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Autores: Alberto Luiz Hanemann Bastos Ana Paula Fernandes Bruno Takahashi Carlos Alberto Pereira de Castro Heloisa Helena Silva Pancotti Jesus Nagib Beschizza Feres Manoela Lebarbenchon Massignan Marco Aurélio Serau Junior Omar Chamon Renato Barth Pires Roberto de Carvalho Santos Sergio Geromes JURÍDICA PAIDEIA E D I T O R A COMENTÁRIOS AO NOVO REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL COMENTÁRIOS AO NOVO REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL Autores: Alberto Luiz Hanemann Bastos Ana Paula Fernandes Bruno Takahashi Carlos Alberto Pereira de Castro Heloisa Helena Silva Pancotti Jesus Nagib Beschizza Feres Manoela Lebarbenchon Massignan Marco Aurélio Serau Junior Omar Chamon Renato Barth Pires Roberto de Carvalho Santos Sergio Geromes Belo Horizonte 2021 Copyright © 2021 by Paideia Jurídica Editora Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Capa: Ricardo Xavier Normalização e diagramação: Gilmar Gomes de Barros Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Gilmar Gomes de Barros, CRB 14/1693 Índice para o catálogo sistemático: 1. Direito Previdenciário - Brasil 34(84) C732 Comentários ao novo regulamento da Previdência Social / Marco Aurélio Serau Junior (Organizador). Prefácio de João Batista Lazzari – Belo Horizonte : Paideia Jurídica Editora, 2021. 245 p. ; 22 cm. ISBN: 978-65-88859-03-2 1. Marco Aurélio Serau Júnior. II. João Batista Lazzari. III. Brasil - Decreto Nº 10.410, de 30 de junho de 2020. IV. Título. CDU: 34(84) SUMÁRIO PREFÁCIO ................................................................................ 7 INTRODUÇÃO ......................................................................... 9 PARTE I ALCANCE DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR E QUESTÕES PROCESSUAIS REFLEXÕES INSTITUCIONAIS GENÉRICAS TENDO O DECRETO N. 10.410/2020 .................................................... 13 Bruno Takahashi NOVA DINÂMICA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO PREVIDENCIÁRIO: impactos processuais e reflexões em torno do artigo 176 do decreto no 3.048/99 .............................. 31 Marco Aurélio Serau Junior; Alberto Luiz Hanemann Bastos COMPETÊNCIA REGULAMENTAR NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO ................................................................ 63 Renato Barth Pires PARTE II QUESTÕES POLÊMICAS DA APLICAÇÃO DO DECRETO 10.410/2020 EM MATÉRIA DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS A EXIGÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO MÍNIMA PARA O SEGURADO EMPREGADO – O ART. 19-E DO RPS .......... 89 Carlos Alberto Pereira de Castro O SALÁRIO MATERNIDADE DA MULHER DESEMPREGADA NO DECRETO 10.410/2020 ................ 113 Heloisa Helena Silva Pancotti DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA PELA EXCLUSÃO DO CÔMPUTO COMO TEMPO ESPECIUAL DOS PERÍODOS EM GOZO DE BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE ADVINDA DO DECRETO 10.410/2020 ........................................................ 131 Jesus Nagib Beschizza Feres REFLEXOS DA ATUALIZAÇÃO DO REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NOS BENEFÍCIOS PARA O MIGRANTE .......................................................................... 153 Manoela Lebarbenchon Massignan A PROVA DA INSALUBRIDADE NA APOSENTADORIA ESPECIAL E O DECRETO 3048/99 .................................... 173 Omar Chamon BREVES APONTAMENTOS SOBRE O PLANEJA- MENTO PREVIDENCIÁRIO À LUZ DO DECRETO Nº 10.410/2020 ...................................................................... 199 Roberto de Carvalho Santos AS INCONSTITUCIONALIDADES E ILEGALIDADES DAS REGRAS DE CÁLCULO APLICÁVEIS AOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS CONCEDIDOS APÓS EC 103/2019: uma análise a partir do decreto 10.410/2020 ......................... 223 Ana Paula Fernandes; Sergio Geromes 7 PREFÁCIO Recebi com alegria o honroso convite do estimado amigo e Professor Doutor Marco Aurélio Serau Júnior para prefaciar esta importante obra doutrinária voltada a analisar o Novo Regu- lamento da Previdência Social. Esta publicação mostra-se apropriada nesse desafiador período histórico que estamos passando, marcado por crises, em especial no campo sanitário, econômico e social, que fragilizam os ideais da proteção do exercício dos direitos individuais e co- letivos, a segurança e o bem-estar, essenciais em um Estado De- mocrático. No ano de 2019, em face do baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), o Congresso Nacional aprovou, de forma açodada, a Emenda Constitucional n. 103/2019, chamada de Nova Previdência, com o objetivo declarado de reduzir o orça- mento público voltado à área da Seguridade Social e, com isso, impactou negativamente o nível de proteção social dos segurados do RGPS e também dos servidores públicos vinculados a RPPS. Não bastasse isso, a regulamentação da citada Emenda Constitucional não ocorreu por meio de normas legais (leis com- plementares e ordinárias), mas com o inusitado Decreto Presi- dencial nº. 10.410/2020, trazendo uma infinidade de dispositivos com regras não só regulamentadoras, mas muitas delas inovado- ras, sem a devida observância ao princípio da legalidade. Para avaliar as distorções contidas nesse Novo Regula- mento, o Professor Serau, valendo-se de sua larga experiência acadêmica, reuniu autores renomados do Direito Previdenciário para desenvolver estudos aprofundados sobre aspectos desta- cados do Decreto n. 10.410/2020, que deu novos contornos ao Decreto n. 3.048/1999. A obra é dividida em duas partes, a primeira aborda o alcance da competência regulamentar e questões processuais e, a 8 segunda, questões polêmicas da aplicação do Decreto 10.410/2020 em matéria de benefícios previdenciários. Esta obra coletiva apresenta, assim, uma visão crítica para a superação dos obstáculos provenientes da inadequada regulamen- tação da Reforma da Previdência, demonstrando a contribuição de juristas especializados nesse ramo do Direito, são eles: Alberto Luiz Hanemann Bastos; Bruno Takahashi; Carlos Alberto Pereira de Castro; Heloisa Helena Silva Pancotti; Jesus Nagib Beschizza Feres; Manoela Lebarbenchon Massignan; Marco Aurélio Serau Júnior; Omar Chamon; Renato Barth Pires e Roberto de Carvalho Santos. É uma obra que possui conteúdo científico inovador, cum- prindo a função de desvendar novos horizontes diante de um emaranhado de dispositivos, nem sempre claros e precisos. A riqueza dos comentários constantes em cada capítulo acaba por demonstrar a urgente necessidade de uma sistematização e sim- plificação das normas que regem o Direito Previdenciário para, assim, facilitar a compreensão das regras de acesso às prestações previdenciárias. Por tudo isso, aproveito para recomendar a leitura desse importante trabalho, neste período de incertezas e inquietudes, em que a expressão de ideias é cada vez mais necessária para que se possa enfrentar e superar as atuais barreiras que impedem a concretização do ideal de uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna e solidária. Boa leitura! João Batista Lazzari Juiz Federal e Professor 9 INTRODUÇÃO Em junho de 2020 foi publicado o Decreto 10.410, cuja fi- nalidade anunciada foi de “regulamentar” a Emenda Constitucio- nal 103/2019, adaptando a legislação então vigente às alterações promovidas pela Reforma da Previdência. O Decreto 10.410/2020 promoveu a atualização do Re- gulamento da Previdência Social (Decreto 3.048/99) em impor- tantes aspectos que há haviam sido alterados em virtude da le- gislação editada nos últimos anos, propiciando aos servidores do INSS um roteiro procedimental mais seguro e correto em relação à aplicação do Direito Previdenciário. Porém, nessa pretensão de “regulamentar” a Emenda Constitucional 103/2019, o Decreto 10.410/2020 também foi responsável por trazer ao ordenamento jurídico diversos pontos polêmicos, muitos dos quais podem ser considerados ilegaisou mesmo inconstitucionais. O artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, estabelece que os Decretos serão expedidos com a finalidade de propiciar a “fiel execução das leis”. Ou seja, os Decretos não possuem a fina- lidade de “criação” do Direito, mas tão somente de pormenoriza- ção dos detalhes e requisitos necessários à aplicação do Direito, criado a partir de uma norma previamente aprovada pelo Poder Legislativo. O escopo de inovação do ordenamento jurídico compete exclusivamente à lei, em sentido estrito, analisada e debatida no Congresso Nacional em uma perspectiva democrática, em que participem as diversas matizes políticas componentes do Par- lamento, bem como mediante a participação e oitiva dos mais diversos atores sociais (especialistas em Direito Previdenciário, Institutos, Ordem dos Advogados do Brasil, etc). Nesse quadro, percebe-se que a elaboração unilateral do conteúdo do Decreto 10.410/2020 deu margem a algumas pos- 10 síveis incongruências e incompatibilidades com o ordenamento jurídico. Muitos destes assuntos são retratados nos diversos artigos que compõem este livro. Há uma primeira parte, que traz considerações gerais a respeito do papel estrutural dos Decretos dentro do ordenamento jurídico e das possibilidades de questionamento judicial. Na se- quência, há uma segunda parte, em que os artigos discutem temas específicos do Decreto 10.410/2020, todos eles dotados de acen- tuada polêmica quando à sua legalidade/constitucionalidade. Com exceção dos textos apresentados por Roberto de Car- valho Santos, Marco Aurélio Serau Junior e Alberto Luiz Hane- mann Bastos, publicados anteriormente no livro “A Previdência Social no Brasil pós-reforma – EC 103/2019” (obra referente ao VI do Congresso Brasileiro de Direito Previdenciário, realizado pelo IEPREV em 2020), todos os demais artigos são inéditos e foram elaborados especialmente para esta coletânea. Assim, agradecemos a todas e todos que se dedicaram aos trabalhos que ora compõem esta obra, cuja leitura é indispensável para lidar com as inovações, nem sempre harmônicas, decorrente do Decreto 10.410/2020. Belo Horizonte, verão de 2021. Marco Aurélio Serau Junior Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná. Doutor e Mestre em Direitos Humanos (USP). Diretor Científico do IEPREV. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. 11 PARTE I ALCANCE DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR E QUESTÕES PROCESSUAIS 12 13 REFLEXÕES INSTITUCIONAIS GENÉRICAS TENDO O DECRETO N. 10.410/2020 COMO PRETEXTO Bruno Takahashi1 Consta de uma busca aleatória na internet, em reitera- das fontes que parecem ter se copiado uma das outras e que, por isso, dispensam a citação individualizada, que: i) o Decreto n. 10.410/2020 atualizou o Decreto n. 3.048/99 (Regulamento da Pre- vidência Social), em decorrência da aprovação da Nova Previdên- cia (Emenda Constitucional n. 103/2019); ii) entre as mudanças, houve a inclusão de novas categorias de segurados, extensão de benefícios a empregados domésticos, consolidação do pagamen- to em duas parcelas do 13º, incentivo a processos informatizados, mudança na forma de contagem do tempo de contribuição, etc. Comentários específicos serão objeto de artigos próprios feitos por especialistas. Não é o meu caso. De fato, embora tenha trabalhado por mais de dez anos na área, estou há quase quatro sem lidar especificamente com a matéria previdenciária. Esse período, como sabem, inclui a Nova Previdência e o próprio Decreto n. 10.410/2020. Por isso, não sei explicar o que houve entre o passado e a Previdência de hoje. Posso apenas fazer algumas suposições panorâmicas e compartilhar impressões genéricas de viagem. Guiado pela análise institucional comparada, via Neil Komesar,2 este é o destino do artigo.3 1 Doutor e Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Juiz Federal. 2 Sobretudo, em Komesar (1994) e Komesar (2001). 3 Muitas das ideais apresentadas neste texto são baseadas em: Takahashi (2019). 14 UM MAPA CONCEITUAL Para tanto, algumas premissas conceituais são necessárias: ► i. Não se nega que Decreto, como ato infralegal que é, subordina-se à Lei e à Constituição Federal, incluindo a posição refinada de alguns no sentido de que não poderia haver “saltos” diretos da Constituição para o Decreto. A máxima, em suma, é que não pode inovar no ordenamento jurídico. Essa ideia, porém, parte do Dever-Ser. A questão que se coloca relaciona-se ao Ser: e se houver inovação? E se, instado, o Judiciário entender que não houve inovação ou, quiçá, que essa inovação era excepcio- nalmente permitida (o que, em termos analíticos, parece pratica- mente idêntico)? ► ii. Assim como a saúde não está somente nos hospi- tais, a justiça não está apenas nos tribunais, conforme bem lembra Marc Galanter (1981). Logo, a ideia de acesso à justiça expan- de-se para abranges outras instituições, incluindo, entre outras, a Agência da Previdência Social mais próxima. ► iii. O ser humano é imperfeito, as instituições humanas são imperfeitas. Não há a instituição perfeita. Cada uma possui suas virtudes e seus defeitos. Por isso, diante de determinada questão, a chave não está na escolha da instituição mais perfei- ta para tomar a decisão, mas sim de optar entre alternativas im- perfeitas. A instituição a ser escolhida não é a adequada, mas a menos inadequada, a depender dos objetivos sociais que se busca. ► iv. A escolha de quem decide é a escolha do que se decide. Isso significa que o conteúdo da decisão depende da insti- tuição escolhida para tomá-la. Uma decisão tomada por um órgão administrativo baseia-se em pressupostos diversos da decisão ju- dicial. ► v. Dentre inúmeras instituições encarregadas de decidir, é possível destacar quatro: o processo de trocas (mercado), o pro- cesso comunitário (comunidade), o processo judicial (Judiciário) 15 e o processo político (Executivo e Legislativo). Cada uma dessas instituições, e suas respectivas subdivisões, contém característi- cas que vão condicionar a decisão a ser tomada. ► vi. Uma instituição possui requisitos próprios para ser acionada, o que se insere na noção de custos de participação. De- terminada pessoa ou grupo estará disposta a valer-se da institui- ção quando os benefícios da participação forem superiores aos custos envolvidos. Com exceção das duas primeiras, os demais pontos são uma síntese simplista de aspectos centrais da análise institucional comparada de Neil Komesar. Com tais premissas, alguns desdo- bramentos são possíveis. PARA ONDE ESTAMOS INDO? Pensando nas quatro grandes instituições indicadas, duas estão mais diretamente associadas à esfera estatal (Judiciário, processo político) e duas ao âmbito não-estatal (mercado, comu- nidade). Parar reforçar essa divisão binária das instituições, lembro que, segundo Komesar, em agrupamentos humanos reduzidos, as trocas realizadas no interior do grupo podem ser vistas tanto como parte da comunidade como do mercado. 4 Imagino, por exemplo, a situação de uma pequena comunidade rural em que famílias cultivam produtos diversos e os trocam entre si para a mútua subsistência. O que é mercado e o que é comunidade se confundem. Em sentido semelhante, entendo que, em grupos reduzi- dos, as funções tidas como do Judiciário se confundem com o do 4 Saliente-se que, em boa parte de sua obra, Komesar limita-se a iden- tificar e analisar três (e não quatro) instituições, excluindo a comuni- dade da enumeração. (KOMESAR, 2001, p. 150). 16 processo político. (TAKAHASHI, 2019). Isso ocorreria, quando o líder de uma pequena comunidade não apenas faz as vezes de governante e legislador, mas também de juiz. Desse modo, de- pendendo da configuração, assim como o mercado poderia ser visto como parte da comunidade, o Judiciário poderia ser visto como parte do processo político. Assim sendo, dada questão social pode ser enfrentada por quatro instituições (Judiciário, processo político, mercadoe comunidade) que, por sua vez, associam-se a duas categorias (estatal e não-estatal). Sinteticamente, o quadro é o seguinte: A figura permite visualizar ainda que, em certos cenários, a escolha da instituição decisória pode ser associada com mo- vimentos mais amplos, tais como os de desjudicialização (Judi- ciário para outras instituições), desestatização (do estatal para o não-estatal), deslegalização (do processo político para outras ins- tituições), etc. Nesse contexto, em se tratando das reformas previdenciá- rias, algumas inferências de um estranho em numa terra estranha, podem ser feitas: 17 ►A) talvez haja uma tendência à desestatização da matéria previdenciária, no sentido de deixar os rumos da previdência para os critérios do mercado. Esse movimento pendular pode ser vis- lumbrado em uma análise superficial do histórico da previdência social. Fábio Zambitte Ibrahim afirma que, em um primeiro momento, “a proteção contra os infortúnios da vida tinha caráter eminentemente familiar, com os mais novos auxiliando os idosos e demais incapacitados para o trabalho”. (IBRAHIM, 2009, p. 46). Mais adiante, a proteção adicional existente tinha caráter privado, de fundos mutualistas, onde determinado grupo de pessoas unia-se, voluntariamente, para a proteção mútua contra os riscos sociais”. Em 1883, por idealização do chancelar Otto Von Bismarck, surge então, o que é considerado o primeiro sistema de seguro social. Segundo Ibrahim, tal medida foi “a gênese da proteção garantida pelo Estado, funcionando este como arrecadador de contribuições exigidas compulsoriamente dos participantes do sistema securitário. (IBRAHIM, 2009, p. 45-46). Dessa forma, no quadro proposto, a evolução histórica da previdência pode ser associada a um percurso do não-estatal (co- munidade sob a forma de família ou categorias profissionais) para o estatal (proteção via seguro social). Em linhas gerais, o mesmo movimento pode ser percebido no Brasil, isto é, “origem privada e voluntária, formação dos primeiros planos mutualistas e a inter- venção cada vez maior do Estado.” (IBRAHIM, 2009, p. 54).. A sempre lembrada Lei Eloy Chaves (Decreto-legislativo n. 4.682/1923), ao determinar a criação, por empresa, de caixas de aposentadorias e pensões para ferroviários, liga-se mais à origem privada da previdência brasileira do que a posterior estatização. Nas lições de Ibrahim ao comentar referido diploma legal: 18 [...] a responsabilidade pela manutenção e administração do sistema era dos empregadores. O Estado somente determinara a sua criação e o seu funcionamento, de acordo com os procedimentos previstos na legislação. A ingerência estatal na previdência social somente tomou lugar com o advento dos institutos de aposentadorias e pensões. (IBRAHIM, 2009, p. 56). Como consequência da proteção dada dos ferroviários, outras categorias buscaram idêntica cobertura, resultando em normas como a Lei n. 5.109/1926 (que estendeu o regime da Lei Eloy Chaves aos portuários e marítimos), e a Lei n. 5.485/1928 (que tratou do pessoal das empresas de serviços telegráficos e ra- diotelegráficos). (IBRAHIM, 2009, p. 57). Ibrahim lembra ainda que, após a Revolução de 1930 e o início do Governo Vargas, as caixas deixaram de ser organizadas por empresas e passaram a ser aglutinadas por categoria profis- sional, nos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP). Segundo ele, tal unificação também ampliou a intervenção estatal na área, pois os institutos possuíam natureza autárquica e eram subordi- nados diretamente à União. (IBRAHIM, 2009). A isso se seguiu a unificação dos diversos institutos, em um modelo que resultou no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, de certo modo, mantido com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). No esquema proposto, nota-se, assim, um percurso do não-estatal (proteção por caixas, por empresa) para o estatal (unificação das caixas em institutos e unificação dos institutos, com crescente intervenção do Estado). Curiosamente, no movi- mento atual, vislumbra-se um direcionamento do estatal (regime público de previdência) para o não-estatal (p. ex. planos de pre- vidência privada).5 5 Curiosamente também, vê-se um certo movimento de determinadas categorias profissionais para manterem vantagens do regime público. 