuidava” dos mesmos. A função, do hospital era, 
pois, a de transição da vida para a morte e a de salvação espiritual. Era um lugar em que 
misturavam-se loucos, prostitutas, devassos, misto de assistência e transformação 
espiritual. 
Foucault nos mostra que até meados do século XVIII hospital e medicina 
permaneceram independentes e este “encontro” ocorreu a partir da necessidade de se 
anularem os efeitos negativos do hospital, onde se amontoavam pessoas, para torná-lo um 
lugar de saber. 
O saber psiquiátrico foi construído socialmente, visando a destituição do lugar do 
louco num cenário onde a falta de razão não era mais permitida. Se antes desrazão não 
era uma questão que atrapalhava a convivência dos loucos com a cidade, pois a loucura 
na Idade Média era respeitada enquanto um saber especial, agora ela passa a ser um 
problema que deve ser solucionado. Há uma passagem da legitimidade de um saber para 
a ilegitimidade. É na ilegitimidade da loucura que será respaldada a exclusão dos loucos, 
que serão confinados nos hospitais. 
A psiquiatria surge como o saber que vai responder pela figura do louco, um saber 
que legitima a exclusão da loucura do cenário social. Um lugar específico de tratamento, 
o asilo, também é determinado, e somente um médico, através do seu conhecimento 
especializado, é capaz de saber o segredo da cura dos seus males. 
 xiii
O saber psiquiátrico que se constituiu hegemônico é hoje alvo de grandes 
críticas e reformulações. A Reforma Psiquiátrica surge como tentativa de 
implementar uma modificação na cultura e no entendimento do que é o louco. Há 
uma dimensão complexa, perpassada não apenas pelas modificações necessárias na 
assistência psiquiátrica, mas pelos diferentes olhares e entendimentos acerca do que 
representa a loucura e seu lugar na sociedade. 
 No Brasil temos avançado nas discussões da reforma a cada dia. Há muito 
por fazer, mas a existência de uma rede de assistência em saúde mental implicada 
na escuta do sujeito tem implementado algumas mudanças importantes neste 
campo. A existência dos CAPS marca a efetivação da possibilidade de cuidar sem 
excluir e de tomar a responsabilidade pelo sujeito que sofre oferecendo um cuidado 
diário e contínuo aos pacientes. 
Golberg coloca: 
 
 “a presentificação de um cotidiano compartilhado nos limites da doença, com 
disponibilidade para absorver o que ela fosse capaz de expressar”. Não se trata de abordar 
o “psicótico”, mas acolher a “condição psicótica, de alguém que é maior que a doença, não 
redutível à categoria da doença e por isto infenso às estratégias tópicas do raciocínio 
sintomatológico”.3 
 
O fracasso dos atendimentos aos psicóticos no serviço público ambulatorial 
muitas vezes ocorre por não respeitar a condição desse sujeito e de querer impor a 
lógica médica a esta clientela: Prevenção, tratamento e cura. A importância dosCAPS como lugares privilegiados da escuta do sujeito reside nesta modificação 
apontada pelo autor, que é a de acolher essa condição psicótica oferecendo uma 
escuta a este sujeito. 
É de um lugar de construção de algo que pode oferecer um espaço diferente do que 
foi oferecido ao longo da história da psiquiatria que o CAPS parece falar , nele não se 
pretende calar o sujeito, mas fazer falar o que há de singular nesta experiência. Cada um 
pode ser radicalmente diferente do outro e é nesta diferença que a singularidade de cada 
experiência pode aparecer. 
 
3 (idem, ibidem. Pg.113 e 126) 
 xiv
A construção do CAPS para crianças e adolescentes é um campo ainda em 
constituição, mas o que o aproxima neste primeiro momento do campo já bastante 
estudado do adulto é a história também asilar que as crianças e adolescentes autistas e 
psicóticas estão submetidas. 
Num artigo escrito por Cristina Ventura4, a autora coloca importantes reflexões acerca 
desta questão e mostra que as crianças e adolescentes autistas, psicóticas e com outros 
transtornos estavam fora das tradicionais unidades hospitalares psiquiátricas e 
“aparentemente protegidas pela mortificação imposta pela lógica asilar”. As crianças 
estavam sendo submetidas à exclusão, embora legalmente protegidas. Após um longo 
trabalho de pesquisa a Coordenação da Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro 
identificou a existência de 850 crianças e adolescentes vivendo em abrigos, que na 
verdade eram depósitos humanos do descaso público com a infância. Esses abrigos não 
estavam incluídos no sistema formal de saúde, fazendo, pois, parte da assistência social. 
Exclusão é a palavra que mais representa a assistência que era oferecida a esta clientela, 
uma vez que “abrigadas” não faziam parte de nenhum tratamento psicológico, nem 
educacional. Abrigava-se tudo: o externo, ao fechar os muros institucionais, e o interno, 
mortificando os corpos que nele residiam. Embora alguns recebessem a visita dos 
familiares, nenhum trabalho era feito para que a criança pudesse retornar à casa dos pais. 
Estes eram também excluídos enquanto sujeitos que poderiam e deveriam ser escutados 
pela instituição. O abrigo embora seja definido em lei como “medida provisória e 
excepcional estava sendo utilizado como medida de reclusão”5. 
Falar, então, da história da reforma psiquiátrica da criança e adolescente faz-nos 
reportar aos primeiros momentos da história da reforma psiquiátrica brasileira. O 
momento em que se discutia a criação dos grandes asilos e sua função de exclusão. Foi 
preciso adentrar na realidade dos abrigos para que a reforma psiquiátrica no campo da 
infância e adolescência ganhasse mais voz na cidade do Rio de Janeiro. Eu mesma tive a 
oportunidade de conhecer um abrigo, na ocasião para discutir um caso clínico, e senti 
aquele cheiro peculiar dos asilos psiquiátricos, que tão bem conhece quem já adentrou em 
um. 
 
4 COUTO, Maria Cristina Ventura. Novos Desafios À Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da 
construção de uma política de saúde mental para crianças e adolescentes. (mimeo). Rio de Janeiro. Pg. 64 
5 Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8.069-13/07/1990). 
 xv
Lendo o “Relatório Final do Processo de Avaliação das Crianças e Adolescentes 
Internos de um abrigo”, o CAD I (Centro de Assistência ao Deficiente) que foi realizado 
pela equipe de Saúde Mental da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro em agosto e 
setembro de 2000, uma passagem me chamou a atenção: 
 
“O alojamento localizado no mezzanino do segundo prédio possui aberturas amplas com 
grades, sem vidros ou qualquer outra proteção contra o frio, [...] o teto não possui forro; em sua 
quase totalidade os leitos da unidade são beliches, inadequados para menores com distúrbios 
neuropsiquiátricos; o número de cobertores e travesseiros encontrados era muito inferior ao 
número de internos na instituição; os banheiros das enfermarias não apresentavam boxes para 
os vasos sanitários e nenhum dos chuveiros possuía aquecimento; na entrada da unidade há uma 
piscina sem qualquer proteção; a quase totalidade das crianças encontrava-se descalça e 
insuficientemente vestida e a maioria das crianças examinadas apresentava-se descorada, com 
escabiose e diversas cáries dentárias; a maioria dos prontuários pesquisados não possuía 
qualquer anotação médica referente ao corrente ano, em alguns a última anotação médica 
datava de 1998”. 
 
