Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE MESTRADO Pesquisa e Clínica em Psicanálise ROSEMARY FIÃES PINTO CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES AUTISTAS E PSICÓTICAS: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO CLÍNICO Dissertação de Mestrado RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 2005 ii CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES AUTISTAS E PSICÓTICAS: A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE NA CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO CLÍNICO ROSEMARY FIÃES PINTO “Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicanálise” Orientador: Luciano Elia RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 2005 iii DEDICATÓRIA Para minha família, com amor e com afeto. iv AGRADECIMENTOS Ao Luciano Elia, por aceitar me orientar e pelo enorme respeito que sempre dedicou ao meu trabalho. Mais ainda, pela paciência em ler comigo textos difíceis da psicanálise acolhendo minha ignorância, mas me fazendo trabalhar. Serei eternamente grata... À equipe do CAPSI Eliza Santa Roza, pois sem ela esta dissertação não seria possível. Cada um, singularmente, está aqui representado nesta dissertação. O trabalho continua... Aos residentes e estagiários, que nos ensinam e nos mostram sempre um novo olhar... Para Marisa, que generosamente ajudou com seu fluente Inglês e com sua palavra sempre carinhosa... À Cristina Ventura, que desde a Especialização apóia este trabalho. À UERJ e aos mestrandos da minha turma. Agradeço pelo aprendizado compartilhado da psicanálise e pelas discussões. À profª Sonia Alberti e Maria Anita Carneiro Ribeiro, pelas valiosas contribuições na Qualificação. Para Emmanuel, pelo encontro... À Teresa, pela escuta fundamental... Aos amigos que sambam, que cantam e me encantam nos momentos mais felizes e difíceis também, especialmente Silvia pela disponibilidade em ler este trabalho e Joana, que não leu, mas aceitou de pronto a “encomenda”... Finalmente, devo agradecer aos pacientes do CAPSI, por me deixarem aprender... v RESUMO Esta dissertação pretende demonstrar a contribuição da Psicanálise na constituição de um novo dispositivo clínico para o tratamento de crianças e adolescentes autistas e psicóticas: O Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSI). A partir da pesquisa teórico-clínica realizada num CAPSI da cidade do Rio de Janeiro, o CAPSI Eliza Santa Roza, este trabalho visa suscitar novas questões a partir da direção da Psicanálise, com o objetivo de sustentar que só haverá uma clínica nesses novos dispositivos se a aposta no sujeito do inconsciente estiver presente. vi “ABSTRACT” This dissertation intends to demonstrate the psychoanalytic contribution to the constitution of a new clinical tool for the treatment of autism and psychosis in children and adolescents: The Center for Psychosocial Care of Children and Adolescents (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil - CAPSI). Departing from a theoretical-clinical research accomplished in one specific CAPSI, The Capsi Eliza Santa Roza, this work aims at raising new questions in a psychoanalytic framework, and supporting the hypothesis that a clinical work based on this new tool will only be possible if there is a belief in the Unconscious (in the Subject o f the Unconscious). vii SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 CAPÍTULO I 1- CAPSI Para Crianças e Adolescentes: Um Campo em Construção 4 1.1- O Estado da Arte do CAPSI no Estado do Rio de Janeiro 10 1.2- O CAPSI Eliza Santa Roza: Seus Impasses e Possibilidades 13 CAPÍTULO II 2- Por que a Direção da Psicanálise? 17 2.1- A Constituição do Sujeito e o Campo Social 24 2.2- Do Direito ao Desejo: O que Demanda um Benefício? 27 2.2.1- A Articulação do Benefício e o Nome-do-Pai. 41 CAPÍTULO III 3- O CAPSI Eliza Santa Roza: A Construção de uma Clínica 45 3.1- O Dispositivo Analítico Ampliado: Uma Experiência Pioneira de CAPSI 51 3.2- O CAPSI Eliza Santa Roza e os Turnos de Atendimento 54 CONCLUSÃO 79 BIBLIOGRAFIA 81 viii INTRODUÇÃO Considero importante começar falando sobre os motivos que me levaram a escolher este tema: CAPSI para Crianças e Adolescentes autistas e psicóticas: A Contribuição da Psicanálise na construção de um dispositivo clínico. Apresentei uma monografia de conclusão do curso de Especialização em Saúde Mental da Infância e Adolescência no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2002. Neste trabalho iniciei um campo de estudo que explorou a importância da construção dos CAPSI (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil), ressaltando a experiência do CAPSI Eliza Santa Roza. Contudo, creio que a questão clínica deste dispositivo não foi devidamente trabalhada. Fiz um percurso no campo da Reabilitação Psicossocial, que é uma bibliografia bastante explorada na área da saúde mental, mas não fiz o percurso que me parecia ser o mais interessante e singular, que é o da escuta psicanalítica no CAPSI. Várias questões ficaram abertas na monografia. Uma delas era entender por que a clínica da psicanálise é a mais indicada para esta clientela e o que ela pode contribuir de singular, marcando uma diferença radical nesses dispositivos. Como a psicanálise pode ser inserida no atendimento das crianças e adolescentes autistas e psicóticas, uma vez que a clínica individual do ambulatório não é tomada como prioridade de escuta? Desde que comecei a trabalhar no CAPSI Eliza Santa Roza tenho me deparado com novas e importantes questões e o desejo de continuar estudando a inserção do CAPSI, tendo a psicanálise como direção, me trouxe até o Mestrado de ix Pesquisa e Clínica em Psicanálise. A possibilidade de articular clínica e pesquisa no local no qual trabalho foi condição fundamental para a viabilização deste projeto. As questões que desenvolvo nesta dissertação surgiram a partir da clínica e das discussões realizadas na supervisão dos casos atendidos, bem como dos vários encontros com outros profissionais da área da saúde mental infanto-juvenil. Tentei dialogar com alguns autores que trabalham com essa clientela buscando sempre a articulação teórico-clínica. Os casos atendidos no CAPSI, com diagnósticos de neurose, psicose e autismo e a riqueza dessa experiência possibilitaram a prática que a clínica exige. Trabalhei seis casos ao longo da tese priorizando as principais discussões que atravessam a clínica do CAPSI Eliza Santa Roza, bem como seus impasses e construções. Falar que num CAPSI há uma clínica implica em nomear uma direção, questão que num primeiro momento parece simples, mas que não ocorre com freqüência. Nem sempre há uma direção clínica nos CAPSI, o que já nos aponta um problema. Como trabalhar sem conceber o CAPSI como um espaço de tratamento? Mais ainda, como trabalhar com uma clientela tão grave sem apostar que há um sujeito a ser escutado e que é a psicanálise a responsável por essa inclusão? Esta questão é muito importante e deve ser assumida em sua radicalidade. Recuar desse lugar pode trazer conseqüências irreversíveis na vida de uma criança ou adolescente. Em 19 de fevereiro de 2002 foi apresentada no Diário Oficial da União a Portaria nº 336, que define e orienta a prioridade do CAPS no campo da saúde mental infanto-juvenil. O “Serviço de Atenção Psicossocial”, como foi denominado, é considerado um serviço de alta complexidade,que além de oferecer um atendimento aos pacientes em seu próprio território, busca ampliar contatos com as redes sociais que podem fazer parte do universo da criança: escolas, conselhos tutelares, abrigos, etc. O objetivo é fazer com que essas crianças e adolescentes possam contar com um serviço que modifica uma lógica existente na rede pública de saúde, que é o fato do paciente ter que se enquadrar nos “sintomas” já previamente constituídos pelos serviços. É a construção do CAPSI que inaugura a x “acessibilidade e acolhimento universal de toda procura envolvendo grave sofrimento psíquico”1 , uma vez que não será o sintoma o norte do tratamento. É a Psicanálise que inaugura a escuta do sujeito como condição fundamental no acolhimento ao paciente. Uma escuta singular, que inclui o sujeito desde sempre na direção do tratamento. Essa articulação clínico-política sugere esse lugar inaugural na constituição do campo da saúde mental infanto-juvenil e revela a contribuição da psicanálise para a direção do tratamento. A partir desse novo olhar é possível sustentar a inclusão do enfoque analítico para as crianças e adolescentes com graves sofrimentos psíquicos. Assim, este trabalho pretende sustentar que a psicanálise é a direção que melhor possibilita a constituição do CAPSI como um local de tratamento, uma vez que inclui a dimensão do sujeito com um rigor ético imprescindível em casos tão graves. São muitas as reflexões e ao longo do trabalho tento desenvolvê-las. Espero que questões tão caras para mim, possam servir como um eixo de trabalho fecundo para que possamos escutar melhor nossos pacientes. 