19 ► B) talvez, paralelamente a este movimento de desesta- tização,6 haja, no interior da parcela estatal da previdência, um duplo movimento, que se desloca do Judiciário para o processo político e, no interior do processo político, do Legislativo para o Executivo. Decisões das próprias instituições envolvidas parecem corroborar essa movimentação. Do Judiciário para o processo político destaca-se o reco- nhecimento da exigência do prévio requerimento administrativo para ingressar com uma ação judicial pleiteando a concessão de benefício previdenciário (Recurso Extraordinário n. 631.240/ MG, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 03 de setembro de 2014). Cabe recordar que essa decisão alterou o movimento jurisprudencial que perdurou por anos no sentido de se dispensar o prévio requerimento. Modificou-se, assim, a própria instituição encarregada de decidir, em primeira mão, acerca da concessão de um benefício previdenciário. ► C) talvez, haja uma atuação do processo legislativo que reforça o movimento de valorização da decisão administrativa em detrimento da judicial. Não se trata, simplesmente, de inserir a decisão administrativa como pressuposto para que seja possível uma final decisão judicial. Trata-se de permitir que, em certas hi- póteses, a própria decisão judicial seja revista pela via adminis- trativa. Isso fica marcante na Medida Provisória n. 739/2016, ree- ditada como MP n. 767/2017 e convertida na Lei n. 13.457, de 26 de junho de 2017. Tais normas, alterando a Lei n. 8.213/91, voltaram-se em especial aos benefícios de auxílio-doença e à apo- sentadoria por invalidez. A sobreposição da decisão administra- tiva sobre a judicial pode ser observada nos seguintes aspectos: necessidade da fixação de um prazo estimado para a duração do benefício de auxílio-doença concedido administrativa ou judi- cialmente (acréscimo do §8º ao artigo 60 da Lei n. 8.213/91); 6 Alguns dirão privatização, mas evito polêmicas. 20 cessação automática do benefício em 120 dias no caso de não fixação do prazo referido no §8º, salvo se houver requerimento de prorrogação perante o INSS (§9º acrescentado ao artigo 60 da Lei n. 8.213/91); possibilidade de convocação a qualquer tempo do beneficiário de auxílio-doença ou de aposentadoria por inva- lidez para reavaliação das condições que ensejaram a concessão do benefício (inclusão do §4º ao artigo 43 e o §10 ao artigo 60, ambos da Lei n. 8.213/91); instituição do BESP-PMBI, que será pago ao médico do INSS pela realização de perícias extraordi- nárias em relação a benefícios por incapacidade mantidos sem perícia há mais de dois anos (artigos 2º a 10 da MP). Como se sabe, essa revisão administrativa de benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez concedidos há mais de dois anos ficou popularmente conhecida como “pente-fino”. ► D) talvez, para completar o panorama trazido, haja ainda um fortalecimento das normas administrativas em detri- mento às leis formais, isto é, uma passagem interna ao processo político, mas que vai do Legislativo para o Executivo. Isso, nos dizeres de Marco Aurélio Serau Júnior, expres- sa a retomada de uma prática, predominante outrora, e que ele denomina “portarização do Direito Previdenciário”, ou seja, “a tentativa de normatização e regulamentação de inúmeras temas previdenciários a partir de normas infralegais: portarias, ordens de serviços, instruções normativas, etc.” (SERAU JUNIOR, 2020). Dentre exemplos recentes, Serau Jr. destaca o Ofício Cir- cular n. 64/2019 e a Portaria n. 450/2020. Ainda que um Decreto possa ser visto como norma hierarquicamente superior a porta- rias econgêneres, vislumbro que o fenômeno é idêntico: a pro- liferação de atos infralegais em detrimento de leis. Assim sendo, o Decreto 10.410/2020 não se contrapõe ao movimento, mas o integra. 21 ESTE É O MELHOR CAMINHO? Diante dessa movimentação toda, respostas prontas defen- deriam uma maior intervenção estatal e, mais especificamente, uma maior atuação judicial. Caberia ao Judiciário, por meio de um ativismo necessário, conter desmandos e garantir a proteção social do segurado. No entanto, no mundo real, as coisas não cos- tumam ser tão simples assim. Os méritos e deméritos de uma instituição são relati- vos, no sentido de que devem ser considerados em comparação aos méritos e deméritos de outra. É corriqueiro apontar o dedo para os defeitos do processo administrativo previdenciário, tais como: desconhecimento da legislação pelos agentes administra- tivos, condições precárias de trabalho, parcialidade nas decisões, demora na análise (e/ou na marcação de perícias), etc. No entanto, o Judiciário possui também suas próprias limitações e que acabam por impedir a revisão ampla da atuação administrativa. Cabe enumerar algumas dificuldades do Judiciário em assumir um papel abrangente na revisão das decisões administra- tivas em matéria previdenciária, aqui incluídas às relacionadas ao Decreto n. 10.410/2020: ► I. O Decreto ora em comento ocupa quase 110 laudas.7 Somente pelo seu tamanho é possível considerar que há aspectos que inovaram no ordenamento jurídico, bem como que nem todas essas inovações serão levadas a controle judicial ou, se levadas, não necessariamente serão invalidadas pelo Judiciário. Imagine se considerarmos não apenas o Decreto n. 10.410/2020, mas todo o emaranhado das normas infralegais... 7 Isso no formato Times New Roman 12, espaçamento 1,5. 22 ► II. Segundo Komesar,8 o processo judicial caracteriza- -se, sobretudo por ser: formalmente mais definido e com maiores requisitos formais de participação que as demais instituições; possuir maiores obstáculos para a sua expansão do que as outras instituições; contar com os agentes decisórios (juízes) mais inde- pendentes. Em geral, valoriza-se a independência dos juízes ao se de- fender o seu protagonismo na construção de políticas públicas – inclusive em matéria previdenciária. Todavia, seus requisitos formais vão dificultar a participação generalizada.9 Além disso, das quatro grandes, o Judiciário é a instituição que mais possui restrições para expansão, estando sujeito tanto a limites orçamen- tários como à vontade de outras instituições (em especial, do pro- cesso político). De fato, no que tange à expansão, em geral se diz que o mercado segue a regra da oferta e demanda, crescendo à medida do que for desejado pela sociedade (ou, ao menos, pelos consu- midores). A comunidade, em termos amplos, também pode, em princípio, expandir seus mecanismos e funções conforme seus membros necessitem. Mesmo no processo político, ainda que também haja restrições orçamentárias e do próprio regime de direito administrativo, não há uma limitação tão grande como a do Judiciário. Basta se pensar, por exemplo, na possibilidade de criação de novos ministérios quando comparada com a criação de tribunais. ► III. Tal dificuldade estrutural de expansão por parte do Judiciário, por vezes, representa não apenas um detalhe formal, mas invade a própria decisão a ser tomada. Deferência judicial pode representar tanto convencimento teórico do papel do Judi- 8 Imperfect Alternatives, cit. p. 123; e Law’s Limits, cit. p.35. 9 Esse aspecto será um pouco mais detalhado no item 4 do texto, infra. 23 ciário como também reconhecimento de seus limites práticos. Falar que o agente administrativo possui maiores condições de decidir determinada matéria pode incluir ter uma estrutura mais adequada para tanto. Na ocasião do julgamento do já referido Recurso Extraor- dinário n. 631.240/MG, que consagrou a exigência do prévio in- deferimento administrativo, o argumento “jurídico” utilizado foi o interesse de agir como condição da ação, do que aliás não se discorda. No entanto, o próprio conceito de interesse de agir foi explicitamente associado aos princípios da economicidade e da eficiência, como se nota do seguinte trecho do voto do relator, Ministro Luís Roberto Barroso: Como se percebe, o interesse em agir é uma condição da ação essencialmente ligada aos princípios da economicidade e da eficiência. Partindo-se da premissa de que os recursos públicos são escassos, o que se traduz em limitações na estrutura e na força de trabalho do Poder Judiciário, é preciso racionalizar a demanda, de modo a não permitir o prosseguimento de processos que, de plano, revelem-se inúteis, inadequados ou desnecessários. Do contrário, o acúmulo de ações inviáveis poderia comprometer o bom funcionamento do sistema judiciário, inviabilizando a tutela efetiva das pretensões idôneas. (grifo nosso). Inclusive, o Ministro relator também reserva um item es- pecífico intitulado “Considerações práticas”, do que se destaca a seguinte passagem: A pretendida subversão da função jurisdicional, por meio da submissão direta de casos sem prévia análise administrativa, acarreta grande prejuízo ao Poder Público e aos segurados coletivamente considerados. Isto porque a abertura desse “atalho” à via 24 judicial gera uma tendência de aumento da demanda sobre os órgãos judiciais competentes para apreciar esta espécie de pretensão, sobrecarregando-os ainda mais, em prejuízo de todos os que aguardam a tutela jurisdicional. Por outro lado, os órgãos da Previdência, estruturados para receber demandas originárias, teriam sua atuação esvaziada pela judicialização. Desse modo, a limitação da estrutura do Judiciário, asso- ciada à preocupação em se reduzir o número de processos, foi, a meu ver, decisiva para a alteração jurisprudencial