Prévia do material em texto
a pedagogia Freinet por aqueles que a praticam TITULO ORIGINAL: La Pédagogie Freinet par ceux qui Ia pratiquent COPYRIGHT: © by François Maspero © 1976 by Moraes Editores para a língua portuguesa TRADUÇAO: José Gomes Filipe COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO: Tipografia Lousanense Lousã LIVRARIA MARTINS FONTES, EDITORA, LDA. Praça da Independência, 12 Santos - Brasil Venda Interdita em Portugal a pedagogia Freinet por aqueles que a praticam A PEDAGOGIA FREINET POR AQUELES QUE A PRATICAM Dezanove reportagens nas aulas de Gérard Baclet, Monique Bolmont, Jacqueline e Jacques Caux, Liliane Corre, Albert Cuchet, Nicole e Camille Delvallée, Claude Duval, Mimi Ernult, Anne-Marie Georges, Mohamed Haken e Abdel Kader Bakhti, Michel Launay, Jean-Pierre Lignon, Jacque line e Raymond Massicot com Jean-Louis Dubois, Mado Merle e Roger Montpied, Anne-Marie e Ligia de Lisbonne, Mimi e Lucien Reuge, Halina Semenowicz e Alina Blacho- wicz, Maryse e Jacky Varenne, realizadas por Claude Charbonnier, Janou Lemery, Jean- -Pierre Lignon, Xavier Nicquevert, Josette e Roger Uebers- chlag, e três depoimentos de Jaky Chassanne, Jeannette Le Bohec, Jean Le Gal. Prefácio Este livro não pretende fazer uma abordagem nem um estudo sistemático e exaustivo da pedagogia Freinet nos nossos dias. Não se trata duma obra didáctica especial mente destinada a agentes de ensino. Através das dezanove reportagens e dos textos publi cados que ele contém, quisemos tão-só testemunhar, dar imagens actuais, variadas e vivas, duma prática pedagógica sempre presente, duma investigação e dos problemas que ela levanta, da vivência actual dos professores do movi mento da Escola Moderna — Pedagogia Freinet. Estas imagens são incompletas, não apresentam um panorama definitivo; faltam ainda numerosos aspectos (par ticularmente todo o segundo grau) que poderiam figurar num segundo tomo. Trata-se dum livro mosaico... com lacunas, mas onde se lê permanentamente o compromisso de professores que continuam a trabalhar de acordo com a linha traçada por Célestin Freinet. Apresentando embora aspectos, situações pedagógicas muito diversos, estes professores situam-se efectivamente no eixo da pedagogia Freinet. Neles se poderá reconhecer, com efeito, a utilização constante e não dogmática dos 8 A PEDAGOGIA FREINET utensílios e técnicas que fazem a originalidade desta peda gogia: — o texto livre — a arte infantil — a correspondência — o estudo do meio — a individualização do trabalho — o conselho de turma — etc. Em face da desorientação e das mistificações que impe ram, hoje, na pedagogia, ele representa uma nota de auten ticidade e de seriedade, a que saberão mostrar-se sensíveis os pais e os educadores preocupados em dar aos seus filhos a melhor educação possível. No fim do livro, um ÍNDICE TEMÁTICO (para que remetem os números incluídos no texto) e uma BIBLIOGRAFIA (para que remetem os asteriscos) permitem uma leitura aberta a mais infor mações e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sínteses consoante os interesses de cada um. O MOVIMENTO DA ESCOLA MODERNA PEDAGOGIA FREINET O materialismo em pedagogia Certos termos, que ocorrem com muita frequência na nossa linguagem falada e escrita, correm o risco, se não nos acutelarmos, de se converterem em fórmulas feitas dum dicionário das ideias avançadas pela Escola Moderna, pelo que se torna necessário limpá-los da pátina dos hábi tos para ver se eles conservam um valor sempre actual. Termos como materialismo escolar, primazia do uten sílio, mediação pelo utensílio fazem parte daquelas fórmu las que não seria inútil «decapar» um pouco. Com efeito, tal como uma interpretação literal da pedagogia pôde fazer crer que o importante era agir, manipular, também seria fácil deixar-se deslizar de materialismo para material e ver o problema unicamente sob o ângulo do utensílio manu- facturado e, em última análise, do instrumento pedagó gico. O materialismo de Freinet é coisa bem diferente. Materialismo contra verbalismo Desde o princípio Freinet demarca-se dos pedagogos idealistas que pretendem mudar a escola com ideias, por 1 Reler Elise Freinet, Naissance d'unee pédagogie populaire, Maspéro, Paris, 1968. 12 A PEDAGOGIA FREINET vezes generosas e sinceras, por vezes mistificadoras. Toma sobre isso, e será uma escolha definitiva, uma posição que muitas vezes se descreveu como anti-intelectualista e que é, mais rigorosamente, antiverbalista, uma vez que ele recusa à linguagem o monopólio da expressão das ideias. Para ele, a filosofia pedagógica do começo do século não pode reduzir-se a palavras ou a escritos, mas acha-se materia lizada em utensílios, técnicas, estruturas e instituições. É muito característico o facto de a Universidade só se ter interessado por doutrinas veiculadas pelos livros, nunca por aquelas que se acham cristalizadas num regulamento interior de liceu, na arquitectura duma escola, na altura duma porta de gabinete. Freinet é um dos primeiros e dos raros educadores a preocupar-se com as infra-estruturas do sistema educativo. A maior parte dos outros, inclusivamente muitos marxistas, raciocinam unicamente ao nivel das superestruturas ideoló gicas; certamente, quando afirmam que uma mudança de regime político é indispensável à transformação da escola, põem em causa as infra-estruturas da sociedade, não, porém, as da escola, que não contestam necessariamente. É toda via sobre estas que Freinet vai exercer a sua reflexão e a sua acção. O estrado e o manual escolar No princípio da III República, a escola laica aberta a todos triunfou do embargo clerical. Proclama a sua rejeição do dogmatismo e do autoritarismo, retomando ideias que já Montaigne e Rousseau tinham desenvolvido. Ora Freinet, ao regressar dessa guerra de 1914-18 que se pretendia fosse a «última das últimas», vê-se obrigado a concluir que a escola republicana participou largamente na doutrinação belicista e que está, portanto, longe de O MATERIALISMO EM PEDAGOGIA 13 aplicar as concepções que ela pretende encarnar. Levando mais longe a análise, descobre que, apesar do seu anticle- ricalisimo, a escola laica conservou a cátedra sob a forma do estrado magistral e o catecismo sob a forma do manual escolar. Pelo que Freinet declara guerra desde o princípio a estes dois atributos do dogmatismo. Alguns pretendem ver nisso um acto puramente simbólico, mas importa ver a coisa de mais perto. O professor, único adulto no meio dum grupo de crianças, é já, pela estatura, a idade e a experiência, aquele que domina e que por vezes inspira medo contra a sua vontade; isso, porém, não basta, é neces sário empoleirar a sua secretária acima das carteiras dos alunos para que estes compreendam bem que tudo o que será dito de importante virá da boca do mestre (etimolo- gicamente, aquele que se encontra por cima) e que do alto do seu miradouro este último espia e sanciona a menor das suas faltas. A decisão de Freinet de se instalar entre os alunos, de renunciar ao estrado, quer deitando-o abaixo, quer conservando-o como cavalete acessível a todos aqueles que tenham qualquer coisa a mostrar, vai muito mais longe do que um mero gesto espectacular, introduz uma nova topologia da educação, independentemente da atitude pes soal do educador. A condenação do manual escolar insere-se na mesma ordem de razões: a sua situação de livro único na sua disci plina converte-o, independentemente do seu conteúdo, no utensílio do dogmatismo. Quando uma concepção peda gógica nova, uma apresentação mais agradável fazem com que certo manual se pareça com os outros livros de livraria, ele só perde a sua nocividade de catecismo laico na medida em que, deixando de ser o livro único possuído por cada alluno, for ocupar um lugar ao lado dos outras livros na biblioteca da classe. 