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Política de proteção ambiental no Brasil: repensando maneiras de ver a natureza

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Política de proteção ambiental no Brasil: repensando maneiras de ver a natureza
Anna Maria Stauffer
Introdução
	A preocupação com o esgotamento dos recursos naturais e a proteção da natureza de maneira geral, ainda que não de forma sistemática e normatizada, pode ser vislumbrada ao longo de quase toda história da humanidade. Já na Antiguidade, é possível identificar em diversas partes do globo a iniciativa de reservar e controlar o acesso da população em determinadas porções verdes do território, principalmente para a manutenção dos estoques de recursos ou para a preservação de lugares sagrados (DAVENPORT e RAO, 2002). Especialmente no mundo oriental, não faltam exemplos de medidas deste estilo: já em 1800 a.C., o Rei da Pérsia instituíra um parque estritamente dedicado à preservação dos ursos e leões; na Assíria, em 700 a.C., foram estabelecidos parques voltados para o exercício da caça de forma equilibrada; na Índia, além de parques de caça e reservas de madeira, também foram criadas pelo Imperador Açoka (III a.C.) reservas naturais e áreas protegidas por motivos religiosos, tal como as florestas sagradas da Rússia; no nordeste da China do século VI as áreas úmidas da planície de Huang-Huai-Hai também passaram a ser protegidas dada a sua relevância para a manutenção da biodiversidade local; entre outros infindos exemplos que não deixam dúvidas quanto à longevidade da preocupação ambiental (CÂMARA e CÂNDIDO, 1990 apud CÂMARA, 1993).
 	Mais tarde, veio a se desenvolver também no mundo ocidental o processo de construção prática e teórica da criação e manutenção de áreas naturais protegidas. De acordo com Colchester (1994), uma das mais importantes iniciativas nesse sentido surgiu na Inglaterra, no período que corresponde ao reinado de Henry II (século XI), quando aproximadamente 25% da Inglaterra foi classificada como Royal Hunts, o que regulou e alterou toda a dinâmica de caça do país em grandes proporções e serviu de inspiração para os demais países europeus. Outra medida que merece destaque como uma das maiores iniciativas deste caráter, segundo o autor, é a instituição, por meio do decreto do Rei Jagellon de 1423, da proteção da floresta de Bialo Wiesa, na Polônia. Em suma, encontra-se em diferentes tempos e em diversas sociedades registros de tentativas de proteção da natureza por motivos religiosos, culturais, estéticos ou mesmo devido a questões práticas e racionais de preservação das florestas, dos animais e dos mananciais.
	Todavia, apesar de se tratar de um dos desafios mais antigos das sociedades humanas, é apenas no último quarto do século XIX que o modelo de proteção ambiental baseado em áreas protegidas, tal qual conhecemos hoje, é consolidado e difundido internacionalmente. Ao longo deste século, deu-se o acirramento do debate acerca da necessidade de se preservar os ecossistemas entendidos como essenciais para a perpetuação das espécies de vida existentes na Terra. Mais do que isso, a capacidade transformadora e destrutiva da humanidade sobre o meio ambiente despontava como uma forte preocupação das autoridades e indicava a necessidade de definir espaços voltados para a proteção de paisagens naturais que ainda não havia sido submetidas a ação humana e, supostamente, ainda mantinham a sua condição prístina. Desse modo, fortemente calcado em crenças religiosas e sobrenaturais, partia-se do pressuposto de que apenas raras paisagens consideradas sublimes eram merecedoras de proteção, onde a natureza era tão pura e deslumbrante que acreditava-se ter mais chances de avistar a face de Deus (CRONON, 1996).
	Nesse contexto, foi criado em 1872 nos Estados Unidos o Parque Nacional de Yellowstone, consensualmente entendido como um marco fundamental para os sistemas de áreas protegidas que vieram a se desenvolver posteriormente no mundo todo. O ineditismo do empreendimento consiste, em parte, na sua abrangência, visto que até então as medidas de proteção eram destinadas a restringir a utilização dos recursos naturais de apenas uma parcela da população, enquanto o Yellowstone tinha como objetivo impedir a exploração da natureza realizada por uma minoria em prol da socialização do usufruto das belezas cênicas do território americano por toda a população (BRITO, 2003). Tendo isto em mente, em seu ato de criação foram vedadas qualquer tipo de ocupação humana ou exploração dos recursos naturais dentro dos limites do parque no intuito de preservar as suas paisagens “virgens” para as próximas gerações, sendo esta a primeira grande conquista dos preservacionistas e especialmente de John Muir, o maior expoente dessa corrente na época.