ocorrida. As de- ficiências estruturais do Judiciário, então, levaram à escolha pela preponderância da via administrativa. ► IV. O quarto aspecto que gostaria de salientar é a ressal- va de Komesar (2001) no sentido de que de que há uma tendência de as instituições se moverem em conjunto, isto é, os fatores que afetam uma instituição tendem a afetar as outras. Como regra, o aumento da complexidade e da quantidade de envolvidos provoca o declínio da performance institucional, seja qual for a institui- ção. Em outras palavras, questões simples, envolvendo poucas pessoas, são bem resolvidas em qualquer instituição. Questões complexas trazem dificuldades para todas. Ocorre que, por vezes, tenho a impressão de que se compara o melhor cenário do Judiciário com o pior cenário da Agência da Previdência Social. Destaca-se, por exemplo, a independên- cia e conhecimento técnico dos juízes quando comparados com os agentes administrativos. Deixa-se em segundo plano, porém, que, em algumas questões, a reduzida estrutura judicial limita a própria atuação criteriosa do magistrado. Citar, por exemplo, que o processo judicial é mais adequado que o processo admi- nistrativo previdenciário para analisar a concessão de benefícios por incapacidade, por permitir maior grau de cognição do juiz e produção de perícia médica especializada, é ignorar que, em um contexto envolvendo a pressão de se resolverem muitos processos 25 em pouco tempo, também o processo judicial vai enfrentar difi- culdades parecidas com o administrativo. ALGUÉM VAI AVISAR O MOTORISTA? Desse modo, tendo o Decreto n. 10.410/2020 como um distante pano de fundo, o que tentei indicar nos itens precedentes foi que há uma tendência à preponderância da esfera adminis- trativa sobre a judicial ou, em termos institucionais, do processo político sobre o Judiciário. Todavia, simplesmente defender um movimento contrário baseado no protagonismo dos juízes ignora as limitações estruturais do próprio Judiciário. Além disso, nem sempre o Judiciário será a instituição mais adequada, pois os méritos institucionaissão relativos. O ponto fulcral, assim, é ponderar qual é a instituição menos imperfeita para o tratamento de determinada questão ou dado conflito. Na amplitude do Decreto n. 10.410/2020, isso sig- nifica investigar quais aspectos devem ser direcionados à revisão judicial e quais merecem ser relegados à atividade administrativa. A premissa é de que ambas as instituições podem oferecer justiça e, assim, não se trata meramente de propor uma revisão judicial generalizada dos atos administrativos, sobretudo se considerado que nem sempre essa é a melhor opção. No entanto, em uma proposta como a de Komesar, baseada na imperfeição do real em vez da perfeição do ideal, a própria dinâmica da ponderação precisa ser inserida na vida das instituições. Não se trata, assim, de abstratamente ponderar qual a instituição mais adequada, mas de considerar como ela pode ser acionada em concreto. É por isso que a escolha efetiva da institui- ção não é alheia aos requisitos para que haja a participação nessa instituição. Alguns pontos merecem ser ressaltados para que esse ra- ciocínio se torne um pouco mais claro: 26 ► A) Cada instituição possui custos e benefícios de partici- pação. Komesar (1994, p. 30) afirma que, assim como o mercado possui custos de transação, também existem os custos de parti- cipar do processo judicial e do processo político (e, acredito, do processo comunitário). Os custos de participação envolveriam, basicamente, custos de acesso, de organização e de informação, com destaque para o último. Arthur Badin (2011, p. 117) bem resume este ponto da se- guinte forma: Os custos de participação geralmente estão associados à informação, acesso e organização. Os custos de informação são aqueles incorridos para se compreender o problema ou a questão a ser decidida, levantar dados que subsidiem seus argumentos, enfrentar matérias técnicas etc. Os custos de acesso estão atrelados às barreiras à entrada (jurídicas, políticas e econômicas), ao cálculo da probabilidade de êxito etc. Os custos de organização, por fim, são aqueles necessários à mobilização de uma classe ou grupo de pessoas, coordenação de seus membros, fiscalização e monitoramento etc. Os benefícios da participação, por sua vez, vão depender dos interesses em jogo (stakes). Assim sendo, a efetiva partici- pação institucional depende da ponderação entre os custos e os benefícios existentes. ► B) No processo judicial, por exemplo, comumente se enumeram custos que poderiam ser categorizados como de acesso, como as despesas processuais ou os honorários a serem pagos ao advogado. Custos de participação no processo judicial vão além disso, incluindo o próprio custo de se obter determinada informação processual (por exemplo, como entro com o proces- so no Juizado Especial?), ou de saber o direito que se pretende defender em juízo (o que preciso para me aposentar?). Há ainda 27 o custo de se mobilizar para entrar com um processo, o que, pa- rece-me, inclui inclusive casos individuais, em que, apesar de não haver uma mobilização de grupo, existe a necessidade de se movimentar para ingressar com a ação (ir atrás de um advogado, reservar determinado tempo para questão, etc.). O processo admi- nistrativo possui custos paralelos, talvez com menores custos de acesso e menos requisitos para ingresso, gerando menores custos de informação (ao menos processuais). Quando os benefícios que se pretende obter (uma alta in- denização, um benefício previdenciário, etc.) superarem os custos existentes, então a tendência é que a pessoa ou grupo participe do processo escolhido. ► C) Ocorre que, frequentemente, os custos e benefícios não são distribuídos de maneira uniforme entre as partes envol- vidas. Em se tratando de processo judicial envolvendo benefícios previdenciários, é comum a oposição entre o segurado hipossufi- ciente e o ente público com maiores recursos. Custos de acesso, informação e organização tendem a ser menores para o INSS. Em contrapartida, segurados dispersos podem ter maior dificuldade em arcar sozinhos com os custos, dificultando a sua participação. Não por acaso, essa distribuição desigual dos valores em jogo (stakes) aproxima-se da difundida oposição de jogadores habi- tuais (repeat players) e participantes eventuais (one-shotters) de Marc Galanter.10 10 Why the “Haves” Come out Ahead: Speculations on the Limits of Legal Change. Law and Society Review, 1974, v. 9, n. 1, p. 95-160. Note-se que o próprio Komesar indica essa aproximação quando observa que Galanter, em Why the “Haves”, enfrenta a questão das vítimas e dos culpados como litigantes em termos de variação do com- portamento de acordo com a diversidade de distribuição dos stakes. (KOMESAR, 1994, p.162-163, nota 19). 28 ► D) Para complicar, mesmo entre os segurados há uma grande diversidade de renda. Como se sabe, praticamente todos que exercem alguma atividade remunerada são segurados obriga- tórios da Previdência Social. A distinção entre as faixas salariais implica diferença no valor dos benefícios, dado que o valor pago (salário-de-contribuição) repercute no valor recebido (salário- -de-benefício). Em fevereiro de 2020, por exemplo, foi fixado o salário-mínimo nacional como piso do salário-de-benefício, ou seja, R$ 1.045,00; o teto, por sua vez, foi estabelecido em R$ 6.101,06 (Portaria do Ministério da Economia/ Secretaria Espe- cial de Previdência e Trabalho n. 3.659, de 10 de fevereiro de 2020). Desse modo, o piso equivale a um salário-mínimo e o teto a aproximadamente seis salários-mínimos. Ademais, como existe um teto para o pagamento de benefícios previdenciários, as pessoas que auferem o benefício no teto receberam rendimentos a partir de seis salários-mínimos e não necessariamente neste valor. Assim sendo, há segurados mais capazes que outros de suportar os custos existentes para participação. Temos, então, um quadro mais complexo do que se podia imaginar no princípio. A ampla revisão judicial do Decreto n. 10.410/2020 provavelmente não irá ocorrer. Isso porque, do lado da oferta, o Judiciário não possui condições estruturais de proceder a uma revisão tão ampla. Em contrapartida, do lado da demanda, muitos segurados não conseguirão suportar os custos para tanto, ao menos se comparado com os potenciais benefícios. Não há respostas simples para resolver essa questão. Reduzir custos de acesso, por exemplo, pode apenas facilitar a vida de quem já pode arcar com os custos. Talvez alguma pers- pectiva mais otimista envolva a redução de custos de informação, com a difusão mais ampla do direito previdenciário e dos requisi- tos para se pleitear uma prestação (seja administrativa ou judicial- mente). Ou ainda a redução de custos de organização, com entida- des públicas e/ou da sociedade civil que mobilizem as demandas da população mais carente. 29 Em uma análise institucional comparada, e que parece ser mais realista, talvez a opção não seja propugnar pela ilegalidade ou inconstitucionalidade do Decreto em termos amplos, mas ver em que aspectos o processo judicial é menos imperfeito que o processo administrativo. CONCLUSÃO Esses apontamentos genéricos indicam um percurso aci- dentado e tortuoso. Vislumbrando uma tendência de valorização do processo político (por meio de normas infralegais e da prepon- derância da esfera administrativa), tentei destacar algumas difi- culdades práticas envolvendo a revisão judicial ampla do Decreto n. 10.410/2020. Para tanto, tomei como base, sobretudo, a análise institucional comparada de Neil Komesar. Concordo que do Decreto n. 10.410/2020, em si, falei quase nada. Referida norma serviu apenas como pretexto para outras divagações. Este texto, assim, não traz qualquer utilidade ou novidade para quem queira se aprofundar no Decreto. Mas talvez haja algum interesse para a análise do quadro mais amplo das reformas previdenciárias pelas quais estamos passando. Seja como for, fica o alerta de Komesar: “De modo geral,é uma estra- tégia medíocre cortar custos sociais sem considerar a gravidade associada aos cortes nos benefícios sociais”. (KOMESAR, 1994, p. 148, tradução nossa). 