É difícil ler esta observação sobre o local de moradia das crianças sem que isto nos 
reporte a autores como Goffman que tão bem escreveu sobre as instituições totais. Para 
este autor o aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das 
barreiras que existem na sociedade moderna, que separam da vida do sujeito o lugar onde 
dormir, brincar e trabalhar. De acordo com ele, em tais instituições todos os aspectos da 
vida são realizadas no mesmo local e sob uma única autoridade. Cada fase da atividade 
diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande 
de pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em 
conjunto. As atividades diárias são estabelecidas em horários por um sistema e um grupo 
de funcionários e visam a atender aos objetivos oficiais da instituição. 
 No manicômio há a produção de um corpo doente descaracterizado de questões 
sociais e desvinculado da história de vida do paciente. O sujeito é destituído de sua 
identidade e vivencia a experiência da internação como mortificadora, pois o único olhar 
possível é o olhar biológico. O olhar enfoca a doença e não o sujeito como um ser humano 
complexo, que está necessitando de uma ajuda específica num determinado momento de 
sua vida. A descrição dos grandes asilos psiquiátricos apontados pelo autor não me parece 
muito diferente das descrições existentes no relatório da Assessoria de Saúde Mental do 
Estado do Rio de Janeiro, onde a equipe coordenada por Cristina Ventura identificou os 
 xvi
arquivos do CAD I como “pastas-depósito”, com “nomes sem referência, endereços 
perdidos, datas confusas”, etc. 
A descrição do CAD deixa claro o abandono junto à exclusão. Na nossa realidade a 
falta de investimento eficaz nos cuidados com crianças e adolescentes faz a exclusão do 
asilo mais repugnante: “manicômios, prisões e conventos” de indigência. 
 No relatório havia ainda um dado muito importante e que reafirma a aproximação 
do funcionamento deste abrigo como um manicômio: No CAD I estavam listadas 61 
crianças e adolescentes e 55 delas foram avaliadas. No estudo realizado sobre a inserção 
social da criança na rede social daquela comunidade (Jacarepaguá) foi identificado que 
apenas duas crianças internas estavam freqüentando a escola da rede pública. Os outros 53 
não participavam de nenhuma atividade como esporte, lazer ou outra proposta fora dos 
muros da instituição. Mesmo nos casos de doença, apenas os casos de emergência eram 
atendidos. Emergência esta que eles mesmos definiam, o que comprometia em muito a 
avaliação. 
 Luciano Elia e Maria S.E.Galvão chamam a atenção para a instituição fechada. 
Dizem eles: 
 
 “A instituição fechada não o é apenas no sentido descritivo e imediato de não ser aberta ao livre 
movimento do ir e vir de seus usuários, mas é fundamentalmente fechada a todo e qualquer saber e 
a todo e qualquer fazer (clínico, social, educacional, comunitário, humanitário, e outros)” 6. 
 
 O resultado último para os autores é, portanto, a repetição “morta e mortificante do 
mesmo”. A mesmice é tomada como algo natural pela instituição e o diferente passa a ser 
aquele que foge a essa regra. 
É exatamente onde os seres humanos são tomados como amorfos que a psicanálise se 
diferencia. A escuta do sujeito psicótico torna-se uma ética imprescindível sustentando 
uma posição radicalmentesingular. Um delírio que para a psiquiatria só é revelado como 
fenômeno e calado neste lugar, pois não tem um sentido, é para a psicanálise uma 
“tentativa de cura ou uma reconstrução”7 implicando o analista na escuta desse sentido. 
 
6 ELIA, Luciano e GALVÃO, Maria Silva. Estratégias de desconstrução da instituição fechada e produção 
de subjetividade. In: Almeida, N. & DELGADO, p (org). De Volta à Cidadania. Rio de janeiro, IFB, 2000. 
Pg, 71 
7 FREUD, S. Neurose e Psicose In Edições Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. 
XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Pg. 191. 
 xvii
Trabalhar num CAPS que diz respeito ao campo da infância e adolescência convoca 
ao aprimoramento de um trabalho clínico extremamente importante. São sujeitos que 
precisam falar de seus sofrimentos e que necessitam encontrar no CAPS disponibilidade 
para essa escuta. No trabalho com crianças e adolescentes autistas e psicóticas a palavra 
verbal nem sempre ocorre e este é um trabalho que precisa ser suportado pelos que com 
esses sujeitos trabalham. Sustentar essa posição, do não recuo frente ao que 
aparentemente é sem sentido, possibilita a construção de um trabalho subjetivo com as 
crianças e também com seus pais, fazendo valer o sentido do que em algumas situações 
só aparecem como “atos” aparentemente involuntários. 
 xviii
 
1.1- O ESTADO DA ARTE DO CAPSI NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 
 
O ano de 1999 marca a inauguração de um novo compromisso com a o Campo da 
Infância e Adolescência no que diz respeito ao atendimento das crianças e adolescentes 
com graves transtornos como o autismo e a psicose. Estas crianças que não eram tratadas 
no campo da Saúde Mental, pois só contavam com o recurso da Educação Especial, 
passam a ter prioridade no atendimento Infanto-juvenil a partir dessas discussões sobre a 
importância de CAPSI para os transtornos mentais graves. 
Com a finalidade de diminuir os problemas relacionados ao atendimento da criança e 
do adolescente na área de saúde mental e criar uma rede articulada de atenção, a 
Assessoria de Saúde Mental da Secretaria do Estado de Saúde do Rio de Janeiro criou em 
abril de 2000 um Fórum Inter-Institucional para o Atendimento em Saúde Mental de 
Crianças e Adolescentes com o objetivo de convocar diferentes setores implicados no 
atendimento dessa clientela. Segundo a coordenadora do Fórum, Cristina Ventura8 
 
 “A necessidade de construir balizamentos políticos, técnicos e clínicos calcados em decisões 
coletivas, discutidas e pactuadas entre os diferentes atores e agentes dos campos jurídico, 
assistencial, educacional e do campo da saúde mental, para a definição das linhas gerais de uma 
política para o atendimento de crianças e adolescentes, deu sustentação para a montagem deste 
Fórum”. 
 
O Fórum têm uma particularidade importante que é a discussão dos impasses a partir 
da clínica, o que faz com que o Fórum concerne também uma dimensão de formação. As 
discussões dos impasses clínicos dos casos apresentados por cada Serviço são muitas 
vezes fundamentais para o estabelecimento de novas diretrizes necessárias para esse 
campo. 
No Estado do Rio de Janeiro já temos 12 CAPSI em funcionamento, sendo os seis 
primeiros cadastrados e os outros seis ainda não cadastrados, mas em funcionamento. Os 
 
8 COUTO, Maria Cristina Ventura. Abrigos para “Menores Deficientes”: Seus impasses Clínicos, 
Assistenciais e Éticos. In: Almeida, N. & DELGADO, P (org). De Volta à Cidadania. Rio de janeiro, IFB, 
2000. Pg, 64-65 
 
 xix
CAPSI são: CAPSI Pequeno Hans (Sulacap), CAPSI Eliza Santa Roza (Jacarepaguá), 
CAPSI Estação Viver (Barra Mansa), CAPSI Viva Vida (Volta Redonda), CAPSIJ 
(localizado no Centro de Atenção e Reabilitação da Infância e Mocidade/IPUB), CAPSI 
Duque de Caxias (Caxias) Petrópolis, CAPSI Zé Garoto (São Gonçalo), CAPSI Belford 
Roxo (Belford Roxo), CAPSI Dom Adriano (Nova Iguaçu), CAPSI de Campos, CAPSI 
Monteiro Lobato (Niterói) e CAPSI Silvia Ortoff (Petrópolis). 
A III Conferência Nacional de Saúde Mental realizada em dezembro de 2001 marca a 
construção de uma política pública de saúde mental para a infância e adolescência. O 
CAPS foi definido como modo operacional, como um pólo de base territorial que está 
sempre em referência à pluralidade de modalidade de serviços existentes na rede. Entre 
outras atribuições que ao longo deste trabalho serão discutidas o CAPSI foi instituído 
como o Serviço que têm como uma de suas prioridades de ação os projetos de 
desospitalização e desinstitucionalização. 
A consolidação dos CAPSI no Estado do Rio de Janeiro tem sido amplamente 
discutida pela Gestão de Saúde Mental do Estado, num trabalho de parceria importante 
nesse processo. Algumas discussões reafirmam a importante tarefa desses dispositivos de 
atenção em seu cuidado diário e extremamente delicado que a clínica com essas crianças 
convoca. Um ponto muito importante que foi determinado numa reunião do Ministério da 
Saúde realizada no ano de 2003 coloca que a supervisão clínico-institucional é condição 
absolutamente necessária neste trabalho, uma vez que a equipe deve responder às 
exigências éticas que são colocadas. A função é: 
 
 “garantir a fala produtiva de efeitos nesse espaço, do que a presunção de ensinar o que se 
deve fazer. Considera-se que a prática da atenção e do cuidado a criança e ao adolescente com 
grave sofrimento psíquico e risco social desenvolve-se em um universo sobre o qual o saber não 
antecipa integralmente o fazer, o que situa esta prática no campo da pesquisa permanente e dos 
incessantes avanços e descobertas” 9 
 
No Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial realizado no mês de 
junho de 2004 em São Paulo vários representantes de CAPSI de todo o Brasil (são 38 
CAPSI) estiveram presentes. Foi um encontro bastante importante, onde observamos que 
 
9 MINISTÉRIO DA SAÚDE/COORDENAÇÃO DE SAÚDE MENTAL. Relatório da reunião MS-OPAS. 
03/10/2003.Pg4. 
 xx
a diversidade de cada região determina o modo como cada serviço organiza sua prática e 
constrói sua clínica. Há pontos interessantes a serem destacados. A supervisão clínico-
institucional ainda não é a regra, mas exceção. Muitos lugares trabalham sem supervisão, 
o que tem determinado um recuo no atendimento das crianças e adolescentes autistas e 
psicóticas. Alguns profissionais colocaram que “não sabem atender autista” e que a 
supervisão que recebem é de uma vez por mês, quando existe. Por outro lado, 
observamos também um grande desconhecimento sobre a clientela privilegiada a ser 
atendida no CAPSI. A Portaria 336, já mencionada neste trabalho e que determina as 
prioridades de um CAPSI é em algumas cidades pouco conhecida e pouco praticada. 
Algumas questões como: que clientela é para um CAPSI? Que política de saúde mental 
para a Infância e Adolescência o Ministério preconiza? Há Serviços que trabalham com a 
idéia de prevenção em saúde mental, o que coloca uma questão da própria clínica. O que 
significa trabalhar com prevenção em saúde mental? Como isto é possível? 
Identificamos que a direção da clínica era algo sempre pouco clara nas discussões; alguns 
Serviços situaram a direção na psicanálise, mas outros pareciam sem nenhuma direção. 
Estas questões não parecem derivar da diversidade cultural, nem da constituição desse 
campo ainda muito pouco sedimentado, mas da falta de uma direção da clínica que deve 
estar presente em todo trabalho que propõe o tratamento em saúde mental. Além disso, a 
supervisão clínico-institucional seria fundamental para trabalhar a própria resistência da 
equipe em atender uma clientela tão difícil como a criança autista, por exemplo. 
 O Rio de Janeiro destacou-se como o local onde esses serviços estão mais 
estruturados, e onde atendem prioritariamentea criança psicótica e autista, trabalham com 
supervisão, numa rede de discussão pactuada com a gestão municipal e Estadual. 
Ventura, num grupo de trabalho em São Paulo colocou dois pontos importantes para 
solidificar as diretrizes do trabalho do CAPSI: 1) Do CAPSI ser um projeto público de 
saúde mental, com rigor e princípios que incitam verificação e cuidado permanente; 2) O 
fato de uma criança ser um sujeito, valorizando a necessidade de retirar todas as 
conseqüências dessa afirmação. A criança tem o que dizer mesmo que não fale. 
 Apesar do número significativo de CAPSI já instituídos, notamos que a falta de 
uma direção clínica em vários CAPSI impede que a decisão do atendimento aos casos mais 
graves de fato ocorra, tornando o CAPSI um dispositivo muitas vezes muito semelhante ao 
 xxi
ambulatório, que escolhe os pacientes a partir de um perfil diagnóstico. No nosso ponto de 
vista o não recuo, preconizado pelo Ministério da saúde, aos casos como o do autismo e da 
psicose na infância requer fundamentalmente uma clínica que inclua em sua diretriz ético-
metodológica o sujeito da criança autista. 
 
 xxii
 
1.2- O CAPSI ELIZA SANTA ROZA: SEUS IMPASSES E POSSIBILIDADES 
 
No início desse ano foram realizados no CAPSI Eliza Santa Roza um Censo e um 
Seminário Interno, para que pudéssemos construir um panorama geral de alguns impasses 
que já estavam se apresentando na clínica do CAPSI: como acolher uma paciente sem 
que isto implique sua absorção no Serviço? CAPSI pra quem? Como o diagnóstico deve 
ser pensado num CAPSI que tem como direção clínica a psicanálise? Por que numa 
situação de crise alguns dos profissionais recorrem imediatamente ao psiquiatra, mesmo 
dentro do CAPSI? Por que os CAPS de adultos não querem receber os casos dos autistas 
com mais de 18 anos, já que seriam elegíveis para este dispositivo? Por que um serviço 
como um CAPSI ainda apresenta um ambulatório de pacientes que só estão contando 
com a psiquiatria como tratamento? Como resolver este impasse, uma vez que não temos 
mais vagas para absorver esta clientela? A rede de saúde mental não poderia atender 
alguns casos graves, onde o laço social não estivesse rompido? O que significa apostar no 
sujeito da criança autista num trabalho como CAPSI? 
Podemos tentar pensar nessas questões a partir de dois eixos, que estão 
necessariamente articulados: o da clínica e o institucional. Para isso é necessário definir 
primeiro o que estamos chamando de clínica. 
A clínica que apostamos ser a que melhor oferece a possibilidade de um trabalho com 
pacientes tão graves no CAPSI, devido à sua condução ética, teórica e metodológica é a 
da psicanálise. Pensar que os impasses devem ser pensados a partir da clínica já marca 
uma direção do trabalho e dizer que esta clínica é a da psicanálise configura-se como um 
passo fundamental no CAPSI. 
Podemos dizer que a clínica da psicanálise configura-se no a posteriori, ou seja, na 
construção de um trabalho onde o sujeito é sempre o primeiro a ser escutado. Esta 
metodologia fundada por Freud mostra-se muito importante no trabalho com uma 
clientela tão grave, que muitas vezes já chegam no CAPSI com seus diagnósticos e 
medicações, sem que nenhuma escuta cuidadosa tenha sido realizada. A clientela que 
procura o CAPSI o faz a partir de seu sofrimento e é deste lugar que a psicanálise é 
 xxiii
convocada a fazer sua escuta. Mais do que isso, é exatamente a partir deste lugar que ela 
se diferencia, não recuando, nem dirigindo sua escuta. Nas “regras” da psicanálise 
apresentadas por Freud10 destaca-se o fato do psicanalista não direcionar o paciente, que 
diga o que ocorre em sua cabeça, da forma que for, sem que haja uma direção, que não a 
do próprio inconsciente. Desta forma, as primeiras entrevistas já são propriamente o 
início de uma psicanálise. As “regras” da psicanálise, que Freud nomeia como 
“recomendações”, devem ser utilizadas, segundo Freud, na sua relação com o plano geral 
do jogo. O autor faz uma comparação entre a psicanálise e o jogo de xadrez, dizendo que 
o exercício do tratamento psicanalítico encontra-se com as mesmas limitações desse jogo. 
Diz ele: “todo aquele que espere aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo 
descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação 
sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a 
abertura desafia qualquer descrição desse tipo”11. Quando abrimos a possibilidade de 
escutar um paciente não sabemos até onde iremos, pois não podemos prever nada a 
priori. É no só-depois de cada palavra trazida pelo paciente e da transferência 
estabelecida que teremos condições de pensar sobre o caso que recebemos. Freud aponta 
a cautela que devemos ter em não fazer da técnica uma regra em si mesma, mas de 
reconhecê-la dentro de um contexto. 
Estas recomendações metodológicas são fundamentais para pensarmos na clínica que 
desejamos no CAPSI, pois elas falam sobre o modo como recebemos e acolhemos cada 
paciente. O CAPSI tem o mandato de acolher para uma escuta quem chegar ao Serviço. 
Essa determinação está de acordo com a psicanálise, mas em vários CAPSI, 
principalmente fora do Estado do Rio, isto é um ponto de impasse, particularmente 
quando estamos discutindo a questão do diagnóstico. Há serviços que trabalham a partir 
dos diagnósticos e não a partir de uma escuta, o que é uma questão a ser pensada na 
direção da própria clínica. No CAPSI Eliza Santa Roza tivemos várias discussões sobre 
esta questão e chegamos à conclusão de que não será o diagnóstico que norteará nossa 
escuta, não será ele o ponto de partida, para saber se a criança ficará ou não no Serviço, 
mas a perda dos laços sociais dessa criança. Optamos por incluir o diagnóstico, seguindo 
 