	Além disso, a criação do Yellowstone foi responsável pela difusão da categoria “Parque Nacional”, que passou a ser reproduzido em diversos países e paulatinamente incluiu as metas de proteção ambiental como tópicos fundamentais nas pautas políticas nacionais do mundo todo. Nos anos que seguiram, e especialmente após a Segunda Guerra Mundial, foram instituídas áreas protegidas em vários países com nomenclatura e propósitos similares ao do Yellowstone. O Brasil, particularmente, foi um dos últimos do continente americano a aderir efetivamente à onda internacional de criação de áreas protegidas. A primeira proposta brasileira de criação de um Parque Nacional surgiu até bem cedo, em 1876, com a ideia do engenheiro André Rebouças de instituir o Parque Nacional na Ilha do Bananal (TO) e outro na região de Sete Quedas (PR). Entretanto, diante de um cenário político-econômico desfavorável, tal proposta acabou não se concretizando imediatamente, mas contribuiu para a difusão do debate e abriu espaço para mobilizações futuras que acabaram por cumprir com seu objetivo somente após a morte de seu idealizador (URBAN, 1998). Desse modo, o termo “áreas protegidas”, que atualmente abarca um grupo abrangente de categorias e tipologias, foi oficialmente inaugurado no Brasil apenas em 1937, com a criação do Parque Nacional de Itatiaia (RJ), estabelecido com o objetivo de incentivar a pesquisa científica e servir como um centro de atração para viajantes nacionais e estrangeiros, resultado do amadurecimento de um longo debate e dos esforços iniciados ainda no século XIX.
	Sendo assim, podemos dizer que a crescente mobilização internacional em torno da questão ambiental também teve grande repercussão no Brasil, ainda que tardia. A proteção ambiental no país, como parte integrante do rol de ações estatais e crescentemente institucionalizada pela implementação de áreas protegidas, começou a consolidar-se de fato apenas em meados do século XX (MEDEIROS, 2003). Apesar de haver registros de medidas análogas implementadas desde o período colonial, estas primeiras iniciativas se restringiam a, basicamente, uma sucessão interminável de cartas régias, regimentos e proibições que, além de pouco aplicados, claramente não configuravam uma política adequada de conservação do patrimônio nacional (URBAN, 1998). Posto isso, ainda que já houvesse uma gama de ações ambientais em andamento, bem como uma rede de “críticos ambientais” composta por pensadores voltados para ideias e análises referentes à destruição dos recursos naturais (PÁDUA, 2004), as mesmas só vieram a consolidar-se no âmbito de uma política de proteção ambiental de fato na década de 1930, de forma concomitante ao surgimento e a ascensão do projeto desenvolvimentista no Brasil.
	Tendo isso em mente, o objetivo do presente trabalho consiste em refletir acerca do ideário que impulsionou a criação de uma política de proteção ambiental no Brasil e a visão de natureza que, simultaneamente, foi construída e internalizada a partir da sua institucionalização. Vale destacar que não há, por ora, a intenção de fazer uma retrospectiva da proteção no Brasil até os dias atuais ou de propor soluções efetivas para os problemas que a mesma apresenta. Do mesmo modo, não existe a pretensão de listar casos ou apresentar dados empíricos que afirmem a realidade do cenário discutido, mas sim de fazer uma breve explanação das ideias e interesses que inspiraram e, atéhoje, fundamentam a política ambiental brasileira, destacando o entendimento de natureza que a acompanha. 
Política ambiental no Brasil: definição e periodização
	Antes de dar início a essa seção, é importante esclarecer o que estamos tratando como política ambiental. A definição usual refere-se ao termo como o quadro jurídico-institucional responsável por promover o uso adequado dos recursos naturais e manter a qualidade ambiental propícia à vida, a fim de garantir o atendimento da ampla gama de necessidades da proteção do meio ambiente, contando com a participação em maior ou menor grau dos demais setores da sociedade (BURSZTYN e BURSZTYN, 2012; MONOSOWSKI, 1989). Em outras palavras, ainda que nesse trabalho a ênfase esteja nas diretrizes voltadas para criação e manutenção das áreas protegidas, o conceito de política ambiental diz respeito ao conjunto de normas, leis, instituições e ações públicas que incidem na gestão e no planejamento estratégico voltado para a proteção da natureza, desde a fiscalização do uso dos recursos naturais e recuperação de áreas degradadas até o incentivo à pesquisa científica e promoção da educação ambiental, incluindo atribuições como licenciamento ambiental, racionalização do uso do solo, definição e controle de áreas prioritárias, estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental, coerção de condutas lesivas ao meio ambiente, entre outros. Nesse sentido, é possível entender a política ambiental como aquela que diz respeito à prerrogativa estatal de exercício de controle sobre o “acervo natural” de um determinado país, mas também como uma manifestação institucional da maneira como uma sociedade se apropria e utiliza a natureza existente nos limites do seu território. 