14 A PEDAGOGIA FREINET O utensílio: uma intenção materializada Pouco a pouco, Freinet irá reexaminando todos os utensílios da escola e todas as técnicasde trabalho ligadas à utilização destes utensílios, especialmente aqueles que só existem na escola e que obrigam a perguntar-se por que é que foram ali introduzidos ou por que é que conseguiram sobreviver. Isto porque, subjacente ao utensílio, à técnica, até mesmo ao rito pedagógico, existe uma concepção implí cita que continua a exercer a sua influência, mesmo quando já se não dá claramente por ela. O quadro preto é um suporte da materialização efé mera do pensamento, quase uma concessão do orador em deixar alguns vestígios materiais que não tardam a desa parecer. («Despachem-se a arrumar isso na memória, pois não tardarei a apagar o quadro.») A imagem dos alunos de Einstein desmontando e envernizando o quadro após uma demonstração particularmente brilhante do sábio revela bem o hiato entre o jovem criador e o utensílio utilizado. A ardósia ilustra o mesmo princípio em sentido inverso, materializando uma força de exercícios que pode repetir-se à vontade sem deixar rastos. E a analogia de certas ses sões lamartinianas com o manejo de armas da caserna levarão Freinet a falar do inútil trabalho de soldado. (Ler Les dits de Mathieu, trad. port. Pedagogia do Bom-Senso, Moraes Editora). Entendamo-nos bem, não se trata de lançar às chamas quadros negros e ardósias, mas de tomar consciência das suas reais limitações de utensílios, e os camaradas de cur sos preparatórios que transcrevem os textos em folhas afixadas nas aulas têm perfeita consciência desta realidade. Depara-se com o mesmo problema a propósito do caderno diário destinado a que a criança nele transcreva, O MATERIALISMO EM PEDAGOGIA 15 tremendo de nele deixar uma nódoa ou fazer uma rasura, o rascunho que depois suprimirá. Os camaradas que se interessam por recuperar os tacteamentos das crianças, inscritos num caderno de textos livres ou de investigações matemáticas, e que permitem que os resultados sejam recopiados em folhas independentes dum ficheiro ou dum álbum, comportam-se de harmonia com uma filosofia da educação inteiramente diferente, mesmo que não tenham consciência da importância ideológica dos utensílios de que se servem. Novos utensílios, novas técnicas, novas atitudes Por consequência, Freinet vai procurar a transforma ção da educação, não pedindo aos educadores que alterem a sua relação com as crianças, mas introduzindo utensílios e técnicas que vão contribuir para transformar esta relação. Pois não basta suscitar boas intenções entre os agentes de ensino que unicamente conhecem e aplicam a técnica do ensino tradicional: exposição magistral oral seguida de con trole da memorização a curto prazo. Esta pode apresentar variantes (aditivos visuais e audiovisuais na exposição, a interrogação oral em que a boa pergunta suscita a única resposta válida, que ela por vezes «assopra», se necessário; a interrogação escrita, o exercício imediato na aula ou dife rido para casa, a interrogação a distância após memoriza ção da lição), mas, na realidade, existe apenas um único esquema de relação. A expressão livre, a imprensa, o jornal escolar, a cor respondência, a livre investigação introduzem outros esque mas de relações de que nem todos passam pelo mestre, o que está longe de ser insignificante, já que o objectivo da pedagogia Freinet é, antes de mais, fazer das crianças seres autónomos. Não nos enganemos a esse respeito, os 16 A PEDAGOGIA FREINET ficheiros autocorrectivos não foram criados para libertar o professor de modo a ele poder dedicar-se a alguns (na pedagogia tradicional, utiliza-se para esse efeito a plasti cina ou, como último recurso, o exercício extraordinário (imposto a um aluno)), mas para libertar as crianças da tutela do professor, que detinha o monopólio da correcção, e da do grupo nos exercícios colectivos. Que se não diga: «um professor à altura, com poucos alunos, pode dispensar estes útensílios». O professar, sem dúvida; já as crianças, é menos certo. Certamente, é sempre possível utilizar um utensílio sem respeitar o espírito que lhe está subjacente — não se poderá impedir os ignorantes ou os imbecis de quererem apara fusar com um formão. Muitas vezes, porém, o que irrita os nossos camaradas é antes a subutilização do utensílio que se emprega superficialmente. Não é, portanto, o uten sílio que é limitado ou perigoso; é antes a consciência das opções ideológicas que ele oculta que não é suficientemente clara. Não será, por conseguinte, atribuindo menos impor tância ao utensílio que se resolverá o problema, mas, pelo contrário, reflectindo sobre todas as suas implicações. Os ritos e os mitos escolares deverão ser também reconsiderados Prosseguindo a análise, dar-se-á conta de que a maior parte dos ritos pedagógicos com que nos conformamos muitas vezes sem pensar nisso estão carregados de ideo logia e que importa contestá-los e propor soluções novas. Depois dos trabalhos de Baudelot e Establet2, falou-se lar gamente da separação dos circuitos primário-professional 2 Ver L’École capitaliste en France, Maspero, Paris, 1971. O MATERIALISMO EM PEDAGOGIA 17 e secundário-superior, mas trata-se tão-só neste caso duma das aplicações do mito mais geral da homogeneidade do grupo-classe, noção confusa que abrange tanto as idades, as potencialidades intelectuais, como os ritmos de aqui sição, os conhecimentos já assimilados. Como uma tal homogeneidade não pode existir, a escola encerra-se nas «desnatações selectivas», nas experiências segregativas. Importa ter bem presente a ideia fixa da mestiçagem socio- cultural que impede tantas pessoas, mesmo progressistas, de admitir esta realidade: sendo qualquer grupo fatalmente heterogêneo, é preciso abandonar o monolitismo pedagó gico e misturar todas as crianças em grupos de vida que, dissolvendo-se, possam caldear-se em actividades multifor- mes (oficinas, trabalho independente). Importa compreender também o carácter arbitrário de centos hábitos: o monolitismo do ano escolar, única unidade contabilizável (o ano, ou se passa em bloco, ou terá de ser repetido), a concepção do programa por fatias anuais (e porque não mensais ou trimestrais?), a progressão do programa que pretende fazer passar por rigoroso o que é puramente convencional (compare-se, em especial, as pro gressões dos programas de matemática antigos e recentes), a notação numerada, a média, os coeficientes, sem os quais classificações e exames não podem sobreviver. Importa mostrar as intenções subjacentes à introdu ção de todos estes ritos, mas isso não basta; é necessário investigar e experimentar as técnicas, os utensílios que permitirão instaurar outros hábitos. Com esta condição, e unicamente com esta condição, será o que diremos da criança, da sua psicologia, da nossa pedagogia, outra coisa que não mero palavreado. 2 O que somos O que queremos I. A nossa verdadeira riqueza: o nosso trabalho Vivemos um tempo em que tudo se torna mais com plexo; a fórmula poderá parecer banal e foi certamente empregada noutras épocas! Todavia, duas verificações incitam-nos, mesmo assim, a utilizá-la: vivemos um tempo em que somos mais nume rosos do que nunca e em que todos recebem uma soma de informações nunca igualada. E grandes concentrações de pessoas, muitas informações em desordem, isso faz ainda mais... Então, num tempo como este, será demasiado ambi cioso saber um pouco em que situação nos encontramos? As nossas riquezas Os encontros e os estágios do Verão mostraram uma vez mais, pelo seu número e pela diversidade das suas concepções, a grande riqueza de possibilidades que existem no nosso movimento. Trata-se, efectivamente, duma demonstração de vida e de vitalidade, da garantia de que está em marcha um movimento e de que existem forças para prosseguir esta marcha. 20 A PEDAGOGIA FREINET Todavia, não pudemos evitar viver certos momentos em que riqueza e diversidade se tornam sinônimos de con fusão, em que a efervescência da vida esbate a diferença entre os respectivosêxitos e contradições, em que — pelo menos assim nos pareceu — um pouco de recuo e de análise se tornam indispensáveis para não confundir a bússula e a direcção que ela indica. A expressão livre Falamos de expressão livre. Acreditamos ainda que é partindo da expressão da criança que partimos efectiva- mente do estado exacto em que ela se encontra no momento em que se exprime e que é a partir daí que se estabelece rão as melhores motivações, que se traçarão as melhores trajectórias. E a experiência mostra-nos que esta livre expressão continua a ser indispensável. No entanto, nesta expressão expressão livre, existe um termo: livre. E este adjectivo com uma história muito longa exerce ainda um fascínio muito grande que nos impede, nos faz esquecer de o observarmos por duas vezes e de mais perto — condi cionados que fomos por um certo vivido, não será que, por simples atitude de reacção, concedemos virtudes exces sivas ao que não passa duma ideia, duma faceta — a mais sedutora, de certo — duma realidade bem mais complexa? Pode a expressão livre ser mais do que um ponto de partida, outra coisa que aquele momento em que, acolhido e tranquilizado, um