10 FREUD, S. Sobre o Início do tratamento (Novas Recomendações obre a Técnica da Psicanálise) In Edições 
Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud. Vol. XII. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. 
11 Idem, Ibdem. Pg. 164. 
 xxiv
a direção apresentada por Freud no texto já citado, onde o diagnóstico é identificado 
como um elemento clínico importante, que faz parte do tratamento da psicanálise. Em 
outro texto Freud12 nos convida a pensar no diagnóstico para além dos fenômenos, ou 
seja, num diagnóstico estrutural, uma vez que ele só pode ser realizado a partir de uma 
escuta ao longo do próprio tratamento. Esta questão pode parecer óbvia e simples, mas é 
extremamente complexa, uma vez que convoca o profissional a suspender sua ansiedade 
em dar respostas apressadas na busca de uma solução, que na maioria das vezes só 
beneficia a instituição que “resolve” rapidamente mais um encaminhamento. 
Essa direção ética e metodológica também traz muitas dificuldades no cotidiano do 
CAPSI, pois nos convoca a lidar com o próprio paradoxo do CAPSI, que já foi 
mencionado: como acolher sem que isso signifique necessariamente absorver? E como 
tornar esse acolhimento já uma primeira escuta, mesmo que o paciente não seja elegível 
para o tratamento do CAPSI? 
Ao longo do trabalho realizado no CAPSI temos observado que para muitos pacientes 
a possibilidade de ser acolhido no Serviço e escutado de forma cuidadosa, sem uma 
pressa em realizar diagnósticos e oferecer encaminhamentos, já é um atendimento que 
traz modificações, às vezes surpreendentes, em suas vidas. Para ilustrar temos um 
exemplo de uma triagem de um menino de 11 anos que fora encaminhado para o CAPSI 
pelo seu fisioterapeuta, porque após uma brincadeira na rua ele começou a apresentar 
muitas dores nas pernas e dificuldades em andar. Nenhum exame clínico justificava esta 
dificuldade e o profissional suspeitou de problemas psicológicos. 
Nas primeiras entrevistas realizadas no CAPSI não identificamos nenhum elemento 
da história de vida desse menino que justificasse tal encaminhamento,mas o profundo 
sofrimento que ele apresentava pelo fato de não poder andar foi o que nos levou a acolher 
este caso. A família estava completamente desesperada, correndo para vários lugares e 
não cabia encaminhá-lo para um Posto de Saúde, porque ele não era autista, psicótico ou 
neurótico grave. Encaminhá-lo seria causar mais um sofrimento, uma vez que ele 
precisava e desejava falar sobre todas as modificações que estavam ocorrendo em sua 
vida. Não foi o diagnóstico que nos fez atender essa criança, nem o critério de laços 
 
12 FREUD,S Histeria .(1888). In Edições Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud. Vol. II. 
2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. 
 xxv
interrompidos, nem mesmo a necessidade de uma equipe multidisciplinar, mas o 
sofrimento da criança e da família. 
 O trabalho que o CAPSI pôde realizar neste caso perpassou os muros da instituição, 
uma vez que o menino precisou ser internado por mais de dois meses para fazer exames. 
Um profissional o acompanhou durante todo este tempo de investigações diagnósticas 
oferecendo sua escuta no hospital e posteriormente no CAPSI, até sua alta. Após vários 
exames, um tipo de leucemia, o mais brando, foi diagnosticado e o menino iniciou os 
tratamentos necessários, recuperando em poucos meses seus movimentos. Esse caso é 
bastante curioso, pois mostra como a escuta sustentada pela psicanálise é imprescindível 
nesse trabalho: Acolhemos a fala do menino que estava marcada pelo sofrimento, não 
sabíamos até onde o caso seria atendido, nem nos baseamos no diagnóstico para acolher o 
paciente e todo o fruto do trabalho só foi possível porque houve esta direção ética, clínica 
e metodológica. 
Freud13 afirma que em psicanálise “pesquisa e tratamento coincidem” o que nos faz 
responsáveis por qualquer caso que chega no CAPSI, mesmo que posteriormente ele seja 
encaminhado. O encaminhamento é necessariamente um procedimento clínico, onde o 
paciente e o profissional estão implicados na decisão institucional. 
O trabalho construído cotidianamente no CAPSI Eliza Santa Roza tem tentado 
sustentar essa posição da psicanálise que é o trabalho com o sujeito do inconsciente. 
Contudo, é importante avançarmos sobre essa direção clínica tão necessária de trabalhar 
com o sujeito da criança autista e psicótica no CAPSI. É sobre seus impasses e 
dificuldades que pretendemos avançar no próximo capítulo, definindo melhor as 
implicações dessa posição e a relação do CAPSI neste projeto. 
 
13 FREUD, S. Recomendações aos Médicos que exercem a Psicanálise. In Edições Standard Brasileira das 
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol XII. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Pg. 152 
 xxvi
 
CAPÍTULO 2: POR QUE A DIREÇÃO DA PSICANÁLISE 
 
 
Resumo: Este capítulo tem como objetivo trabalhar a importância da psicanálise na clínica do 
CAPSI Eliza Santa Roza, uma vez que o trabalho com crianças autistas e psicóticas nesta 
instituição exige uma escuta tal qual a psicanálise sugere: de um sujeito do inconsciente. 
 