30 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADIN, Arthur Sanchez. Controle Judicial das Políticas Públicas: Contribuição ao estudo do tema da judicialização da política pela abordagem da análise institucional comparada de Neil K. Komesar. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. GALANTER, Marc. Justice in Many Rooms: Courts, Private Ordering and Indigenous Law. Madison: University of Wisconsin. Reimpressão do artigo publicado no Journal of Legal Pluralism, n. 19, 1981, p. 1-47, 1981. GALANTER, Marc. Why the “Haves” Come out Ahead: Speculations on the Limits of Legal Change. Law and Society Review, v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 14. ed. Niterói: Impetus, 2009. KOMESAR, Neil. Imperfect Alternatives: Choosing Institutions in Law, Economics and Public Policy. Chicago: University of Chicago, 1994. KOMESAR, Neil. Law’s Limits: Rule of Law and the Supply and Demand of Rights. New York: Cambridge University Press, 2001. SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. A “portarização” do Direito Previdenciário, GENJURÍDICO, São Paulo, 15 maio 2020. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/05/15/ portarizacao-do-direito-previdenciario/. Acesso em: 12 out. 2020. TAKAHASHI, Bruno. Jurisdição e Litigiosidade: partes e instituições em conflito. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. 31 NOVA DINÂMICA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO PREVIDENCIÁRIO: IMPACTOS PROCESSUAIS E REFLEXÕES EM TORNO DO ARTIGO 176 DO DECRETO No 3.048/99 Marco Aurélio Serau Junior1 Alberto Bastos2 INTRODUÇÃO O presente artigo se propõe a realizar uma análise crítica do recém publicado Decreto no 10.410/2020, com ênfase nas al- terações processuais e procedimentais engendradas por este novo marco normativo. O Decreto 10.410/2020 altera Decreto 3.048/99 (RPS – Regulamento da Previdência Social), atualizando-o a partir de muitas leis novas que haviam sido publicadas nos últimos anos e buscando, também, sua compatibilização ao texto da Emenda Constitucional no 103/2019 (Reforma Previdenciária). Embora não se olvide que o ordenamento jurídico se trata de uma estrutura fluída e mutável, cujos parâmetros devem acom- panhar as mudanças ocorridas nos campos social, econômico e cultural, é de se reconhecer que toda a alteração normativa arqui- tetada no processo administrativo/judicial previdenciário deve ser 1 Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná, nas áreas de Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Doutor e Mestre em D. Humanos (USP). Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. 2 Advogado, com atuação especializada em Direito Previdenciário. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Pós-graduando em Processo Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar – IDRFB. 32 recebida com parcimônia. Por manejar um bem jurídico intimamente ligado ao mínimo existencial e à dignidade humana, o tratamento normati- vo dos litígios previdenciários encontra respaldo no núcleo duro das garantias do devido processo legal substantivo, razão pela qual as regras procedimentais administrativas e judiciais devem ser precipuamente direcionadas à maximização do direito funda- mental de acesso à previdência social. Assim, o objetivo deste estudo é o de refletir sobre a nova dinâmica instaurada pelo novo art. 176 do Decreto no 3.048/99, de modo a perquirir se mudança por ele instaurada mostra-se com- patível com as balizas do devido processo legal substancial que revolve a esfera previdenciária. UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA: O PROCESSO CIVIL ORDINÁRIO E O PROCESSO PREVIDENCIÁRIO A partir da guinada proporcionada pela constitucionaliza- ção do diversos ramos do direito, é lícito reconhecer que a dis- ciplina do direito processual civil também passou por uma rele- vante ressignificação. Neste novo âmbito, o processo detém uma clara finalidade existencial: muito além de idealizar conceitos e institutos abstratos, passa a primar pela concretização de direitos fundamentais e, também, pela promoção dos objetivos políticos e sociais delineados pelo constituinte. (DINAMARCO, 2009). Conforme apontam Marinoni, Arenhart e Mitidiero, “o processo é o instrumento pelo qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão da Constituição”, bem como é a via que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário e, além disso, é o conduto para a participação popular no poder e na reivindicação da concretização e da proteção dos direitos fundamentais. (ARENHART, 2017, p. 546). Daí se extraí uma importante conclusão: os princípios e 33 regras processuais devem se adaptar aos contornos do direito material discutido em juízo, com vistas a proporcionar a tutela efetiva, tempestiva e adequada à situação jurídica concretamen- te lesada. Numa síntese, “a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva depende da possibilidade do uso da técnica processual adequada às especificidades do caso concre- to.” (ARENHART, 2017, p. 53). Isso significa admitir que as características plasmadas no conflito levado à jurisdição influenciam todo o modo como o pro- cesso é conduzido: algumas modalidades de litígios demandarão a aplicação rígida e inflexível dos institutos processuais (v.g. preclu- são, ônus probatório e coisa julgada), ao passo que outros clama- rão pela flexibilização das regras procedimentais do procedimen- to comum. Este é justamente o caso dos litígios previdenciários. Seja em requerimentos administrativos formulados perante o INSS, seja em demandas judiciais objetivando a concessão, revisão ou restabelecimento de benefícios previdenciários, não há dúvidas de que o contexto no qual se insere o conflito previden- ciário3 é permeado por uma ampla gama de características que impõe a flexibilização das normas de direito processual.4 O primeiro atributo que particulariza os litígios previden- ciários, que o diferencia das demandas cíveis ordinárias, trata-se da usual situação de vulnerabilidade que permeia os indivíduos que pleiteiam benefícios perante o seguro social. De início, cabe consignar que o direito previdenciário – 3 Para uma definição pormenorizada do termo conflito previdenciário: SERAU JUNIOR (2015, p. 50-56). 4 Isso é, inclusive, reconhecido pela jurisprudência pátria, confira-se: “(...) as normas de Direito Processual Civil devem ser aplicadas ao Processo Judicial Previdenciário, levando-se em conta os cânones constitucionais atinentes à Seguridade Social, que têm como base o contexto social adverso em que se inserem os que buscam judicial- mente os benefícios previdenciários” (STJ, REsp 1.840.369/RS, Rel.: Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 12.11.2019, DJe. 19.12.2019). 34 na acepção mais elementar do termo – possui uma ligação muito próxima à noção de risco social. Com efeito, o indivíduo que busca uma prestação previdenciária encontra-se numa presumível situação de risco, na qual alguma contingência social – a exemplo da invalidez, da doença ou da idade avançada – está paulatinamente consumindo a sua integridade física e psíquica. (SAVARIS, 2018, p. 59-60). De fato, se um segurado da previdência social pleiteia alguma espécie de benefício, é lícito assumir, ao menos numa crença prima facie (“justificável até prova em contrário”),5 a existência de algum entrave material que impede o seu acesso ao bem-estar social. Somado a isso, não raro o autor de demandas previdenciá- rias está abarcado por uma insuficiência econômica, informacio- nal e material. Como bem descreve Savaris: Trata-se de uma hipossuficiência econômica e informacional, assim considerada a insuficiência de conhecimento acerca da sua situação jurídica,seus direitos e deveres. Em face da grande complexidade dos mecanismos de proteção e da respectiva legislação, os indivíduos não se encontram em situação de tomar decisões de forma informada e responsável, tendo em conta as possíveis consequências. (SAVARIS, 2018, p. 60). Também, outro importante fator responsável por particu- larizar a ação previdenciária se trata do aspecto etário. Salvante as hipóteses dos chamados “benefícios não-programados” (tais como a aposentadoria por invalidez, o auxílio-doença e a pensão por morte), o cenário mais comum vislumbrado no cotidiano pre- videnciário consiste naquele em que indivíduos de idade avançada almejam aposentadorias em virtude de um longo histórico laboral. (SERAU JUNIOR, 2014, p. 58). Via de regra, o litígio previden- ciário envolve indivíduos combalidos pelo avanço da idade, de- 5 Para maiores explanações acerca dos “fatos justificados prima facie”, confira-se: GUERRA (2016, p. 221). 