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A Clínica Psicossocial das Psicoses Salvador - Bahia Julho de 2007 Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. Programa de IntensIfIcação de cuIdados a PacIentes PsIcótIcos LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. •Hospital Especializado em Psiquiatria Mario Leal - SESAB •Curso de Terapia Ocupacional da Fundação Bahiana para o Desenvolvimento das Ciências •Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Parceria: “Não existe nada mais profundo e revolucionário nos dias de hoje do que a preocupação com o outro” Noam Choamsky “Se quero o outro comigo, fraco, cansado ou louco, tenho que deixar sempre abertas as portas do meu coração....” Marcus Vinicius de Oliveira “De quem será, cuidado? Fico sempre tão impressionado com o muito muito que se faz do pouco pouco que é dado. Do residir assombrado que germina assim, tão frágil semente, ganhando vulto em solo adubado. De quem será? Do semeador, do semeado? Vivo a pergunta do mérito, da relação entre os dois, cuidado.” Marcus Vinicius de Oliveira Editor: Marcus Vinícius de Oliveira Silva Co-editora: Lygia Freitas Revisão: Lygia Freitas Editoração: Wendel Barreto Projeto Gráfico: Wendel Barreto Apoio: LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental Departamento de Psicologia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal da Bahia End.: Rua Aristides Novis n 2, Estrada de São Lázaro Cep: 40210 730, Salvador - Bahia email: levsaudemental@gmail.com www.lev.ffch.ufba.br In-tensa. Ex-tensa / Universidade Federal da Bahia. Departamen- to de Psicologia, PIC ¬Programa de intensificação de cuidados e pacientes psicóticos. Ano I, n. I (2007) - Salvador, BA: UFBA, FFCH, 2007. I.Saúde mental. 2. Psicoses. 3. Pacientes - Psicologia. I. Univer- sidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Depar- tamento de Psicologia e Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. CDD - 616.89 “Todos os artigos podem ser reproduzindos desde que citada a fonte”. © Marcus Vinicius de Oliveira Silva A Clínica Psicossocial das Psicoses Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Psicologia LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental. Salvador - Bahia Julho de 2007 Entrevista • 15 - Entrevista com Eduarda Motta e Marcus Vinícius de Oliveira, supervisores do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos Artigos de crença • 40 - A clínica integral: o paradigma “psicossocial” como uma exigência da Clínica das Psicoses • 42 - Loucura, cultura, instituição e sociedade • 52 - Psicose e ressonâncias sociais • 70 - A família na psicose • 78 - Psiquismo e sociedade: a psicose e os grupos • 89 - A psicose e as relações vinculares: um esforço de referenciação teórica Fazendo o PIC acontecer • 97 - A clínica psicossocial da psicose: aprendizagem, cuidado intensificado e reinserção social • 106 - Programa de Intensificação de Cuidados: um caminho para a qualidade de vida • 114 - Programa de Intensificação de Cuidados: uma experiência de intervenção psicossocial Estratégias • 125 - A assistência domiciliar no âmbito do cuidado à saúde mental • 136 - Atenção domiciliar: uma tecnologia de cuidado em saúde mental • 141 - A formação de díades no trato com a loucura: acompanhando o acompanhante • 146 - Supervisão: espaço de continência, aprendizado e reflexões Complexidades • 151 - A abordagem da crise na psicose • 169 - Dança e xadrez: o papel da intensificação de cui- dados no fortalecimento da autonomia de Felipe • 180 - O solitário na multidão: a solidão da diferença • 192 - Transbordamento psicótico: desafios e possibilida- des de intervenção • 202 - A.T. – que relação é essa? • 208 - Derrubando muros, construindo vínculos: intensifi- cação de cuidados no HCT-BA • 216 - Psicose negra: a imagem de si e a recusa do corpo Ressonâncias • 223 - Ela não pode ser mãe – quando maternidade e loucura se cruzam • 228 - Encontros e desencontros com a psicose • 238 - Causos dos casos – o incrível poder do vínculo • 240 - Entre amores, quase-amores e não-amores Dados e Eventos • 251 - O BPC e a banalização da interdição judicial: um exemplo de atuação clínico-política • 254 - O PIC em Letra e Número Sumário 9 Editorial As psicoses são tensas. Tensas para fora. Tensas para dentro. Registro de uma experiência subjetiva de precários equilíbrios do sujeito, instabilizadora de sua presença no mundo social. O sujeito psicótico vive o enigma da sua pertença como sócio da sociedade como uma produção subjetiva complexa, tensa e, por vezes, dolorosa. A psicose também se apresenta como fonte de tensão para aqueles que se dispõem a ocupar um lugar de cuidador diante dela. A clínica das psicoses é uma clínica tensa. Tensa para dentro, fazendo importantes exigências subjetivas para que seu agente possa estar bem situado diante de um sujeito que se movimenta em precária estabilidade possibilitada pelo seu arranjo psíquico. Tensa para fora, exigindo que seu agente disponha de habilidades de mediador, intermediário entre as necessidades sinalizadas pelo sujeito e as exigências da cultura. O ensino da clínica das psicoses é também tenso. Tenso para fora. Espaço de uma disputa teórico- conceitual entre concepções que divergem sobre a sua natureza e sobre a priorização dos cuidados que devem ser ensinados aos futuros profissionais. Tenso para dentro: como ensinar? Como aprender? Como transmitir matéria que articula objetividade e subjetividade, num fazer que se situa nos limites entre a técnica e a arte? Os espaços institucionais de cuidado dos sujeitos psicóticos são tensos. Tensos para dentro, no ma- nejo dos settings que pretendem proteger (a quem?), isolar, excluir os sujeitos psicóticos e o agente de cuidados no mundo reduzido das hospitalizações, das emergências e dos consultórios acéticos. Tensos para fora, diante da exigência ética de uma clínica que se construa no território, ocupando a cidade e fazendo circular as representações estagnadas sobre as potencialidades dos sujeitos atendidos. In-tensa. Ex-tensa. Neste número, o PIC - Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psi- cóticos, submete-se à revista. Prestamos contas de um ensino que se faz extra-muros, em que a univer- sidade executa extensão e pesquisa. Revela o vigor próprio da vida que existe fora das salas de aula como um recurso de aprendizagem e para a produção de conhecimento. Ensino que articula a teoria e a prática, prestando serviços à população e participando ativamente da disputa teórica e técnica acerca dos conceitos que devem orientar a Reforma Psiquiátrica brasileira. 11 12 Intensificação de cuidados versus internação hospitalar: dois projetos distintos em suas éticas, em suas técnicas, suas formas de se transmitir. Intensificação de cuidados, esforço para identificar, deco- dificar as necessidades dos sujeitos chamados psicóticos, para fazer segundo suas necessidades e não segundo as possibilidades – sempre menores e mesquinhas – que geralmente conformam o conforto das instituições e profissionais. Clínica que se faz onde o sujeito vive e habita, em seu domicílio e com a sua “comunidade”: sua família e seus conhecidos, os sócios com os quais ele compartilha sua vida social. Articulando recursos diversos - Atenção Domiciliar, Acompanhamento Terapêutico, Coletivos de Convivência, Redes Sociais, Suporte e Assessoria, Cuidados à Família, projetos, passeios, festas e uma regra única: intensificar os cuidados humanos, realizando as ofertas compatíveis com as necessidades dos sujeitos, assumindo as responsabilidades através de uma presença intensa e orientada. Clínica Psicossocial. Resgatamos do limbo este conceito que, apesar de nomear o carro chefe da novainstitucionalização dos serviços territoriais - os CAPS - não parece estar merecendo maiores atenções. Centro de Atenção Psicossocial, onde o signo em questão parece registrar apenas, sob forma de junção, a urgência de se considerar uma certa dimensão expurgada – o social – das teorias hegemônicas da clínica que fazem, no mesmo viés individualista, o triunfo do biológico e do psíquico. Ilusão, pois fora da sociedade não existe sociedade. Todos os fatos psíquicos são fatos sociais. Não existe sociedade humana que não se inscreva psiquicamente. Contra o que há que se afirmar: por uma Clínica Integral das Psicoses. As demais não serão senão a sua redução. Os artigos que fazem parte dessa coletânea têm o sabor da espontaneidade com que foram pro- duzidos: por absoluta necessidade dos estagiários darem conta das suas experiências e sem qualquer exigência acadêmica que os obrigasse a isso – coisa rara e deliciosa para quem trabalha com a trans- missão. Tentativas de articular a marca de uma experiência forte, que tem como pressuposto a idéia de que a psicose, ela própria, nos ensina. Aprendizes de feiticeiros, os estagiários que participaram do nosso programa imprimem nos seus escritos um pouco de sua técnica e sua arte: um desejo, uma coragem de viver assim tão próximos deste encontro com a realidade delicada dos sujeitos atendidos, com uma cidade maltratada, com os domicílios simples e muitas vezes precários, ruas, ruelas, becos, faltas e carências diversas, desorgani- zação social e psíquica, pobreza e desalento. Para desse mundo tão duro e doído, extraírem a riqueza dos sons, cores, palavras, encontros que traduzem as emoções proporcionadas pela oportunidade 13 de estarem vivendo a vida tal como ela é, fora das salas de aula e das proteções que, muitas vezes, os mimam e os sedam. Cada um trouxe o que tinha e o que pôde aportar, o que lhe marcou no seu encontro e enganchamento com a clínica da psicose. Resultado de uma transmissão que se fez. Supervisores, patronos e cúmplices - Eduarda Mota e eu - cumprimos com satisfação a tarefa de co- ordená-los e organizar essa possibilidade da sua expressão