 
 A tentativa de discutir a importância da direção da psicanálise no 
CAPSI Eliza Santa Roza tornou-se ponto fundamental para a 
constituição da clínica nesta instituição. Mas por que escolhemos a 
psicanálise como direção? O que ela tem de singular para contribuir neste 
campo da saúde mental? 
 O primeiro ponto importante a ser colocado diz respeito à 
especificidade deste CAPSI, que está situado na área da Área 
Programática (AP4) de Jacarepaguá. Como sabemos é uma área que 
concentra um grande número de hospitais psiquiátricos e abrigos, além 
de uma população de 800.000 habitantes. Esses dados são importantes, 
pois recebemos no CAPSI um grande número de pacientes que residem 
em clínicas conveniadas com o S.U.S (Sistema Único de Saúde) e 
moradores de abrigos desta região. São crianças e adolescentes 
institucionalizados por longos anos e que nunca tiveram qualquer 
tratamento. Recebemos uma grande quantidade de pacientes psicóticos e 
autistas dessas instituições, que apresentam situações muito graves e 
difíceis de serem conduzidas na clínica. Além desses, há os casos 
 xxvii
encaminhados pela rede (escolas, conselhos tutelares, lares abrigados) e 
demandas espontâneas que nos chegam cotidianamente. 
 O CAPSI existe desde 2001, ano de sua inauguração. A equipe é 
multiprofissional e a direção da psicanálise é algo bastante novo para a 
mesma. Antes de se transformar em CAPSI, parte da equipe já 
trabalhava no chamado COIA (Centro de Orientação à Infância e 
Adolescência), ambulatório que funcionava neste mesmo lugar. Esta 
configuração diz muito sobre o CAPSI, pois faz parte da sua constituição. 
Quando a psicanálise chegou como direção deste trabalho, que estava se 
transformando em CAPSI, houve muita resistência por parte de alguns 
profissionais da equipe. Uns porque tinham uma outra direção de 
trabalho clínico e outros porque não tinham nenhuma familiaridade com 
o campo da psicanálise. A nova proposta os assustava, e, além disso, 
colocava-se desde o primeiro momento um rigor que é próprio da 
psicanálise. Podemos pensar, por exemplo, na própria discussão clínica 
dos casos, que não era realizada por um supervisor para toda a equipe. 
Não havia a construção de uma clínica compartilhada, que começou a 
ocorrer com a construção de uma nova lógica a partir da psicanálise. 
Uma lógica que perpassava a discussão dos casos e que ao longo desses 
anos expandiu-se para todo o CAPSI, que partia de um impasse na clínica 
do caso a caso para pensar o arranjo institucional. 
 Há diversas situações no cotidiano do CAPSI que nos convocam a 
pensar no impasse que a construção de uma direção marcada pela 
psicanálise pode enfrentar no campo da reforma psiquiátrica, que 
sustenta como ponto de partida uma lógica universalizante dos direitos 
dos usuários. Na clínica da infância e adolescência no CAPSI, não 
raramente, estas questões trazem problemas desde o início do trabalho, 
 xxviii
uma vez que as famílias, que muitas vezes chegam apenas solicitando um 
laudo médico para obter um "benefício" do CAPSI, recorrem ao pedido 
como um "direito" para a criança e/ou adolescente. Este direito expressa-
se em um pedido de obter recursos financeiros sustentados por um laudo 
que incapacita o filho e o define legalmente como um assujeitado. Fazê-los 
falar e pensar nas questões do direito para além do campo jurídico não 
tem sido tarefa fácil, uma vez que a psicanálise os convoca a perguntar o 
que estas questões falam sobre eles enquanto sujeitos. 
A responsabilidade do sujeito apresentada pela direção da psicanálise abre a 
possibilidade de ouvirmos algo que num primeiro momento é impossível para os familiares 
das crianças atendidas no CAPSI, uma vez que estão aprisionados numa única direção, que 
é a dos direitos sociais. Não se trata aqui de negligenciar esta questão, mas de não tomá-la 
de pronto, sem escutar o que cada responsável quer dizer quando diz que necessita de um 
"benefício". Consideramos importante pensar nestas questões, pois esta dissertação se 
propõe a pensar na contribuição da psicanálise neste campo, torna-se questão fundamental 
levantar estas discussões que permeiam a clínica da psicanálise neste dispositivo tão 
recente. 
Mas o que estamos chamando de rigor da psicanálise? Podemos 
partir do princípio ético que é colocado pela psicanálise que é a escuta do 
sujeito a partir do seu inconsciente. A discussão do sujeito, que é própria 
da psicanálise, não é tarefa fácil, mas extremamente necessária nesta 
clínica que trabalha com crianças e adolescentes tão graves, onde a aposta 
da existência desse sujeito, que precisa ser escutado, torna-se condição da 
própria clínica neste dispositivo. Ou seja, uma aposta que vai modificar a 
maneira como cada sujeito será escutado, uma vez que o surgimento desse 
sujeito é trabalhodo próprio CAPSI. É a partir do CAPSI, ou seja, dos 
profissionais que estão aí colocados para escutar esse sujeito, que o 
 xxix
mesmo poderá surgir, uma vez que há necessariamente uma aposta na 
emergência desse sujeito. 
É este o rigor que clínica psicanalítica nos convoca: a escuta do 
inconsciente deste sujeito. Faz-se necessário discutir esta questão e para 
isto recorreremos a Lacan e outros autores do campo da psicanálise. 
O texto de Lacan "A ciência e a verdade" 14 aponta a importância de estudar 
como a concepção de sujeito em psicanálise é entendida, corroborando a idéia de 
que falar em sujeito já pressupõe uma concepção psicanalítica, pois este foi definido 
pela psicanálise e sempre que nos remetemos à palavra sujeito, já está colocada uma 
concepção psicanalítica. 
Lacan afirma no texto que o sujeito da ciência é o mesmo que o da 
psicanálise, contudo a ciência não "opera" com o sujeito tal como a psicanálise. 
Coloca que a psicanálise como prática e que o inconsciente de Freud como 
descoberta, seria impensável antes do nascimento da ciência, marcando no texto o 
século XVII como o século do talento. Diz que o sujeito está no âmago da diferença 
e reforça que é exatamente pela psicanálise ser radicalmente não humanista, não 
idealista, que sua diferença será colocada para sempre. 
O autor faz uma crítica importante sobre as chamadas "ciências humanas" 
após afirmar que o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. Critica as 
ciências que tentam a todo custo se enquadrar em uma lógica idealista e humanitária 
e diz que "a posição do psicanalista não deixa escapatória, já que exclui a ternura da 
bela alma".15 
Essas primeiras considerações podem parecer simples, mas são 
extremamente difíceis de serem trabalhadas na prática. Como dizer num CAPSI que 
apresenta uma equipe multiprofissional que o sujeito prioritariamente a ser escutado 
não é o do campo social? No dia a dia desta clínica isto é bastante difícil, pois há 
um desejo por parte dos profissionais de responder às demandas que chegam com 
sua urgência de atendimento nesses campos ditos sociais. Não quero dizer com isto 
 
14 LACAN, Jacques. Escritos: A ciência e a Verdade (1965-66). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor., 1998.pg 
879-873. 
15 Idem, ibidem. Pg.873. 
 xxx
que os pedidos não são pertinentes numa clientela que traz muitos problemas sociais 
desde o início. Por outro lado, a própria clínica tem nos apontado que responder a 
esta demanda faz com que o trabalho que aponta para uma escuta subjetiva fique 
paralisado. 
No texto Posição do Inconsciente16 Lacan diz que o ideal é servo da 
sociedade e critica a psicologia dizendo que ela é um veículo a serviço dos ideais. 
Em outro texto17 volta a criticar a psicologia e os demais conhecimentos que 
valorizam a consciência como possibilidade de saber. Para este, no campo 
freudiano, apesar das palavras, a consciência é um traço “caduco”, que não serve 
para basear o inconsciente. A importância de escutar algo que aponta para além da 
consciência, ou seja, o inconsciente, com todo seu “tropeço” como diz Miller18, é 
que remeterá a verdade do sujeito. 
Lacan toca em algo que é fundamental e que marca, como ele mesmo diz, 
uma ruptura da psicanálise. Para esta uma verdade não corresponde necessariamente 
um saber, como colocado na ciência. Não há furos na ciência que possam ficar 
abertos, e quando não há respostas para problemas ainda não solucionados, é porque 
a ciência ainda não o encontrou. O autismo, por exemplo, é sempre apresentado na 
psiquiatria biológica como uma doença ainda não curável, porque um remédio 
específico não foi descoberto. O ainda parece marcar exatamente a precisão das 
respostas que estão em aberto, mas que pretendem ser fechadas num futuro 
promissor. 
A psicanálise, pelo contrário, partirá da fala do sujeito tomando como ponto 
de partida o não fechamento do que o sujeito muitas vezes traz como um saber 
consciente e consistente. E o analista sustentará exatamente a posição de não saber, 
posição radicalmente diferente de um cientista. 
Luciano Elia19 demonstra que: "A ciência constitui-se como um corpo discursivo 
cujo coração (o sujeito) é extraído, expelido para fora deste corpo, mas de forma alguma 
 
16 LACAN, J. Escritos: posição do Inconsciente (1960-64). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor, 1998.Pg 846. 
17 LACAN, J. Escritos :Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar. Editor, 1998. Pg 813. 
 
18 MILLER, J.A. Para ler o Seminário 11 de Lacan: Contextos e Conceitos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 
1997. 
19 ELIA, Luciano. Uma Ciência sem coração. Agora, VII. Nº 1, 1999. .Pg 49 
 xxxi
inexistente, de modo algum eliminado. Fora do corpo, ele pulsa, consistente, e se oferece à 
apreensão discursiva para outras formas de discurso _ as chamadas ciências humanas_ que 
não cessando, precisamente por serem humanas, de humanizar este sujeito, revestindo-o de 
qualidades anímicas a serem investidas e investigadas pela via da compreensão (verstehen 
fenomenológica por exemplo), não chegam nunca a dizer eficientemente este sujeito. 
Esta citação nos convida a pensar na prática do CAPSI, quando partimos do 
pressuposto de que devemos trabalhar com o coração e não com o corpo tomado em 
sua dimensão biológica e social. 
Lacan diz que “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” 20. 
Partindo desta convocação que a psicanálise nos propõe e tentando articular estas 
questões com as discussões da responsabilidade do sujeito cabe-nos partir das 
colocações apontadas por Lacan, para que possamos superar o engodo que o eu 
tenta nos remeter o tempo todo. 
Num trabalho de Neusa Santos Souza, intitulado “o eu e o sujeito: 
ressentimento, culpa e responsabilidade"21 a autora apresenta considerações 
importantes neste sentido. Fala sobre o desamparo primário ao qual o eu está 
submetido e sobre a tentativa desesperada que o eu tem de proteger-se através da 
relação imaginária que tenta construir com o outro, convocando-o como plenitude. 
Assim, quando esta completude não se apresenta o eu estabelece uma relação de 
ódio com o outro, uma vez que a possibilidade de identificação não foi 
correspondida. Neusa mostra que nenhum amor, nenhuma proteção protege o eu 
deste desamparo primário e coloca que o ser falante está de saída sendo lesado. 
Lacan diz no seminário 11 "o sujeito e o outro(I): a alienação"22, que se a 
psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente ela deve partir de que o 
inconsciente é estruturado como uma linguagem. Inicia falando que tudo o que o ser 
humano deve aprender como homem ou como mulher tem que fazê-lo, "peça por 
peça" do Outro. Aponta que não há nenhuma marca no psiquismo quanto as 
equivalências de macho ou fêmea, apontando desde já uma descontinuidade do 
 