	A política ambiental no Brasil é usualmente periodizada em três fases (CUNHA e COELHO, 2003; MORAES, 1999). Em resumo, a primeira corresponde ao período entre 1930 e 1971, caracterizado pela instituição do moderno aparelho de Estado, o que acarreta na criação de diversas agências e normais governamentais de ordenamento do espaço, entre elas, aquelas responsáveis pela construção de uma base efetiva de regulação dos recursos naturais e pela gênese das primeiras áreas protegidas. O segundo período, ocorrido entre 1972 e 1987, é marcado pela conjuntura recessiva que acabou por diminuir a capacidade de intervenção do Estado. Diante de um cenário de crise econômica, é reduzido o ritmo da expansão territorial e o aparato estatal se retrai. A estrutura de planejamento e gestão ambiental, no entanto, manteve-se na contramão do desmonte geral do aparelho de Estado. Além de terem sido criados diversos órgãos no setor, foram instituídas dezenas de novas unidades de conservação, priorizando áreas dotadas de condições naturais pouco alteradas pela atividade humana. 
	Já a terceira fase tem início em 1988 e se prolonga até os dias atuais, sendo caracterizada pelo início da busca pela democratização e descentralização dos processos decisórios voltados para a proteção do meio ambiente. Este período tem como marco a criação do IBAMA que agrupa e otimiza a função de vários órgãos ambientais da época. O novo aparato institucional aliado à escolha do Brasil como sede da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, foram essenciais para que a noção de “desenvolvimento sustentável” viesse a servir de horizonte e guia teórico desse setor. Há, decerto, análises que sugerem outras periodizações possíveis, a exemplo daquela proposta por Medeiros (2003) onde o critério adotado para identificar os diferentes momentos da política ambiental brasileira dizem respeito à criação de instrumentos legais que, de alguma maneira, estabeleceram um marco para essas políticas e alteraram significativamente o statu quo. Desse modo, a criação dos dois primeiros códigos florestais (1934 e 1965) servem de pontapé inicial das duas primeiras fases da política ambiental e a instituição do SNUC em 2000 inauguraria o período final no qual ainda nos encontramos.
	 Independente da maneira como essa política é periodizada, acompanhar a sua trajetória e a forma como a mesma foi construída diz muito sobre o que entendemos por natureza e como nos posicionamos diante dela. Apesar de termos avançado muito no que diz respeito à regularização da proteção ambiental, contando atualmente com uma infinidade de instrumentos e diplomas legais voltados para o meio ambiente, ainda permanece um comportamento ambíguo em relação à proteção da natureza. Como nos afirma Pádua (1987), esse é um comportamento que vigora no Brasil desde o início da colonização, quando dois pólos de pensamento, aparentemente contraditórios, passaram a integrar os debates a respeito do projeto de nação desejado e a sua relação com a natureza. Se de um lado crescia uma glorificação puramente retórica da proteção ambiental, do outro manteve-se uma realidade perversa de devastação dos recursos naturais. Essa postura um tanto esquizofrênica perdurou desde então e, apesar dos dilemas e paradigmas ambientais terem sido alterados no decorrer das décadas, ambas concepções ainda coabitam e se fazem presentes na nossa atual política ambiental, como veremos a seguir.
Proteção e desenvolvimento: bases ideológicas da política ambiental brasileira
	Embora a ideia de determinismo ambiental nos pareça ultrapassada nos dias de hoje, a crença de que as sociedades humanas são moldadas e diferenciadas entre si de acordo com a sua localização física e demais circunstâncias ambientais recebeu ao longo dos séculos grande atenção por parte dos pesquisadores de diferentes campos do conhecimento. Até relativamente pouco tempo, a tendência era observar a interação entre homem e natureza em termos do domínio exercido deste último sobre o primeiro, ou, de forma mais cautelosa, identificar as influências e limites que o ambiente estabelece para as possíveis atividades humanas e modos de subsistência, buscando assim explicar o desenrolar dos acontecimentos de longo prazo e constatar determinados padrões subjacentes à história humana.