inaugural, contando cada um o que viveu. De minha parte, incluo nessa publicação despretensiosamente alguns dos meus “artigos de crença”: aulas e notas que expressam um esforço pessoal para cultivar a teoria como recurso generoso que, distribuído, nos iguala e nivela na tarefa-obrigação de sustentarmos publicamente a explicitação do que fazemos, o que ensinamos, por que o fazemos e por que o ensinamos. Que a Clínica Psicossocial das Psicoses que juntos temos reinventado nesses quatro anos de existên- cia do nosso PIC possa nos trazer novas emoções e um próximo número. Que cada texto seja capaz de falar em nome do seu autor. Marcus Vinicius de Oliveira Silva Editor Como surgiu a proposta de criação do PIC? Marcus - A grande ques- tão que nos orientou, no começo, foi a questão do enfrentamento da idéia da necessidade da “interna- ção”, a famosa idéia da ne- cessidade desta ação como “retaguarda” para a clínica da psicose. O lugar do re- curso à internação talvez seja hoje o ponto central do debate ideológico da Refor- ma Psiquiátrica. Todo mundo é a favor de mo- dernização dos serviços, todo mundo é a favor de serviços que atendam mais integralmente, todo mundo é a favor de criar acessibilidade dos pacientes ao serviço. A grande questão que pega no debate da Reforma Psiquiátrica é quan- do a gente tem de precisar se a nossa Reforma Psiquiátrica é uma Reforma que substitui a inter- nação, se tem a vocação de ser substitutiva à internação, se tudo isto que estamos fazendo, se todo este aparato institucional irá substituir a in- ternação ou se o hospital psiquiátrico ou a idéia de leito hospitalar vai continuar operando como um conceito fundamental da Reforma. Então, esta tensão é uma tensão que nos interessa radi- calizar, porque existem aqueles que defendem a idéia do leito hospitalar como um componente fundamental da Reforma, ou seja, que não pode Entrevista com Eduarda Mota e Marcus Vinícius Oliveira, supervisores do Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos 1 15 1-Esta entrevista foi realizada por Noêmia de Aragão Casais como parte do material de base para monografia do Curso de Especialização em Saúde Mental do Departamento de Neuropsiquiatria da UFBA e editada por Marcus Vinícius de Oliveira Silva. 16 ter a Reforma sem a presença do leito hospitalar (aí eu estou falando, principalmente, do leito hos- pitalar em psiquiatria; mas também da idéia do leito do Hospital Geral como uma retaguarda da assistência aos pacientes em crise). Reforma Psiquiátrica sem o fim dos manicômios? Marcus - Sim. Digo que este é o ponto nevrál- gico de disputa do debate em torno da Reforma. Qual o lugar do leito? O conceito de leito envolve o paciente deitado, o paciente fragilizado, o pa- ciente que precisa estar circunscrito espacialmen- te para receber um determinado cuidado. E então existe outra posição que diz que o conceito de leito hospitalar é absolutamente prescindível, não precisamos do conceito de leito hospitalar para fazer a Reforma, para fazer a clínica da Reforma, e que contrapõe á idéia de leito hospitalar à idéia de cuidados intensivos. Porque afinal de contas, o que o leito hospitalar deveria oferecer é o cui- dado intensivo. A idéia de leito hospitalar para qualquer outra clínica da medicina diz respeito à circunscrição espacial, espacialidade num edifí- cio, num prédio, de um conjunto de recursos que podem ser colocado, simultaneamente, à disposi- ção do sujeito. A pergunta é: o que, na atenção psiquiátrica, nós podemos defender, que tipo de concepção sustenta que a idéia de leito hospitalar é mais adequada para orientar a organização do serviço? Porque, se for assim, nós temos sujeitos que vão defender que a gente tem de ter a ins- tituição psiquiátrica “do bem”. Que a gente vá montar um monte de CAPS, Hospital Dia, Centros de Convivência, mas manter em nosso sistema um hospital psiquiátrico “do bem”, um pequeno hospital psiquiátrico, aliás, ampliar mais alguns leitos para garantir que o paciente, quando entrar em crise, muito em crise, possa ser internado no hospital psiquiátrico. Mas o CAPS III não teria esta finalidade de lidar com crises? Eduarda - Na Espanha, eles têm Hospital Dia, Centro Dia. Mas também têm hospital psiquiátrico extremamente moderno, e, quando eu estava lá, eles inauguraram um hospital psiquiátrico para adoles- centes com quarto forte todo forrado, com uma parte de informática. Então, é uma modernização do hospital psiquiátrico. A con- traposição exprime o conceito de albergamento, acolhimento, o CAPS III deve fazer a hospitalida- de noturna. Mas veja: é a idéia de hospitalidade, e não de hospitalização, um outro conceito. Cabe a todos os CAPS lidar com a crise, não se trata de um lugar, de uma instituição, mas de uma atitude clínica compatível com as exigências de quem vai substituir o hospital psiquiátrico. 17 Como surgiu essa idéia de intensificação de cui- dados? Marcus - A idéia da intensificação de cuidados é a idéia de oferecimento de cuidados intensivos a pacientes psiquiátricos que têm história de inter- nação freqüente e laços sociais muito frágeis. En- tão, dizemos assim: vamos montar um modelo de atuação clínica, um modo de atuar, ou seja, uma atitude clínica que possa abordar esses pacientes e buscar intervir na dinâmica de suas vidas com essas ofertas. Essa idéia é o nosso grande patri- mônio, porque existe uma grande precariedade de nossa estrutura institucional de suporte do es- tágio na instituição, de tal forma que a única coisa que a gente acabou, não intencionalmente, mas por força das circunstâncias, radicalizando foi o conceito da presença clínica. O que a gente tem para oferecer é a presença clínica e mais nada. A gente tenta articular, através dessa presença, ou- tros recursos, mas o programamesmo só oferece a presença clínica. Essa atitude que ele tem de cuidado intensivo, entendendo cuidado intensi- vo como intensificação de investimento humano, contrapondo à idéia de tecnologia, aparato tec- nológico, parafernálias institucionais, equipamen- tos e tal. A grande tecnologia é o investimento humano. Então, o programa está baseado, fun- damentalmente, na idéia de promover um intenso investimento humano, cuidado como investimento humano, em prol das necessidades do sujeito que está em crise ou deste sujeito psicótico no mundo, e ver o que a gente pode fazer, através deste in- vestimento, para produzir uma mudança em sua qualidade de vida, em sua posição no mundo, em sua liberdade. E é por isso que digo que não há um programa realmente, que o programa é, na verdade, a presença dos estagiários lá com os pacientes, é uma presença orientada. Então cuidados intensivos são uma tecnologia de assistência? Eduarda - Com relação ao aspecto da tecno- logia, a nossa é justamente a presença do outro, é a pessoa, é o investimento na relação. Quando se faz analogia com o hospital, com a UTI tem a questão da presença do outro, mas também tem toda sofisticação de aparelhagem tecnológica; na saúde mental, a sofisticação é a da presença, das idéias, do pensar clínico. É também um pensa- mento sofisticado. É uma verticalização, não in- tencional, porque, de fato, nós temos uma posi- ção periférica na instituição. Marcus - Estávamos discutindo essa questão, porque a gente ainda sente que há essa diferen- ciação do nosso programa com a totalidade da instituição que nos abriga. Estávamos localizando isso. O Mário Leal é uma instituição que ainda mantém o modelo bastante tradicional de oferta de assistência, é um hospital referência na Bahia, histórico, inclusive, mas uma instituição tradicio- nal que ainda mantém o modelo antigo de aten- ção à saúde mental. E nós, de certa forma, esta- mos fazendo uma provocação, que é o oposto. Chega a ser quase crua na instituição a presença das idéias da Reforma, sendo um contexto pouco 18 sensível à ideologia da Reforma. O Mário Leal possui ambulatório que funciona, às vezes, com aprazamento de quatro a cinco meses de aten- dimento, de consulta, de re-consulta, internação psiquiátrica. As pessoas ainda acreditam real- mente na necessidade de internação. Mas o Má- rio Leal é um hospital reduzido, com poucos leitos e que aceitou a nossa presença, da universidade e das nossas invenções. Por que o Programa está localizado no Mário Leal? Marcus - Bom, primeiro, porque já tinha a Edu- arda aqui, que trabalhava no Mário Leal. (risos). Acho que, dos lugares que nós tínhamos, aqui na Bahia, talvez este fosse o menos hostil. Então, se o Mário Leal era tradicional, ele é um tradicio- nal que, dentro da sua tradicionalidade, não é hostil, não foi ostensivo contra a Reforma. Se al- guém quiser fazer acontecer, que faça. Ele não se envolve, mas também não nos limita. Nós temos várias direções, vários lugares, muitas delas em serviços públicos estaduais da SESAB, de defesa corporativa, porque eles são diretores psiquiátri- cos, defendem corporativamente a manutenção do status quo. Dizem não a este negócio que está se falando pelo Brasil inteiro, que vai acabar com o hospital. “Aqui na Bahia não vai acabar. Nós, psiquiatras baianos, não vamos deixar acabar, versão do Diabo, não temos nada a ver com essa coisa” O Mário Leal tinha esta posição um pouco menos hostil à Reforma. Eduarda - Eu acho interessante, também, não falar de fora, nós estamos dentro de um espaço. Na realidade, a gente vem se confrontar com a prática. Eu trabalhava na internação, na época do início do Programa, e ficava numa posição muito tensa diante dos pacientes dessa clínica. É um hospital pequeno, a gente conhece os pacien- tes. Freqüentemente recebíamos pacientes que voltavam do Sanatório Bahia, do Santa Mônica, para o Mário Leal. Perguntava o que fazer com aqueles pacientes dentro desta estrutura, já que o ambulatório estava funcionando contra, então o que fazer diferente daquilo? Marcus - Eduarda, que é professora da FBDC, estava