20 LACAN, Jacques. Escritos: A ciência e a Verdade (1965-66), op.cit . Pg. 873 
21 SOUZA, Neusa Santos. O eu e o sujeito: ressentimento, culpa e responsabilidade. Mimeo. Rio de janeiro, 
1996. 
22 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). 2ª 
edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. , 1998. Pg 194 
 xxxii
corpo biológico para o corpo sexual. A realização do campo sexual, não é sabida, 
segundo Lacan, sendo a sexualidade instaurada no campo do sujeito por uma via 
que é a da falta. Lacan apresenta duas faltas que se recobrem: Uma que é 
corresponde a falha central e que corresponde a dialética do advento do sujeito a seu 
próprio ser em relação ao Outro. O autor diz que o sujeito depende do significante e 
que este está primeiro no campo do Outro. O significante é o que representa um 
sujeito para um outro significante e este significante no campo do Outro faz surgiro 
sujeito por sua significação. 
Tentando explicar melhor, Lacan apresenta o que chama de primeira 
operação essencial em que se funda o sujeito de alienação. Esta, segundo ele, 
condena o sujeito a só aparecer nessa divisão. De um lado ele aparece como sentido, 
produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise. O vel da alienação 
se define então por uma escolha que implica necessariamente uma perda. Como ele 
diz "qualquer que seja a escolha que se opere, há por conseqüência um nem um, nem 
outro" 23 . No exemplo "a bolsa ou a vida!" Ele mostra que a questão da perda é 
inexorável quando se faz uma escolha. Se escolhermos a bolsa perdemos a vida e 
bolsa e se escolhermos a vida temos a vida sem a bolsa. Ou seja, há necessariamente 
uma perda. Registra-se aqui a presença do que Lacan denominou da presença do 
fator letal do vel alienante: se escolhermos o ser o sujeito desaparece. 
A Segunda operação marca o que Lacan chamou de subestrutura da 
interseção. Assim, se no primeiro tempo temos a subestrutura da reunião, no 
segundo temos a interseção dos dois conjuntos. Esta Segunda operação inaugura o 
campo da transferência e é chamada a separação. 
"Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe 
faz o outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na 
experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente destacável _ ele me diz isso, 
mas o que é que ele quer?”24. Lacan diz que o desejo do Outro é apreendido pelo 
sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso. Isto é interessante pensar, pois 
só há o desejo quando a presença da falta aí se coloca. Mostra que a partir desta 
 
23 idem, ibidem. Pg 200 
24 idem, ibidem. Pg 203 
 
 xxxiii
dialética é possível a fantasia da própria morte, da própria perda e que na criança 
esta se apresenta na sua relação de amor com seus pais. 
Partimos, portanto, do pressuposto de que há uma escolha da qual o sujeito é 
sempre responsável, como já citamos anteriormente. Assim, caberá ao sujeito 
aceitar ou recusar este furo, que constituirá sua falha fundamental e "irremediável", 
como explica Neusa Santos. O sim ou o não a este furo trará conseqüências que só o 
sujeito poderá responder. A autora coloca que ser responsável é ser "capaz de 
responder por um ato de escolha e suas conseqüências, escolha que a priori não é de 
ninguém, mas que a posteriori, ao ser consumada, o sujeito afirma, inscreve sua 
assinatura." 25 
Em Freud encontramos essa noção de responsabilidade26 quando o autor 
lança a questão: "_Devemos assumir responsabilidade pelo conteúdo dos próprios 
sonhos?". É interessante que ao longo do texto Freud vai mostrar que devemos nos 
considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos, uma vez que eles 
pertencem ao próprio ser. Aqui ele aproxima as questões que temos levantado 
acima: a questão do eu e do sujeito, articuladas e presentes o tempo todo. O eu não 
existe sem o sujeito e vice-versa e é a partir desta consideração que Freud 
demonstra que não há saída possível. O autor explica que se procurarmos classificar 
os impulsos presentes em bons ou maus, temos que assumir responsabilidade por 
ambos os tipos, e se por outro lado quisermos nos afastar dos sonhos como algo 
desconhecido, inconsciente e recalcado também não estaremos compactuando com 
o que a psicanálise propõe. Para Freud o que repudiamos não apenas está em nós 
como age "desde" nós para fora. Há um id no qual o ego se assenta e a partir do qual 
foi desenvolvido. Desta forma uma separação entre o ego e o id seria "irrealizável" e 
retomando o ponto de partida podemos compreender que não há como operar o 
sujeito da psicanálise sem operarmos com o sujeito da ciência. 
 A importância dessas discussões revela a necessidade de estar atento a esta 
clínica em construção no CAPSI e que tem como direção a psicanálise. Percebemos 
que no cotidiano do CAPSI muitas vezes somos atropelados por essa via humanista, 
 
25 SANTOS, N . _ op. cit. Pg 8 
26 FREUD, S. Responsabilidade Moral pelo conteúdo dos sonhos (1925). In Edições Standard Brasileira das 
Obras Completas Sigmund Freud . Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Pg 165 
 xxxiv
que é naturalizada por muitos profissionais deste campo. Parece que o grande 
desafio deste trabalho é tentar demonstrar que há um sujeito que opera para além do 
sujeito da ciência. 
Embora o campo da reforma psiquiátrica tenha passado por inúmeras modificações, 
ainda me parece muito incipiente a escuta clínica do sujeito nestes campos de cuidado. 
Ficamos presos às concepções do campo social e surdos para o que pode advir do sujeito. 
É importante dizer que os CAPS não possuem necessariamente uma orientação da 
psicanálise, o que para mim aponta uma diferença radical. Assim, a contribuição da 
psicanálise nestes dispositivos contará necessariamente com a participação dos 
psicanalistas neste campo da reforma. 
 xxxv
2.1- A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E O CAMPO SOCIAL 
 
Dissemos no texto anterior, que a psicanálise opera com o mesmo sujeito da 
ciência, contudo, ela opera com esse sujeito que foi expelido da ciência. Para operar 
com esse sujeito a psicanálise criou condições específicas em sua metodologia, onde 
a instalação do dispositivo 
da associação livre, que é a regra fundamental, produz a emergência do sujeito do 
inconsciente através da repetição e da transferência. Ao estudar o conceito de sujeito 
Elia27 diz que essa metodologia criará condições de produção das formações do 
inconsciente _ atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas e chistes_ possibilitando a 
emergência do sujeito na experiência psicanalítica. Sujeito esse de caráter 
metafórico e pontual. 
Esse autor aponta que a regra fundamental criada por Freud coloca o crédito na 
palavra do analisando e não em sua pessoa e afirma que será através dela que teremos 
acesso ao inconsciente. Citando em seu livro a conhecida frase de Lacan “o inconsciente é 
estruturado como uma linguagem” ele demonstra como isso ocorre, convidando o leitor a 
refazer o caminho de Lacan. Nesse convite Elia sugere que toda produção do sentido é da 
ordem simbólica, seja ela falada ou não. Assim, um gesto, uma expressão do rosto, do 
corpo, uma dança, um desenho, serão produções simbólicas regidas pelo significante e, 
desta forma, verbais, por estarem na dependência do verbo significante. Não há, segundo 
ele, o pré-verbal no campo do simbólico, tampouco o não–verbal, uma vez que o domínio 
do verbal é uma condição inerente ao falante. Como ser de linguagem, o sujeito humano se 
constitui no domínio do verbal. Essa questão é interessante, pois mesmo um paciente que 
não faz uso da função da fala, como os autistas ou alguns psicóticos, está, necessariamente, 
no campo da linguagem, na medida em que é ser falante, que se constituiu em um mundo 
de linguagem, o humano. O dispositivo analítico assim colocado por Freud, pressupõe que 
o tratamento advém da palavra do paciente, supõe um saber que emergirá a partir do 
próprio sujeito. 
 