indivíduo pode deixar aparecer ao mesmo tempo as suas forças e as suas alienações, a sua vontade de crescer e o que o impede de o fazer, ou ainda, como hoje se diria, o seu lugar exacto entre o desejo e o poder? Então, esta expressão livre não pode continuar a ser uma simples expressão: é indispensável que ela permita O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 21 ao indivíduo empenhar-se no campo real, em termos de evolução, e isso, mediante a démarche a que chamamos tacteamento experimental com a inseparável participação do mestre. ' O tacteamento experimental Com efeito, falamos também do tacteamento experi mental, mas como de um processo mediante o qual um ser se constrói, e não de um processo que se justifica por si próprio e se exerce pelo simples prazer do tacteamento. Freinet, aliás, definiu-o, inscreveu-o numa série de leis — tiradas da experiência e destinadas a enriquecê-la — onde aparece claramente que este tacteamento do ser se processa e rectifica mediante a crítica permanente dos factos e das pessoas que rodeiam todo e qualquer indi víduo, mediante o jogo subtil dos recursos-barreiras, refor çando assim toda a importância reconhecida ao meio; tor na-se então possível o êxito de que ele (Freinet) sublinha a enorme importância. A experiência e os utensílios Além disso, no pensamento de Freinet, este tacteamento nunca tem lugar no vácuo, ou meramento no domínio das palavras; daí o papel muito grande que ele reconhece à experiência, aos utensílios que a permitem. Pois é por intermédio deles, destes objectos com forma, existência real e funções rigorosas a desempenhar, com exigências fora das quais não há êxito possível, que os processos adopta- dos perdem a sua dependência em relação às ideias, às hipóteses e mesmo aos homens, para dominarem a reali- dade e progredirem verdadeiramente. Acaso não nos sentimos muitas vezes tentados a quei mar étapes, a evitar ou a abreviar esta confrontação com 22 A PEDAGOGIA FREINET o material, com a realidade, precipitadamente seduzidos pelo poder das palavras, sobretudo das mais recentes? Poderá então designar-se com a expressão «tacteamento experimental» qualquer atitude de pesquisa mais ou menos desordenada, que recusa ou evita a crítica dos factos e das pessoas, que não encara a parte indispensável de êxito e que, então, mantém o indivíduo no círculo fechado dos seus limites sem qualquer ligação com o meio em que se insere? O papel do professor Importa, por fim, que retomemos ao papel do profes sor. De a criança em primeiro lugar, que era a preocupação do movimento desde as suas origens, parece ter-se operado um deslize que não tardaria a traduzir-se por um novo slogan: o professor em primeiro lugar. Numerosas discus sões indicam que esse deslocamento está em curso — e é importante compreender o que lhe está subjacente. Ou situamo-nos em relação ao interesse da criança que temos diante de nós, e o nosso trabalho tende a fazer com que esta criança alcance um grau mais elevado de saúde, de discernimento, de saber e de felicidade. Nesta perspec tiva, a nossa função não é a de sermos o modelo, o exem- plo, a encarnação do único possível, mas antes a dum mediador, daquele que, tendo feito e continuando a fazer com outros uma análise da realidade, pode permitir à criança situar-se, por sua vez, numa perspectiva de pro gresso (e de progresso sobre nós, em relação a nós) em que seja menos vulnerável. Não será absurdo recusar ou negar um poder que o adulto possui efectivamente, se este poder permite armar a criança, por sua vez, com o poder que deriva de se saber ler, de saber raciocinar, de saber falar, de saber viver com os outros? A maior exigência O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 23 a que não nos deveremos furtar não será a de aceitar luci- damente este poder, de lhe prescrever limites e de não abusar dele? E poderá fazer-se isso sozinho, sem que, pela nossa vez, uma vida de grupo no-lo ensine? A nossa prática pedagógica é a nossa força Ou então situamo-nos em relação a qualquer objectivo de ordem ideológica ou política, e o nosso trabalho é deter minado por escolhas hipotéticas sobre as quais a criança, que temos diante nós, não foi consultada. É inegável que, pelas suas opções e a prática duma pedagogia libertadora. O Instituto Cooperativo da Escola Moderna (I. C. E. M.) representa uma força política, força que se pode associar a outras no combate político que diz respeito a todos os cidadãos. Mas, que o I. C. E. M. possa dispor um dia dos métodos e dos objectivos dum agrupamento político é o que é fundamentalmente contraditório com a sua vontade de permitir à criança e ao adolescente construírem-se a autonomia suficiente para se empenharem eles próprios na luta pela sociedade que garantirá melhor a sua expan são, quando chegar a sua altura. Deparamos, finalmente, com camaradas, professores, que, por terem tomado súbita consciência de alienações durante muito tempo suportadas, se colocam em situação de reacção violenta e radical contra as fontes destas alie nações. Por conseguinte, consideram insuportável pelos seus alunos o que a eles próprios se tornou insuportável, e é então que a expressão livre e o tacteamento experimental, bem como o papel do professor, se tomam noções despro vidas de matizes, noções perigosamente estiradas pelo movi mento extremo duma grande revolta ou duma dificuldade pessoal. 24 '~ ~ r A PEDAGOGIA FREI N ET Porque nos ensinaram a matemática, a física ou a poesia por processos aberrantes, deverão por isso riscar-se vinte séculos de história do pensamento humano? Porque sofremos com as manifestações duma autoridade excessiva, iremos preferir-lhe o abandono puro e simples? Porque des cobrimos que as nossas famílias nada tinham de ideal em face das análises hoje possíveis, deverá mesmo assim negar-se a necessidade de segurança que caracteriza cada indivíduo? Porque o trabalho adquiriu, praticamente por toda a parte, o aspecto duma corveia ao serviço duma socie dade /virada para o lucro, deveremos marginalizarmo-nos desta sociedade, ou antes transformá-la? Porque uma buro cracia sem imaginação e uma censura idiota continuam a exercer-se, deverá poar isso negar-se a necessidade dos níveis de organização (de que a própria vida dá o mais belo exemplo) e a necessidade de coerência? •1. A educação do trabalho '• . A ■ ■ ■■ ■ t .. ..... . .. : O I. C. E. M. tem representado, até hoje, um movi mento, um estaleiro de realizações pedagógicas, um agru pamento de trabalhadores que, aqui e agora, gradualmente, todos os dias, têm procurado fazer com que a escola sirva todas as potencialidades das crianças, mediante utensílios e técnicas de trabalho elaborados em comum e seguindo as pistas desbravadas por Freinet. Trata-se dum movimento de trabalhadores em queas diferenças são aceites, em que a hierarquia — os níveis de organização — nascem exclusi vamente do trabalho e das suas exigências, em que os .tes temunhos de experiências são o alimento das reflexões e das pesquisas, antes dos tratados teóricos. • O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 25 II. Levamos em conta as realidades . . í Vivemos numa sociedade dominada pelo dinheiro, estru turada pelo lucro, e L’Éducateur prolétarien (O Educador Proletário), primeiro título da nossa principal revista, dei xava bem vincada a nossa vontade de a condenarmos. Nesta sociedade e em função da nossa contestação, qualquer actividade de que resulta o aparecimento no mer cado dum produto qualquer suscita em muitos dos nossos camaradas uma certa desconfiança. Desconfiança tanto mais justificada quanto os costumes do nosso tempo nós mostraram demasiadas vezes as misérias e as catástrofes exploradas, as acções generosas, desencadeadas para lutar contra certos flagelos actuais, confiadas às manobras dos grandes organismos publicitários ou dos profissionais da caridade, pagando-lhes um tributo garantia de eficácia... A Cooperativa do Ensino Laico (C. E. L.) que, para numerosos agentes de ensino, não representa mais do que um catálogo, não escapa a esta desconfiança que raia, por vezes, pela hostilidade. Ora, a C. E. L., criada por Freinet, é antes de tudo uma vasta oficina cooperativa, destinada a assegurar à acção pedagógica por ele empreendida a eficácia e a inde pendência. Estava fora de questão, na época, por volta de 1930, que as editoras se interessassem por um pequeno professor primário que faz afirmações inquietantes e pre tende regenerar a escala e os educadores. As brochuras