35 tentores de um quadro de saúde fragilizado e desprovidos do vigor físico necessário para o exercício de uma profissão remunerada. De outra sorte, o réu usual das demandas previdenciárias apresenta características diametralmente opostas. Ocorre que o Ins- tituto Nacional do Seguro Social (INSS) se trata de uma autarquia federal, isto é, “o Estado em sentido amplo”, que detém amplos recursos financeiros, materiais e estruturais para suportar o “tempo do processo” sem grandes prejuízos. (SAVARIS, 2018, p. 61). Se, na perspectiva do segurado, a demora na prática dos atos processuais acarreta-lhe intensos agravos de índole financei- ra, vital e psicológica; na ótica do INSS, a morosidade na tramita- ção de requerimentos previdenciários administrativos e judiciais não lhe causa nenhum tipo de gravame – de todo o contrário, na realidade, é possível diagnosticar que a autarquia previdenciária costuma utilizar-se dos incidentes processuais previstos no rito judiciário como mecanismo para postergar a implementação da prestação almejada, adotando uma “postura de excessiva litigân- cia e recorribilidade, sendo historicamente refratário à realização de acordos.” (SERAU JUNIOR, 2015, p. 60-61). Além disso, o INSS se encaixa no típico perfil do “litigante habitual”, o qual, por litigar de maneira massiva no campo previden- ciário, possui aptidão extremamente acurada para delinear estratégias processuais capazes de atender aos seus interesses e, consequente- mente, utilizar todos os artifícios jurídicos disponíveis para atravan- car a concessão do benefício requerido pelo autor da demanda.6 6 Neste particular, é possível traçar um interessante paralelo com os escritos de Laércio Augusto Becker, o qual aponta que “eles [litigan- tes habituais] têm à disposição departamentos jurídicos permanentes, acostumados a um ritmo industrial de litigância, que trabalham em regime de economia de escala. Com isso, o custo de um novo litígio, para eles, é pequeno perante a grande massa de litígios que adminis- tram, de sorte que não tem um freio econômico para desestimular aventuras jurídicas. Aqui, ao contrário da litigiosidade contida de que fala Watanabe, tem-se exatamente o fenômeno contrário: a litigiosida- de desinibida.” (BECKER, 2012, p. 32). 36 Com efeito, a posição de “litigante habitual” confere uma ampla gama de vantagens ao INSS nos processos administrati- vos e judiciais, tais como: a construção de um amplo acervo de conhecimento sobre teses jurídicas exitosas no campo previden- ciário; a possibilidade de centrar a sua força de trabalho para a formação de precedentes judiciais favoráveis; e a utilização da inconstância de posicionamentos de juízos singulares e Tribunais para maximizar o índice de vitórias em litígios judiciais.7 Vê-se, assim, que o processo previdenciário é caracteriza- do por uma inarredável assimetria processual: de um lado, existe um autor numa presumível situação de risco e inserido num con- texto de hipossuficiência econômica, material e informacional, ao passo que, de outro, tem-se uma autarquia federal dotada de amplas prerrogativas para defender os seus interesses em juízo e, também, na esfera administrativa. (SAVARIS, p. 56-57).8 Por fim, destaca-se que toda esta dinâmica ocorre num litígio que envolve o acesso a um direito fundamental. Não se pode olvidar que as prestações previdenciárias possuem uma íntima ligação com a dignidade humana e com a garantia ao mínimo existencial, motivo pelo qual, segundo Savaris, “dizer-lhe que não detém o direito invocado é recusar-lhe o gozo de direito funda- mental aos meios de subsistência em situação de adversidade”. (SAVARIS, 2018, p. 56-57). Sendo assim, é possível concluir: [...] os benefícios previdenciários são substitutivos do salário/rendimento pessoal. Possuem, ademais, íntima ligação com a garantia de subsistência e sobrevivência dos indivíduos, derivados que são dos direitos fundamentais sociais, principalmente pelo aspecto da garantia da dignidade da pessoa humana. (SERAU JUNIOR, 2014, p. 59). 7 Nesse sentido: Serau Junior (2015, p. 62-65). 8 Para um pormenorizado estudo sobre as formas de redução das assi- metrias entre polos litigantes, veja-se: TARTUCE (2012). 37 Ante todas as particularidades delineadas, conclui-se que as normas do “processo civil ordinário/procedimento comum” simplesmente não comportam aplicação direta e açodada no escopo do processo previdenciário. As características próprias desta modalidade de litígio impõem que os institutos do processo civil clássico perpassem por uma espécie de “filtro de adequação”, de modo a direcionar o processo a sua finalidade última: proporcionar a tutela efetiva tempestiva e adequada ao direito material postulado em juízo e, em especial, promover a maximização do acesso à previdência social. (SAVARIS, 2018, p. 83-84). Com fulcro nessas premissas, serão propostas algumas re- flexões sobre o novel art. 176 do Decreto no 3.048/99, de modo a avaliar a sua compatibilidade com as vicissitudes do processo administrativo e judicial previdenciário. O DECRETO 10.410/2020 E A INSERÇÃO DA DECISÃO TERMINATIVA NO PROCESSO JUDICIAL PREVIDENCIÁRIO Como já exposto, o Decreto 10.410/2020 teve como prin- cipal desiderato a atualização do Decreto 3.048/99. No âmbito do processo administrativo, a par de algumas mudanças nas atribuições do CRPS – que já haviam sido introdu- zidas pela Lei 13.846 –, o Decreto 10.410/2020 engendrou uma significativa mudança na fase decisória do processo administrati- vo previdenciário. Nesse sentido, são relevantes algumas alterações no fluxo do processo administrativo impostas ao artigo 176 do Decreto 3.048/99, as quais podem ter diversos reflexos procedimentos e também quanto ao processo judicial. Para melhor compreensão do que vamos discutir, segue abaixo a transcrição parcial do mencionado dispositivo, já com a nova redação: 38 Art. 176. A apresentação de documentação incompleta não constitui, por si só, motivo para recusa do requerimento de benefício ou serviço, ainda que seja possível identificar previamente que o segurado não faça jus ao benefício ou serviço pretendido. § 1º Na hipótese de que trata o caput, o INSS deverá proferir decisão administrativa, com ou sem análise de mérito, em todos os pedidos administrativos formulados, e, quando for o caso, emitirá carta de exigência prévia ao requerente. § 2º Encerrado o prazo para cumprimento da exigência sem que os documentos solicitados tenham sido apresentados pelo requerente, o INSS: I – decidirá pelo reconhecimento do direito, caso haja elementos suficientes para subsidiar a sua decisão; ou II – decidirá pelo arquivamento do processo sem análise de mérito do requerimento, caso não haja elementos suficientes ao reconhecimento do direito nos termos do disposto no art. 40 da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999. § 3º Não caberá recurso ao CRPS da decisão que determine o arquivamento do requerimento sem análise de mérito decorrente da não apresentação de documentaçãoindispensável ao exame do requerimento. § 4º Caso haja manifestação formal do segurado no sentido de não dispor de outras informações ou documentos úteis, diversos daqueles apresentados ou disponíveis ao INSS, será proferida a decisão administrativa com análise de mérito do requerimento. § 5º O arquivamento do processo não inviabilizará a apresentação de novo requerimento pelo interessado, que terá efeitos a partir da data de apresentação da nova solicitação. § 6º O reconhecimento do direito ao benefício com base em documento apresentado após a decisão administrativa proferida pelo 39 INSS considerará como data de entrada do requerimento a data de apresentação do referido documento. § 7º O disposto neste artigo aplica-se aos pedidos de revisão e recursos fundamentos em documentos não apresentados no momento do requerimento administrativo e, quanto aos seus efeitos financeiros, aplica-se o disposto no § 4º do art. 347. Em suma, segundo se depreende do novo teor do disposi- tivo, houve uma inserção da figura da decisão sem a resolução de mérito no processo administrativo previdenciário, isto é, confe- riu-se à possibilidade de que o INSS, na análise de requerimentos administrativos, possa aplicar uma solução correlata àquela em que o juiz deixa de analisar o conteúdo da demanda em virtude da inexistência dos chamados “pressupostos de admissibilidade do julgamento de mérito.” (DINAMARCO, 2019, p. 180-181). Ao que tudo indica, doravante, o segurado que não apre- sentar documentação apta a comprovar os fatos constitutivos de seu direito junto ao requerimento administrativo será intimado, mediante “carta de exigências”, para amostrar provas comple- mentares. (BRASIL, 1999, art. 176, § 1º). Caso o segurado não se manifeste, ou não cumpra as exigên- cias estipuladas, abrem-se duas alternativas ao seu pleito: a uma, se a documentação inicialmente apresentada mostra-se suficiente para a comprovação dos requisitos necessários ao benefício almejado, o INSS julgará procedente o seu pedido; a duas, se a documentação mostrar-se insuficiente, haverá o arquivamento do processo sem o julgamento do mérito (BRASIL, 1999, art. 176, § 2º). Portanto, no regramento atual, ao invés de constituir um motivo de indeferimento do requerimento, a carência de docu- mentação suficiente para comprovar o direito a um benefício pre- videnciário acarreta o arquivamento do processo administrativo perante o INSS. Pode-se afirmar com as devidas ressalvas, que a categoria da decisão terminativa foi trazida, em alguma medida, para o campo do processo administrativo previdenciário. 