27 ELIA, Luciano. O Conceito de Sujeito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,2004. Pg 18 
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 A psicanálise insiste em dizer que o sujeito é constituído, não é inato. Ele é 
constituído a partir do campo da linguagem, sendo, portanto, efeito deste campo. Mas o que 
significa dizer isto? Elia aponta que para a psicanálise o sujeito só pode se constituir em um 
ser que por pertencer à espécie humana entrará obrigatoriamente em uma ordem social já 
constituída. Sem essa condição, reforça o autor, o ser da espécie humana morrerá. Para a 
psicanálise não há um outro contexto que não seja o do social, pois o sujeito é pensado 
como social, uma vez que sua constituição está articulada a este plano. 
O sujeito da psicanálise é constituído na relaçãocom o Outro. Será este que 
encarnará para o que culturalmente chamamos de bebê a função que Freud nomeou como 
“ação específica”, que é fundamental para a sobrevivência do ser humano desamparado, o 
recém nascido. Esse Outro não será apenas o adulto próximo, mas fundamentalmente o 
adulto que transmitirá para o bebê um conjunto de marcas materiais e simbólicas 
_significantes_ introduzidas pelo Outro. Para Elia são essas marcas que suscitarão no corpo 
do bebê um ato de resposta chamado sujeito. 
 
“O tempo próprio ao inconsciente é o a posteriori (Nachträglich, no dizer de Freud). Em 
sua experiência, o sujeito tem um encontro _ o encontro com o Outro materno, de que ora tratamos -
que se dá em determinado ponto da estrutura temporal, ou seja, em determinado momento. Só 
depois, em um segundo momento, é que esse encontro poderá ganhar, para o sujeito, alguma 
significação que permita que ele faça o reconhecimento de algum nível de sua constituição.” 28 
 
Elia diz que o significado dado ao encontro com o Outro depende do significante, 
entendendo que o significante convoca o sujeito, exige trabalho do sujeito em sua 
constituição. O autor explica que significante é o que faz significar, mas é no encontro entre 
o sujeito, ainda não constituído, e o significante que o sujeito e o Outro passam a existir. 
Quando um bebê surge em um cenário o campo da linguagem já está colocado. Ele 
é mergulhado neste campo muito antes de nascer. Não se trata aqui de uma herança 
genética, mas de um campo simbólico que é transmitido pelo Outro na relação com o 
recém-nascido. Assim, o momento da necessidade é um momento mítico, pois se nascemos 
com necessidades, nunca as experimentamos pura ou diretamente sem a mediação da 
 
28 (ibidem. Pg. 41) 
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linguagem. Este campo já está constituído, estruturado e ordenado, bem como as estruturas 
sociais e culturais. Elia aponta que a vida biológica é excluída da experiência do sujeito, 
que só se relacionará com ela por intermédio da linguagem, o que a modifica, a pulveriza e 
fragmenta. 
Essas questões que tocam no âmbito do que é o sujeito para a psicanálise e de como 
ele já está, desde sempre inserido no contexto social, são muito importantes para a 
construção da clínica no Capsi Elisa Santa Roza. Quando recebemos uma criança autista no 
Capsi fazemos uma aposta, desde o início, de que há um sujeito que opera para além do 
diagnóstico recebido. O que queremos dizer, é que o comparecimento desse sujeito só 
ocorrerá se assumirmos todas as conseqüências dessa posição. Isto implica em fazer o 
paciente falar da maneira que lhe for possível e fazer valer uma escuta que seja fiel aos 
preceitos da psicanálise. 
Um dos pontos mais caros nessa clínica do atendimento a crianças autistas e 
psicóticas no âmbito público têm sido tentar discutir a partir de uma escuta da psicanálise o 
que é garantido como “benefício”. Essa dicotomia proposta pelo campo da assistência 
social, separando o psíquico do social têm trazido muitas questões para o CAPSI. São 
exatamente essas questões que estaremos aprofundando no próximo ponto, tentando nos 
perguntar onde a psicanálise se insere neste contexto, já que há uma aposta de saída no 
sujeito. Alguma dimensão jurídica pode prescindir da clínica, quando trabalhamos com 
psicanálise? 
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2.2- DO DIREITO AO DESEJO: QUE DEMANDA UM BENEFÍCIO? 
 
Tenho participado de uma discussão importante no campo da reforma psiquiátrica 
no diz respeito ao trabalho com crianças e adolescentes. Existe um trabalho que é o Fórum 
Interestadual que é realizado uma vez por mês na Secretaria do Estado do Rio de Janeiro. 
Neste muitas discussões são realizadas na articulação clínica-política. Recentemente houve 
uma discussão sobre o atendimento aos pais realizados com crianças e adolescentes e foi 
apontado por uma profissional da Saúde Mental que no campo Infanto-juvenil havia um 
certo pudor em oferecer "o que é de direito para as pessoas". Esta questão me tocou 
profundamente, pois no CAPSI temos muitos casos de crianças que chegam para o 
tratamento e os pais logo nas primeiras entrevistas apontam a necessidade de obterem um 
"benefício" em dinheiro. Este "é direito" das crianças que apresentam problemas 
considerados de ordem mental e faz com que elas sejam aposentadas desde pequenininhas. 
Assim, temos pais onde a criança tem sete anos ou menos que fazem uso deste benefício 
(muitos já chegam ao CAPSI com este benefício). Mas será que o nosso trabalho em 
psicanálise é prover isto? Como marcar uma escuta singular sem cair na questão primeira 
de dar um benefício? Isto é uma tensão no CAPSI, pois há profissionais que acham que isto 
deve ser oferecido, uma vez que a família "precisa" e outros que querem escutar o que é 
este pedido primeiro, ou seja, escutar o sujeito que faz este pedido. 
Se partirmos das discussões apresentadas nos textos anteriormente citados 
podemos pensar que o "direito" aí colocado como lógica geral, está sendo tomado 
no corpo social pautado num ideal de direitos e de ideal de criança, pois sem escutar 
o que o sujeito pode dizer sobre si, isto é definido como regra básica e indiscutível. 
E o que ganharíamos caindo no ideal do que é bom? Não é exatamente o contrário 
que tentamos fazer em psicanálise? Como fica a questão da responsabilidade do 
sujeito, quando partimos deste princípio? 
Um caso muito interessante está sendo atendido no CAPSI e tentarei 
exemplificá-lo para ilustrar a delicadeza desta situação. Um menino autista 
contando 05 anos na ocasião de chegada no COIA (nome do ambulatório, que foi 
transformado em CAPSI) foi atendido por um psiquiatra do serviço. A mãe, que 
leva o filho ao atendimento apresenta uma situação extremamente miserável: diz 
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não ter dinheiro para comer, sair, vestir-se etc. e solicita do psiquiatra um laudo 
médico para obter um benefício. No que este nega o pedido falando que primeiro 
era importante uma avaliação, esta sai e não retorna mais. O médico tenta contato, 
mas este é em vão. 
Depois de dez meses Inês (como chamarei a mãe), retorna com o filho 
Eduardo, que é encaminhado para uma psicóloga e são iniciadas avaliações para que 
um outro tipo de atendimento, além do psiquiátrico fosse realizado. Eduardo fazia 
um acompanhamento com o psiquiatra, mas não tomava nenhuma medicação. Nas 
entrevistas com a nova psicóloga Inês volta a demandar o benefício. Fala sobre suas 
péssimas condições de vida, de "ratos do tamanho de gatos que passam pelos corpos 
das crianças" (ela tem dois outros filhos e está grávida de um quarto) e de como 
seria importante conseguir esta ajuda. Na história familiar há relatos de que a mãe 
quando estava grávida de Eduardo tomava pílulas e usava preservativos de "tanto 
que não queria outro filho" e de que ficou muito surpresa quando ao cair da laje 
grávida soube que Eduardo, que estava na barriga, não havia morrido. Inês diz que 
Eduardo pouco se mexia na barriga e que ela chegou a pensar que o filho nasceria 
"morto". Surpreende-se ao perceber que o filho nasceu "normal". Neste momento 
Eduardo fala apenas as palavras "mãe", "pai" e "Brasil" (mãe diz que gosta de 
futebol). 
Nas entrevistas preliminares Eduardo não dirige nenhum olhar para a 
psicóloga, mantendo-se aparentemente ausente. Anda para todos os lados, sem 
conseguir centrar-se em nenhuma atividade. O mesmo teve o diagnóstico de autista 
quando contava quatro anos de idade, mas Inês negava este diagnóstico dizendo que 
o filho era "normal". Apesar desta fala, ela conta que ele se morde e bate com a 
cabeça na parede o tempo todo quando está em casa. 
O pai, segundo informações da mãe, apresenta problemas na coluna e, por 
isso, tem dificuldades para trabalhar como pedreiro, que é sua profissão. Também 
sofre de artrite e não consegue andar em algumas situações. O pai chegou a tentar 
aposentadoria, mas, segundo Inês,não conseguiu. Hoje eles vivem com uma cesta 
básica, que conseguem através da matrícula do filho mais velho na escola, e de 
doações de vizinhos. A mãe é extremamente jovem, tem apenas 26 anos e o 
 xl
companheiro tem um pouco mais que o dobro de sua idade. Moram na Cidade de 
Deus, em um único cômodo. 
O que chama a atenção neste caso é que num primeiro olhar não teríamos 
dúvidas quanto ao fato de oferecer um laudo para o benefício. A família vive em 
situações insalubres e isto é inquestionável. Contudo, no decorrer dos atendimentos 
com a mãe a posição desta chamava muito a atenção. Como a situação de miséria é 
extrema a psicóloga que atendia a mãe mobilizou-se muito no início do 
atendimento. Desejava prontamente oferecer o laudo, mas as discussões em 
supervisão apontavam situações bastante interessantes do caso. A psicóloga chegou 
a oferecer endereços de locais na comunidade onde ela pudesse obter informações 
para alguns tipos de ajuda no campo social, mas Inês nunca procurou esses 
endereços. Algo chamava a atenção no sentido de que esta mãe desejava um 
benefício que partisse deste filho. E dizia reiteradamente que este era um "direito" 
que lhe cabia. Houve momentos muitos difíceis nos atendimentos, que eram 
conduzidos no sentido de trabalhar estas questões com a mãe e um momento de 
interrupção onde ela "mente" para a psicóloga dizendo que conseguiu um outro 
lugar para obter o laudo que necessita para "melhorar sua vida". 
Ao mesmo tempo em que a mãe é atendida, Eduardo também inicia o 
tratamento no que alguns autores chamam de turno entre muitos29. As crianças 
autistas não se agrupam e a proposta deste trabalho não caminha nesta direção. O 
que entendemos com esta proposta é que esta organização entre muitos (são muitos 
profissionais e muitas crianças e/ou adolescentes sendo atendidas no mesmo turno) 
de diferentes formações, mas com a direção da psicanálise, possibilita que o 
dispositivo atenda a maneira como geralmente estas crianças chegam no serviço: em 
extrema atividade, andando de um lado para o outro, cantarolando, gritando, 
debatendo-se, mordendo-se, etc. Algumas falam poucas palavras, mas há muitos 
pacientes que não falam absolutamente nada. Oferecer um cenário múltiplo de 
linguagens (diferentes formações profissionais e um espaço com várias escolhas de 
 