e os utensílios produzidos por Freinet e seus camaradas não correspondiam, evidentemente, aos critérios habituais da rendabilidade. A C. E. L., inicialmente movimento pedagógico ao ser viço das crianças, só podia, então, contar consigo própria para assegurar até ao fim o processo de criação e de difu 26 A PEDAGOGIA FREINET são dos utensílios que deviam permitir a instauração duma pedagogia popular e libertadora. A razão de ser da C.E.L. é fabricar e editar material que seja útil à nossa escolha pedagógica, enquanto que as empresas comerciais capitalistas editam unicamente o que lhes traz proveitos. Hoje em dia, é por vezes difícil fazer compreender que um movimento pedagógico, que recusa colocar-se na depen dência do ministério, deva dotar-se dos meios capazes de assegurar a sua eficácia e independência. Pois não temos o direito de nos contentarmos com um verbalismo estéril. O que visamos é uma profunda transformação revolucio nária da escola em benefício de .todas as crianças e de todos os adolescentes. E, para tanto, a C. E. L. deve cons tituir uma arma mestra do movimento Freinet. Não nos deixemos, porém, enganar. Vivemos no sis tema capitalista, numa sociedade de consumo. Não pode mos ignorá-lo, nem recusar o contexto económico com as obrigações e os constrangimentos que isso implica. Sem que se pretenda combater esta sociedade com as suas pró prias armas, também não podemos, inversamente, recusá- -las a todas. Tal como na nossa vida de todos os dias, temos de aceitar compromissos. Aqueles que nos permitem existir e, sobretudo, agir, pois a recusa dos compromissos, na sociedade actual, conduz ao imobilismo e à irresponsa bilidade. Quantos camaradas docentes, que pretendem ignorar a C. E. L. em nome duma certa pureza cooperativa, se recu sam a admitir as contradições entre as ideias que expõem e a sua acção de todos os dias? O nosso primeiro compromisso — e não é, por certo, o menos significativo — é o facto de sermos funcionários dum Estado de que contestamos as estruturas e os métodos. Mas — pelo menos no imediato—, é o único meio de que O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 27 dispomos para ajudar o maior número possível de crianças e adolescentes, particularmente os das classes populares: — a tomarem consciência das taras da sociedade actual; — a desenvolverem as suas faculdades criadoras e a imaginação a fim de serem capazes de arquitectar, cons truir e fazer viver a sociedade que melhor lhes convenha; — a libertarem-se dos tabus impostos pelos defensores da sociedade actual — e inconscientemente, por vezes, pelas famílias — e dos bloqueios ou traumatismos que esta socie dade ou estas famílias lhes causaram desde a mais tenra idade. Não se constrói uma sociedade com ideias e estruturas, mas com homens. É por isso que pensamos que os nossos objectivos justi ficam a nossa acção; que esta acção passa obrigatoriamente por compromissos; e que devemos aceitar estes compro missos sem vergonha nem remorsos. Mas, quais são estes compromissos, que causam uma impressão tão desagradável na nossa consciência? Em primeiro lugar, todos aqueles a que está sujeita uma empresa que exerça uma actividade comercial. Poderia, certamente, imaginar-se uma cooperativa cujos membros se bastariam a si próprios, em que todos os utensílios utiliza dos nas aulas seriam fabricados por eles, cooperativamente. Mas, além de que isso conduziría a uma limitação perigosa, nem por isso escaparíamos ao sistema de produção capi- tallista. Quando professores constroem, durante um estágio, o seu próprio limógrafo, limitam-se a proceder à montagem de materiais produzidos por empresas capitalistas. Da mesma forma que os folhetos e os jornais revolu cionários são impressos em papel cuja produção constitui uma parte importante da actividade dos grandes mono pólios internacionais. 28 A PEDAGOGIA FREINET A C. E. L. tem, portanto, necessidade, como qualquer empresa, de dispor de capital e de aumentar este capital à medida que a sua actividade — reflexo da audiência da pedagogia Freinet— se desenvolver. Tem necessidade de vender para assegurar a rendabilidade das suas produções e— nisso consiste a sua originalidade — para continuar a produzir brochuras e utensílios, cuja rendabilidade não está garantida, mas que se verifica serem indispensáveis à prá tica pedagógica que escolhemos. Pedagogia do bom-senso* Barragem ou cabaças * Tradução portuguesa de Moraes Editores. por Célestin Freinet A nossa unidade, são as nossas necessidades comuns de trabalhadores, as nossas necessidades e as nossas preo cupações de educadores do povo que a implicam, a pre param e a cimentam. Não nos reunimos nos nossos congressos para discu tirmos os nossos sentimentos filosóficos, ou as nossas tendências sociais ou políticas. Isso não passa de jogos intelectuais que unicamente separam os homens que não souberam reencontrar, na base, os fundamentos inabalá veis dos seus esforços comuns. Somos os habitantes dum bairro que têm necessidade de água de irrigação e que decidiram unir-se para executar os trabalhos de pesquisa e de construção que nos permi tirão melhorar as nossas condições de vida e de trabalho. Estamos forçosamente de acordo sobre o princípio da necessidade da água. Só as questões técnicas nos podem separar — a saber, se se deve construir a barragem com cestões ou com betão moderno, se se deve construí-la, arro jadamente, nesta garganta abrupta, ou tão-só no ponto 30 A PEDAGOGIA FREINET em que o rio se encontra com a planície, ou se não seria preferível instalar um elevador. Estas considerações técnicas só seriam graves para a unidade do nosso grupo se as abordássemos, não sob o ângulo da experimentação científica, mas sob o do dogma- tismo e da autoridade, ou se não tivéssemos sabido, ou podido, dominar os interesses particulares que correríam o risco de impor soluções contrárias às necessidades da maioria do grupo. Mas, se procuramos lealmente, cientificamente, sem preocupação egoísta de interesse pessoal, tactearemos, talvez, durante muito tempo, enganar-nos-emos, mas recti- ficaremos os nossos erros e acabaremos por triunfar. Há que contar por certo, para nos olharem ironica mente, com os embrutecidos, que já não têm nem força nem vontadepara lutar por uma melhoria da sua sorte e que continuarão a ir buscar água ao rio com uma cabaça. São os mais difíceis de convencer, mas não os que mais devemos recear. São menos de temer que os que vendem a água do rio ou que fabricam as cabaças, e que se sentirão prejudicados pelo canal generoso que vivificará amanhã a aldeia. E menos de temer, também, que os espertalhões que inventaram uma vasilha especial para o transporte da água ou uma bomba (de tirar água) que afirmam ser superior à poderosa barragem, e que querem vender a sua mercadoria ordinária com patente reconhecida. Montemos a nossa barragem, instalemos a nossa cana lização. Quando a água sair aos borbotões límpidos do cano da fonte, os próprios cépticos virão bebê-la, e as vasi lhas e as cabaças irão juntar-se nos sótãos aos vestígios mortos das técnicas ultrapassadas. Célestin Freinet* * Texto publicado em L’Êducateur, 1 de Fevereiro de 1950. UM ENCONTRO COM A PEDAGOGIA FREINET Num «sana» polaco por Halina Semenowicz e Alina Blachowicz (reportagem de Roger Ueberschlag) Quer seja em França, na Polônia ou em qualquer outro pais, o encontro dos docentes com a pedagogia Freinet foi muitas vezes obra do acaso; e isso porque esta pedagogia continuou muitas vezes a ser contestada e, sempre, contestatária, sendo ainda difícil chegar até ela pelas vias oficiais. É, portanto, às vezes, por ocasião dum congresso, duma con ferência ou de qualquer outra reunião, por uma leitura ou por um contacto pessoal, que ela é descoberta. Mas, a partir deste primeiro encontro, por toda a parte se processam as mesmas démarches: contacto com os responsáveis, experiências, confrontação, organização da investigação e duma autoformação entre colegas interessados conduzindo a uma parti cipação mais activa na vida do movimento da Escola Moderna onde se realizarão os aprofundamentos e as análises indispensáveis. É porque a narrativa da nossa amiga Halina Semenowicz ilustra de maneira notável esta descoberta e esta evolução, que esco lhemos inserir aqui o seu depoimento, se bem que ele tenha sido vivido na Polônia; o facto de este país ser socialista não tem, para o caso, qualquer relevância — uma vez que «a pedagogia Freinet é por essência internacional» (carta da Escola Moderna), ela diz res