	Essa perspectiva continua a embasar, e de forma cada vez mais criativa, o trabalho de diversos pesquisadores ao redor do mundo, entre eles muitos renomados como Ian Morris (2010) e Jared Diamond (1999). Entretanto, talvez atualmente esta interação seja vista com mais frequência por um viés oposto, onde o foco se dá no potencial humano de transformar e conservar a natureza. De acordo com o historiador David Arnold (1996), a consciência a respeito da subordinação e dependência humana em relação à natureza vem de longa data, mas a noção de que o ser humano tem capacidade de influência na natureza – sendo ele o guardião e, ao mesmo tempo, o destruidor da mesma – surgiu recentemente, e com ela o senso de responsabilidade pelo passado destrutivo e pela sobrevivência futura de outras espécies.
	Essa visão paradoxal acompanha toda história da política ambiental brasileira que, ao incorporar efetivamente o ideário protecionista através da criação do seu primeiro instrumento legal, se utiliza especialmente de duas correntes: o conservacionismo e o preservacionismo. O primeiro busca estabelecer um conjunto de estratégias e práticas voltadas para a proteção do meio ambiente que, de alguma maneira, incorporem a dimensão humana no cenário da natureza, propondo assim, o uso racional e responsável dos recursos bióticos e abióticos. Vale destacar que nesse período de institucionalização da proteção, os ideais conservacionistas pouco se interessavam por adotar uma perspectiva de conciliação entre a atividade humana e a natureza, mas sim em propor a utilização controlada dos recursos naturais em áreas específicas de modo a permitir a exploração da natureza por mais tempo, similar à concepção de natureza como mercadoria do pioneiro Gifford Pinchot. Já o preservacionismo emerge da concepção norteamericana de “wilderness” que prega pela proteção absoluta dos ecossistemas supostamente intocados. Faz-se necessário, sob esta perspectiva, isolar os espaços ditos “naturais”dos grupos humanos, entendidos como destruidores da natureza por excelência, isto é, parte-se do pressuposto de que não há harmonia possível entre a atividade humana e a proteção legítima da natureza – afora visitas controladas para contemplar a natureza ou estudá-la – e que, portanto, é preciso que o homem proteja os fragmentos de “natureza original” das atividades nocivas que ele próprio pratica (DIEGUES, 1996; CRONON, 1996). 
	Esses ideais viriam a se consolidar no Brasil por meio da instituição do Código Florestal de 1934 (Decreto 23.793/34). Ao analisarmos seus decretos, podemos afirmar que o modelo de proteção adotado no Brasil incorporou tanto os princípios preservacionistas, ao estabelecer porções do território que devem ser preservadas sem intervenção do homem, quanto os ideais conservacionistas ao prever a criação de áreas protegidas concomitantes à atividade humana, como afirmam Medeiros et al.,
Em sua gênese, o modelo brasileiro já expressava, desde seu primeiro instrumento legal, o Código Florestal de 1934, a ideia de criação de espaços protegidos que atendessem aos objetivos não só de preservação dos recursos renováveis, tal como privilegiava o modelo norte americano, mas também vinculados à sua conservação, englobando já a perspectiva de uso sustentável. Neste sentido, o modelo em evolução no país não rompia totalmente os laços que o ligavam a uma noção de proteção mais voltada ao manejo dos recursos, típica daquela criada pelos Estados Europeus e exportada para as suas colônias. (MEDEIROS et al, 2004, p. 86).
	É, portanto, somente no governo Vargas, em um contexto de ambiciosas transformações rumo à modernização do país, que a tendência internacional de proteção ambiental encontra terreno fértil no Brasil e passa a incorporar efetivamente o nosso aparato jurídico e institucional, como parte das ações de integração territorial e fortalecimento da identidade nacional (MEDEIROS et al, 2004). No âmbito de um processo de transição do país para um cenário dominado pela industrialização e urbanização crescentes, o movimento ambientalista finalmente consegue voz e inclui a questão ambiental na agenda de reformas em curso. Destarte, o projeto desenvolvimentista brasileiro, nasceu em paralelo a institucionalização da proteção da natureza e essa simbiose foi consolidada nesse mesmo ano de 1934 com a promulgação da segunda constituição republicana brasileira, onde a natureza era anunciada como um patrimônio da Nação e a sua proteção um direito fundamental a ser garantido pela União e pelos Estados.