1 Relatório da Reunião MS-OPAS realizado no dia 03/10/2003 (Preparatória do Seminário em comemoração ao Dia mundial da Saúde Mental _ “Saúde Mental da Criança e Adolescente”. xi CAPÍTULO 1- CAPSI PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM CAMPO EM CONSTRUÇÃO Resumo: Este capítulo visa mostrar o campo no qual o CAPSI está se constituindo e como ocorre a Reforma Psiquiátrica no campo da infância e adolescência. A proposta é apresentar as questões atuais presentes no campo da Reforma Psiquiátrica, no que diz respeito ao campo infanto-juvenil e apresentar o CAPSI como um dispositivo imprescindível neste cenário. Falar sobre o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como um lugar de escuta e cuidado pode parecer para muitos uma redundância, uma vez que as inúmeras experiências nesta área falam por si só da qualidade que essa modalidade de atendimento têm oferecido a seus usuários, principalmente para aqueles chamados psicóticos. Aliás, o sucesso desta clínica parece residir no fato da mesma suportar as idiossincrasias do ser humano, não acolhidas em outros Serviços, fazendo falar o sofrimento, ao invés de oferecer-lhe uma escuta surda. A experiência paradigmática do CAPS Luiz Cerqueira em São Paulo mostra isto. Jairo Goldberg2, faz-nos acompanhar a trajetória da construção deste projeto que iniciou em 1989 uma importante experiência: atender na rede pública de saúde de São Paulo àqueles casos que não “tinham o perfil do ambulatório”, ou seja, os psicóticos. Ao longo do livro ele mostra porque o ambulatório não suporta o atendimento desses pacientes e como a lógica médica investe no sintoma e não no sujeito. Mas o que seria o investimento no sintoma? Jairo mostra que investir naquilo que aparece como sintoma não tem sido suficiente nos casos de pacientes psicóticos, apesar dos enormes gastos empregados na assistência a esta clientela. A modalidade de atendimento ao psicótico na rede pública priorizava o ambulatório e a internação num círculo ininterrupto de gastos e ineficiência, além de não atender o paciente como ele deveria ser atendido: respeitando exatamente a particularidade de sua subjetividade no mundo, mesmo sem “sintomas”. 2 GOLDBERG, Jairo. Clínica da Psicose. Rio de janeiro, Te Cora Ed. E IFB, 1994. xii Para entender melhor a trajetória do discurso que calou o sintoma do sujeito aprisionando-o a uma esfera única de “cuidado”, que silenciava os corpos, é preciso entender a dinâmica do asilo. Ao mergulharmos no tempo e retomarmos a história da psiquiatria esbarramo-nos necessariamente com a “História da loucura” descrita por Foucault. Nela entendemos muito bem quão necessário foi o sentido econômico que a palavra investimento apresentou nas definições acima e como a construção dos CAPS está marcada por esta oposição ao modelo asilar. De acordo com Foucault o aparecimento do hospital como um instrumento terapêutico, vinculado ao tratamento e à cura dos doentes só é possível no final do século XVIII. Antes, o hospital servia para recolher pobres e proteger a sociedade do perigo que estes representavam. O “personagem” marginalizado era o pobre e não o doente e a função dos que nele trabalhavam era de “salvar o pobre”. O médico não tinha lugar neste cenário, pois eram os religiosos e os leigos quem “cuidava” dos mesmos. A função, do hospital era, pois, a de transição da vida para a morte e a de salvação espiritual. Era um lugar em que misturavam-se loucos, prostitutas, devassos, misto de assistência e transformação espiritual. Foucault nos mostra que até meados do século XVIII hospital e medicina permaneceram independentes e este “encontro” ocorreu a partir da necessidade de se anularem os efeitos negativos do hospital, onde se amontoavam pessoas, para torná-lo um lugar de saber. O saber psiquiátrico foi construído socialmente, visando a destituição do lugar do louco num cenário onde a falta de razão não era mais permitida. Se antes desrazão não era uma questão que atrapalhava a convivência dos loucos com a cidade, pois a loucura na Idade Média era respeitada enquanto um saber especial, agora ela passa a ser um problema que deve ser solucionado. Há uma passagem da legitimidade de um saber para a ilegitimidade. É na ilegitimidade da loucura que será respaldada a exclusão dos loucos, que serão confinados nos hospitais. A psiquiatria surge como o saber que vai responder pela figura do louco, um saber que legitima a exclusão da loucura do cenário social. Um lugar específico de tratamento, o asilo, também é determinado, e somente um médico, através do seu conhecimento especializado, é capaz de saber o segredo da cura dos seus males. xiii O saber psiquiátrico que se constituiu hegemônico é hoje alvo de grandes críticas e reformulações. A Reforma Psiquiátrica surge como tentativa de implementar uma modificação na cultura e no entendimento do que é o louco. Há uma dimensão complexa, perpassada não apenas pelas modificações necessárias na assistência psiquiátrica, mas pelos diferentes olhares e entendimentos acerca do que representa a loucura e seu lugar na sociedade. No Brasil temos avançado nas discussões da reforma a cada dia. Há muito por fazer, mas a existência de uma rede de assistência em saúde mental implicada na escuta do sujeito tem implementado algumas mudanças importantes neste campo. A existência dos CAPS marca a efetivação da possibilidade de cuidar sem excluir e de tomar a responsabilidade pelo sujeito que sofre oferecendo um cuidado diário e contínuo aos pacientes. Golberg coloca: “a presentificação de um cotidiano compartilhado nos limites da doença, com disponibilidade para absorver o que ela fosse capaz de expressar”. Não se trata de abordar o “psicótico”, mas acolher a “condição psicótica, de alguém que é maior que a doença, não redutível à categoria da doença e por isto infenso às estratégias tópicas do raciocínio sintomatológico”.3 O fracasso dos atendimentos aos psicóticos no serviço público ambulatorial muitas vezes ocorre por não respeitar a condição desse sujeito e de querer impor a lógica médica a esta clientela: Prevenção, tratamento e cura. A importância dosCAPS como lugares privilegiados da escuta do sujeito reside nesta modificação apontada pelo autor, que é a de acolher essa condição psicótica oferecendo uma escuta a este sujeito. É de um lugar de construção de algo que pode oferecer um espaço diferente do que foi oferecido ao longo da história da psiquiatria que o CAPS parece falar , nele não se pretende calar o sujeito, mas fazer falar o que há de singular nesta experiência. Cada um pode ser radicalmente diferente do outro e é nesta diferença que a singularidade de cada experiência pode aparecer. 3 (idem, ibidem. Pg.113 e 126) xiv A construção do CAPS para crianças e adolescentes é um campo ainda em constituição, mas o que o aproxima neste primeiro momento do campo já bastante estudado do adulto é a história também asilar que as crianças e adolescentes autistas e psicóticas estão submetidas. Num artigo escrito por Cristina Ventura4, a autora coloca importantes reflexões acerca desta questão e mostra que as crianças e adolescentes autistas, psicóticas e com outros transtornos estavam fora das tradicionais unidades hospitalares psiquiátricas e “aparentemente protegidas pela mortificação imposta pela lógica asilar”. As crianças estavam sendo submetidas à exclusão, embora legalmente protegidas. Após um longo trabalho de pesquisa a Coordenação da Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro identificou a existência de 850 crianças e adolescentes vivendo em abrigos, que na verdade eram depósitos humanos do descaso público com a infância. Esses abrigos não estavam incluídos no sistema formal de saúde, fazendo, pois, parte da assistência social. Exclusão é a palavra que mais representa a assistência que era oferecida a esta clientela, uma vez que “abrigadas” não faziam parte de nenhum tratamento psicológico, nem educacional. Abrigava-se tudo: o externo, ao fechar os muros institucionais, e o interno, mortificando os corpos que nele residiam. Embora alguns recebessem a visita dos familiares, nenhum trabalho era feito para que a criança pudesse retornar à casa dos pais. Estes eram também excluídos enquanto sujeitos que poderiam e deveriam ser escutados pela instituição. O abrigo embora seja definido em lei como “medida provisória e excepcional estava sendo utilizado como medida de reclusão”5. Falar, então, da história da reforma psiquiátrica da criança e adolescente faz-nos reportar aos primeiros momentos da história da reforma psiquiátrica brasileira. O momento em que se discutia a criação dos grandes asilos e sua função de exclusão. Foi preciso adentrar na realidade dos abrigos para que a reforma psiquiátrica no campo da infância e adolescência ganhasse mais voz na cidade do Rio de Janeiro. Eu mesma tive a oportunidade de conhecer um abrigo, na ocasião para discutir um caso clínico, e senti aquele cheiro peculiar dos asilos psiquiátricos, que tão bem conhece quem já adentrou em um. 4 COUTO, Maria Cristina Ventura. Novos Desafios À Reforma Psiquiátrica Brasileira: necessidade da construção de uma política de saúde mental para crianças e adolescentes. (mimeo). Rio de Janeiro. Pg. 64 5 Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8.069-13/07/1990). xv Lendo o “Relatório Final do Processo de Avaliação das Crianças e Adolescentes Internos de um abrigo”, o CAD I (Centro de Assistência ao Deficiente) que foi realizado pela equipe de Saúde Mental da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro em agosto e setembro de 2000, uma passagem me chamou a atenção: “O alojamento localizado no mezzanino do segundo prédio possui aberturas amplas com grades, sem vidros ou qualquer outra proteção contra o frio, [...] o teto não possui forro; em sua quase totalidade os leitos da unidade são beliches, inadequados para menores com distúrbios neuropsiquiátricos; o número de cobertores e travesseiros encontrados era muito inferior ao número de internos na instituição; os banheiros das enfermarias não apresentavam boxes