aqui, trabalhando na internação, questio- nando o produto do trabalho dela; e eu estava no campo da Reforma, querendo achar um lu- gar para poder montar um programa de estágio e fazer a problematização conceitual da idéia de “internação X intensificação de cuidado.” Então, nosso encontro foi fecundo nesse sentido, por- que, na verdade eu queria abrir um programa de estágio para os alunos de psicologia da UFBA e ela também. Então, acho que abrimos uma coisa que é uma característica muito positiva do Progra- ma, o trabalho com dois grupos profissionais, e conseguimos fazer da intensificação de cuidados um objetivo clínico que não é especializado nem para Terapia Ocupacional nem para Psicologia. A gente consegue desenvolver as habilidades carac- terísticas, mas a gente não restringe ao modelo estrito de atuação do segmento profissional. Não é dividido em T. O. e Psicologia, mesmo porque 19 a atuação do CAPS não fecha na especificidade. Claro, nós estamos preparando profissionais para o mercado de trabalho atual no meio psiquiátri- co. Mas como combinar o que é especifico de cada grupo de estagiários e o que é comum? Marcus – Usamos a idéia de núcleo e campo. Existe o campo que é de todos. Então ao cam- po que é de todos, nosso estágio dá preferência. O campo dessa clínica, dessa atuação intensiva, dessa atitude clínica, deve ser de todos: os enfer- meiros, psicólogos, assistentes sociais, etc. É uma atitude, uma postura, e óbvio que cada um a par- tir de uma ferramenta do seu núcleo específico, disciplinar. Eduarda - No estágio, isso é um diferencial. Já temos quatro anos de Programa, e foi um en- contro importante, no sentido institucionalmente produtivo; já passaram não sei quantas pessoas por aqui, já abrigou muita gente. Já são oito se- mestres de atividades. Um aluno, ex-estagiário, passou em primeiro lugar agora na residência em saúde mental da UNEB. Outra passou para a re- sidência de Psicologia do Juliano Moreira. Então nossos estagiários estão se destacando. Marcus - Acho que é isso aí, estas apostas, es- tes espaços para formar, ensinar. A gente vem de culturas profissionais diferentes, mas a busca é de se encontrar. É isso aí. Foi um encontro. Aqui, por quê? Por essa coincidência. Para mim também foi o lugar menos hostil. Eduarda era uma pessoa que dava para conversar dentro das disputas, dis- putas políticas de Reforma, que eu me envolvo por ser do movimento social, aqui era o lugar me- nos contaminado. E também porque pensei: Poxa, aqui é um lugar menor, é um hospício pequeno. A conjuntura do lugar, do tipo que seria possível, como foi. E, apesar de a gente falar que a gente é um tanto marginal, de a gente estar um pouco fora, a instituição não nos abraça, mas também nos tolera bem, cria até um mínimo de tensão. Eu acho que poderia ser menor, mas a gente tem conseguido. Eduarda - Na verdade, há quatro anos tra- balhamos com pacientes indicados pela institui- ção. Então, nós fazemos a reunião, supervisão do Programa aqui. Já pensamos assim, por que não fazemos a supervisão fora daqui, na FBDC, no espaço da UFBA? A gente mantém esta coisa de fazer aqui dentro, porque a gente quer caracteri- zar. Às vezes temos problemas de sala, de espaço, mas queremos caracterizar que é um Programa no Mário Leal, e com o Mário Leal. Não é um Programa clandestino. Como se dá a apresentação do programa aos usuários? A apresentação é feita pelos próprios estagiá- rios do PIC que oferecem a possibilidade do pa- ciente ingressar. A gente assume a identificação institucional como um programa do Mário Leal, pois não estamos fazendo nada clandestino. A 20 gente não é oficial do ponto de vista da ideologia, da atitude. Fazemos questão de defender como se fosse um algo mais, um plus do serviço do hos- pital para os pacientes. E nós temos a liberdadede triar os pacientes segundo nossos critérios. A instituição não nos impõe isto segundo os critérios dela. Nem número de pacientes, até na estrutura inicial do programa. Qual é o critério de seleção dos pacientes? Eduarda - Inicialmente, o primeiro critério foi a internação e a reinternação. Aqueles que tinham um ciclo de internação freqüente, pacientes jovens que, depois da primeira internação, sofrem com a internação e aí começa uma carreira. Este foi e é o primeiro critério. Importante relatar um caso: Um paciente que tem a primeira internação com quinze anos e, com dezoito, já tem quatro interna- ções. Este é um paciente típico que nos interessa. E é um paciente considerado difícil, é a “carne de pescoço” para quem trabalha com internação, porque ele volta e com o mesmo quadro, justifi- ca a internação para a equipe. Supostamente ele precisa estar internado, porque se pensa que uns não têm jeito, você precisa interná-los. Marcus – E então são esses que se internam freqüentemente, os que não têm jeito, os que “têm de internar” que nós buscamos. Uma aposta no contrário. Ao tomar esta clientela, aceitamos a provocação, bem são estes aí, os “taizinhos” que não têm jeito, que têm de viver internados, preci- sam de internação. Então, vamos ver o que é pos- sível produzir na vida dessas pessoas, manejando um conjunto de atitudes para que elas possam não precisar de internação. Nós estamos fazen- do, na prática, um debate entre intensificação de cuidado e necessidade de internação. Então, nós estamos dizendo assim: nenhum paciente precisa ser internado. Alguns precisam de cuidados in- tensivos, porque seus casos são muito graves e precisam de uma atenção diferenciada se a gente não quiser interná-los. Então a gente está inver- tendo um pouco, tem um caráter demonstrativo; o programa de uma perspectiva teórica e técnica dentro da Reforma Psiquiátrica. O que a gente provoca nos alunos hoje é que todos os pacien- tes acompanhados precisam de cuidado intensi- vo. Mesmo compensados, é preciso estar sempre com a antena ligada. Existe um critério de idade para ser aceito? Eduarda - No inicio, até se tentou, mas não se conseguiu manter este critério. São duas idéias: uma era por pacientes mais jovens e outra que não tivessem muitas perdas cognitivas. Mas aca- bou predominando o critério de se internar muito. Agora se aceita quase tudo, o que se interna muito e está muito abandonado e sozinho. Por exemplo: tem um paciente com mais de vinte internações na vida. Paciente que leva a vida inteira sendo internado, passa dois dias em casa e é internado, indo assim de um lugar para outro. Hoje temos uma grande dificuldade em mantê-lo fora da in- ternação. Na verdade, a gente passou os últimos meses praticamente sem que ele fosse internado. 21 Hoje, por acaso, ele está internado. Está interna- do, porque nós somos muito insuficientes como programa, somos muito limitados. Ao limitarmo- nos à mera presença, nós nos damos conta de que ela não é suficiente. Marcus - É preciso também os recursos estru- turais, institucionais. Diria que, se nós tivéssemos hoje o manejo de recursos estruturais/ institucio- nais, certamente ele não estaria internado. Es- tou falando de uma atitude mais acolhedora na emergência, uma atitude/postura mais agressiva da instituição no sentido de ser mais bem articula- da com a política integral da cidade, com a rede. Se a gente tivesse isto, ele não estaria internado. Ele não foi internado por uma questão psíquica. Foi internado, pois nós não conseguimos superar, com a mera presença, o grave déficit social. E, di- ga-se de passagem, este caso é bom, porque nós fizemos uma intermediação deste paciente para ser atendido no CAPS, que devia, este espaço, possuir mais recursos do que nós, mas se trans- formou no contrário, nós que passamos a ser um recurso do CAPS. Este serviço, ao invés de apor- tar novos recursos, aportou apenas, como recurso fundamental para o paciente, a alimentação, por- que ele não tinha como comer e, ao freqüentar aquela instituição, começou a ter comida, com muitas tensões, porque o CAPS fica muito irritado, já que o paciente vai lá para comer e não adere aos outros tratamentos. Os recursos da clínica do CAPS são insuficientes? Marcus - Nós temos uma crítica, que é a críti- ca exatamente do que os gestores da política de saúde mental estão fazendo – monta-se um equi- pamento, mas não se tem a ideologia da intensifi- cação de cuidados. Então o CAPS termina sendo um lugar muito hostil, pouco acolhedor, pouco sedutor, para que o paciente possa se vincular. E nesse caso nos acabamos sendo o recurso do CAPS. Apesar do programa do CAPS vir como algo muito mais instituído, mais chance de gera- ção de recursos, de intervir no caso desse pacien- te, nós passamos, praticamente, a contar com, o CAPS para a alimentação, para você ver como a questão é social. Nós conseguimos que o CAPS fosse um recurso para produzir alimentação, mas não para intensificar cuidados junto ao paciente. Eduarda - Ele tem uma situação social pecu- liar. Ele mora num buraco com dois cômodos sem luz, sem água e sem gás, sujo. Mora numa cova, um verdadeiro antro. Quer dizer, estas situações 22 sociais, que nós estamos pelejando aqui, mas que são limitadas pela mera presença sem institucio- nalidade. Então, nós não temos problemas, não temos de demonstrar que os pacientes do pro- grama nunca mais foram internados, basta ter um programa como este. Claro que nós estamos dizendo que o manejo clínico produz alteração substantiva na qualidade de vida, na continência social. Altera muito as chances de o sujeito ser internado. Marcus - O paciente citado passou um ano sem se internar, e isso só aconteceu porque nós operamos o tempo todo ao lado deste sujeito. Quer dizer, este sujeito não precisa de internação, precisa de alguma coisa que o programa sabe, mas não tem para dar. Mas sabe que é possível dentro de uma política pública de ser oferecido para um cidadão portador de transtorno mental. O que ele precisa não é nada estratosférico fora do campo