	Todavia, não obstante as conquistas e avanços obtidos neste período no que se refere ao ordenamento jurídico e institucional voltado para a proteção e uso dos recursos naturais, é preciso ter em mente que tais recursos são fundamentais e insubstituíveis para a manutenção da vida, mas também o são para a perpetuação do processo de acumulação capitalista. Nesse sentido, é razoável afirmar que, mais do que de preservar a natureza pelo seu valor intrínseco, as motivações por trás de grande parte das primeiras medidas ambientas estão relacionadas não só ao lazer e regozijo apreciativo da população, mas também à intenção dos gestores públicos de ter sob o seu controle a exploração econômica destes recursos e assim manter uma reserva de valor para realização de capital futuro, (DRUMMOND, 1998/1999). Desse modo, ainda que as ideias protecionistas tenham ganhado corpo no contexto de ascensão do nacionalismo brasileiro e resultado em uma evolução sem precedentes na legislação ambiental, fatores como o avanço da atividade agropecuária, a expansão industrial e urbana, o extrativismo vegetal, a mineração etc. mantiveram o uso predatório da natureza no seio de um modelo de desenvolvimento baseado no crescimento econômico a qualquer custo.
	Sendo assim, entende-se que a política de proteção ambiental, tendo sido institucionalizada no seio de um projeto nacional-desenvolvimentista, historicamente reflete uma concepção funcional dos recursos naturais, característico do desenvolvimento concebido no âmbito do modo de produção capitalista, que o associa – ou mesmo o confunde – com o desenvolvimento estritamente econômico (SOUZA, 1997). Tendo como base a intervenção estatal voltada para a industrialização e a acumulação de capital, esse modelo de desenvolvimento e todo discurso civilizatório ocidental que o acompanha foi gradualmente exportado como forma de “salvação” dos ditos países do Terceiro Mundo, principalmente a partir da década de 1950 (ESCOBAR, 2007). A crença em uma única rota legítima e inevitável para o alcance da modernização e, consequentemente, do desenvolvimento dos países, manteve à margem aqueles que não se adequam às características físicas, biológicas e sócio-culturais dos países centrais (SILVA, 2003). 
	Junto à incorporação desse modelo, deu-se a inclusão da proteção ambiental na agenda governamental brasileira, que passa então a integrar o leque de ações estatais voltadas para a promoção de uma política de desenvolvimento nacional, carregando consigo a mesma concepção predatória de natureza, onde as metas de urbanização e industrialização frequentemente se sobrepõem às necessidade ambientais. 	Não há, portanto, contraditoriedade ou oposição entre protecionismo e desenvolvimentismo. Pelo contrário, ambos se apresentam como políticas complementares, que integram um mesmo projeto de nação e atuam de forma simultânea no ordenamento territorial do país. O que muitas vezes são apresentadas como ideias antagônicas, ao cabo, podem ser vistas como parte de um único processo social que, ao ser investigado, nos permite compreender melhor que tipo de desenvolvimento foi aplicado no Brasil e como a ideia de natureza vem sendo, em paralelo, socialmente construída e instrumentalizada nesse contexto.
	
A natureza como um híbrido
	O ideário conservacionista e preservacionista que fundamenta toda a nossa política de proteção ambiental já foi extensamente criticado em diversos momentos por autores nacionais e estrangeiros. Se por um lado o conservacionismo é questionado por, muitas vezes, apresentar uma certa discricionariedade em seus pressupostos e permitir atividades nada benéficas ao meio ambiente, por outro o preservacionismo é frequentemente apontado como uma falácia devido a sua exigência por espaços “intocados”, o que vem sendo paulatinamente desconstruído por estudos que identificam a presença humana nessas áreas apontadas, a priori, como intactas. Sem querer apontar uma forma de proteção como melhor do que a outra, o que se mostra urgente nesse momento é a concepção de natureza que permeia ambas as perspectivas. 