para os vasos sanitários e nenhum dos chuveiros possuía aquecimento; na entrada da unidade há uma piscina sem qualquer proteção; a quase totalidade das crianças encontrava-se descalça e insuficientemente vestida e a maioria das crianças examinadas apresentava-se descorada, com escabiose e diversas cáries dentárias; a maioria dos prontuários pesquisados não possuía qualquer anotação médica referente ao corrente ano, em alguns a última anotação médica datava de 1998”. É difícil ler esta observação sobre o local de moradia das crianças sem que isto nos reporte a autores como Goffman que tão bem escreveu sobre as instituições totais. Para este autor o aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que existem na sociedade moderna, que separam da vida do sujeito o lugar onde dormir, brincar e trabalhar. De acordo com ele, em tais instituições todos os aspectos da vida são realizadas no mesmo local e sob uma única autoridade. Cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. As atividades diárias são estabelecidas em horários por um sistema e um grupo de funcionários e visam a atender aos objetivos oficiais da instituição. No manicômio há a produção de um corpo doente descaracterizado de questões sociais e desvinculado da história de vida do paciente. O sujeito é destituído de sua identidade e vivencia a experiência da internação como mortificadora, pois o único olhar possível é o olhar biológico. O olhar enfoca a doença e não o sujeito como um ser humano complexo, que está necessitando de uma ajuda específica num determinado momento de sua vida. A descrição dos grandes asilos psiquiátricos apontados pelo autor não me parece muito diferente das descrições existentes no relatório da Assessoria de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro, onde a equipe coordenada por Cristina Ventura identificou os xvi arquivos do CAD I como “pastas-depósito”, com “nomes sem referência, endereços perdidos, datas confusas”, etc. A descrição do CAD deixa claro o abandono junto à exclusão. Na nossa realidade a falta de investimento eficaz nos cuidados com crianças e adolescentes faz a exclusão do asilo mais repugnante: “manicômios, prisões e conventos” de indigência. No relatório havia ainda um dado muito importante e que reafirma a aproximação do funcionamento deste abrigo como um manicômio: No CAD I estavam listadas 61 crianças e adolescentes e 55 delas foram avaliadas. No estudo realizado sobre a inserção social da criança na rede social daquela comunidade (Jacarepaguá) foi identificado que apenas duas crianças internas estavam freqüentando a escola da rede pública. Os outros 53 não participavam de nenhuma atividade como esporte, lazer ou outra proposta fora dos muros da instituição. Mesmo nos casos de doença, apenas os casos de emergência eram atendidos. Emergência esta que eles mesmos definiam, o que comprometia em muito a avaliação. Luciano Elia e Maria S.E.Galvão chamam a atenção para a instituição fechada. Dizem eles: “A instituição fechada não o é apenas no sentido descritivo e imediato de não ser aberta ao livre movimento do ir e vir de seus usuários, mas é fundamentalmente fechada a todo e qualquer saber e a todo e qualquer fazer (clínico, social, educacional, comunitário, humanitário, e outros)” 6. O resultado último para os autores é, portanto, a repetição “morta e mortificante do mesmo”. A mesmice é tomada como algo natural pela instituição e o diferente passa a ser aquele que foge a essa regra. É exatamente onde os seres humanos são tomados como amorfos que a psicanálise se diferencia. A escuta do sujeito psicótico torna-se uma ética imprescindível sustentando uma posição radicalmentesingular. Um delírio que para a psiquiatria só é revelado como fenômeno e calado neste lugar, pois não tem um sentido, é para a psicanálise uma “tentativa de cura ou uma reconstrução”7 implicando o analista na escuta desse sentido. 6 ELIA, Luciano e GALVÃO, Maria Silva. Estratégias de desconstrução da instituição fechada e produção de subjetividade. In: Almeida, N. & DELGADO, p (org). De Volta à Cidadania. Rio de janeiro, IFB, 2000. Pg, 71 7 FREUD, S. Neurose e Psicose In Edições Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Pg. 191. xvii Trabalhar num CAPS que diz respeito ao campo da infância e adolescência convoca ao aprimoramento de um trabalho clínico extremamente importante. São sujeitos que precisam falar de seus sofrimentos e que necessitam encontrar no CAPS disponibilidade para essa escuta. No trabalho com crianças e adolescentes autistas e psicóticas a palavra verbal nem sempre ocorre e este é um trabalho que precisa ser suportado pelos que com esses sujeitos trabalham. Sustentar essa posição, do não recuo frente ao que aparentemente é sem sentido, possibilita a construção de um trabalho subjetivo com as crianças e também com seus pais, fazendo valer o sentido do que em algumas situações só aparecem como “atos” aparentemente involuntários. xviii 1.1- O ESTADO DA ARTE DO CAPSI NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO O ano de 1999 marca a inauguração de um novo compromisso com a o Campo da Infância e Adolescência no que diz respeito ao atendimento das crianças e adolescentes com graves transtornos como o autismo e a psicose. Estas crianças que não eram tratadas no campo da Saúde Mental, pois só contavam com o recurso da Educação Especial, passam a ter prioridade no atendimento Infanto-juvenil a partir dessas discussões sobre a importância de CAPSI para os transtornos mentais graves. Com a finalidade de diminuir os problemas relacionados ao atendimento da criança e do adolescente na área de saúde mental e criar uma rede articulada de atenção, a Assessoria de Saúde Mental da Secretaria do Estado de Saúde do Rio de Janeiro criou em abril de 2000 um Fórum Inter-Institucional para o Atendimento em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes com o objetivo de convocar diferentes setores implicados no atendimento dessa clientela. Segundo a coordenadora do Fórum, Cristina Ventura8 “A necessidade de construir balizamentos políticos, técnicos e clínicos calcados em decisões coletivas, discutidas e pactuadas entre os diferentes atores e agentes dos campos jurídico, assistencial, educacional e do campo da saúde mental, para a definição das linhas gerais de uma política para o atendimento de crianças e adolescentes, deu sustentação para a montagem deste Fórum”. O Fórum têm uma particularidade importante que é a discussão dos impasses a partir da clínica, o que faz com que o Fórum concerne também uma dimensão de formação. As discussões dos impasses clínicos dos casos apresentados por cada Serviço são muitas vezes fundamentais para o estabelecimento de novas diretrizes necessárias para esse campo. No Estado do Rio de Janeiro já temos 12 CAPSI em funcionamento, sendo os seis primeiros cadastrados e os outros seis ainda não cadastrados, mas em funcionamento. Os 8 COUTO, Maria Cristina Ventura. Abrigos para “Menores Deficientes”: Seus impasses Clínicos, Assistenciais e Éticos. In: Almeida, N. & DELGADO, P (org). De Volta à Cidadania. Rio de janeiro, IFB, 2000. Pg, 64-65 xix CAPSI são: CAPSI Pequeno Hans (Sulacap), CAPSI Eliza Santa Roza (Jacarepaguá), CAPSI Estação Viver (Barra Mansa), CAPSI Viva Vida (Volta Redonda), CAPSIJ (localizado no Centro de Atenção e Reabilitação da Infância e Mocidade/IPUB), CAPSI Duque de Caxias (Caxias) Petrópolis, CAPSI Zé Garoto (São Gonçalo), CAPSI Belford Roxo (Belford Roxo), CAPSI Dom Adriano (Nova Iguaçu), CAPSI de Campos, CAPSI Monteiro Lobato (Niterói) e CAPSI Silvia Ortoff (Petrópolis). A III Conferência Nacional de Saúde Mental realizada em dezembro de 2001 marca a construção de uma política pública de saúde mental para a infância e adolescência. O CAPS foi definido como modo operacional, como um pólo de base territorial que está sempre em referência à pluralidade de modalidade de serviços existentes na rede. Entre outras atribuições que ao longo deste trabalho serão discutidas o CAPSI foi instituído como o Serviço que têm como uma de suas prioridades de ação os projetos de desospitalização e desinstitucionalização. A consolidação dos CAPSI no Estado do Rio de Janeiro tem sido amplamente discutida pela Gestão de Saúde Mental do Estado, num trabalho de parceria importante nesse processo. Algumas discussões reafirmam a importante tarefa desses dispositivos de atenção em seu cuidado diário e extremamente delicado que a clínica com essas crianças convoca. Um ponto muito importante que foi determinado numa reunião do Ministério da Saúde realizada no ano de 2003 coloca que a supervisão clínico-institucional é condição absolutamente necessária neste trabalho, uma vez que a equipe deve responder às exigências éticas que são colocadas. A função é: “garantir a fala produtiva de efeitos nesse espaço, do que a presunção de ensinar o que se deve fazer. Considera-se que a prática da atenção e do cuidado a criança e ao adolescente com grave sofrimento psíquico e risco social desenvolve-se em um universo sobre o qual o saber não antecipa integralmente o fazer, o que situa esta prática no campo da pesquisa permanente e dos incessantes avanços e descobertas” 9 No Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial realizado no mês de junho de 2004 em São Paulo vários representantes de CAPSI de todo o Brasil (são 38 CAPSI) estiveram presentes. Foi um encontro bastante importante, onde observamos que 9 MINISTÉRIO DA SAÚDE/COORDENAÇÃO DE SAÚDE MENTAL. Relatório da reunião MS-OPAS. 03/10/2003.Pg4. xx