do que uma política pública de saú- de mental pode oferecer. Nós sabemos do que ele precisa, mas não podemos oferecer, porque somos um programa limitado. Mas a tecnologia de intensificação de cuidados evidenciou ser um caminho certo para operar com este tipo de sujei- to. Quando convocado, o CAPS mesmo afirmou que se tratava de caso para internação. O CAPS até agora associou as forças expulsivas. Fizemos todo movimento (durante um ano) para mantê-lo fora do hospital psiquiátrico, e o que o CAPS tem a dizer sobre este caso é que ele é um caso para internação. Caso de internação por quê? Porque ele não consegue dialogar com o caso. Não con- segue dialogar por quê? Porque falta repertório clínico, e é aí que entramos no seu assunto. Então o que faz a diferença é a ideologia da clínica? Marcus - O grande diferencial do PIC, talvez, o que a gente está querendo instalar, é um novo re- pertório clínico, uma nova atitude para o exercício da clínica com essa clientela. Esta lógica que es- tamos querendo problematizar, esta lógica, exata- mente, que clínica é essa? O grande problema da Reforma Psiquiátrica, hoje, é a questão da incon- sistência da clínica que é feita. Há uma ideologia geral, há um repertório de atitudes prescritas, mas existe um limite para operar na clínica. Então, o PIC está baseado no esforço teórico e prático de uma fundamentação de uma clínica psicossocial com psicóticos, uma clínica que articule, no mes- mo movimento, a questão da subjetividade e do pertencimento social. Não a clínica que tome a questão da subjetividade como uma questão de indivíduo que está disfuncional e opere na clíni- ca da falta de funcionamento psíquico do indi- viduo e trate como uma outra coisa a questão do pertencimento social, dos laços sociais e da sociabilidade dos sujeitos. Ela é uma clínica muito empírica. Dentro dos CAPS, hoje, fazem-semui- tas coisas, fazem-se muitas ofertas, mas a articu- lação, a fundamentação, a estruturação de uma reflexão sobre condição psíquica e pertencimento social, pertencimento social e condição psíquica, isto não está sendo feito. 23 Qual é o diferencial da teorização do PIC em relação à clínica psicossocial dos psicóticos? Marcus - É o esforço de produzir um pensa- mento que orienta a ação, uma atitude clínica, baseada numa articulação que não os vê como dois âmbitos diferentes. Estruturação psíquica e pertencimento social são duas coisas que estão em mão dupla o tempo todo, em tráfego intenso, e quem quiser trabalhar nesta clínica, ser efetivo nessa clínica, trabalhar integralmente, tem de ser capaz de não separar, de não distinguir isto, mas operar com uma coisa operando com a outra (es- trutura psíquica e pertencimento social, pertenci- mento social e estrutura psíquica). Talvez assim, o que nós temos recenseado mais, o maior esfor- ço que a gente tem aqui é de fazer essa costura. Ensinar a clínica em que não se separa, agora o social, agora o psiquismo. Mas agora a gente pensa o psiquismo como sociedade, sociedade como psiquismo, em vínculo, ou laços sociais, em relações, em sociabilidade, em pertencimento, em convivência, em expulsão social, em exclusão social, pensa todas essas coisas. Em estruturação do sujeito, em delírio, enfim, toma essas coisas todas como produção que está no campo, que precisa ser trabalhada, estudada. Eduarda - Eu acho, pessoalmente, que o cam- po da teorização da clínica da saúde mental é um campo que valoriza muito a questão do indivíduo e da abordagem individual. Os profissionais não têm repertório para lidar com a questão social e, quando têm esse repertório, lidam com a questão do social como se ela fosse uma questão distinta da questão da estruturação psíquica individual. Normalmente não têm repertório, é como se isso não lhes pertencesse, e como se diz no prontu- ário, a minha parte é até aqui, ali é o social e sobre o social eu não tenho o que fazer. Inclusive, é um jogo de empurra, é como se dividissem os pacientes em vários. Um lado é o social, outro o psíquico, outro lado é das drogas, outro é a família, como se o paciente fosse um bocado de coisas separadas. Marcus - Eu acho que essa clínica, que se cha- ma “clínica ampliada”, ela vem mudar essa visão. O paciente não é só uma soma de um monte de coisas, que não opera sobre os sintomas, ope- ra sobre a presença do sujeito no mundo; consi- deram-se as dificuldades psicológicas, subjetivas para a presença desse sujeito no mundo e se con- sidera que, efetivamente, o mundo é o lugar que realmente é difícil para o sujeito estar se ele não está operando num certo registro da normalida- de. É tentar produzir este diálogo entre o mundo e o sujeito, o mundo psíquico do sujeito e a cultura, a cultura e o mundo psíquico. Eu acho que a gen- te trabalha muito forte com essa questão de per- tencimento na cultura, a idéia da psicose como uma dificuldade de ser sócio da cultura e de que nosso trabalho, nossa clínica é exatamente essa de criar possibilidades, de ampliar as chances de esse sujeito pertencer à cultura. Às vezes eu digo, um pé na cultura: “cultura, tem paciência, afinal de contas esse sujeito está psicótico”; um pé na psicose: “psicose, tem paciência, não fique nessa 24 posição, afinal de contas a cultura não perdoa, a cultura é exigente, não vai deixar você ficar nessa posição”. Então um pouco essa idéia de mediador. A mediação seria uma nova função do profis- sional de Saúde Mental? Marcus – É assim que vejo. Esse operador da saúde mental como mediador dessa tensão entre a disfunção psíquica e a disfunção social, criando a possibilidade do cabimento da disfunção psí- quica no funcionamento social. Eduarda - Ela é uma clínica sofisticada, né, Marcus? Você precisa da alteridade, que é outra coisa que a gente trabalha também, alteridade no lugar da autoridade. Eu acho que inicialmente é uma questão para os estagiários, elas vão visitar os pacientes do programa que se encontram in- ternados em hospitais, e às vezes no CAPS tam- bém, as equipes de lá ficam dizendo: “ah, vocês são babás dos psicóticos. Aqui nós damos auto- nomia”. Então, tem uma leitura equivocada dos termos que são hoje em dia socialmente corretos, politicamente corretos. Autonomia é um termo que é comum hoje na saúde mental, mas autono- mia como desresponsabilização. Então, tem esse detalhe ético. É um equívoco o que está aconte- cendo com o termo “autonomia”: “os pacientes têm autonomia, eles tomam medicação se eles quiserem, eles vão ao caps se eles quiserem, não temos nada com isto”. Vêem autonomia como desresponsabilização do técnico em relação à psicose. Tenório fala que quanto mais pertencente a alguma coisa (várias coisas) maior grau de au- tonomia esse sujeito adquire. Marcus – No PIC, a gente lidou com vários casos de recusa do paciente que a gente aplicou aquela idéia da reforma psiquiátrica italiana, da lei 180, que afirma: o paciente tem o direito de recusar tratamento, a unidade de atenção à saú- de mental tem a obrigação de oferecer o aten- dimento. Então, colocar essa contradição, esse direito de recusa e a obrigação da oferta como ponto de negociação. Porque se um tem o direito de recusar, o outro tem o dever de ofertar. Você faz o ponto de tensão que só pode ser solucio- nado através do ponto de negociação. O serviço tem de ser capaz de convencer o sujeito que ele vai receber o serviço. E o sujeito? Respeitando o sujeito, ele tem o direito de recusar, ou seja, se o serviço não for convincente, ele não vai cumprir sua função se ele não tem de convencer o pacien- te que ele deve aceitar. E ele só deve convencer, não pode impor à força, porque o paciente tem o direito de recusar. Em vários casos aqui a gente usa esse paradigma, sobretudo os casos de pa- cientes que dizem assim: “eu não quero ver vocês, vão embora”. Aí a gente diz assim: “você tem o direito de não querer ver a gente, mas a gente tem a obrigação de vir cá e dizer que a gente está à sua disposição”. Então, temos aí um problema. O seu direito é o nosso dever, nosso dever ético de te perceber numa condição fragilizada e de perceber suas condições de fazer estas delibera- ções sobre seu desinteresse por nós. Porque você 25 está supondo que nós estamos no lugar de perse- guidores, porque você está supondo que vamos colocar você nesse lugar hostil. Nós não estamos nesse lugar hostil, sabemos eticamente disso, va- mos só sustentar nossa presença até a hora em que você tope conversar com a gente. Eduarda – Em vários casos a gente teve de aplicar isso aqui. Tá certo, isto é um problema, senão a gente se demite da responsabilidade do problema: “você não quer, você não quer! É pro- blema seu” – é assim que o CAPS faz: “estou res- peitando que você não quer”. E eu pergunto, não é engraçado? Quando ele quer se jogar lá do alto, acho que posso intimidá-lo, não respeito o que ele quer! Quando acho que ele diz que vai matar alguém, eu interno e não respeito o que ele quer! Agora, quando ele diz para mim que não quer a minha presença, eu rapidamente faço concordância com ele e digo: “eu respeito o que você quer”. Então é uma coisa meio de conveni- ência. Marcus - Esse é um ponto legal, um ponto ra- dical. Tivemos aqui três ou quatro casos em que tivemos de enfrentar isso, ação de nos demitirmos da responsabilidade. Vimos que o problema era um problema da nossa dinâmica clínica, então nós fomos desafiados a mudar nossa dinâmica clínica de abordagem para permitir que o pacien- te se sentisse confortável para aceitar nossa oferta. Então, na hora em que ele se sentiu confortável, ele aceitou nossa oferta. Então, esse é o ponto em que nós trabalhamos com um sofisticado pensa- mento. Na verdade, não é a tecnologia que é so- fisticada, é o pensamento sobre essa difícil atitude que é oferecer uma clínica para essa clientela. E qual a relaçãodo acompanhamento terapêu- tico com o programa, como é que ele entrou? Marcus – Na verdade, hoje eu penso que cada vez mais nós tendemos a definir a clínica como baseada no manejo das relações vinculares, des- de o conceito de transferência (strictu sensu), con- ceito já consagrado na clínica da saúde mental. Nós extrapolamos esse conceito de transferência e manejamos múltiplas relações vinculares. Isto, de alguma forma, pode definir essa clínica como clí- nica do manejo das relações vinculares. Por isso, no lugar do estágio, nós dizemos que trabalha- mos com a clínica que preserva a relação transfe- rencial, e, para isso, delimitou-se um setting para preservar a relação terapeuta-paciente, porque aquela relação vincular promove os efeitos tera- pêuticos (você pode chamar isso de reforço de pureza, pureza do vínculo transferencial isolan- do através do setting). A questão é que o setting do serviço substitutivo é exatamente o setting da contaminação, não tem esta pureza, as relações vinculares são atravessadas, ligadas por muitos aspectos, muito dinâmicas. Então, temos aí um fato, é uma condição nova. E o saber psicológico, psicanalítico, relação psiquiatria-médico-pacien- te, ela não se preparou para lidar com essa di- mensão das relações vinculares transversais, para lidar com a dimensão das relações vinculares res- tauradas nos processos de convivências coletivas. 