	A falsa dicotomia entre homem e natureza, que vem sendo problematiza e repensada já há alguns anos por especialistas de diferentes áreas do conhecimento, se faz presente seja na visão capitalista/utilitarista do conservacionismo que enxerga a natureza como recurso a ser explorado de forma regrada ou pela visão preservacionista que prega pelo esvaziamento humano das áreas protegidas. No entanto, se pararmos para refletir, a própria delimitação dessas áreas é dada por meio da territorialização de determinados espaços considerados relevantes do ponto de vista da proteção ambiental, resultante de iniciativas político-sociais envolvendo múltiplos atores e conflitos que carregam um forte componente ideológico. Por esse ângulo, quando tratamos de áreas protegidas, necessariamente, estamos lidando com processos naturais e sociais, que englobam dimensões políticas, econômicas e culturais. As áreas protegidas, portanto, podem ser entendidas como espaços híbridos, na medida em que a sua própria existência é fruto de um ordenamento social do espaço oriundo de demandas da sociedade. 
	Essa concepção vai ao encontro tanto das ideias defendidas por Milton Santos (1994), ao colocar o espaço geográfico como um híbrido resultante da inter-relação entre os sistemas de objetos e ações, quanto da abordagem utilizada por Swyngedouw (1996), de que a natureza constitui um processo histórico-geográfico socialmente produzido,que transcende as condições materiais e é altamente influenciada pelos discursos e símbolos inscritos na ideia de natureza. A urbanização, nesse sentido, seria o processo que evidencia e materializa essa série de inter-relações entre a natureza e a sociedade, bem como a transformação do ambiente pelas relações sociais e técnicas que resultam em um certo “hibridismo” (SWYNGEDOUW, 2004).
	Ambos os autores baseiam-se na noção desenvolvida por Latour em sua obra “Jamais Fomos Modernos” (1994), em que o autor problematiza o projeto de modernidade em sua pretensão de trabalhar com conceitos puros, segmentando o conhecimento em áreas distintas e colocando em polos opostos ‘natureza’ e ‘cultura’. Segundo ele, os eventos que ocorrem em nosso cotidiano (sejam aqueles tratados como “científicos” ou aqueles tratados como “políticos”) se explicam e se compreendem por redes, envolvendo intrinsecamente áreas diferentes do conhecimento. Se os eventos cotidianos refletem essas redes de inter-relações, trata-se de um equívoco valorizar a segmentação entre as ciências, especialmente a polarização ciências sociais versus ciências naturais e exatas. Seguindo a abordagem de interconexão entre os fatos científicos, o social, o político, o histórico e a sociedade em si está intrinsecamente relacionada com a natureza e, portanto: “nós mesmos somos híbridos” (LATOUR, 1994, p.9). Assim, não se pode explicar a natureza e a sociedade como polos separados já que ambos, individualmente, não constituem termos explicativos, mas, ao contrário, exigem uma explicação conjunta (LATOUR, 2000).
	Tendo isso em mente, ao considerarmos o caráter híbrido do espaço geográfico, faz-se necessário incorporar essa perspectiva aos processos voltados para o planejamento e gestão do território. As estratégias, as ações e as institucionalidades carecem, portanto, de serem repensadas com base nessa indissociabilidade, visto que a adoção da perspectiva dicotômica entre natureza e sociedade vem apresentando sérias consequências, não só para a qualidade ambiental, mas principalmente para as dinâmicas e processos sócio-espaciais que estão direto ou indiretamente relacionados aos objetivos de proteção ambiental. Essa incompatibilidade da atual política ambiental, somada a problemas como conflitos fundiários pela irregularidade da posse da terra, deficiências no que tange à fiscalização, a arbitrariedade e o corporativismo dos administradores públicos e o crescimento das cidades são alguns dos elementos que compõem o que chamamos de “crise da conservação” (DIEGUES, 1996)
	Especialmente em zonas urbanas, que usualmente abrigam uma grande densidade e variedade de usos do solo – produto da complexa relação homem/meio que se desenrola no decorrer das evoluções urbanas – o reconhecimento desse hibridismo é imprescindível para a formulação e aplicação de políticas públicas mais justas e efetivas, que de fato incorporem a dimensão social de maneira intrínseca à natureza. A insistência nesse dualismo peca por não perceber as diferentes matizes desse processo complexo de múltiplas repercussões territoriais. O resultado é uma política ambiental extremamente problemática que parte de pressupostos inconciliáveis com a nossa realidade ao negar a presença humana na constituição das paisagens e no equacionamento dos ecossistemas, criando um abismo colossal entre a teoria que embasa o marco regulatório ambiental e a vivência da população. 