a diversidade de cada região determina o modo como cada serviço organiza sua prática e constrói sua clínica. Há pontos interessantes a serem destacados. A supervisão clínico- institucional ainda não é a regra, mas exceção. Muitos lugares trabalham sem supervisão, o que tem determinado um recuo no atendimento das crianças e adolescentes autistas e psicóticas. Alguns profissionais colocaram que “não sabem atender autista” e que a supervisão que recebem é de uma vez por mês, quando existe. Por outro lado, observamos também um grande desconhecimento sobre a clientela privilegiada a ser atendida no CAPSI. A Portaria 336, já mencionada neste trabalho e que determina as prioridades de um CAPSI é em algumas cidades pouco conhecida e pouco praticada. Algumas questões como: que clientela é para um CAPSI? Que política de saúde mental para a Infância e Adolescência o Ministério preconiza? Há Serviços que trabalham com a idéia de prevenção em saúde mental, o que coloca uma questão da própria clínica. O que significa trabalhar com prevenção em saúde mental? Como isto é possível? Identificamos que a direção da clínica era algo sempre pouco clara nas discussões; alguns Serviços situaram a direção na psicanálise, mas outros pareciam sem nenhuma direção. Estas questões não parecem derivar da diversidade cultural, nem da constituição desse campo ainda muito pouco sedimentado, mas da falta de uma direção da clínica que deve estar presente em todo trabalho que propõe o tratamento em saúde mental. Além disso, a supervisão clínico-institucional seria fundamental para trabalhar a própria resistência da equipe em atender uma clientela tão difícil como a criança autista, por exemplo. O Rio de Janeiro destacou-se como o local onde esses serviços estão mais estruturados, e onde atendem prioritariamentea criança psicótica e autista, trabalham com supervisão, numa rede de discussão pactuada com a gestão municipal e Estadual. Ventura, num grupo de trabalho em São Paulo colocou dois pontos importantes para solidificar as diretrizes do trabalho do CAPSI: 1) Do CAPSI ser um projeto público de saúde mental, com rigor e princípios que incitam verificação e cuidado permanente; 2) O fato de uma criança ser um sujeito, valorizando a necessidade de retirar todas as conseqüências dessa afirmação. A criança tem o que dizer mesmo que não fale. Apesar do número significativo de CAPSI já instituídos, notamos que a falta de uma direção clínica em vários CAPSI impede que a decisão do atendimento aos casos mais graves de fato ocorra, tornando o CAPSI um dispositivo muitas vezes muito semelhante ao xxi ambulatório, que escolhe os pacientes a partir de um perfil diagnóstico. No nosso ponto de vista o não recuo, preconizado pelo Ministério da saúde, aos casos como o do autismo e da psicose na infância requer fundamentalmente uma clínica que inclua em sua diretriz ético- metodológica o sujeito da criança autista. xxii 1.2- O CAPSI ELIZA SANTA ROZA: SEUS IMPASSES E POSSIBILIDADES No início desse ano foram realizados no CAPSI Eliza Santa Roza um Censo e um Seminário Interno, para que pudéssemos construir um panorama geral de alguns impasses que já estavam se apresentando na clínica do CAPSI: como acolher uma paciente sem que isto implique sua absorção no Serviço? CAPSI pra quem? Como o diagnóstico deve ser pensado num CAPSI que tem como direção clínica a psicanálise? Por que numa situação de crise alguns dos profissionais recorrem imediatamente ao psiquiatra, mesmo dentro do CAPSI? Por que os CAPS de adultos não querem receber os casos dos autistas com mais de 18 anos, já que seriam elegíveis para este dispositivo? Por que um serviço como um CAPSI ainda apresenta um ambulatório de pacientes que só estão contando com a psiquiatria como tratamento? Como resolver este impasse, uma vez que não temos mais vagas para absorver esta clientela? A rede de saúde mental não poderia atender alguns casos graves, onde o laço social não estivesse rompido? O que significa apostar no sujeito da criança autista num trabalho como CAPSI? Podemos tentar pensar nessas questões a partir de dois eixos, que estão necessariamente articulados: o da clínica e o institucional. Para isso é necessário definir primeiro o que estamos chamando de clínica. A clínica que apostamos ser a que melhor oferece a possibilidade de um trabalho com pacientes tão graves no CAPSI, devido à sua condução ética, teórica e metodológica é a da psicanálise. Pensar que os impasses devem ser pensados a partir da clínica já marca uma direção do trabalho e dizer que esta clínica é a da psicanálise configura-se como um passo fundamental no CAPSI. Podemos dizer que a clínica da psicanálise configura-se no a posteriori, ou seja, na construção de um trabalho onde o sujeito é sempre o primeiro a ser escutado. Esta metodologia fundada por Freud mostra-se muito importante no trabalho com uma clientela tão grave, que muitas vezes já chegam no CAPSI com seus diagnósticos e medicações, sem que nenhuma escuta cuidadosa tenha sido realizada. A clientela que procura o CAPSI o faz a partir de seu sofrimento e é deste lugar que a psicanálise é xxiii convocada a fazer sua escuta. Mais do que isso, é exatamente a partir deste lugar que ela se diferencia, não recuando, nem dirigindo sua escuta. Nas “regras” da psicanálise apresentadas por Freud10 destaca-se o fato do psicanalista não direcionar o paciente, que diga o que ocorre em sua cabeça, da forma que for, sem que haja uma direção, que não a do próprio inconsciente. Desta forma, as primeiras entrevistas já são propriamente o início de uma psicanálise. As “regras” da psicanálise, que Freud nomeia como “recomendações”, devem ser utilizadas, segundo Freud, na sua relação com o plano geral do jogo. O autor faz uma comparação entre a psicanálise e o jogo de xadrez, dizendo que o exercício do tratamento psicanalítico encontra-se com as mesmas limitações desse jogo. Diz ele: “todo aquele que espere aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo”11. Quando abrimos a possibilidade de escutar um paciente não sabemos até onde iremos, pois não podemos prever nada a priori. É no só-depois de cada palavra trazida pelo paciente e da transferência estabelecida que teremos condições de pensar sobre o caso que recebemos. Freud aponta a cautela que devemos ter em não fazer da técnica uma regra em si mesma, mas de reconhecê-la dentro de um contexto. Estas recomendações metodológicas são fundamentais para pensarmos na clínica que desejamos no CAPSI, pois elas falam sobre o modo como recebemos e acolhemos cada paciente. O CAPSI tem o mandato de acolher para uma escuta quem chegar ao Serviço. Essa determinação está de acordo com a psicanálise, mas em vários CAPSI, principalmente fora do Estado do Rio, isto é um ponto de impasse, particularmente quando estamos discutindo a questão do diagnóstico. Há serviços que trabalham a partir dos diagnósticos e não a partir de uma escuta, o que é uma questão a ser pensada na direção da própria clínica. No CAPSI Eliza Santa Roza tivemos várias discussões sobre esta questão e chegamos à conclusão de que não será o diagnóstico que norteará nossa escuta, não será ele o ponto de partida, para saber se a criança ficará ou não no Serviço, mas a perda dos laços sociais dessa criança. Optamos por incluir o diagnóstico, seguindo 10 FREUD, S. Sobre o Início do tratamento (Novas Recomendações obre a Técnica da Psicanálise) In Edições Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud. Vol. XII. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. 11 Idem, Ibdem. Pg. 164. xxiv a direção apresentada por Freud no texto já citado, onde o diagnóstico é identificado como um elemento clínico importante, que faz parte do tratamento da psicanálise. Em outro texto Freud12 nos convida a pensar no diagnóstico para além dos fenômenos, ou seja, num diagnóstico estrutural, uma vez que ele só pode ser realizado a partir de uma escuta ao longo do próprio tratamento. Esta questão pode parecer óbvia e simples, mas é extremamente complexa, uma vez que convoca o profissional a suspender sua ansiedade em dar respostas apressadas na busca de uma solução, que na maioria das vezes só beneficia a instituição que “resolve” rapidamente mais um encaminhamento. Essa direção ética e metodológica também traz muitas dificuldades no cotidiano do CAPSI, pois nos convoca a lidar com o próprio paradoxo do CAPSI, que já foi mencionado: como acolher sem que isso signifique necessariamente absorver? E como tornar esse acolhimento já uma primeira escuta, mesmo que o paciente não seja elegível para o tratamento do CAPSI? Ao longo do trabalho realizado no CAPSI temos observado que para muitos pacientes a possibilidade de ser acolhido no Serviço e escutado de forma cuidadosa, sem uma pressa em realizar diagnósticos e oferecer encaminhamentos, já é um atendimento que traz modificações, às vezes surpreendentes, em suas vidas. Para ilustrar temos um exemplo de uma triagem de um menino de 11 anos que fora encaminhado para o CAPSI pelo seu fisioterapeuta, porque após uma brincadeira na rua ele começou a apresentar muitas dores nas pernas e dificuldades em andar. Nenhum exame clínico justificava esta dificuldade e o profissional suspeitou de problemas psicológicos. Nas primeiras entrevistas realizadas no CAPSI não identificamos nenhum elemento da história de vida desse menino que justificasse tal encaminhamento,mas o profundo sofrimento que ele apresentava pelo fato de não poder andar foi o que nos levou a acolher este caso. A família estava completamente desesperada, correndo para vários lugares e não cabia encaminhá-lo para um Posto de Saúde, porque ele não era autista, psicótico ou neurótico grave. Encaminhá-lo seria causar mais um sofrimento, uma vez que ele precisava e desejava falar sobre todas as modificações que estavam ocorrendo em sua vida. Não foi o diagnóstico que nos fez atender essa criança, nem o critério de laços 12 FREUD,S Histeria .