26 Então, é uma clínica que não sabe sobre isso, ela não tem recurso de pensamento. Então o vínculo é um conceito central para vocês? Marcus - Essa clínica está baseada nesse re- curso, manejar as relações vinculares como orien- tação nessa clínica. E aí, a gente vem trabalhando com a idéia de que nós fazemos muitas ofertas (não ofertas tipo pacotes), de que o programa, na verdade, é baseado em várias possibilidades, em articulações dessas relações vinculares, e uma dessas possibilidades é essa coisa de atenção do- miciliar. Hoje o paradigma da atenção domiciliar começa a ser desenvolvido no PSF, na idéia de medicina da família, algumas coisas começam a ser desenvolvidas a partir do saber sobre atenção domiciliar. Atenção domiciliar é tomar o lócus do domicílio como lócus de ofertas de atenção. O setting completamente tenso, conturbado, confu- so, às vezes a gente vai lá fazer a oferta dentro desse setting, tomar o domicílio como setting da oferta. Talvez esse seja um ponto forte sobre o qual a gente nem saiba tanto, mas a gente apos- tou nele, e ele foi revelando uma potencialidade. Talvez os PSFs tenham um saber sobre isso, dife- rente do saber que nós estamos produzindo, que é o manejo das relações vinculares transversais, cruzadas, enfim. Eduarda - Nós trabalhamos com as duplas, pessoas que vão para dentro das casas. As ar- ticulações das duplas: uma escuta fulano, outra escuta sicrano, ou seja, maneja-se esse conjunto de relações no ambiente da família. Outra coisa que a gente faz é uma aposta no trabalho com a sociabilidade. Então, o trabalho com a sociabili- dade, com os pacientes, o esforço de produção da sociabilidade, ela define o espaço do trabalho grupal. E a gente mantém um grupo, o grupo do encontro, que é uma modalidade que a gente está ainda ensaiando. Este espaço de grupo é um es- paço importante. Dentro deste espaço nós temos um tipo de oferta que é um esforço para olharmos as necessidades sociais integrais. Marcus – Retomando a sua pergunta. Um desses componentes que usamos nesse manejo múltiplo é o componente do Acompanhamento Terapêutico ou AT. Tanto na dinâmica da relação grupal, nos processos grupais, isto porque o pa- ciente vem para o grupo acompanhado, vem in- troduzido no grupo com o acompanhante, quan- to nos passeios coletivos de todos os pacientes, quando os estagiários saem com os pacientes em grupo, que também divergem da estrutura típica do acompanhamento terapêutico, em que um acompanha um. Aqui, muitos acompanham muitos. E também temos a dinâmica do AT stric- tu sensu, porque, às vezes, com cada paciente, há uma dinâmica relacional, às vezes a dupla sai com um para isso, para aquilo. Às vezes sai com dois também, mas o mais comum é sair a dupla com um paciente, fazer coisas da necessidade do paciente na rua, coisas ligadas à cidadania: tirar identidade, título de eleitor, benefício, ministério público, não tem regras. 27 A intensificação de cuidados então é mais ampla do que o acompanhamento terapêutico? Eduarda - Temos de enfatizar mais a questão do trabalho com as redes sociais na comunidade a partir do núcleo familiar. Você toma o núcleo fa- miliar, a atenção domiciliar e uma certa expansão disso para outras relações, dos pacientes com, os amigos por exemplo. Aspecto importantíssimo é a articulação com os vizinhos, com a igreja, com a comunidade, com a rua, com a barraca em frente. A gente tem casos de a comunidade fa- zer movimento contra o paciente, de brigar. Tem uma situação em que o paciente xingou a mãe de alguém, e esse foi lá brigar, bater no paciente, e as estagiárias lá na casa tiveram de contornar, do lado do paciente, intermediar, e depois voltaram para trabalhar com os vizinhos, com o grupo de adolescentes para poder conviver de uma outra maneira. Articularam a rede objetiva e subjetiva mesmo. Marcus - Fazer advocacia do paciente na co- munidade é emprestar o poder contratual, é aju- dar a negociar uma melhor posição diante do outro, usando o poder das estagiárias: “olha, comunidade, vocês têm de ter paciência com o cara, porque ele está muito mal”. Eduarda - E às vezes o contrário também, às vezes o paciente entra em crise, não quer se alimentar e tem um pastor que é um integrante importante na vida desse paciente, e bastou que esse paciente conversasse com ele para que ele conseguisse se alimentar, para produzir uma in- terferência a partir de uma outra relação que é significativa para ele, para interferir no caso dele. E tem um caso interessante de estagiários que fo- ram fazer uma visita a um paciente que mora aqui perto do Mário Leal e foram assaltados no meio do caminho. Aí roubaram a bolsa e o celular dos estagiários. Eles voltaram para o Mário Leal, a moça chorando, o rapaz não podia chorar, por- que “homem não chora”. E todos num clima de drama, porque afinal de contas, “veja como é ar- riscado esse programa, colocou os estagiários em risco, eles foram à comunidade que moravam as pessoas pobres, perigosas, que assaltam as pes- soas”, todo um drama. E, enquanto estão todos lá, discutindo esse drama, vem a paciente trazen- do a bolsa da estagiária, dizendo “eu estava na porta da minha casa, de repente vi fulano passar com uma bolsa e reconheci, aquela bolsa é a bol- sa do meu estagiário. Corri lá, falei com não sei quem, e não sei quem foi lá e trouxe a sua bol- 28 sa. Tome aqui sua bolsa, na minha comunidade a sua bolsa não será roubada”. Marcus – É, pelo ponto de vista do laço social, produziu proteção para os estagiários, pela ques- tão do vínculo, do manejo. Em todas essas ope- rações, há questões que nos fazem aproximar da temática do AT. Entretanto nós produzimos cursos sobre AT, incentivamos, enfim. Nos interessa mui- to qualificar as principais funções típicas, o modo de operação típica do AT, ainda que isso esteja calcado na perspectiva didática, de uma díade do acompanhante e paciente. Nós achamos que isso pode ser uma base nuclear interessante, para pensar na questão da continência, do holding, de uma série de funções que o AT pode exercitar. É, a dinâmica psíquica do psicótico, ela é muito com- plexa, toda informação teórica, clínica que puder ajudar para que um sujeito compreenda melhor o que significa estar diante de um paciente psi- cótico, acho que essa é a matéria principal que tem faltado no mercado, que é um preparo para que os sujeitos possam se localizar diante desse enigma, que é a psicose, se é que é possível isto. Que o sujeito possa ter um repertório mais elásti- co para se movimentar diante do sujeito psicótico.A gente acha que este programa é um preparo, um tipo de preparo para o trabalho, e, no caso, este preparo a gente procura trabalhar aqui no estágio. Na verdade, o que a gente está prepa- rando nesses estagiários é uma atitude para uma postura. Lição número um para quem quer traba- lhar com pacientes psicóticos: é preciso aprender a suportar a psicose! Esse é um ponto de partida que interroga hoje os nossos serviços. Os serviços hoje estão cheios de pessoas que, ao invés de suportar a psicose, agridem a psicose com uma certeza clínica que advém da teoria psicanalítica, da psicopatologia psiquiátrica, enfim, das diver- sas formas de localização do sujeito psicótico. Os serviços não estão preparados para lidar com os pacientes? Marcus - Acho que pouco preparados, teórica e tecnicamente, para a clínica com psicóticos. Eu olho aí, esse é pensamento meu, e vejo que há uma asfixia tática que impede qualquer clínica de prosperar com esse sujeito esquisito aí, arranja- do psiquicamente ao modo da psicose. Com esse tipo de fechamento, em que a teoria hegemônica produz a certeza sobre o que o sujeito tem, se é incapaz de produzir qualquer efeito dialogante com a psicose. Então, eu acho que isso aí é perda de tempo. A atitude clínica que a gente desenvol- ve é essa atitude que tenta produzir a condição de suportar. O acompanhamento terapêutico não seria um recurso útil aí? Marcus – Há um saber sendo produzido nes- sa relação diádica do acompanhante terapêutico com o acompanhado que nos interessa, que é uma matéria útil para o nosso trabalho. Agora, a gente acha que o AT é o recurso, ou é o melhor recurso? Não! Porque o que estamos falando é de manejo das relações vinculares. Se a gente tem 29 uma crítica ao abuso do setting tradicional que, para manejar as relações vinculares, isola a rela- ção vincular, que protege o lugar da relação vin- cular, que, para isso, tem de se fechar numa sala, trancar seu diálogo entre quatro paredes, porque só assim vai produzir esse laço que vai permitir a