peito às crianças de todos os países. A quarenta quilômetros de Varsóvia, chalés castanhos e vermelhos numa floresta de pinheiros. Poderia tratar-se duma aldeia de férias. Trata-se, desde há vinte e cinco anos, dum sana provisório erigido para durar dez anos. Está, porém, tão bem conservado e as crianças sentem-se ali tão 3 34 A PEDAGOGIA FREINET felizes que se adiou para 1976 a construção do complexo moderno destinado a substituído. Efectuámos uma visita, quase a última, ao berço do movimento Freinet polaco, guiados por uma mulher obstinada, Halina Semenowicz, à qual se deve actualmente a existência de 67 grupos de tra balho, de 474 educadores e de 261 jornais escolares. Este florescimento de jornais escolares não deve nada a uma larga dotação em meios técnicos, habitual nos países socialistas (1). As escolas urbanas possuem duiplicadores, mas as escolas rurais realizam jornais escolares com os meios mais primitivos — ali, tira-se proveito duma máquina de escrever antiga; noutro lado, recorre-se a papel de car bono para multiplicar à mão um texto de criança, e, em certos casos, cada exemplar é único. Nenhum obstáculo existe, assim, para aqueles que estão convencidos de que o jornal escolar é capital para a comunidade infantil, para a motivação do trabalho. Dois pobres diabos Roger — Tu dirigiste esta escola durante mais de vinte anos, e agora é a tua auxiliar, Alina, que instruíste nas técnicas Freinet, quem te veio substituir. Porque é que as ideias de Freinet ganharam raízes aqui, e não em qual quer escola de aplioação da capital? Halina — A escola existe desde a criação do sanatório, ou seja desde 1949. Ao princípio, tratava-se dum preven- tório construído pelos Suecos e destinado às crianças pola cas tuberculosas, vítimas da fome e das atrocidades da guerra... Quando cheguei, vinha preparada para trabalhar com crianças doentes. Encontrava-me então à procura dum método terapêutico e que ajudasse ao mesmo tempo as crianças, a todos os nivéis, que sentem dificuldades por NUM «SANA» POLACO 35 causa da sua doença, da sua fraqueza. Desejava esse método para animar as crianças. Nesse momento em que procurava adaptar o método escutista — há muito tempo que eu era batedora—, isto é, o ensino pelos jogos, o trabalho de equipa (conhecia um pouco Makarenko), experimentava tudo o que podia; não me cansava de investigar e procurar. E incitei a minha equipa a procurar comigo. Roger — Como é que chegaste a conhecer Freinet? Halina — Em 1955, realizou-se, em Varsóvia, um grande congresso dos sindicatos dos docentes do mundo inteiro. Fui contratada pelos sindicatos como intérprete de honra junto dos franceses. Neste grupo de aproxima damente sessenta pessoas encontravam-se dois professores primários que eram diferentes de todos os outros. Eram os únicos que tinham trazido uma exposição. Não se can savam de me perguntar: — Trazemos uma exposição con- nosco; onde a poderiamos instalar? Ocupei-me de tudo, pois o meu feitio é assim — não era apenas tradutora, organizava tudo o que me era pedido. Em relação a estes dois pobres diabos, após o seu segundo ou terceiro pedido, interessei-me pela sua exposição. Eles indicaram-me que ela se encon trava no salão. Para lá me dirigi, e, ao ver todas aquelas coisas por terra, fiquei com a respiração suspensa: trata- va-se daquilo que eu procurava. Pego num jornal escolar, em desenhos de crianças e começo, por terra, a ler uma brochura da Educação Moderna ou um artigo de L’Éduca- teur. Não apenas como tradutora, mas já muito interes sada. Encontrei-lhes um gabinete de trabalho. Produzimos e afixámos cartazes. Quando todos os restantes se iam divertir, durante os momentos livres, eles dirigiam-se para o gabinete e era com o maior entusiasmo que aguardavam a chegada de alguém! Eram eles Paulette Quarante e F. Deléam — já lá vão quinze anos! Liguei-me de amizade 36 A PEDAGOGIA FREINET com eles. Eles deixaram-me algum material, e eu regressei à escola no mês de Agosto. Em Setembro, escrevia uma carta a Freinet pedindo-lhe alguns conselhos e se ele acei tava entrar em relação comigo. Ele respondeu-me imedia tamente, como eu esperava. Assim se estabeleceu uma correspondência durante dois ou três meses; eu contava e traduzia tudo aos meus camaradas. Decidimos experimen tar em duas turmas (2). Começámos pelo texto livre e a pintura. Não nos sentíamos muito seguros. Começámos a corresponder-nos (3) com Paulette. De cada vez que eu escrevia a Paulette e a Deléam, acrescentava desenhos, e fazíamos trocas. Era muito difícil, pois só eu conhecia a língua francesa. Mas, mesmo assim, conseguimos; pouco a pouco, iam-se realizando progressos, Paulette escrevia-me: — Tu poderías, agora, ligar todos estes textos e fazer um jornal, como nós. — Sim, mas não possuo um duplicador. — Faz um limógrafo. — Conto é que se deve fazê-lo? Enviaram-me o método. Enviei o texto a Freinet. Ele animou-me — recebi muitas cartas. Compreendí muito depressa o espírito do I. C. E. M., pois ele já se me comu nicara. Um inspector surpreendido Recordo-me de que, no fim do primeiro ano, trabalhá- vamos um pouco com quatro classes. O inspector chegou e ouviu dizer que procedíamos a uma experiência nova. Ele examinou minuciosamente a escola inteira. Começou pelas classes mais adiantadas. Não existia ainda a oitava. Em cada turma, para ver se as crianças pensavam logica mente— era essa a sua ideia fixa — apresentava a mesma NUM «SANA» POLACO 37 anedota: Na turma, existem 12 raparigas e 14 rapazes; qual é a idade do professor? Nas classes avançadas, as crianças punham-se imediatamente ao trabalho. Faziam operações, equações, subtraíam,dividiam, multiplicavam. Após quinze minutos de trabalho, apercebiam-se de que faltava alguma coisa. O inspector dirigiu-se, depois, à classe de Alina, à de Ella... e, em cada uma destas classes, a reacção era imediata. As crianças riam, ou uma delas levan- tava-se e dizia:—Perdão, Senhor, talvez tenha esquecido alguma coisa?, ou ainda:—É um problema que se não pode resolver, ou até: — Adivinhas como essa já a nossa professora nos apresentou; o senhor não nos consegue enga nar! Em seguida, as crianças perguntaram-nos: — O que é que este senhor veio cá fazer? Ele não se apresentou! O inspector pediu desculpa. Nas classes mais adiantadas, as crianças interessavam-se pouco pelos visitantes. Nas nossas, estavam habituadas a que se lhes explicasse o por quê da vinda de alguém. O inspector ficou de tal maneira admirado com os resultados que me ordenou que introdu zisse os métodos Freinet em todas as classes. Expliquei-lhe que isso não era possível, que era preciso que eu preparasse as pessoas que estivessem dispostas a fazê-lo. Eu não dis punha de tempo para proceder a estágios, pelo que traba- Ihávamos da seguinte maneira: todas as semanas, reunía- mo-nos, procurávamos em conjunto. Tão-pouco dispunha cu, nessa altura, de uma verdadeira classe Freinet. No ano seguinte, após o congresso Freinet em França, pedi para ficar de modo a visitar algumas classes. Visitei Deléam, nas Ardenas, e, em Paris, Raymond Fonvieille e Oury. Pois, durante muito tempo, entendi-me muito bem com eles, e lamento muito que eles tenham partido. Encontrei Freinet em todos os congressos — Avignon, Saint-Etienne... A este último acompanhou-me Marilka Marakowa, que era minha auxiliar. Dava toda a atenção 38 A PEDAGOGIA FREINET que podia às minhas duas auxiliares; procurava sempre vê-las no futuro. Preparava-as. Queria deixar, após a minha partida, uma equipa sólida. Formava-as não só por inte resse prático, mas também para que os inspectores acadê micos as respeitassem, na altura em que eu as propusesse para me sucederem. Agora, desta equipa, dois são directo- res de escola, Marilka é vice-directora do Instituto, e um é director de colégio no sanatório, pois, na verdade, o espí rito Freinet tornou-os criadores; o que conta muito! Um auditório intrigado Eu teria gostado de fazê-lo mais cedo, mais a fundo. Procurámos deslocar-nos a escolas para fazer demonstra ções com outras crianças, pois estas não podiam vir até nós. Em Schwinder, por ocasião duma grande reunião de professores primários, organizada pela academia, fizemos uma bela exposição oral, isto é, cada uma de nós fazia um comentário — revezávamo-nos. Nunca se fizera ali uma exposição como aquela. Depois, procedemos a quatro demonstrações: — um texto livre; — imprensa; — uma carta; — pintura livre. E isso com crianças que não eram as nossas; era pre ciso coragem para fazê-lo! A minha participação foi