(1888). In Edições Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud. Vol. II. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. xxv interrompidos, nem mesmo a necessidade de uma equipe multidisciplinar, mas o sofrimento da criança e da família. O trabalho que o CAPSI pôde realizar neste caso perpassou os muros da instituição, uma vez que o menino precisou ser internado por mais de dois meses para fazer exames. Um profissional o acompanhou durante todo este tempo de investigações diagnósticas oferecendo sua escuta no hospital e posteriormente no CAPSI, até sua alta. Após vários exames, um tipo de leucemia, o mais brando, foi diagnosticado e o menino iniciou os tratamentos necessários, recuperando em poucos meses seus movimentos. Esse caso é bastante curioso, pois mostra como a escuta sustentada pela psicanálise é imprescindível nesse trabalho: Acolhemos a fala do menino que estava marcada pelo sofrimento, não sabíamos até onde o caso seria atendido, nem nos baseamos no diagnóstico para acolher o paciente e todo o fruto do trabalho só foi possível porque houve esta direção ética, clínica e metodológica. Freud13 afirma que em psicanálise “pesquisa e tratamento coincidem” o que nos faz responsáveis por qualquer caso que chega no CAPSI, mesmo que posteriormente ele seja encaminhado. O encaminhamento é necessariamente um procedimento clínico, onde o paciente e o profissional estão implicados na decisão institucional. O trabalho construído cotidianamente no CAPSI Eliza Santa Roza tem tentado sustentar essa posição da psicanálise que é o trabalho com o sujeito do inconsciente. Contudo, é importante avançarmos sobre essa direção clínica tão necessária de trabalhar com o sujeito da criança autista e psicótica no CAPSI. É sobre seus impasses e dificuldades que pretendemos avançar no próximo capítulo, definindo melhor as implicações dessa posição e a relação do CAPSI neste projeto. 13 FREUD, S. Recomendações aos Médicos que exercem a Psicanálise. In Edições Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol XII. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Pg. 152 xxvi CAPÍTULO 2: POR QUE A DIREÇÃO DA PSICANÁLISE Resumo: Este capítulo tem como objetivo trabalhar a importância da psicanálise na clínica do CAPSI Eliza Santa Roza, uma vez que o trabalho com crianças autistas e psicóticas nesta instituição exige uma escuta tal qual a psicanálise sugere: de um sujeito do inconsciente. A tentativa de discutir a importância da direção da psicanálise no CAPSI Eliza Santa Roza tornou-se ponto fundamental para a constituição da clínica nesta instituição. Mas por que escolhemos a psicanálise como direção? O que ela tem de singular para contribuir neste campo da saúde mental? O primeiro ponto importante a ser colocado diz respeito à especificidade deste CAPSI, que está situado na área da Área Programática (AP4) de Jacarepaguá. Como sabemos é uma área que concentra um grande número de hospitais psiquiátricos e abrigos, além de uma população de 800.000 habitantes. Esses dados são importantes, pois recebemos no CAPSI um grande número de pacientes que residem em clínicas conveniadas com o S.U.S (Sistema Único de Saúde) e moradores de abrigos desta região. São crianças e adolescentes institucionalizados por longos anos e que nunca tiveram qualquer tratamento. Recebemos uma grande quantidade de pacientes psicóticos e autistas dessas instituições, que apresentam situações muito graves e difíceis de serem conduzidas na clínica. Além desses, há os casos xxvii encaminhados pela rede (escolas, conselhos tutelares, lares abrigados) e demandas espontâneas que nos chegam cotidianamente. O CAPSI existe desde 2001, ano de sua inauguração. A equipe é multiprofissional e a direção da psicanálise é algo bastante novo para a mesma. Antes de se transformar em CAPSI, parte da equipe já trabalhava no chamado COIA (Centro de Orientação à Infância e Adolescência), ambulatório que funcionava neste mesmo lugar. Esta configuração diz muito sobre o CAPSI, pois faz parte da sua constituição. Quando a psicanálise chegou como direção deste trabalho, que estava se transformando em CAPSI, houve muita resistência por parte de alguns profissionais da equipe. Uns porque tinham uma outra direção de trabalho clínico e outros porque não tinham nenhuma familiaridade com o campo da psicanálise. A nova proposta os assustava, e, além disso, colocava-se desde o primeiro momento um rigor que é próprio da psicanálise. Podemos pensar, por exemplo, na própria discussão clínica dos casos, que não era realizada por um supervisor para toda a equipe. Não havia a construção de uma clínica compartilhada, que começou a ocorrer com a construção de uma nova lógica a partir da psicanálise. Uma lógica que perpassava a discussão dos casos e que ao longo desses anos expandiu-se para todo o CAPSI, que partia de um impasse na clínica do caso a caso para pensar o arranjo institucional. Há diversas situações no cotidiano do CAPSI que nos convocam a pensar no impasse que a construção de uma direção marcada pela psicanálise pode enfrentar no campo da reforma psiquiátrica, que sustenta como ponto de partida uma lógica universalizante dos direitos dos usuários. Na clínica da infância e adolescência no CAPSI, não raramente, estas questões trazem problemas desde o início do trabalho, xxviii uma vez que as famílias, que muitas vezes chegam apenas solicitando um laudo médico para obter um "benefício" do CAPSI, recorrem ao pedido como um "direito" para a criança e/ou adolescente. Este direito expressa- se em um pedido de obter recursos financeiros sustentados por um laudo que incapacita o filho e o define legalmente como um assujeitado. Fazê-los falar e pensar nas questões do direito para além do campo jurídico não tem sido tarefa fácil, uma vez que a psicanálise os convoca a perguntar o que estas questões falam sobre eles enquanto sujeitos. A responsabilidade do sujeito apresentada pela direção da psicanálise abre a possibilidade de ouvirmos algo que num primeiro momento é impossível para os familiares das crianças atendidas no CAPSI, uma vez que estão aprisionados numa única direção, que é a dos direitos sociais. Não se trata aqui de negligenciar esta questão, mas de não tomá-la de pronto, sem escutar o que cada responsável quer dizer quando diz que necessita de um "benefício". Consideramos importante pensar nestas questões, pois esta dissertação se propõe a pensar na contribuição da psicanálise neste campo, torna-se questão fundamental levantar estas discussões que permeiam a clínica da psicanálise neste dispositivo tão recente. Mas o que estamos chamando de rigor da psicanálise? Podemos partir do princípio ético que é colocado pela psicanálise que é a escuta do sujeito a partir do seu inconsciente. A discussão do sujeito, que é própria da psicanálise, não é tarefa fácil, mas extremamente necessária nesta clínica que trabalha com crianças e adolescentes tão graves, onde a aposta da existência desse sujeito, que precisa ser escutado, torna-se condição da própria clínica neste dispositivo. Ou seja, uma aposta que vai modificar a maneira como cada sujeito será escutado, uma vez que o surgimento desse sujeito é trabalhodo próprio CAPSI. É a partir do CAPSI, ou seja, dos profissionais que estão aí colocados para escutar esse sujeito, que o xxix mesmo poderá surgir, uma vez que há necessariamente uma aposta na emergência desse sujeito. É este o rigor que clínica psicanalítica nos convoca: a escuta do inconsciente deste sujeito. Faz-se necessário discutir esta questão e para isto recorreremos a Lacan e outros autores do campo da psicanálise. O texto de Lacan "A ciência e a verdade" 14 aponta a importância de estudar como a concepção de sujeito em psicanálise é entendida, corroborando a idéia de que falar em sujeito já pressupõe uma concepção psicanalítica, pois este foi definido pela psicanálise e sempre que nos remetemos à palavra sujeito, já está colocada uma concepção psicanalítica. Lacan afirma no texto que o sujeito da ciência é o mesmo que o da psicanálise, contudo a ciência não "opera" com o sujeito tal como a psicanálise. Coloca que a psicanálise como prática e que o inconsciente de Freud como descoberta, seria impensável antes do nascimento da ciência, marcando no texto o século XVII como o século do talento. Diz que o sujeito está no âmago da diferença e reforça que é exatamente pela psicanálise ser radicalmente não humanista, não idealista, que sua diferença será colocada para sempre. O autor faz uma crítica importante sobre as chamadas "ciências humanas" após afirmar que o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. Critica as ciências que tentam a todo custo se enquadrar em uma lógica idealista e humanitária e diz que "a posição do psicanalista não deixa escapatória, já que exclui a ternura da bela alma".15 Essas primeiras considerações podem parecer simples, mas são extremamente difíceis de serem trabalhadas na prática. Como dizer num CAPSI que apresenta uma equipe multiprofissional que o sujeito prioritariamente a ser escutado não é o do campo social? No dia a dia desta clínica isto é bastante difícil, pois há um desejo por parte dos profissionais de responder às demandas que chegam com sua urgência de atendimento nesses campos ditos sociais. Não quero dizer com isto 14 LACAN, Jacques. Escritos: A ciência e a Verdade (1965-66). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor., 1998.pg 879-873. 15 Idem, ibidem. Pg.873. xxx que os pedidos não são pertinentes numa clientela que traz muitos problemas sociais desde o início. Por outro lado, a própria clínica tem nos apontado que responder a esta demanda faz com que o trabalho que aponta para uma escuta subjetiva fique paralisado. No texto Posição do Inconsciente16 Lacan diz que o ideal é servo da sociedade e critica a psicologia dizendo que ela é um veículo a serviço dos ideais. Em outro texto17 volta a criticar a psicologia e os demais conhecimentos que valorizam a consciência como possibilidade de saber. Para este, no campo freudiano, apesar das palavras, a consciência é um traço “caduco”, que não serve para basear o inconsciente. A importância de escutar algo que aponta para além da consciência, ou seja, o inconsciente, com todo seu “tropeço” como diz Miller18, é que remeterá a verdade do sujeito. Lacan toca em algo que é fundamental e que marca, como ele mesmo diz, uma ruptura da psicanálise. Para esta uma verdade não corresponde necessariamente um saber, como colocado na ciência. Não há furos na ciência que possam ficar abertos, e quando não há respostas para problemas ainda não solucionados, é porque a ciência ainda não o encontrou. O autismo, por exemplo, é sempre apresentado na psiquiatria biológica como uma doença ainda não curável, porque um remédio específico não foi descoberto. O ainda parece marcar exatamente a precisão das respostas que estão em aberto, mas que pretendem ser fechadas num futuro promissor. A psicanálise, pelo contrário, partirá da fala do sujeito tomando como ponto de partida o não fechamento do que o sujeito muitas vezes traz como um saber consciente e consistente. E o analista sustentará exatamente a posição de não saber, posição radicalmente diferente de um cientista. Luciano Elia19 demonstra que: "A ciência constitui-se como um corpo discursivo cujo coração (o sujeito) é extraído, expelido para fora deste corpo, mas de forma alguma 16 LACAN, J. Escritos: posição do Inconsciente (1960-64). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor, 1998.Pg 846. 17 LACAN, J. Escritos :Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Editor, 1998. Pg 813. 18 MILLER, J.A. Para ler o Seminário 11 de Lacan: Contextos e Conceitos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 1997. 19 ELIA, Luciano. Uma Ciência sem coração. Agora, VII. Nº 1, 1999. .Pg 49 xxxi inexistente, de modo algum eliminado. Fora do corpo, ele pulsa, consistente, e se oferece à apreensão discursiva para outras formas de discurso _ as chamadas ciências humanas_ que não cessando, precisamente por serem humanas, de humanizar este sujeito, revestindo-o de qualidades anímicas a serem investidas e investigadas pela via da compreensão (verstehen fenomenológica por exemplo), não chegam nunca a dizer eficientemente este sujeito. Esta citação nos convida a pensar na prática do CAPSI, quando partimos do pressuposto de que devemos trabalhar com o coração e não com o corpo tomado em sua dimensão biológica e social. Lacan diz que “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” 20. Partindo desta convocação que a psicanálise nos propõe e tentando articular estas questões com as discussões da responsabilidade do sujeito cabe-nos partir das colocações apontadas por Lacan, para que possamos superar o engodo que o eu tenta nos remeter o tempo todo. Num trabalho de Neusa Santos Souza, intitulado “o eu e o sujeito: ressentimento, culpa e responsabilidade"21 a autora apresenta considerações importantes neste sentido. Fala sobre o desamparo primário ao qual o eu está submetido e sobre a tentativa desesperada que o eu tem de proteger-se através da relação imaginária que tenta construir com o outro, convocando-o como plenitude. Assim, quando esta completude não se apresenta o eu estabelece uma relação de ódio com o outro, uma vez que a possibilidade de identificação não foi correspondida. Neusa mostra que nenhum amor, nenhuma proteção protege o eu deste desamparo primário e coloca que o ser falante está de saída sendo lesado. Lacan diz no seminário 11 "o sujeito e o outro(I): a alienação"22, que se a psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente ela deve partir de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Inicia falando que tudo o que o ser humano deve aprender como homem ou como mulher tem que fazê-lo, "peça por peça" do Outro. Aponta que não há nenhuma marca no psiquismo quanto as equivalências de macho ou fêmea, apontando desde já uma descontinuidade do 20 LACAN, Jacques. Escritos: A ciência e a Verdade (1965-66), op.cit . Pg. 873 21 SOUZA, Neusa Santos. O eu e o sujeito: ressentimento, culpa e responsabilidade. Mimeo. Rio de janeiro, 1996. 22 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. , 1998. Pg 194 xxxii corpo biológico para o corpo sexual. A realização do campo sexual, não é sabida, segundo Lacan, sendo a sexualidade instaurada no campo do sujeito por uma via que é a da falta. Lacan apresenta duas faltas que se recobrem: Uma que é corresponde a falha central e que corresponde a dialética do advento do sujeito a seu próprio ser em relação ao Outro. O autor diz que o sujeito depende do significante e que este está primeiro no campo do Outro. O significante é o que representa um sujeito para um outro significante e este significante no campo do Outro faz surgiro sujeito por sua significação. Tentando explicar melhor, Lacan apresenta o que chama de primeira operação essencial em que se funda o sujeito de alienação. Esta, segundo ele, condena o sujeito a só aparecer nessa divisão. De um lado ele aparece como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise. O vel da alienação se define então por uma escolha que implica necessariamente uma perda. Como ele diz "qualquer que seja a escolha que se opere, há por conseqüência um nem um, nem outro" 23 . No exemplo "a bolsa ou a vida!" Ele mostra que a questão da perda é inexorável quando se faz uma escolha. Se escolhermos a bolsa perdemos a vida e bolsa e se escolhermos a vida temos a vida sem a bolsa. Ou seja, há necessariamente uma perda. Registra-se aqui a presença do que Lacan denominou da presença do fator letal do vel alienante: se escolhermos o ser o sujeito desaparece. A Segunda operação marca o que Lacan chamou de subestrutura da interseção. Assim, se no primeiro tempo temos a subestrutura da reunião, no segundo temos a interseção dos dois conjuntos. Esta Segunda operação inaugura o campo da transferência e é chamada a separação. "Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente destacável _ ele me diz isso, mas o que é que ele quer?”24. Lacan diz que o desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso. Isto é interessante pensar, pois só há o desejo quando a presença da falta aí se coloca. Mostra que a partir desta 23 idem, ibidem. Pg 200 24 idem, ibidem. Pg 203 xxxiii dialética é possível a fantasia da própria morte, da própria perda e que na criança esta se apresenta na sua relação de amor com seus pais. Partimos, portanto, do pressuposto de que há uma escolha da qual o sujeito é sempre responsável, como já citamos anteriormente. Assim, caberá ao sujeito aceitar ou recusar este furo, que constituirá sua falha fundamental e "irremediável", como explica Neusa Santos. O sim ou o não a este furo trará conseqüências que só o sujeito poderá responder. A autora coloca que ser responsável é ser "capaz de responder por um ato de escolha e suas conseqüências, escolha que a priori não é de ninguém, mas que a posteriori, ao ser consumada, o sujeito afirma, inscreve sua assinatura." 25 Em Freud encontramos essa noção de responsabilidade26 quando o autor lança a questão: "_Devemos assumir responsabilidade pelo conteúdo dos próprios sonhos?". É interessante que ao longo do texto Freud vai mostrar que devemos nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos, uma vez que eles pertencem ao próprio ser. Aqui ele aproxima as questões que temos levantado acima: a questão do eu e do sujeito, articuladas e presentes o tempo todo. O eu não existe sem o sujeito e vice-versa e é a partir desta consideração que Freud demonstra que não há saída possível. O autor explica que se procurarmos classificar os impulsos presentes em bons ou maus, temos que assumir responsabilidade por ambos os tipos, e se por outro lado quisermos nos afastar dos sonhos como algo desconhecido, inconsciente e recalcado também não estaremos compactuando com o que a psicanálise propõe. Para Freud o que repudiamos não apenas está em nós como age "desde" nós para fora. Há um id no qual o ego se assenta e a partir do qual foi desenvolvido. Desta forma uma separação entre o ego e o id seria "irrealizável" e retomando o ponto de partida podemos compreender que não há como operar o sujeito da psicanálise sem operarmos com o sujeito da ciência. A importância dessas discussões revela a necessidade de estar atento a esta clínica em construção no CAPSI e que tem como direção a psicanálise. Percebemos que no cotidiano do CAPSI muitas vezes somos atropelados por essa via humanista, 25 SANTOS, N . _ op. cit. Pg 8 26 FREUD, S. Responsabilidade Moral pelo conteúdo dos sonhos (1925). In Edições Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud . Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Pg 165 xxxiv que é naturalizada por muitos profissionais deste campo. Parece que o grande desafio deste trabalho é tentar demonstrar que há um sujeito que opera para além do sujeito da ciência. Embora o campo da reforma psiquiátrica tenha passado por inúmeras modificações, ainda me parece muito incipiente a escuta clínica do sujeito nestes campos de cuidado. Ficamos presos às concepções do campo social e surdos para o que pode advir do sujeito. É importante dizer que os CAPS não possuem necessariamente uma orientação da psicanálise, o que para mim aponta uma diferença radical. Assim, a contribuição da psicanálise nestes dispositivos contará necessariamente com a participação dos psicanalistas neste campo da reforma. xxxv 2.1- A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E O CAMPO SOCIAL Dissemos no texto anterior, que a psicanálise opera com o mesmo sujeito da ciência, contudo, ela opera com esse sujeito que foi expelido da ciência. Para operar com esse sujeito a psicanálise criou condições específicas em sua metodologia, onde a instalação do dispositivo da associação livre, que é a regra fundamental, produz a emergência do sujeito do inconsciente através da repetição e da transferência. Ao estudar o conceito de sujeito Elia27 diz que essa metodologia criará condições de produção das formações do inconsciente _ atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas e chistes_ possibilitando a emergência do sujeito na experiência psicanalítica. Sujeito esse de caráter metafórico e pontual. Esse autor aponta que a regra fundamental criada por Freud coloca o crédito na palavra do analisando e não em sua pessoa e afirma que será através dela que teremos acesso ao inconsciente. Citando em seu livro a conhecida frase de Lacan “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” ele demonstra como isso ocorre, convidando o leitor a refazer o caminho de Lacan. Nesse convite Elia sugere que toda produção do sentido é da ordem simbólica, seja ela falada ou não. Assim, um gesto, uma expressão do rosto, do corpo, uma dança, um desenho, serão produções simbólicas regidas pelo significante e, desta forma, verbais, por estarem na dependência do verbo significante. Não há, segundo ele, o pré-verbal no campo do simbólico, tampouco o não–verbal, uma vez que o domínio do verbal é uma condição inerente ao falante. Como ser de linguagem, o sujeito humano se constitui no domínio do verbal. Essa questão é interessante, pois mesmo um paciente que não faz uso da função da fala, como os autistas ou alguns psicóticos, está, necessariamente, no campo da linguagem, na medida em que é ser falante, que se constituiu em um mundo de linguagem, o humano. O dispositivo analítico assim colocado por Freud, pressupõe que o tratamento advém da palavra do paciente, supõe um saber que emergirá a partir do próprio sujeito. 27 ELIA, Luciano. O Conceito de Sujeito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,2004. Pg 18 xxxvi A psicanálise insiste em dizer que o sujeito é constituído, não é inato. Ele é constituído a partir do campo da linguagem, sendo, portanto, efeito deste campo. Mas o que significa dizer isto? Elia aponta que para a psicanálise o sujeito só pode se constituir em um ser que por pertencer à espécie humana entrará obrigatoriamente em uma ordem social já constituída. Sem essa condição, reforça o autor, o ser da espécie humana morrerá. Para a psicanálise não há um outro contexto que não seja o do social, pois o sujeito é pensado como social, uma vez que sua constituição está articulada a este plano. O sujeito da psicanálise é constituído na relaçãocom o Outro. Será este que encarnará para o que culturalmente chamamos de bebê a função que Freud nomeou como “ação específica”, que é fundamental para a sobrevivência do ser humano desamparado, o recém nascido. Esse Outro não será apenas o adulto próximo, mas fundamentalmente o adulto que transmitirá para o bebê um conjunto de marcas materiais e simbólicas _significantes_ introduzidas pelo Outro. Para Elia são essas marcas que suscitarão no corpo do bebê um ato de resposta chamado sujeito. “O tempo próprio ao inconsciente é o a posteriori (Nachträglich, no dizer de Freud). Em sua experiência, o sujeito tem um encontro _ o encontro com o Outro materno, de que ora tratamos - que se dá em determinado ponto da estrutura temporal, ou seja, em determinado momento. Só depois, em um segundo momento, é que esse encontro poderá ganhar, para o sujeito, alguma significação que permita que ele faça o reconhecimento de algum nível de sua constituição.” 28 Elia diz que o significado dado ao encontro com o Outro depende do significante, entendendo que o significante convoca o sujeito, exige trabalho do sujeito em sua constituição. O autor explica que significante é o que faz significar, mas é no encontro entre o sujeito, ainda não constituído, e o significante que o sujeito e o Outro passam a existir. Quando um bebê surge em um cenário o campo da linguagem já está colocado. Ele é mergulhado neste campo muito antes de nascer. Não se trata aqui de uma herança genética, mas de um campo simbólico que é transmitido pelo Outro na relação com o recém-nascido. Assim, o momento da necessidade é um momento mítico, pois se nascemos com necessidades, nunca as experimentamos pura ou diretamente sem a mediação da 28 (ibidem. Pg. 41) xxxvii linguagem. Este campo já está constituído, estruturado e ordenado, bem como as estruturas sociais e culturais. Elia aponta que a vida biológica é excluída da experiência do sujeito, que só se relacionará com ela por intermédio da linguagem, o que a modifica, a pulveriza e fragmenta. Essas questões que tocam no âmbito do que é o sujeito para a psicanálise e de como ele já está, desde sempre inserido no contexto social, são muito importantes para a construção da clínica no Capsi Elisa Santa Roza. Quando recebemos uma criança autista no Capsi fazemos uma aposta, desde o início, de que há um sujeito que opera para além do diagnóstico recebido. O que queremos dizer, é que o comparecimento desse sujeito só ocorrerá se assumirmos todas as conseqüências dessa posição. Isto implica em fazer o paciente falar da maneira que lhe for possível e fazer valer uma escuta que seja fiel aos preceitos da psicanálise. Um dos pontos mais caros nessa clínica do atendimento a crianças autistas e psicóticas no âmbito público têm sido tentar discutir a partir de uma escuta da psicanálise o que é garantido como “benefício”. Essa dicotomia proposta pelo campo da assistência social, separando o psíquico do social têm trazido muitas questões para o CAPSI. São exatamente essas questões que estaremos aprofundando no próximo ponto, tentando nos perguntar onde a psicanálise se insere neste contexto, já que há uma aposta de saída no sujeito. Alguma dimensão jurídica pode prescindir da clínica, quando trabalhamos com psicanálise? xxxviii 2.2- DO DIREITO AO DESEJO: QUE DEMANDA UM BENEFÍCIO? Tenho participado de uma discussão importante no campo da reforma psiquiátrica no diz respeito ao trabalho com crianças e adolescentes. Existe um trabalho que é o Fórum Interestadual que é realizado uma vez por mês na Secretaria do Estado do Rio de Janeiro. Neste muitas discussões são realizadas na articulação clínica-política. Recentemente houve uma discussão sobre o atendimento aos pais realizados com crianças e adolescentes e foi apontado por uma profissional da Saúde Mental que no campo Infanto-juvenil havia um certo pudor em oferecer "o que é de direito para as pessoas". Esta questão me tocou profundamente, pois no CAPSI temos muitos casos de crianças que chegam para o tratamento e os pais logo nas primeiras entrevistas apontam a necessidade de obterem um "benefício" em dinheiro. Este "é direito" das crianças que apresentam problemas considerados de ordem mental e faz com que elas sejam aposentadas desde pequenininhas. Assim, temos pais onde a criança tem sete anos ou menos que fazem uso deste benefício (muitos já chegam ao CAPSI com este benefício). Mas será que o nosso trabalho em psicanálise é prover isto? Como marcar uma escuta singular sem cair na questão primeira de dar um benefício? Isto é uma tensão no CAPSI, pois há profissionais que acham que isto deve ser oferecido, uma vez que a família "precisa" e outros que querem escutar o que é este pedido primeiro, ou seja, escutar o sujeito que faz este pedido. Se partirmos das discussões apresentadas nos textos anteriormente citados podemos pensar que o "direito" aí colocado como lógica geral, está sendo tomado no corpo social pautado num ideal de direitos e de ideal de criança, pois sem escutar o que o sujeito pode dizer sobre si, isto é definido como regra básica e indiscutível. E o que ganharíamos caindo no ideal do que é bom? Não é exatamente o contrário que tentamos fazer em psicanálise? Como fica a questão da responsabilidade do sujeito, quando partimos deste princípio? Um caso muito interessante está sendo atendido no CAPSI e tentarei exemplificá-lo para ilustrar a delicadeza desta situação. Um menino autista contando 05 anos na ocasião de chegada no COIA (nome do ambulatório, que foi transformado em CAPSI) foi atendido por um psiquiatra do serviço. A mãe, que leva o filho ao atendimento apresenta uma situação extremamente miserável: diz xxxix não ter dinheiro para comer, sair, vestir-se etc. e solicita do psiquiatra um laudo médico para obter um benefício. No que este nega o