29 Este ponto será melhor trabalhado no próximo capítulo desta dissertação. Trata-se de uma proposta de 
atendimento psicanalítico oferecido para crianças e adolescentes autistas e psicóticas num espaço diferente do 
consultório particular, por entender que a relação dual é muito invasiva para essa clientela, que não suporta 
este atendimento. A proposta é que o dispositivo possa facilitar o tratamento dessas crianças e adolescentes 
tão graves. 
 xli
opções; instrumentos, música, papel, entre outros) tem sido bastante interessante, 
pois ao acompanharmos com nossa escuta esses atos, apostando que neles há um 
sujeito, apreendemos sentido naquilo que tenderia a manter uma pedagogização dos 
corpos, uma vez que elas chegam bastante interessadas em seus corpos, cheiros e 
odores. 
Para exemplificar melhor falarei sobre o atendimento de Eduardo num 
desses turnos. Este chega nos primeiros atendimentos com um olhar bastante 
perdido, sem fixar-se em nada, interessado apenas em entrar e sair de diferentes 
salas. Ao longo dos atendimentos ele começa a escolher um carrinho vermelho e a 
fazer alguns sons que nos sugerem a palavra "carro". Seu olhar após quatro meses 
de atendimento já está mais direcionado e ele já consegue ficar numa única sala 
brincando com alguns brinquedos que escolhe: brinca colocando-os na boca ou de 
deixá-los em diferentes salas, para depois encontrá-los. Este dado é extremamente 
importante neste caso, pois Eduardo já foi "perdido" uma vez. Ele "sumiu" de casa 
ficando ausente por quatro dias. Foi encontrado pelos moradores da comunidade 
desmaiado e hospitalizado em seguida. Talvez a cena dos carrinhos sendo deixados 
e encontrados reatualize em Eduardo este episódio tão marcante e fale sobre como é 
importante que em cada turno ele possa brincar de perder estes objetos. Isto é 
curioso, pois ele sempre sabe exatamente onde deixa cada objeto e tem o cuidado de 
recolhê-los sempre que o turno acaba. 
Após a interrupção da mãe, que durou dois meses, Eduardo retorna ao 
serviço, porque ela diz que ele estava sentindo falta dos atendimentos. Há um fato 
bastante significativo nesta interrupção. O pai que nunca havia respondido aos 
chamados da psicóloga leva o filho ao tratamento e é atendido pela profissional 
neste dia. Esta, que parece bastante desejosa de dar uma resposta a toda miséria da 
família encaminha o pai para a assistente social do CAPSI, com o objetivo de que 
ele pudesse conseguir sua aposentadoria. Depois deste atendimento há a 
interrupção. O interessante é que o pai no atendimento havia dito que o filho só 
entendia o que ele falava quando falava "ao contrário". Ele diz para Eduardo tirar os 
sapatos, mas o que ele quer é que o filho os coloque. A psicóloga faz uma 
intervenção que aponta a dificuldade de Eduardo compreender isto, mas o pai 
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reafirma o que disse, apesar do filho não colocar os sapatos. Percebemos em 
supervisão que houve uma precipitação de atender uma demanda, que naquele 
momento era muito mais da psicóloga do que do pai. Além disso, marcou-se na 
entrada do pai no serviço a presença de um terceiro que talvez tenha sido 
insuportável para a família. Uma outra consideração apontada foi do pedido que o 
pai fez quando disse que ele fala ao "contrário". Ele realmente levou vários laudos, 
mas o que ele queria de fato dizer com isso? Não será este mais um exemplo de que 
atender a demanda pode impossibilitar um tratamento? 
A entrada do pai marca uma diferença radical na maneira como Eduardo 
chega no turno após o afastamento. Ele está visivelmente ávido por entrar no 
tratamento e escolhe vários carrinhos vermelhos para brincar. Emite vários e 
diferentes sons e fala três novas palavras, dentre elas "papai", pela primeira vez 
mencionada no CAPSI. Quando o horário acaba ele não quer ir embora, joga-se no 
chão e grita "é meu" segurando o carrinho. Falamos neste momento do tempo que 
ficou ausente do CAPSI e de como precisava nos dizer que não queria ir embora. 
Asseguramos que o carrinho estaria esperando por ele e após um longo tempo de 
conversa ele aceita ir embora sem o brinquedo. 
Trouxe este pequeno exemplo de como estas questões do benefício que a 
princípio aparecem como um direito precisam ser escutadas e que elas trazem 
implicações na clínica de forma extrema, uma vez que estamos trabalhando com a 
responsabilidade que cada sujeito deve assumir por sua posição: sejam os pais, seja 
a criança. Por outro lado pareceu-nos que foi exatamente o não atendimento da 
demanda que possibilitou que Eduardo fosse reconhecido pela primeira vez como 
um sujeito. Foi a primeira vez que a mãe disse que o filho sentiu falta do CAPSI. 
Freud coloca uma frase muito interessante: "Recusamo-nos, da maneira mais 
enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de 
auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe 
os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa 
própria imagem e verificar que isso é bom"30. Freud vai uma pouco mais além 
 
30 FREUD, S. Linhas de Progresso na terapia psicanalítica (1919). In Edições Standard Brasileira das Obras 
Completas Sigmund Freud . Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Pg 207 
 xliii
dizendo que no que se refere ao tratamento analítico o paciente deve ser deixado 
com os desejos insatisfeitos em abundância. Mas como a psicanálise é sempre 
singular e caso a caso, Freud aponta que algumas concessões devem ser feitas de 
acordo

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