total a fim de as estimular. Naturalmente, acorreram a minha casa todos os professores para verem o que esta Seme- nowícz ia mostrar. A professora primária desta classe acha va-se sentada atrás de mim; à minha frente, 44 garotos. Era uma aula de biologia. A parede mostrava chanfradu- ras, pequenas janelas, e estavam presentes pelo menos NUM «SANA» POLACO 39 80 adultos, amontoados; não havia qualquer mesa, apenas grandes bancos rústicos. Disse às crianças para treparem para cima dos bancos e olharem pela janela para o que se passava lá fora. Estava uma bela manhã de Inverno, com neve. Comecei a falar com eles: — Quantas Marias existem entre vocês? Ah! Três, qua tro!, etc. Vamos divertir-nos duma maneira formidável. Como não vos conheço, não se zanguem se tne enganar no nome, ao dirigir-me a um de vocês. Foi assim que entrei em contacto com eles; a coisa divertia-os muito. As crianças mostraram-se muito alegres. Num dado momento, surpreendí a professora a ameaçá-los, pois ela sentia-se envergonhada pelo facto de, diante dos inspectores, a sua classe se mostrar tão animada ao ponto de falar comigo. Ora, era precisamente isso o que eu que ria: libertá-las imediatamente, fisicamente mesmo. Aproxi mei-me dela e disse-lhe: — Se não consegue, do ponto de vista nervoso, supor tar o que eu faço, saia, pois está a perturbar o meu tra balho que, aqui, não é nada fácil. Em voz alta, pedi então: — Que as pessoas sentadas atrás de mim passem para a frente, pois é desagradável voltar as Postas a quem quer que seja! Dessa maneira, ela já nada podia fazer. Punha-se-me, porém, outro problema. Eu nunca fizera texto livre com 44 garotos (4). Ocorreu-me então uma boa ideia: a leitura em equipa. Expliquei às crianças que elas iam escrever 40 A PEDAGOGIA FREINET o que quisessem, o que pensassem, o que sentissem, o que gostariam de dizer às crianças da minha escola. — Dar-lhes-ei o que vocês escreverem. Aquelas crian ças não podem sair, não vêem todas estas bonitas coisas que vocês vêem quando vão para a escola, não sabem como é que vocês se sentem em vossas casas. Vocês podem escre ver absolutamente tudo o que quiserem. Os vossos traba lhos não receberão notas, e vocês podem perguntar-me a ortografia das palavras sobre que tenham dúvidas, pois eu gostaria que os vossos textos fossem bem escritos. Podem escrever a lápis. Trazia um dos meus bolsos cheios de lápis, para o caso de algum deles precisar, e de pequenas cartas... — Estamos prontos? Então, ao trabalho. Foi então que dei por um garoto que não sabia o que havia de escrever. Aproximei-me cautelosamente dele e e falei-lhe com brandura: — O que é que gostarias de escre ver? Isso para mostrar o que a professora primária deve fazer. E, em relação a alguns mais, repeti a mesma ope ração. Quinze minutos depois, comecei a ficar inquieta: disponho apenas de dois períodos de tempo de 45 minutos cada; como é que eu vou fazer? Nunca me permitirão que eu trabalhe mais tempo, ou então hão-de criticar-me. Tenho de encontrar uma solução, depressa. Foi então que lhes propus: — Eu gostaria muito de ouvir todos os vossos textos, mas desta vez não me é possível fazê-lo. Vocês vão reu nir-se em grupos de quatro e constituir, assim, pequenas equipas. Cada um lerá o seu texto, vocês escolhem o que NUM «SANA» POLACO 41 mais vos agradar, e o autor do texto escolhido far-nos-á a sua leitura. Enquanto as crianças trabalhavam, aproximei-me das professoras e disse-lhes: — Vocês 'ssistiram a dois momentos metódicos: o tra balho de redacção, absolutamente livre, com a correcção imediata da minha parte. Se eu conhecesse bem as crian ças, sabería a quem mais ajudar, e, portanto, de quem me deveria aproximar em primeiro lugar. Pois, nesse momento, não há necessidade de ajudar toda a classe. A leitura em voz baixa, com compreensão; é preciso compreender para poder escolher. Não basta ler (à primeira vista), é preciso reflectir. É um excelente momento metódico. Seguida mente, vocês ouvirão a leitura em voz alta, e, depois, a escolha do texto. Os critérios da escolha talvez não apa reçam às primeiras; pode ser que eles digam: porque gosto de Zocha, ou: isso agrada-me, simplesmente. Pouco a pouco, escreveremos o texto no quadro... Conquistámos, assim, três simpatizantes. Eu não pre tendia um êxito maior. Receava que um inspector, entu siasmado, dissesse: todos ficam obrigados, a partir de ama nhã, a trabalhar com os textos livres! Pouco a pouco, ia-se ganhando terreno. Por exemplo, nos novos programas incluiu-se, sem qualquer menção ao nome «Freinet», o texto livre, a expressão oral e a correspondência interescolar para as classes mais jovens. Um endireita inquietante Entretanto, eu começava a escrever o meu livro, e des- loquei-me a Vence. Pedi a Freinet que me autorizasse a assistir às jornadas de Vence para trabalhar nos arquivos. 42 A PEDAGOGIA FREINET Podia trabalhar ali duas a três horas por dia. Freinet con duzia-me a Cannes todas as manhãs; à tarde, regressávamos juntos. Ele conduzia duma maneira desportiva! Dizia-me:— Tens medo, Halina? — Contigo? Isso sim! Mas eu tinha medo. Torci um pé, e havia ali perto um curandeiro. Freinet disse-me: — Esta tarde, o endireita aparecerá par aí, e tu apro veitas para lhe mostrares o pé. Eu tinha medo de sofrer, mas, sobretudo, de mostrar que uma polaca não é capaz de suportar a dor; tinha medo de começar a gritar ou a chorar. Eis uma orgulhosa polaca, que viveu as atrocidades da guerra, que se vai pôr a chorar por causa duma perna! Escondi-me no jardim, mas Freinet descobriu-me e conduziu-me pela mão, passou-me o braço por cima da cabeça, para que eu não tivesse medo; segu rava-me com força. Então, o endireita tocou-me com os dedos; falava-me e, depois, subitamente, pegou-me no dedo grande do pé e deu um esticão de tal ordem que fiquei convencida de que ele o tinha arrancado — não olhei para o meu pé, mas para a mão do homem. Nunca vi Freinet tão divertido como nesse momento. Aliás Freinet sabia rir, e com que vontade! O curandeiro disse-me: — Senhorinha, agora, um passo de dança. — Como? Mas, não posso! — Peço-lhe, execute um passo de dança. NUM «SANA» POLACO 43 Assim fiz, e não senti mais nada. Ele disse: — Hoje, aplique ainda compressas, e, amanhã, poderá seguir na excursão. Foi assim que conheci Freinet. Trabalhei nos arquivos e escrevi o livro. Este livro contava para a obtenção do meu diploma de licenciada em pedagogia com a especia lidade de estética: a educação pela arte. Você enlouqueceu? Eles vão partir... Portanto, falávamos de Freinet, na Polônia, por toda a parte em que o podíamos fazer. O livro constituiu um estimulante formidável, pois de todo o lado nos chegavam cartas com convites. Repartíamos entre nós os departa mentos. Uma deslocava-se a Wroclaw e procedia a demons trações. Tinhamos adquirido o hábito de trabalhar com crianças diferentes das nossas. Eu própria fiz o texto livre com mestras da escola maternal. Com os mestres, trans formava a coisa num jogo. Ao princípio duma reunião, eles estavam todos sentados, rígidos nas suas cadeiras, e eu disse: — Ah, não. Eu não seria capaz de falar a um conjunto de quinhentas pessoas numa grande sala de ginástica. Vocês ou adormecem, ou desatam a rir de tempos a tempos. Vocês não vão compreender coisa alguma, e vamos perder o nosso tempo. Peço-vos, portanto, para formarem uma classe, para trazerem mesas e um quadro. Depois, dirigindo-me a um deles, de cujo rosto sim pático me apercebera: — Você será, hoje, o aluno de serviço, le, logo que a ciasse esteja pronta, você irá chamar-me. Vou, entretanto, tomar um café. 44 A PEDAGOGIA FREINET E parti! O inspector disse-me: _ Que fez você? Eles vão-se todos embora! Na Mina Era uma vez um mineiro que trabalhava na mina Ali estava escuro na poeira do carvão O fato do mineiro é negro e negro é o seu boné no alto do qual se pode ver uma pequena lâmpada destinada a iluminar o seu trabalho Ele trabalha duramente Ele bate com força o mineiro na mina truz, truz Ewa L., 8 anos Jornal Escolar Syrenka — Não. Vi pelas suas caras que eles estão muito inte ressados! Eram pessoas de concepções tradicionais, habituadas aos discursos de duas horas a que se seguia a partida do orador. Tinham feito com que viessem mais pessoas para se aproveitarem da Sr.