Considerações finais
	A título de conclusão, vale destacar que este estudo não se trata de um manifesto antiambientalista. Pelo contrário, é justamente por simpatizar com a causa e acreditar na possibilidade de uma política ambiental nacional mais justa e coerente com o cotidiano brasileiro que propomos essa reflexão. Ignorar esses conflitos significaria prosseguir em bases intelectuais que já se revelaram insustentáveis, mantendo a defesa por um ambiente ecologicamente equilibrado apenas na retórica. Entretanto, independente da sua inadequação, é preciso esclarecer que a política ambiental tem sim instrumentos de proteção legítimos, que devem ser aplicados tanto nos grandes centros urbanos quanto nos interiores do país. O que buscamos fazer no âmbito deste trabalho foi apenas problematizar os preceitos que embasam e regem essa política.
	Nesse sentido, destaca-se que, independente da política ambiental brasileira ter avançado muito nas últimas décadas a ponto de atualmente ser considerada uma das mais completas do mundo, a concepção de natureza presente em seus artigos – seja como mercadoria ou como “ilha intocada” – impede que a mesma funcione de forma mais efetiva. Esse descompasso não só abre brechas para uma atuação arbitrária do poder público, mas também esbarra frequentemente em uma série de conflitos e tensões sociais, sobretudo aqueles relacionados à exclusão social e o direito à moradia. Tais conflitos não devem ser entendidos como algo negativo por si só, mas sim como a explicitação de limitações e incongruências do modelo de proteção adotado no país.
	É interessante notar também que o processo de formulação das políticas ambientais se dá necessariamente em um determinado contexto social e histórico. Logo, seus fundamentos são fortemente influenciados pela percepção de realidade dos indivíduos. Desse modo, os princípios e diretrizes dessas políticas não são definidos apenas por processos objetivos e racionais, mas também por crenças, valores e ideias dominantes na sociedade de então. Em vista disso, faz-se necessário repensar a relação construída entre sociedade e natureza, considerando que essas relações são extremamente heterogêneas, bem como as suas representações. O termo “proteção ambiental”, portanto, comumente empregado de maneira irrefletida, exige que seja feita uma análise crítica da sua aplicação e do discurso ideológico que o permeia, levando-nos a indagar que ambiente deve ser protegido, e ainda, em benefício de quem. 
	No caso do Brasil, a instituição da proteção ambiental está diretamente relacionada ao surgimento da mentalidade desenvolvimentista. O contexto nacional somado aos acontecimentos em âmbito internacional, incidem na noção de natureza que foi adotada para construção das políticas públicas e, ainda hoje, a ideia de desenvolvimento se faz presente em nossas pesquisas, assim como em nossas políticas, mostrando que a sua discussão permanece não só legítima e atual, como também necessária. 	
	Nas últimas décadas, a tônica desse debate passou a se direcionar cada vez mais para a superação de leituras meramente economicistas, buscando maneiras de promover um novo modelo de desenvolvimento que dê conta da articulação do país em suas diferentes escalas afins (do local ao transnacional), sem perder de vista as metas sociais e a prudência ecológica. Contudo, em um país construído na apropriação de espaços, onde "governar é abrir estradas", a ideia da natureza como valor em si encontra dificuldades para se enraizar nas práticas sociais (MORAES, 1999). De todo modo, a discussão em torno do modelo de desenvolvimento que queremos para o país não pode desconsiderar a relação que o mesmo estabelece com o meio ambiente, exigindo a recontextualização e o questionamento dos processos de planejamento e gestão voltados para questão ambiental, assim como a reflexão a respeito dos seus efeitos no "substrato espacial material" (SOUZA, 2013), isto é, na materialidade do espaço.
	Há de se repensar ainda a importação acrítica feita do modelo de proteção norteamericano que, por muitas razões, se mostra em desarmonia com a nossa realidade. A concepção de que não há conciliação possível entre a atividade humana e a proteção do meio ambiente nos parece obsoleta e prejudica a capacidade de análise da questão ambiental ao insistir em negligenciar os aspectos históricos e socioculturais que lhe são inerentes. Urge a necessidade de superação dessa discussão binária que apresenta como opção apenas a intervenção destrutiva ou a intocabilidade dos bens naturais. Só assim poderemos começar a considerar a adoção de novos paradigmas urbanísticose paisagísticos capazes de promover a reestruturação acompanhada da refuncionalização dos ambientes naturais remanescentes.
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