interferência transferencial. Se a gente identifi- ca tudo isso, é lógico que a gente valoriza o AT, na medida em que o AT rompe com esse setting e coloca o sujeito numa situação de exposição. Ele cria para o AT a necessidade de flexibilidade, de lidar com as situações de transversalidades, com os atravessamentos, com a simultaneidade, com a multiplicidade de situações. Então, o AT é progressivo em relação ao tema de ruptura com o setting clássico da clínica, que tenta reduzir a relação do sujeito pelo recenseamento simbólico que ele apresenta no contato. Ou pela postura ou pela atitude física do paciente tenta-se deduzir coisas sobre ele. O AT entra na vida do pacien- te, tem mais chances de receber do paciente in- formações, perceber, fazer leituras interpretativas acerca das dinâmicas subjetivas, psíquicas do pa- ciente psicótico. E quais seriam as limitações do AT em relação à proposta de vocês? Marcus - O AT ainda está mantido no registro de uma sociabilidade privatizada, ou seja, a re- lação diádica ainda é tida como ponto principal da sustentação. Mas acontece uma coisa interes- sante, lá em São Paulo, onde essa prática é mais difundida, onde se vêem casos assim: um pacien- te, para ser cuidado, tem de ter um psiquiatra, um psicólogo ou psicanalista, e aí tem um AT. O AT para possibilitar as dinâmicas da sociabilida- de. É como se cada um desses sujeitos tivesse de preservar um campo de especificidade da sua atuação para garantir a efetividade do que ele faz. E aí nós estamos propondo algo diverso com essa idéia de cuidado intensivo, baseado no ma- nejo das relações vinculares, múltiplas, diversas, aquelas que foram fundamentais para o desen- volvimento do CAPS como projeto de instituição de cuidados aos psicóticos. Estamos perguntan- do, na verdade, que especificidade é essa onde um escuta, o outro medica, e o outro circula pela cidade? Que história é essa? Que lugar é esse? O grande desafio é perguntar: alguém é capaz de trafegar por tantas posições diante do sujeito e sustentar sua posição de alteridade diante dele? A exposição à convivência do profissional com o sujeito atendido em múltiplas situações, múltiplos espaços, múltipla referência, coloca que tipo de risco? Coloca o risco de que a alteridade seja per- dida, mas isso é um problema da relação vincu- lar, esse é um problema do material, do preparo do sujeito que está posto nessa relação. Talvez o que nós estejamos dizendo, querendo dizer, é que talvez seja possível para um sujeito experimentar múltiplas posições diante do paciente sem perder a posição da alteridade. Como se articula essa questão da alteridade com a noção de vínculo? Marcus - Esse tema é muito interessante, por- que, muitas vezes, existe uma confusão entre a 30 posição que sustenta a alteridade e a perspectiva moral que exige dos psicóticos uma submissão à autoridade. Fica aquele papo da alteridade como autoridade, e, muitas vezes, fica parecendo que a figura da alteridade é exercício de autoridade. Autoridade: eu sou um médico, eu sou um psica- nalista, eu sou seu AT. Fica parecendo que o que sustenta a relação vincular é uma certa autorida- de do saber sobre a psiquiatria, sobre psicanálise, sobre AT; e não a postura do cuidador que conse- gue manter-se na condição de um “Outro” válido diante do psicótico. No CAPS, eles dizem não ser possível suportar a convivência, suportar o grupo, porque eles aprenderam teoricamente que têm de lidar no espaço neutro, no espaço que não conta- mine. Se eles estão no grupo, se estão no espaço da convivência, eles se expõem, entram em cho- que contra sua própria questão. O vínculo seria um tipo de transferência? Marcus - Ou a transferência que é apenas mais um tipo de vínculo? Entendeu? Nós estamos, na verdade, fazendo uma provocação do campo, o principal campo orientador da fundação teórica do preparo para a clínica mental que é a psica- nálise. E ela toma a transferência ao modo de uma relação vincular muito especial, e nós esta- mos partindo da transferência para dizer “tudo é vínculo”. A grande questão é saber qual o prepa- ro que alguém tem de ter para se sustentar numa posição, em múltiplas localizações diante do su- jeito, sustentando alteridade. Isto tem a ver com o preparo do sujeito, isso não é um ideal absurdo, só vai exigir que esse profissional seja um profis- sional mais permanentemente atento e mais de- vidamente centrado na sua função, no seu saber, na sua localização no mundo. Ou seja, vai exigir um profissional mais sofisticado. Agora, nós não podemos querer colocar as pessoas em ambien- tes, em settings absolutamente diversos, múltiplos, movimentados, coletivos e manter a referência te- órica, interpretativa da clínica no registro da rela- ção diádica. Eduarda - Temos podido desenvolver essa pro- blemática, a problemática de como que a gente pode, sem culpas e sem dar satisfações a nenhu- ma igreja teórica específica, tentar produzir uma clínica baseada na alteridade e no vínculo, sobre- tudo considerando que, de vez em quando, você pode não conseguir, que de vez em quando você vai falhar, você vai se perder, mas ainda assim, sem culpa, sem aquela obrigação, sem aquela imposição, sustentar a busca de uma clínica que se envolva na complexidade das relações sociais concretas que definem as possibilidades e as po- sições dos sujeitos no mundo. Resistir à tentação de reduzir a complexidade do sujeito para caber nas nossas conveniências teóricas. Marcus - Mas, sobretudo está a tarefa de pro- duzir um elemento orientador para a prática clí- nica: olhe, diante do paciente, eu tenho que o tempo todo estar fazendo alteridade, e a alterida- de é estar sempre centrado na minha função, na minha escuta, na minha atitude, na minha posi- ção. A gente está tentando que desenvolvam essa 31 habilidade, que é muito mais uma atitude, que tem relação com o preparo, que tem relação com as idéias que estão sendo orientadas.Então, é por isso que aqui hoje eu disse assim: as pessoas têm uma atitude, nós oferecemos uma presença orientada por um certo pensamento que compre- ende o que é a psicose, o que significa o delírio, o que significa a crise, o que significa um deter- minado tipo de produção dos pacientes em sua vida, que os outros que estão lá com os pacien- tes, que também são sujeitos psíquicos, que tam- bém estão expressando sua condição de sujeitos barrados, as suas dificuldades, suas limitações, e nós produzimos uma interação entre sujeitos psí- quicos precários. Somos todos sujeitos psíquicos precários, inclusive o sujeito que está atendendo o outro sujeito. Devia ser preparado, mas é pre- cário, e, dentro dessa precariedade, ele busca se preparar para superar a precariedade. Nós todos somos sujeitos psíquicos precários, e os psicóti- cos sujeitos psíquicos com um tipo de precarie- dade, os seus familiares com as precariedades e nós com nossas precariedades: “um encontro de precários”. Como se dá a formação para atuar no programa? Eduarda - Se tem uma metodologia que é as- sim: exposição durante dois meses, mera exposi- ção aos pacientes. O segundo momento é reser- vado para a teorização; em seguida vem a ação. Este programa é assim, quem quiser participar do estágio tem de ficar durante as férias para receber os pacientes da dupla que está saindo. Então, a passagem é uma fase do estágio, é o primeiro contato do paciente com seu futuro acompanhan- te. Durante a passagem, ele é progressivamente apresentado ao paciente, informado que substi- tuirá e ele, durante um mês, vai sendo repassado, então ele vai da posição de alguém que está che- gando até a posição de alguém que está saindo. Em momento nenhum o atendimento é interrom- pido. Nas duas primeiras semanas, você (a dupla que está chegando), e nas duas outras, você (a dupla que está saindo) atuam juntos. Então faz aí o que a gente chama de “passagem”, aí depois, após um mês, o paciente está por conta dos no- vos. Ele conhece o paciente nas 4, 5 semanas, mas sabe muito pouco sobre qualquer coisa, seja sobre clínica, seja sobre psicose. Marcus – O aluno vem com uma experiência mínima e, às vezes, nenhuma sobre a psicose. Ele nunca viu alguém psicótico, ele nunca se relacio- nou com alguém psicótico, não viveu experiência anterior, é virgem na relação com a psicose. No máximo, viu pacientes internados na disciplina de psicopatologia. E aí a gente deixa um período ini- cial de quase um mês e meio pelo menos (só aí já vão quase dois meses e meio de convivência). Dizemos assim, só seja delicado e gentil, simpá- tico e presta atenção, esteja presente, mas não complique, não perturbe a vida do paciente, por- que o contato com o sujeito psicótico é uma das principais fontes de aprendizagem sobre a psico- se. Nada das idéias que são trazidas aqui podem substituir o contato com a experiência do sujeito 32 psicótico. Passagem e depois exposição à psico- se. Aqui se tem uma concepção teórica: “a psi- cose ensina”. A psicose é uma obra da produção psíquica que tem uma direção de trabalho, de su- peração. Então, são crenças teóricas de trabalho que orientam essa atitude, de que a psicose en- sina, de que quem quiser aprender aprende com a psicose. É só prestar atenção, tem de ter uma postura de abertura. Aí tem a questão: abertura, suporte, acolhimento. Na primeira fase, a gente está preocupado com as idéias mais gerais sobre: vínculo, internação, fases da reforma, a base do programa, o que é que a gente faz, e as pessoas estão lá em contato. Então, está em descompasso clínico, as pessoas estão angustiadas porque não sabem o que fazer, são incompetentes, e a gen- te não está oferecendo recursos de interpretação nesse momento. E a formação teórica? Marcus - Depois dessa fase, a gente começa, paulatinamente, a oferecer mais recursos teóricos das mais diversas fontes: pode ser teoria sistêmi- ca, psicanálise lacaniana, psicanálise freudiana, Pichon