pedido falando que primeiro era importante uma avaliação, esta sai e não retorna mais. O médico tenta contato, mas este é em vão. Depois de dez meses Inês (como chamarei a mãe), retorna com o filho Eduardo, que é encaminhado para uma psicóloga e são iniciadas avaliações para que um outro tipo de atendimento, além do psiquiátrico fosse realizado. Eduardo fazia um acompanhamento com o psiquiatra, mas não tomava nenhuma medicação. Nas entrevistas com a nova psicóloga Inês volta a demandar o benefício. Fala sobre suas péssimas condições de vida, de "ratos do tamanho de gatos que passam pelos corpos das crianças" (ela tem dois outros filhos e está grávida de um quarto) e de como seria importante conseguir esta ajuda. Na história familiar há relatos de que a mãe quando estava grávida de Eduardo tomava pílulas e usava preservativos de "tanto que não queria outro filho" e de que ficou muito surpresa quando ao cair da laje grávida soube que Eduardo, que estava na barriga, não havia morrido. Inês diz que Eduardo pouco se mexia na barriga e que ela chegou a pensar que o filho nasceria "morto". Surpreende-se ao perceber que o filho nasceu "normal". Neste momento Eduardo fala apenas as palavras "mãe", "pai" e "Brasil" (mãe diz que gosta de futebol). Nas entrevistas preliminares Eduardo não dirige nenhum olhar para a psicóloga, mantendo-se aparentemente ausente. Anda para todos os lados, sem conseguir centrar-se em nenhuma atividade. O mesmo teve o diagnóstico de autista quando contava quatro anos de idade, mas Inês negava este diagnóstico dizendo que o filho era "normal". Apesar desta fala, ela conta que ele se morde e bate com a cabeça na parede o tempo todo quando está em casa. O pai, segundo informações da mãe, apresenta problemas na coluna e, por isso, tem dificuldades para trabalhar como pedreiro, que é sua profissão. Também sofre de artrite e não consegue andar em algumas situações. O pai chegou a tentar aposentadoria, mas, segundo Inês,não conseguiu. Hoje eles vivem com uma cesta básica, que conseguem através da matrícula do filho mais velho na escola, e de doações de vizinhos. A mãe é extremamente jovem, tem apenas 26 anos e o xl companheiro tem um pouco mais que o dobro de sua idade. Moram na Cidade de Deus, em um único cômodo. O que chama a atenção neste caso é que num primeiro olhar não teríamos dúvidas quanto ao fato de oferecer um laudo para o benefício. A família vive em situações insalubres e isto é inquestionável. Contudo, no decorrer dos atendimentos com a mãe a posição desta chamava muito a atenção. Como a situação de miséria é extrema a psicóloga que atendia a mãe mobilizou-se muito no início do atendimento. Desejava prontamente oferecer o laudo, mas as discussões em supervisão apontavam situações bastante interessantes do caso. A psicóloga chegou a oferecer endereços de locais na comunidade onde ela pudesse obter informações para alguns tipos de ajuda no campo social, mas Inês nunca procurou esses endereços. Algo chamava a atenção no sentido de que esta mãe desejava um benefício que partisse deste filho. E dizia reiteradamente que este era um "direito" que lhe cabia. Houve momentos muitos difíceis nos atendimentos, que eram conduzidos no sentido de trabalhar estas questões com a mãe e um momento de interrupção onde ela "mente" para a psicóloga dizendo que conseguiu um outro lugar para obter o laudo que necessita para "melhorar sua vida". Ao mesmo tempo em que a mãe é atendida, Eduardo também inicia o tratamento no que alguns autores chamam de turno entre muitos29. As crianças autistas não se agrupam e a proposta deste trabalho não caminha nesta direção. O que entendemos com esta proposta é que esta organização entre muitos (são muitos profissionais e muitas crianças e/ou adolescentes sendo atendidas no mesmo turno) de diferentes formações, mas com a direção da psicanálise, possibilita que o dispositivo atenda a maneira como geralmente estas crianças chegam no serviço: em extrema atividade, andando de um lado para o outro, cantarolando, gritando, debatendo-se, mordendo-se, etc. Algumas falam poucas palavras, mas há muitos pacientes que não falam absolutamente nada. Oferecer um cenário múltiplo de linguagens (diferentes formações profissionais e um espaço com várias escolhas de 29 Este ponto será melhor trabalhado no próximo capítulo desta dissertação. Trata-se de uma proposta de atendimento psicanalítico oferecido para crianças e adolescentes autistas e psicóticas num espaço diferente do consultório particular, por entender que a relação dual é muito invasiva para essa clientela, que não suporta este atendimento. A proposta é que o dispositivo possa facilitar o tratamento dessas crianças e adolescentes tão graves. xli opções; instrumentos, música, papel, entre outros) tem sido bastante interessante, pois ao acompanharmos com nossa escuta esses atos, apostando que neles há um sujeito, apreendemos sentido naquilo que tenderia a manter uma pedagogização dos corpos, uma vez que elas chegam bastante interessadas em seus corpos, cheiros e odores. Para exemplificar melhor falarei sobre o atendimento de Eduardo num desses turnos. Este chega nos primeiros atendimentos com um olhar bastante perdido, sem fixar-se em nada, interessado apenas em entrar e sair de diferentes salas. Ao longo dos atendimentos ele começa a escolher um carrinho vermelho e a fazer alguns sons que nos sugerem a palavra "carro". Seu olhar após quatro meses de atendimento já está mais direcionado e ele já consegue ficar numa única sala brincando com alguns brinquedos que escolhe: brinca colocando-os na boca ou de deixá-los em diferentes salas, para depois encontrá-los. Este dado é extremamente importante neste caso, pois Eduardo já foi "perdido" uma vez. Ele "sumiu" de casa ficando ausente por quatro dias. Foi encontrado pelos moradores da comunidade desmaiado e hospitalizado em seguida. Talvez a cena dos carrinhos sendo deixados e encontrados reatualize em Eduardo este episódio tão marcante e fale sobre como é importante que em cada turno ele possa brincar de perder estes objetos. Isto é curioso, pois ele sempre sabe exatamente onde deixa cada objeto e tem o cuidado de recolhê-los sempre que o turno acaba. Após a interrupção da mãe, que durou dois meses, Eduardo retorna ao serviço, porque ela diz que ele estava sentindo falta dos atendimentos. Há um fato bastante significativo nesta interrupção. O pai que nunca havia respondido aos chamados da psicóloga leva o filho ao tratamento e é atendido pela profissional neste dia. Esta, que parece bastante desejosa de dar uma resposta a toda miséria da família encaminha o pai para a assistente social do CAPSI, com o objetivo de que ele pudesse conseguir sua aposentadoria. Depois deste atendimento há a interrupção. O interessante é que o pai no atendimento havia dito que o filho só entendia o que ele falava quando falava "ao contrário". Ele diz para Eduardo tirar os sapatos, mas o que ele quer é que o filho os coloque. A psicóloga faz uma intervenção que aponta a dificuldade de Eduardo compreender isto, mas o pai xlii reafirma o que disse, apesar do filho não colocar os sapatos. Percebemos em supervisão que houve uma precipitação de atender uma demanda, que naquele momento era muito mais da psicóloga do que do pai. Além disso, marcou-se na entrada do pai no serviço a presença de um terceiro que talvez tenha sido insuportável para a família. Uma outra consideração apontada foi do pedido que o pai fez quando disse que ele fala ao "contrário". Ele realmente levou vários laudos, mas o que ele queria de fato dizer com isso? Não será este mais um exemplo de que atender a demanda pode impossibilitar um tratamento? A entrada do pai marca uma diferença radical na maneira como Eduardo chega no turno após o afastamento. Ele está visivelmente ávido por entrar no tratamento e escolhe vários carrinhos vermelhos para brincar. Emite vários e diferentes sons e fala três novas palavras, dentre elas "papai", pela primeira vez mencionada no CAPSI. Quando o horário acaba ele não quer ir embora, joga-se no chão e grita "é meu" segurando o carrinho. Falamos neste momento do tempo que ficou ausente do CAPSI e de como precisava nos dizer que não queria ir embora. Asseguramos que o carrinho estaria esperando por ele e após um longo tempo de conversa ele aceita ir embora sem o brinquedo. Trouxe este pequeno exemplo de como estas questões do benefício que a princípio aparecem como um direito precisam ser escutadas e que elas trazem implicações na clínica de forma extrema, uma vez que estamos trabalhando com a responsabilidade que cada sujeito deve assumir por sua posição: sejam os pais, seja a criança. Por outro lado pareceu-nos que foi exatamente o não atendimento da demanda que possibilitou que Eduardo fosse reconhecido pela primeira vez como um sujeito. Foi a primeira vez que a mãe disse que o filho sentiu falta do CAPSI. Freud coloca uma frase muito interessante: "Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa própria imagem e verificar que isso é bom"30. Freud vai uma pouco mais além 30 FREUD, S. Linhas de Progresso na terapia psicanalítica (1919). In Edições Standard Brasileira das Obras Completas Sigmund Freud . Vol. XIX. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Pg 207 xliii dizendo que no que se refere ao tratamento analítico o paciente deve ser deixado com os desejos insatisfeitos em abundância. Mas como a psicanálise é sempre singular e caso a caso, Freud aponta que algumas concessões devem ser feitas de acordo
Compartilhar