40 PRIMEIRA REFLEXÃO: O IMPEDIMENTO DO ACESSO À VIA RECURSAL ADMINISTRATIVA (ART. 176, § 3º, DO DECRETO 3.048/99) Na análise crítica ora perscrutada, um primeiro elemento que merece destaque se trata da disposição contida no § 3º do artigo 176 do Decreto 3.048/99, cujo teor disciplina que não caberá recurso ao CRPS da decisão que determine o arquivamento do requerimento sem a análise de mérito decorrente da não apresentação de documentação indispensável ao exame do mérito. Primeiramente, cabe consignar que o impedimento à in- terposição de recursos parece configurar clara impropriedade, seja à luz do princípio do devido processo legal (art. 5º, LXI, da Constituição Federal), seja à luz do art. 56, da Lei 9.874/99, cuja redação se encontra a seguir: “Art. 56. Das decisões administra- tivas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito”. A simples leitura do texto legal faz ver que haverá sempre o direito ao recurso administrativo, percebendo-se que o disposi- tivo contido no Decreto 10.410/2020 claramente extrapolou sua hierarquia normativa. Segundo a doutrina, visando ao equilíbrio entre os Poderes da República, a Constituição reserva um núcleo de assuntos relevantes que somente podem ser normatizados por atos primários (especialmente ordinários e complementares), correspondente à ‘reserva absoluta de lei’ ou ‘estrita legalidade’. (FRANCISCO, 2018). De fato, nos âmbitos em que o constituinte reservou o tra- tamento de um dado tema à iniciativa de lei, cria-se um campo normativo blindado à incursão de decretos ou portarias, salvante 41 nas hipóteses em que sirvam para “dar fiel execução” aos precei- tos já insculpidos pelo legislador (art. 84, inciso IV, in fine, da Constituição Federal)9. Ocorre que o referido art. 176, § 3º, do Decreto 3.048/99, ao estabelecer uma hipótese de vedação do manejo de recurso, inova o funcionamento das regras de processo administrativo federal, em clara violação ao art. 22, inciso I, da Constituição Federal, o qual disciplina que compete privativamente à União legislar sobre direito processual.10 Além de confrontar o texto constitucional, a regra também não se harmoniza com o conjunto de disposições regulamentares internas ao próprio INSS. Com efeito, a Instrução Normativa no 77, em seu art. 658, parágrafo único, preleciona que “o processo administrativo pre- videnciário contemplará as fases inicial, instrutória, decisória e recursal”. A rigor, o dispositivo é taxativo ao definir que o proces- so administrativo previdenciário “contemplará a fase recursal”, subvencionando uma espécie de mandamento à administração pública no sentido de que não se pode privar o segurado do direito a questionar a decisão da primeira instância pela via do recurso administrativo. Ademais, o direito ao recurso encontra manifesta guarida na Lei 9.874/99, que atrela a referida garantia ao princípio da ampla defesa, núcleo-duro do processo administrativo federal. Nesse sentido, sinaliza o art. 2º, parágrafo único, inciso X, da Lei de Processo Administrativo: 9 Nesse sentido, também vale citar: Meirelles (2016, p. 149-150). 10 Acerca da competência legislativa privativa da União, Fernanda Dias Menezes de Almeida pondera que “é na capacidade de estabele- cer as leis que vão reger as suas próprias atividades, sem a subordina- ção hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que se traduz fundamentalmente a autonomia de cada uma dessas esferas. Autogovernar-se não significa outra coisa senão ditar-se as próprias regras.” (ALMEIDA, 2005, p. 97). 42 Art. 2º [...] Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: [...] X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio. O célebre jurista Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que, mais do que um preceito expresso da Lei 9.874/99, o direito ao recurso perfaz uma espécie de princípio geral de direito apli- cável a todas as modalidades de processo, incluindo o adminis- trativo: O princípio da revisibilidade, além de dever ser considerado um princípio geral de direito, embasa-se no direito de petição, previsto no art. 5º, XXXIV, “a”, a teor do qual todos têm assegurado “o direito de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Ora, tal direito presume uma atuação administrativa que o cidadão repute desconforme com a ordem jurídica. Assim, peticionará a revisão dela, tanto mais porque a Administração se estrutura hierarquicamente, no que vai implícito um princípio de revisibilidade. (MELLO, 2010, p. 508). Portanto, o art. 176, § 3º, do Decreto 3.048/99 carece de legitimidade jurídica na medida em que não apenas viola o con- teúdo expresso da ampla defesa (art. 2º, parágrafo único, inciso X, da Lei 9.874/99), como também vilipendia um princípio geral de direito. Ainda, vale destacar que o conteúdo do dispositivo também 43 vai na contramão do movimento de desjudicialização idealizado pelo Conselho Nacional de Justiça.11 De fato, ao restringir o manejo do recurso administrativo nas hipóteses de arquivamento do processo previdenciário, existe uma espécie de estímulo à judicialização. Em termos práticos:o segurado, diante da impossibilidade de lograr o seu benefício previdenciário pelas vias recursais administrativas, será indireta- mente compelido a mover uma ação judicial visando à concessão da prestação almejada. O contexto de degradação qualitativa dos serviços jurisdi- cionais, em razão do excesso de litígios remetidos ao Poder Ju- diciário, trata-se de questão de notória, abordada pelo relatório anual “Justiça em Números”12 do CNJ e, no campo previdenciá- rio, pelos estudos fornecido pelo “Observatório da Estratégia da Justiça Federal”.13 Ante a premente necessidade de diminuição do contingen- te de litígios judiciais, o fenômeno da desjudicialização desponta como possível solução para tal problemática. Com efeito, deve-se conferir a devida credibilidade aos mecanismos de solução de conflitos paralelos à adjudicação judicial (a exemplo do processo administrativo), para que a população deixe de remeter toda a 11 Para maiores informações, vale conferir o conteúdo disponibilizado no sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/planos-de-acao-vao-fomentar-a-desjudicializa- cao-nos-tribunais/. Acesso em: 19 jul. 2020 12 A última edição do relatório “Justiça em Números” pode ser acessa- da no sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/ justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020. 13 Os informes detalhados das pesquisas empreendidas pelo “Obser- vatório da Estratégia da Justiça Federal” constam no endereço eletrô- nico fornecido pela instituição. Disponível em: https://app.powerbi. com/view?r=eyJrIjoiMjViYTliYzctODY3Mi00OWQ0LTkyOWE- tYzQ5Y2U0NTJiNmFiIiwidCI6IjQ1NjM1N2JmLTAxMmYtNDhl- Ny1iYTNhLTUwODUzMTRjNjA3YiJ9. Acesso em: 24 abr. 2020. 44 sorte de litígios ao crivo da jurisdição, como bem pontua Rodolfo de Camargo Mancuso: Não se pode, assim, atrelar (ao menos não necessariamente), os valores justiça/certeza/ prestação jurisdicional, e, com mais razão, não se pode mais vislumbrar qualquer laivo de exclusividade estatal na “distribuição da justiça”, até porque, presentes as diretrizes constitucionais da democracia participativa e do pluralismo nas iniciativas, hoje se disponibilizaram muitos outros meios e modos pelos quais aquele desiderato pode ser alcançado, a saber, mediante o concurso dos meios ditos alternativos, não por acaso também chamados equivalentes jurisdicionais, dentre os quais se vem destacando a arbitragem, mas também as instâncias de conciliação e mediação, além das formas combinadas de um e outros (v;g;, mediação e arbitragem). (MANCUSO, 2019, p. 427). De maneira similar, Pinho e Stancati lecionam que o fe- nômeno da desjudicialização surge como alternativa à incapaci- dade estrutural do Poder Judiciário de conferir resposta adequa- da ao número crescente de litígios da sociedade contemporânea. Assim, de acordo com os autores, algumas questões “devem ser desjudicializadas para que novas questões sejam judicializadas, dando espaço, no seio do Poder Judiciário, para novos debates”, de modo que “os conceitos de informalização e desjudicialização, em sentido amplo, manifestam-se através de diferentes realidades que permitem prevenir ou resolver um litígio.” (PINHO, 2016, p. 22). No caso dos litígios de índole previdenciária, o processo administrativo desenrolado nas Agências da Previdência Social, bem como nas Juntas e Câmaras de Recurso do CRPS, tratam-se de instâncias essenciais para a concretização da chamada desjudi- cialização: caso o segurado sinta-se satisfeito com a análise em- preendida no processo administrativo previdenciário, existe uma elevada possibilidade de que a sua pretensão não seja remetida ao 45 Poder Judiciário. No entanto, o novel § 3º do art. 176, ao invés de alçar o processo administrativo previdenciário a um profícuo método extrajudicial de solução de conflitos, opta pelo caminho inverso: proíbe a via recursal administrativa, cuja consequência certamen- te imediata será a desjudicialização, pois a discussão sobre essa gama do conflito previdenciário será automaticamente translada- da para o campo judicial. SEGUNDA REFLEXÃO: A POSTERGAÇÃO DA DIB DOS PROCESSOS ARQUIVADOS SEM A ANÁLISE DE MÉRITO (ART. 176, § 6º, DO DECRETO 3.048/99) Merece destaque, também, o art. 176, § 6º, do Decreto 3.048/99. O referido dispositivo assinala que, nas hipóteses de arquivamento do processo administrativo sem a análise de mérito do requerimento, o reconhecimento do direito ao benefício com base em documento apresentado após a decisão administrativa proferida pelo INSS considerará como data de entrada do requerimento a data de apresentação do referido documento. É importante salientar que, embora essa nova redação do Decreto 3.048/99 não impeça novo requerimento administrati- vo (nem poderia, diante do direito de petição, previsto no art. 