Riviére, dos grupos, das teorias da reforma psiquiátrica, da clínica antimanicomial, podem ser coisas úteis e interessantes para pensar em instruir esse contato com os sujeitos (estagiários), com os pacientes (também sujeitos). Então, essa interpre- tação é mais ou menos assim. Nós começamos a perceber que começa a se instaurar um pensa- mento e atitude clínica. Ex: uma estagiária relata que percebeu que precisa lidar de forma diferente com as mães de diferentes pacientes, ou seja, não há uma condição indicada a seguir, cada caso é único. O que os estagiários apreendem são deles, isso é aprendizagem clínica. É lógico que ninguém vai sair daqui perito em intervenções precisas de clínica da psicose. Ninguém pode ensinar, e não há esta perícia, é muito mais a postura, a atitude, a interpretação e a abertura e capacidade de su- portar. Seis meses dá para atingir o objetivo? Eduarda - Claro que não, quem fica mais tem- po desenvolve mais, mas percebemos que tem uma mudança de postura, isso sim. Mudança de postura, compreensão, atitude. Em seis meses, as pessoas adquirem leitura acerca do psiquis- mo, um olhar sobre o psiquismo psicótico e uma postura clínica. São seis meses intensivos também para os estagiários. Eles atendem final de sema- na, à noite, pela manhã. Alguns pacientes eles estão visitando três vezes por semana. Às vezes, os estagiários saem da casa do paciente mais de 9h da noite, tentando negociar: “só saímos da- qui após você tomar o remédio”. É intensificação também de contato, de conhecimento, de convi- vência clínica, de impacto. Marcus - Mas é também uma intervenção pe- dagógica. Ao falar da forma que lida, orienta os estagiários, cada supervisor com seu estilo próprio “pai e mãe”, rígido, brando. Tem pessoas aqui que precisam deslocar de posição, elas tentam nos enrolar, se você não der uma dura, uma de- sorganizada... E é melhor que ela se desorganize 33 aqui, na supervisão... Às vezes alguém chora, pois somos todos sujeitos psíquicos precários. A provo- cação é um pouco calculada, cada um recebe do jeito que pode agüentar. Não nos interessa deses- tabilizar a posição defensiva, estas coisas têm um certo cálculo, um manejo da aprendizagem, das transferências, do rigor, do esforço da ética. Eduarda - Eles, os estagiários, trazem um inte- resse muito grande, que vai além da nossa exigên- cia, nós conseguimos gerar, a partir do clima de equipe, um ambiente de altíssimo envolvimento. Marcus - Trabalhamos e operamos com o con- ceito de autonomia radical. Talvez assim as pes- soas acreditem na minha autoridade, pela minha forma forte e dura, às vezes, de tratar os temas, mas o grau de autonomia com que as pessoas operam é enorme, talvez seja essa a tensão, pois as pessoas operam com muita autonomia. A or- ganização da dinâmica do atendimento é muito por conta dos estagiários. Nós supervisionamos, naturalmente. A avaliação é feita a partir da mu- dança de atitude, a fala, como falam com o pa- ciente, o desenvolvimento psíquico do paciente, a mudança no pensamento clínico, tudo. Um alto grau de envolvimento, comprometimento. A aprendizagem principal, que tudo move, é da perspectiva ética. Uma perspectiva ética de aber- tura, de generosidade, de compreensão que esse é o serviço, que eu posso até não querer fazer o serviço, mas entender que esse é o serviço, isso é que tem de ser feito. Tá certo que essa é a clínica, eu posso achar pretextos, justificativas, explica- ções para não fazer, mas o que é que tem de ser feito, o que deve ser feito? O que a psicose preci- sa que seja feito? Nossa proposta é assim: “faça segundo a necessidade da psicose”, não precisa a gente mandar, faça segundo a necessidade da psicose, a psicose vai lhe interpelar, e, se ela lhe interpelar e você estiver sustentando ativamente, você não vai ter para onde correr. Você vai ter de entrar e vai ter de responder, ou vai se demitir, cair fora, você não vai ficar no meio termo. E nor- malmente, de modo geral, a atitudedas pessoas é muito bacana, só não elogio demais, porque senão estraga. Fico muito orgulhoso, a gente nota, que pessoas bacanas, que aprendizagem, voluntária, gastando dinheiro do próprio bolso, é pura transferência com o trabalho. O fato de estarem ali por escolha facilita, porque permite que você tenha uma equipe ali que está a fim. A forma como a gente conseguiu criar o ambiente, sem institucionalizações, mas muito nessa idéia: “tem de fazer aquilo que a psicose exige”. O que 34 é a clínica? Fazer o que a psicose exige. Na su- pervisão, orientamos assim: você está atendendo o que a psicose está exigindo, o que é que o caso está pedindo? O caso pede, você faz; ou você se demite ou você atende. Eles são os responsáveis pelo caso, são eles que devem prestar conta, são eles que estão em contato com o paciente, às ve- zes, três vezes por semana. Eduarda -Tem alunas para as quais o estágio significa, pela primeira vez, ter contato com as realidades sociais muito duras, tem um aspecto muito duro. Moças muitas vezes preservadas, que são de famílias de classe média, fazem cursos pró-ativos, e as pessoas herdam essa generosi- dade. Pois esta coisa de terapia ocupacional e psicologia não vai dar dinheiro, mas você já tem uma certa direção generosa, são pessoas protegi- das socialmente. Para algumas delas, é a primeira vez que vão se expor à vida da pobreza, da de- sigualdade social, da miséria. Então, no final, há um discurso como - “foi uma lição de vida” muito importante. Há casos das estagiárias que expres- sam não estar suportando a situação de vida/ miséria de certo paciente, então a gente altera, inclui mais um na dupla/trio, e recua aquele que não está suportando. E a história de se trabalhar em dupla? Marcus - Na verdade, é outra sacação, tudo assim, muito empírico. Na verdade, no primeiro semestre foi muito difícil, porque a gente tinha de inventar o programa. Algumas idéias agora ficam mais fáceis de a gente dizer, né? A gente achou um jeito, criou umas regras assim, tem uma idéia. Mas essa coisa de dupla, por exemplo, é uma coi- sa fundamental. Hoje, não faria de outro jeito. Tá certo, não sei se funcionaria de outro jeito. Traba- lhamos em dupla, sempre que possível, duplas de T.O. e Psicologia. Depois criamos uma coisa as- sim: dois pacientes com uma mesma dupla, e um terceiro com uma dupla diferente, para criar alte- ridade. Porque três pacientes com a mesma dupla cria um vício na dupla. Para comparar: quando eu trabalho com fulano, é assim; quando eu tra- balho com cicrano, é de uma forma diferente. A química das duplas é diferente na abordagem, na atitude, na aprendizagem. A história das duplas, acho que traz assim, suporte recíproco para elas, o fato de estarem acompanhadas, a questão do testemunho, feedback, pensar junto, testemunhar o desenvolvimento e a dificuldade do outro. En- tão, eu acho que o fato de fazer em duplas criou uma química interessante do programa. Não faria diferente, até porque o manejo, uma vai cuidar da mãe, elas vão se dividir, pois estão lidando com transferências múltiplas, transversais, as pessoas podem se aproximar, fazer um revezamento. Mas a troca destas duplas a cada semestre não cria dificuldades? Marcus - Uma das nossas descobertas mais in- teressantes colocou em xeque uma das questões centrais do programa que era a questão da psico- se, a questão vincular. Então, nosso eixo, nosso di- álogo, nosso enfrentamento de pensar a psicose, 35 que expressa uma dificuldade de pertencimento social, de laço social, da condição de ser sócio da sociedade. Então, a questão vincular passa a ser para nós como uma questão de manejo delicado na psicose, vínculo e manejo em todo lugar (filho, pai, mãe, professor, aluno, etc). A psicose exige uma delicadeza no manejo clínico. E o fato de o paciente psicótico ser um sujeito, às vezes, refra- tário ou narcísico, no investimento vincular, torna a questão de, de seis em seis meses, trocar as pessoas um problema. Então, a cada seis meses, nós vivemos um processo de reconstrução da re- lação vincular com as novas duplas. Então, esse é um exercício que não era intencional, mas propõe marcar uma transferência não com o sujeito, mas com o lugar do outro, com o lugar de cuidador. Então, eu acho que isso é uma coisa bacana, que a gente precisa desenvolver teoricamente, por- que boa parte dos pacientes tem ficado pacíficos, não são todos, têm alguns que problematizam o enigma vincular, para eles é muito radical. Vários pacientes estão entrando numa um pouco assim: “não quero nem saber, eu sei que tem alguém aqui comigo. Se vai embora, fico com saudade, mas vem outra pessoa e do que eu sei é que es- tou me dando bem, que tem alguém cuidando de mim, preocupado comigo, com uma atitude boa comigo, que me faz bem”. Entendeu? Como se fosse uma espécie de treino psicótico com a ques- tão dessa alteridade do vínculo, que seria uma questão emblematicamente séria dos núcleos cen- trais da psicose. Até o fato de ter, de seis em seis meses, de mudar de dupla, que pode ser, para al- guns, um obstáculo, impossível. Como o paciente não vai poder se vincular?! Ele vai construir uma história, ele vai ter uma oportunidade de construir uma não, 5, 6, 12, várias histórias vinculares, em um curto espaço de tempo, com pessoas que têm um zelo, um cuidado vincular, pessoas que estão postas numa relação vincular, no lugar de alte- ridade, delicadeza com eles. Então, é como se fosse (estou pensando nisso agora) uma espécie de treino para o manejo desse enigma. Às vezes dizem que o psicótico aprende de ouvido, que ele não tem o outro dentro. Ele pode treinar que o outro existe, que o outro tem certo modo de ope- ração e que ele pode se adequar a isso, e a vida pode ser menos tensa. Como vocês vêem a possibilidade do progra- ma, ao invés de ser um estágio, ser um traba- lho permanente, de ele se tornar um recurso desenvolvido