ª Semenowicz! Mal tinha acabado de tomar o meu café, quando aquele que eu designara veio à minha procura. Chego e digo-lhes: — Vamos desenvolver actividades; não se pode chamar lições ao que iremos fazer. Peço-vos que se ponham na pele duma criança da terceira classe, pois conheço bem o programa desta classe, e vós também. Reflictam durante alguns minutos, imaginem um dos vossos garotos e pro curem substituir-se a ele. NUM «SANA» POLACO 45 Assistiu-se então a um singular teatro livre! Eles foram mesmo ao ponto de cometer os erros dos seus garotos, de imitar os seus defeitos. De tal modo que um espectador inadvertido teria podido acreditar que se trataria de loucos ou de atrasados mentais! Obtivemos textos muito interes santes. Tinha-lhes pedido para que os fizessem à maneira das crianças, e não como pessoas adultas. Mostrei-lhes, depois, como tudo se encadeava. Em seguida, arrisquei-me a abordar o assunto dos empregos do tempo e as repartições, os quais são neces sários, não para o professor primário, mas para os ins- pectores. Isto porque o professor que começa a utilizar estas técnicas não sabe como integrá-las no seu emprego de tempo. Era minha intenção mostrar que todos os momen tos metódicos estavam presentes no que eu mostrava. Começámos por elaborar um planning que um inspector pudesse compreender. • Como elaborar o plano de trabalho para que ele seja compreensível? • Como, no quadro do emprego do tempo escolar, inte grar as nossas técnicas de Freinet? Todos os anos, mudávamos de plano. Pudemos chegar assim a um vasto plano que nos permite dizer ao inspector: — Vimos todo o programa num número de horas sufi ciente. A vida quotidiana Roger — Assistimos esta manhã a uma entrega de diplo mas. Como tira partido duma tal «cerimônia» para impri mir emulação à actividade escolar? Qual a preparação que antecede a 'entrega dos diplomas (*)? Halina — As crianças realizam no início do semestre — o nosso ano escolar está dividido em dois semestres — 46 A PEDAGOGIA FREINET uma reunião, logo no primeiro mês, pois já se conhecem bem entre si. Fazem então o seu plano de trabalho em função do que gostariam de realizar no plano escolar: este gostaria de aperfeiçoar a sua geografia e gostaria de obter um diploma de geógrafo; aquele tem grandes dificuldades em matemática e vai, portanto, trabalhar especialmente essa matéria... Em seguida, os chefes de conselho de cada classe reúnem-se, anotam as sugestões e organizam com os educadores a vida da nossa escola. Vida esta que não termina logo que a criança tenha terminado as aulas, mas antes se prolonga por todo o dia em jogos, trabalhos sociais, escutismo, círculos de interesses, etc. Uma criança que queira ser geógrafo inscreve-se no gabinete de geogra fia; enquanto outra, inscrita no de biologia, irá tratar dos animais ou fazer criação (de animais domésticos). A criança atribui-se a si própria uma nota de acordo com os seus camaradas que verificam o justo valor dessas notas. Quando o semestre se aproxima do fim, eles reúnem-se de novo para analisarem o trabalho desenvolvido; os educadores exprimem-lhes o seu ponto de vista e distribuem as notas. Explicam-lhes o porquê das notas: — Tu tens ainda grandes lacunas neste domínio, não podes, portanto, ser classificado; mas trabalhaste muito bem, pelo que vais receber, em vez do diploma vermelho, que é entregue ao aluno modelo (numa turma de vinte, dez podem irecebê-lo), o diploma verde, que é o da aplicação, e, da próxima vez, poderás obter o diploma vermelho. Roger — Para obter este diploma vermelho, há que atin gir um dado nível? Por exemplo, no quarto ano, que devem eles fazer para o obter? Halina — O aluno deve fazer exposições, por ele esco lhidas, perante a classe. Previamente, e para aquilatar do NUM «SANA» POLACO 47 seu nível, os professores aplicam-lhe um teste. Depois, aju dam-no nas suas investigações e limitam o assunto que ele deverá tratar. A nossa escola é muito especial, pois, uma vez que a criança regresse a uma escola normal, importa que ela se não sinta inferior às outras crianças que gozam de perfeita saúde, caso contrário uma recaída seria ine vitável. Roger — Falemos um pouco do jornal da escola. Halina — Entre nós, a sala de aulas serve também de sala de reunião dos médicos. O local não é, portanto, utili zado exclusivamente pelas crianças. Aliás, as crianças mos travam-se sensíveis a isso tanto mais que ali deixavam os seus três cadernos-jornais: — o caderno «eu felicito»; — o caderno «eu critico»; — o caderno «eu desejo». Estes cadernos duram todo o ano. Quando o organi zador verifica que o material se torna interessante, que pode servir para qualquer coisa,organiza uma reunião. Estas reuniões, por conseguinte, não obedecem a um esquema determinado; realizam-se tão-só quando o material produzido é interessante. No entanto, sempre que surge um problema grave, por exemplo, quando certos garotos começam a fumar às escondidas — são crianças doentes dos pulmões, e cada cigarro agrava o seu caso — reunimos um conselho da escola; as crianças são convocadas para este conselho, no qual participam os médicos, o educador res ponsável — cada educador tem um encargo particular: o escutismo, a biblioteca, o conselho das crianças... Os diplo mas não são distribuídos pelos professores; estes podem, todavia, participar nesta entrega. Por exemplo, as crianças, ao darem-se notas, são muito severas; é preciso, então, expli 48 A PEDAGOGIA FREINET car-Ihes que o mais fraco, mesmo assim, trabalhou bem. Mas, é o próprio mais fraco que afirma: não! ainda não está bem. Roger — A recepção dos novos alunos (5)? Halina — As crianças nunca partem todas ao mesmo tempo. Quatro ou cinco abandonam o grupo após três meses de presença, e, entretanto, chegam outras cinco novas. São imediatamente integradas na olasse, pois trabalhamos duma maneira sistemática. Deixam-se imediatamente im buir pelo espírito do nosso trabalho. Logo que compreen dem do que se trata, cessam de fazer batota, de copiar; não há necessidade de copiar! Acontece que alunos muito bons, por exemplo, em redacção, já não sabem o que é que hão-de escrever quando não se lhes impõe um tema; é pre ciso ajudá-los imenso até ao momento em que começam a abrir-se e a comunicar. Até lá, limitam-se a repetir o livro. Estas crianças pensam que devem escrever um texto brilhante; procuram na memória qualquer acontecimento da guerra, querem fazer sensação, voltar a ter o êxito que antes tinham. Passadas duas ou três semanas, escrevem textos mais difíceis, poesias — sempre para obterem êxito. O nosso trabalho é delicado, pois trata-se sempre dum trabalho de realização. Os resultados só aparecem ao fim de alguns anos de trabalho com as mesmas crianças, e, aliás, os professores que nos visitam — cerca de trezentos por ano, sem contar com os estudantes (praticamos a «escola aberta» na segunda e na quarta quinta-feira de cada mês) — admiram-nos pela grande coragem que demonstramos ao recomeçarmos sempre sem que conheçamos o prazer do resultado final dum trabalho coroado de êxito: os pais que agradecem, as crianças que escrevem. Por vezes, as crianças daqui escrevem-nos — é o único testemunho que recebemos. NUM «SANA» POLACO 49 A pedagogia Freinet porquê? Comprovamos o grande valor das técnicas Freinet a três nivéis: 1. A rapidez do nosso conhecimento profundo das crianças (6) graças à expressão livre em todos os géneros. Por exemplo, o teatro livre é muito interessante, na medida em que a criança não gosta de falar de si, mas, por inter médio dos fantoches, acaba por falar. 2. A possibilidade de redução rápida das lacunas. 3. A terapêutica que faz com que a criança se abra e comece a passar melhor de saúde. Em Varsóvia, procedemos a investigações científicas durante um ano. Aplicámos testes regulares em três classes que trabalhavam com as técnicas Freinet, e em três classes que trabalhavam segundo técnicas ordinárias. Os testes provaram o êxito da pedagogia Freinet, sobretudo em rela ção à aprendizagm da língua materna — a língua das crian ças é muito mais rica, a expressão mais profunda e pessoal. Cometem menos erros de ortografia e de gramática, e pen sam mais logicamente na matemática. Roger — Podes falar-nos da equipa de mestres (7)? Halina — O grupo Freinet, na escola, conta quinze mestres. A maior parte pertence ao curso elementar; os outros ensinam a língua materna nas classes do 5.° e do 8.