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal), causa prejuízo em relação a eventuais atrasados devidos aos segurados e seguradas, pois terá como DIB o segundo momento de apresentação da do- cumentação complementar e não aquele primeiro do requerimen- to administrativo inicial. Desenvolver esse argumento a partir de um caso hipotéti- co pode ser útil para exemplificar essa hipótese, dando contornos mais práticos a essa preocupação. Imagine-se que um indivíduo formula requerimento ad- 46 ministrativo perante o INSS em agosto de 2020, objetivando a concessão de benefício de aposentadoria especial. Ocorre que a Agência da Previdência Social (APS), devido ao elevado contingente de requerimentos administrativos penden- tes de avaliação, somente consegue analisar o pedido do autor em junho de 2021, ocasião na qual requisita ao segurado, mediante Carta de Exigências, a apresentação de documentação comple- mentar, sob o fundamento de que os laudos técnicos juntados não são suficientes para demonstrar a efetiva exposição aos agentes nocivos alegados. Esse segurado, no entanto, deixa de cumprir as requisições do INSS no prazo estipulado, motivo pelo qual o seu processo ad- ministrativo é arquivado sem análise de mérito do requerimento. Suponha-se que, no mês de agosto de 2021, este indivíduo logra a documentação complementar outrora solicitada, de modo que, após a apresentação dos novos comprovantes, é-lhe deferida a aposentadoria especial almejada. Aplicando o novo teor do art. 176, § 6º, do Decreto 3.048/99 à hipótese acima ilustrada, tem-se que os efeitos finan- ceiros da aposentadoria especial do segurado teriam início apenas em agosto de 2021 (data de apresentação da documentação com- plementar), muito embora tenha requerido a sua aposentadoria em agosto de 2020. Em suma, no caso hipotético, o § 6º do art. 176 acarretaria um prejuízo equivalente ao valor de uma anualidade da aposenta- doria especial requerida, eis que o segurado deixaria de perceber o benefício durante o interregno de agosto de 2020 a agosto de 2021. Além de causar flagrantes prejuízos econômicos aos se- gurados, vale salientar que o dispositivo regulamentar reflete um problema corrente no âmbito previdenciário: a falta de concor- dância entre os posicionamentos do Poder Judiciário e do INSS. Como bem nota José Antônio Savaris, ao abordar a presente te- mática, são inúmeros os casos em que, ainda que a jurisprudência se encontre remansosa em determinado tema, a Administração Previdenciária persiste em um comportamento gravoso ao poten- 47 cial beneficiário da seguridade social. (SAVARIS, 2018, p. 151).. Este é justamente o caso da disposição ora analisada, visto que o novel preceito carreado pelo Decreto 10.410/2020 contraria frontalmente precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, em sede de incidente de uniformização de jurisprudên- cia, a Corte Superior já fixou a tese de que os efeitos financeiros do benefício previdenciário têm início na data do requerimento administrativo, independentemente do momento dejuntada da documentação responsável pela comprovação dos requisitos da prestação almejada: PREVIDENCIÁRIO. INCIDENTE DE UNI- FORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. APOSENTADORIA ESPECIAL. TERMO INICIAL: DATA DO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO, QUANDO JÁ PRE- ENCHIDOS OS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. INCIDEN- TE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRU- DÊNCIA PROVIDO. 1. O art. 57, § 2º., da Lei 8.213/91 confere à aposentadoria especial o mesmo tratamento dado para a fixação do termo inicial da aposentadoria por idade, qual seja, a data de entrada do requerimento administrativo para todos os segurados, exceto o empregado. 2. A comprovação extemporânea da situação jurídica consolidada em momento anterior não tem o condão de afastar o direito adquirido do segurado, impondo-se o reconhecimento do direito ao benefício previdenciário no momento do requerimento administrativo, quando preenchidos os requisitos para a concessão da aposentadoria. 3. In casu, merece reparos o acórdão recorrido que, a despeito de reconhecer que o segurado já havia implementado os requisitos para a concessão de aposentadoria especial na data do requerimento administrativo, determinou a data inicial do benefício em momento posterior, quando foram apresentados em 48 juízo os documentos comprobatórios do tempo laborado em condições especiais. 4. Incidente de uniformização provido para fazer prevalecer a orientação ora firmada.14 Portanto, o Decreto no 10.410/2020 ignora os critérios previdenciários formulados pelo Superior Tribunal de Justiça, representando mais uma hipótese em que se intenta obstruir, ao máximo, a implementação de benefícios previdenciários, ainda que isso represente uma afronta à adequada interpretação da lei conferida pelo Poder Judiciário. De fato, tal circunstância apenas reitera o padrão de conduta de “ausência de internalização desse sentimento de res- peito às normas jurídicas por parte do INSS”, o que decorre, in- clusive, “do histórico e características burocrático-autoritárias do INSS”. (SERAU JUNIOR, 2015, p. 75). Conforme bem sugere Alexandre Schumacher Triches, essa incongruência dos atos normativos com a jurisprudência dos Tribunais Superiores também redunda no aumento da judicializa- ção na esfera previdenciária: O excesso de ações judiciais previdenciárias, em muitos casos, decorre da incongruência verificada entre a legislação administrativa e o posicionamento jurisprudencial. [...] Isso faz com que a situação do segurado em face da Previdência Social transforme-se precocemente em um litígio previdenciário, consolidando uma consciência de que a entidade previdenciária é um obstáculo à obtenção da prestação previdenciária, pois, ao final, acredita-se que será no âmbito do Poder Judiciário que o problema será resolvido. (TRICHES, 2014, 149-150). 14 STJ, Pet 9.582-RS, Primeira Seção, Relator Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 16/09/2015. 49 Compreendemos que seria muito desejável, em alguma medida, a internalização, no âmbito administrativo, de certos po- sicionamentos emanados da via judicial – o que deveria ocorrer ao menos em relação àqueles que decorrem de julgamentos de re- cursos repetitivos, nos termos dos artigos 926 a 928 do CPC/2015. É bastante provável que essa nova regra gere inúmeras ações judiciais previdenciárias, sobretudo de cunho revisional, no sentido de compelir o INSS a aplicar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.15 Além disso, ao que nos parece, essa disposição é ilegal, à luz do art. 105, da Lei 8.213/91 e, inclusive, a partir da perspecti- va constitucional do direito adquirido, pois a vinda superveniente de documentação hábil à demonstração do direito não afasta o fato de que este direito já estaria constituído desde momento pre- térito.16 É que o preenchimento dos requisitos necessários à ob- tenção de benefícios previdenciários, em regra, perpassa por um paulatino processo de consolidação, destacado pela doutrina de Marcelo Lima Barroso: Em Direito Previdenciário as expectativas de direitos não são simples, pois a cada dia, a cada minuto, a cada segundo, o segurado incorpora ao seu patrimônio, o tempo e as suas consequências, que a qualquer momento pode ser exigido como requisito de um benefício a ser concedido em decorrência de um sinistro. [...] A relação jurídica previdenciária impõe a superação do preconceito segundo o qual as expectativas de direito constituem 15 É possível cogitar, inclusive, a aplicação de precedentes vinculantes judiciais na esfera do processo administrativo previdenciário. Para maiores informações, vale conferir: CEZNE; SCHMITZ (2017, p. 203). 16 Para interessante explanação acerca da incidência do direito adqui- rido na esfera previdenciária, sugere-se: SOUZA (2018, p. 121-133). 50 meras pretensões frágeis a adquirir direitos. (BARROSO, 2012, p. 144).17 Assim, disciplinar que o segurado somente possui direito ao benefício previdenciário quando da apresentação da documen- tação complementar significa o mesmo que negar todo o processo de incorporação do tempo e das suas consequências ao seu patri- mônio jurídico, conforme afirma Lima Barroso. Nesse âmbito, deve prevalecer a máxima de que o marco inicial da aposentadoria corresponde ao momento em que o segura- do preencheu os requisitos subjacentes ao benefício almejado ou, em se tratando de benefícios de caráter voluntário, na data de entrada do requerimento administrativo. A data de apresentação da documenta- ção complementar após o arquivamento do processo sem a análise do mérito do requerimento se trata de um marco superveniente e de- simportante para a delimitação dos efeitos financeiros do benefício. Em suma, se o indivíduo já preencheu todos os pressupos- tos para a concessão do benefício previdenciário, a ordem consti- tucional resguarda-lhe o direito adquirido à obtenção da prestação almejada desde a data em que tais requisitos foram preenchidos.18 Ainda, vale ressaltar que o art. 176, § 6º, do Decreto 3.048/99 também contém uma complicação de ordem prática. Na maioria das situações, a morosidade do andamento do processo administrativo decorre exclusivamente da ineficiência do INSS em proceder à análise dos requerimentos que lhes são 17 Embora o autor se refira ao contexto previdenciário dos servidores públicos, não há qualquer óbice para que a sua tese sobre os “direitos previdenciários expectados” seja aplicada aos segurados do Regime Geral da Previdência Social. 18 “O direito adquirido também assume extrema importância no Direi- to Previdenciário, em especial devido às constantes alterações da le- gislação e até da própria Constituição (art. 5º, XXXVI, da CRFB/88). O direito adquirido é aquele que já se integrou ao patrimônio jurídico do indivíduo, sendo defeso ao Estado sua exclusão por qualquer meio.” (IBRAHIM, 2015, p. 63). 51 remetidos. De fato, não são raras as situações em que requerimen- tos administrativos são formulados perante a autarquia previden- ciária e, devido à sobrecarga de trabalho enfrentada pelos analis- tas da previdência social, permanecem durante meses pendentes de apreciação. A excessiva demora por parte das Agências da Previdência Social em dar o devido andamento a processos administrativos previdenciários trata-se de tema constantemente suscitado em de- mandas judiciais coletivas. A título exemplificativo, vale desta- car a Ação Civil Pública no 5025299-96.2011.404.7100, ajuizada pela Defensoria Pública da União no ano de 2011, em que foram debatidas possíveis medidas para solucionar os constantes atrasos na designação de perícias médicas necessárias à concessão de be- nefícios por incapacidade.19 Do mesmo modo, já existe notícia de inúmeras ações co- letivas que objetivam aumentar a eficiência do processamento de pedidos administrativos formulados perante o INSS. É o caso da Ação Civil Pública no 102115073.2019.4.01.3400, ajuizada pelo Ministério Público Federal do DF,20 da Ação Civil Pública no 1005547.91.2018.4.01.3400,
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