dentro do CAPS? Marcus - Na verdade, eu acho, a gente acha que isso deveria ser não um programa, mas que isso deveria ser uma orientação teórica, meto- dológica, técnica e ética para o trabalho com a clínica psicossocial no interior dos CAPS. Na re- alidade, a gente acha, porque a gente não está no CAPS, porque esse seria o trabalho do CAPS. A gente está no Mário Leal, com essa condição de ser uma unidade de internação, e por quê? Porque nós queremos desenvolver uma metodo- logia com determinados arcabouços de inter- pretação teórica, a gente quer desenvolver uma certa metodologia que possa ser orientadora da ação clínica. Nós temos certeza de que estamos 36 preparando pessoas para trabalharem no CAPS. Aqui, a turma daqui vai chegar ao CAPS e vai dar show, show de atitude, de postura, de manejo, de depoimento do que está fazendo na vida, show de clínica. Pode não estar tão afiado do ponto de vista da perícia técnica, da clínica, porque isso exige muito treino, muita bagagem. Eles são éti- cos, fundamentalmente pela postura, pela atitu- de, na presença, na interpretação do fenômeno, do jogo de cintura, da capacidade de movimen- tar-se no setting. Aos profissionais que atuam no CAPS falta, muitas vezes, esse preparo prévio, o saber se movimentar, saber sair para a rua, para a cidade, saber juntar muita gente: eles têm medo de misturar, tá certo? A turma aqui não tem medo de misturar. Em uma situação de crise, as meninas são muito bem resolvidas, escutam: tá delirando? Estão lá dentro da casa com a família, calma aí, sem alarmar, sem tragédia, com uma desenvol- tura. Eduarda – E, às vezes, a experiência do CAPS é a de ficar esperando do paciente demanda es- pontânea. O paciente em crise, o CAPS fala “não, não vai lá, que ele está em crise”. As meninas di- zem “não, porque, se ele está em crise, é que a gente precisa estar lá”; porque este treino de seis meses dá essa perspectiva. Eu tenho certeza de que nós estamos preparando recursos humanos para trabalharem na Reforma Psiquiátrica, para trabalharemno CAPS. O recurso básico, o recur- so é isso, nem tinha essa pretensão toda. Aqui as pessoas estão passando por uma formação que tem pontos mais fortes, pontos altos, tem defici- ências, certamente, coisas que Marcus e eu domi- namos pouco. Marcus - É muita coisa, o campo é múltiplo demais, e, dentro do que a gente conseguiu sis- tematizar, a gente tem um roteiro de direção que tem um clima de muita dedicação e interesse. As pessoas estão atentas, estão interessadas, há uma sintonia “quem o pode mais, pode o menos”. Se esta atitude clínica desenvolvida aqui e voltada para a psicose é o que mais desafia a clínica da reforma psiquiátrica, eu acredito que, no futuro, com treino especifico, nós poderemos ter bons terapeutas para as outras clínicas, para CAPSI, CAPS AD. A atitude principal que as pessoas ad- quirem, depois do treinamento específico que nós damos, centrado na questão da psicose, lhes per- mitirá uma atitude clínica bastante diferenciada. Artigos de crença 39 A relação entre teoria e prática é, certamente, uma questão central quando se trata do pre- paro para o trabalho com a coisa mental. Este preparo envolve um tipo de treinamento no qual o exercício do encontro empírico com o fenôme- no mental deve se articular com a administração da teoria. Não pode haver dúvidas em relação ao lugar ocupado pela teoria nesse processo. Um repertório teórico amplo e diverso deve estar à disposição como pensamento disponível para ilu- minar este encontro. Somente assim a teoria pode encarnar-se, ganhar as dimensões singulares de uma aprendizagem subjetiva que define o estilo de cada um que deseja ocupar este lugar de um agente profissional de cuidados às pessoas que demandam tal atenção. O encontro clínico que ensina é aquele em que a mediação da teoria ajuda a romper com a especularidade que marca a relação entre dois sujeitos, introduzindo aí um terceiro através da dimensão simbólica represen- tada pela teoria. Mas é preciso cuidar para que a teoria não assuma o governo desse encontro, aviltando as dimensões complexas da realidade empírica, pretendendo reduzir às categorias do pensamento, os aquecidos fenômenos subjetivos com os quais lida. Entendemos que todos os su- jeitos que trabalham com a clínica têm a obriga- ção de responder à interpelação acerca dos seus motivos de agir: como entendem o fenômeno que trata e como o tratam. Todo sujeito tem a obriga- ção de explicitar as razões do seu fazer clínico, ainda que ao modo de uma reconstrução que se faz à posteriori da intervenção. Todavia, sem o encontro empírico, é impossível apreender a clí- nica. Não há leitura teórica que possa prescindir da experiência quando se trata de construir um saber clínico de tipo intelectual, mas, sobretudo, subjetivo. Tampouco podemos prescindir nessa tarefa da companhia do Outro. Do outro mais ex- periente, e sempre haverá alguém mais experiente ou com uma outra experiência, que nos cuidará subjetivo, que nos escutará numa supervisão, que nos transmitirá conhecimento num seminário ou curso. De muitos outros colhi, ao longo do ca- minho, no esforço de produzir a minha sistema- tização, formas de entender, formas de explicar, em nome das quais, hoje coordeno este projeto de preparo para futuros trabalhadores de saú- de mental. Nestes “artigos de crença”, explicito as minhas fragmentárias construções, a partir da quais tenho buscado criar pontos de partida para as interrogações daqueles pelos quais academi- camente sou responsável por orientar e que espe- ram de mim que eu seja uma boa companhia no seu processo de iniciação. Através destes, textos, aulas transcritas e notas de trabalho vão registran- do um pensamento que se sabe, sempre, apenas uma expressão nas fronteiras da ignorância. Mas, por hora, é isso o que eu tenho oferecido. Marcus Vinícius de Oliveira Silva Alguns artigos de crença... 40 A CLÍNICA INTEGRAL: O PARADIGMA “PSICOSSOCIAL” COMO UMA EXIGÊNCIA DA CLÍNICA DAS PSICOSES *Marcus Vinícius de Oliveira Silva * Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ci- ências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de Psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. O programa de atenção psicossocial a pacien-tes psicóticos com histórico de internações psiquiátricas, marcados pela condição de início da carreira manicomial (com vistas a sua inter- ceptação) ou pela grande freqüência de interna- ções motivadas por situações de fragilidade social está baseado no conceito de “intensificação de cuidados”, que decorre de uma compreensão das necessidades clínicas de natureza “psicossocial” presentes nessas situações e que, de um modo geral, são negligenciadas pelos modos tradi- cionais de organização da oferta de assistência aos mesmos¹. Por “intensificação de cuidados”, compreende-se um conjunto de procedimentos terapêuticos e sociais direcionados ao indivíduo e/ou ao seu grupo social mais próximo, visando o fortalecimento dos vínculos e a potencialização das redes sociais de sua relação, bem como o es- tabelecimento destas nos casos de desfiliação ou forte precarização dos vínculos que lhes dão sus- tentação na sociedade. De caráter ativo, a “inten- sificação de cuidados” trabalha na lógica do “um por um” e pretende colher o indivíduo no con- texto de sua vida familiar e social, estabelecendo um diagnóstico que respeite a complexidade de cada caso em suas peculiaridades psíquicas e so- ciais. Baseada em visitas domiciliares regulares, de prospecção e intervenção, a “intensificação de cuidados” oferece desde os recursos terapêuticos tradicionais até o assessoramento existencial do qual os sujeitos psicóticos carecem, com vistas a contribuir para o processo de re-organização de suas vidas, para o enfrentamento das tendências socialmente expulsivas motivadoras das re-inter- nações freqüentes. Como elemento de suporte e de organização do programa, a “intensificação de cuidados” investe na produção de novos es- paços de sociabilidade, sustentados no interior da instituição, criando dispositivos coletivos de aco- 40 41 lhimento e convivência através da “grupalização” dos sujeitos, bem como para os seus familiares, apostando no poder do vínculo social como um elemento fundamental da “continência psíquica”. Como pressuposto e justificativa fundamental de tal perspectiva, temos a compreensão de que, an- tes de se constituir como “doença mental” e ser inscrita como um fato médico, a psicose, inter- pretada como loucura, caracteriza-se por ser um fato social. Torná-la médica não retirou dela sua condição de ser um fato social, mas a reinscreveu numa certa perspectiva reducionista cujos únicos beneficiários são certas instâncias de poder social das quais os sujeitos loucos não participam ou usufruem. O ponto de corte para a construção do comportamento bizarro ou desviante como alvo das intervenções psiquiátricas, sobretudo na geração das demandas de internações, situa-se antes em marcadores sociais do que em marca- dores clínicos ou da sintomatologia estritamente psíquica. Todo fato psíquico é um fato social. Não existe fato psíquico que não se inscreva como fato social. Não existe fato social que não se inscre- va como psiquismo. A “loucura” ou a “psicose” como fato psíquico encontra-se marcada pela condição de ser um fato social estridente e signi- ficativo. Somente quando os sintomas interferem na ordem social de forma relevante, o sujeito será inscrito no quadro do desvio psiquiátrico, sobretu- do quando afetadas as suas qualidades de auto- regulação, autonomia pessoal e/ou econômica ou de perturbação da ordem. Não que os elementos de alteração do funcionamento psíquico deixem de ser relevantes na definição da gravidade dos casos psiquiátricos, mas apenas quando essas al- terações ultrapassam um certo patamar
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