° ano. Fixaram-se três objectivos. (Planificaram seis gran des reuniões, às quais se acrescentam quatro ou cinco comissões, ao longo do ano.) O seu primeiro obfectivo: Aprofundar a pedagogia Freinet. Impuseram-se vários temas e dividiram entre si os trabalhos de leitura das obras. Lêem, por conseguinte, as obras que eu já traduzi, todos 4 50 A PEDAGOGIA FREINET os artigos publicados, pelo que a sua bibliografia já está elaborada. Não querem encerrar-se na pedagogia Freinet, para o que organizam reuniões que lhes permitem estudar outros métodos praticados na Polônia. O método «dos sons e das cores», de Cuisenaire. O seu segundo objectivo: O aperfeiçoamento do material e do trabalho. O seu terceiro objectivo: Difundir os seus trabalhos. A propósito do primeiro objectivo, em particular, em vez da biblioteca de trabalho, escolhemos a maior parte dos livros para crianças dentre os que falam duma maneira um tanto científica, popular, mas não muito «fabulosa» — os que têm a ver com as florestas, com os animais, com os homens de ciência, com a física... Possuímos atlas, uma enciclopédia, um léxico... Tudo isso é ainda muito pouco. Elaboramos, portanto, dossiers com as crianças. Eles recor tam em todo o tipo de jornais — operação em que cada um de nós participa. Constituímos em primeiro lugar dossiers vazios com a nomenclatura, preparados para receber os documentos. A isso, acrescentámos uma discoteca. Possuí mos, também, cartas postais, agrupadas por países, cidades, monumentos, consoante a vontade de cada classe. Todos os dias, durante o almoço das crianças, nós próprios nos reunimos antes do almoço, por volta do meio-dia. Cada equipa, pois os mestres estão repartidos em função da doença das crianças, reúne-se e discute as dificuldades que lhe são específicas. Roger — A Polônia é, de todos os países socialistas, o que se mostra mais aberto à nossa pedagogia; o próprio NUM »SANA» POLACO 51 ministro se interessa, os sindicatos de professores e os órgãos oficiais da investigação pedagógica encorajam os vossos esforços. Este êxito impressiona-nos e alegra-nos, ao mesmo tempo que nos perguntamos se as implicações políticas e sociais da nossa pedagogia são sempre com preendidas (8). Halina— Os funcionários superiores verificaram que os homens que nós preparamos pela nossa pedagogia eram os futuros cidadãos duma sociedade socialista. Todavia, o trabalho que desenvolvemos, fiéis nisso ao pensamento marxista, é um trabalho realista. Importa libertar-se dum certo dogmatismo, mesmo dum certo fanatismo político, e aderir às realidades procurando aí com todo o empenho os recursos possíveis para agir com eficácia imediata. Desde sempre que a escola está ao serviço da sociedade em que está incorporada e não pode alterar esta sociedade (é esta uma das primeiras leis do marxismo). Representa, portanto, uma perda de tempo e de forças querer mudar pela escola a forma política e social dum país. No entanto, podemos e devemos lutar pela melhoria das condições de trabalho na escola por todos os meios disponíveis e em todas as frentes. As técnicas Freinet, aplicadas dentro do espírito Freinet, fazendo apelo à expressão livre, ao traba lho motivado, ao tacteamento experimental, à autogestão e à autocorrecção, são possíveis e recomendam-se a qual quer escola sejam quais forem as condições. Ajudemos estas escolas e estes mestres mediante estágios de iniciação, mediante a criação de escolas-testemunho; elaboremos material utilizando os recursos locais (edições de ciências populares, atlas, enciclopédias, ficheiros documentais e autocorrectivos em correspondência com os programas do país); descrevamos tão claramente quanto possível as técni cas de confecção e de ilustração dum jornal escolar, as técnicas de fabrico dos utensílios mais simples. ALGUNS ASPECTOS ESSENCIAIS DA PEDAGOGIA FREINET Uma manhã de sábado num curso preparatório Classe de Liliane Corre (reportagem de Xavier Nicquevert) Um C. P. (curso preparatório) de 25 crianças num grupo escolar inteiramente constituído por barracas e situado numa Z. U. P. Desde Setembro de 1975, 15 classes (10 primárias e 5 maternais) que procuram funcionar emregime de peda gogia Freinet, em condições difíceis e num clima muitas vezes hostil. Estamos na classe de Liliane Corre. Liliane — É um momento de trabalho pessoal, indi vidual ou por grupos; isto é, cada um escolhe o seu tra balho: um desenho, um texto, um livro, uma tiragem na imprensa ou no limógrafo, investigações com o dicionário, uma pintura... 56 A PEDAGOGIA FREINET É um momento privilegiado em que cada um pode trabalhar segundo o seu ritmo, embora articulando o seu trabalho com o do grupo; com efeito, qualquer dificuldade com que cada um depare pode ser resolvida quer por um camarada, quer pelo grupo inteiro, cujo concurso eu não hesito então em solicitar: — Ivan está parado; ele encontra muitas vezes a pala vra «os» nos seus textos. Quem lhe pode dizer o que isso significa? — Laura encontra «poussin» no seu dicionário; ela quer escrever «pousse»; como é que o pode fazer? — É preciso retirar «in». — Sim! E para fazer «pousse»? — É preciso acrescentar «e». Myriam mostra-me o polegar: — Polegar escreve-se assim? Não recebe qualquer resposta. É a própria Liliane quem escreve no quadro. As crianças querem escrever a frase: «O cavalo vai comer as flores.» Liliane — Lydia encontrou «as flores». É a própria Laura quem apresenta o seu trabalho à classe. Liliane — Eu apenas escrevi uma palavra do seu texto; todo o resto, encontrou-o ela no seu dicionário (*). (Reser vamos sempre um momento para examinar o trabalho rea lizado. Insisto sempre sobre o que é novo, e não sobre o aspecto estético. NUM CURSO PREPARATÓRIO 57 Hoje, Ivan fez um desenho muito particular. Liliane — Ivan gostaria que vocês adivinhassem: — um comboio! — um carro com números! — uma caravana! — um avião! Ivan — Não, é quase igual a isso. Valérie — Vou-te dizer ao ouvido. Liliane — Como é que ele fez isso? Valérie — Ele fez os números. Liliane — Por onde é que ele começou? Valérie — Em primeiro lugar, os números, e, depois, traça as linhas. Liliane — Ele vai fazê-lo de novo no quadro. Algumas crianças vão lendo os números à medida que eles vão aparecendo. Ivan traça o algarismo 5 às avessas. Liliane — Devias escrever o cinco ao contrário. Valérie — Ah! É por isso que ele há pouco pedia o 8 à Christine! Ele foi até ao 12! Várias crianças procuram seguir-lhe o exemplo; talvez se trate, para elas, duma pista nova. Liliane — Reservo frequentemente uma pequena parte da manhã de sábado para «limpar» um pouco; isto é, põe-se ordem nos textos, nas etiquetas; procede-se a uma nova leitura; termina-se o trabalho começado e revêem-se certas palavras da semana. Liliane — Agora, cada um vai escrever palavras na sua ardósia. Vamos começar por escrever «as flores». 58 A PEDAGOGIA FREINET Onde é que se pode encontrar «as flores» nos textos que estão afixados na parede? Que cada um se esforce por procurar um pouco. A uma criança que ainda não encontrou: — Podemos dizer-te em que texto é. Uma criança vai indicar o texto. Depois de terem escrito todos aqueles que o podiam fazer, mostra-se a palavra. Liliane — Agora, posso escrevê-la no quadro. Christine, a mais nova, é uma das mais rápidas. Joa quim, que acaba de completar sete anos, tarda em fazer progresso. Espera que lhe mostrem o modelo. Na reali dade, nem consegue sequer reconhecê-lo. Liliane — Joaquim só consegue reconhecer o J de Joa quim; só se interessa pela sua pessoa. (Distribuo agora os cadernos azuis, e todos prestam a maior atenção.) Trata-se do caderno de balanço («o caderno de pro gressos», como eles dizem), da referência ao tradicional em intenção dos pais. Eles escrevem ali praticamente uma vez de 15 em 15 dias; ali colam os seus diplomas (*), as boas notas em matemática. Além disso, possuem «o seu livro» onde colam os seus textos e escrevem todos os dias, e que lhes serve de livro de leitura. — Tinha-se dito, ontem, que talvez alguns pudessem receber o diploma de boa caligrafia. Depois da reabertura das aulas em Janeiro, as crianças querem escrever e ler; chegam à classe e metem-se ao tra balho; nem sequer se mostram aborrecidos; deixou-se até NUM CURSO PREPARATÓRIO 59 de falar ao magnetofone (outro dia, Ivan fez uma obser vação nesse sentido, mas os outros não lhe deram atenção). Liliane — Há quem julgue que para receber o diploma de boa caligrafia é preciso escrever com letra miudinha; ora isso está errado! Xavier Nicquevert — Quem decide da entrega ou não dos diplomas? Liliane — Em relação a certos «progressos de leitura», são eles que decidem; em relação a outros, sou eu. É a primeira vez que se atribui o diploma de escrita; creio que sou eu quem irá decidir. Observe o caderno de Lydia: o que ela fazia ao prin cípio do ano, e o que ela faz agora. Ela escreveu bem em cima das linhas; nem uma letra a mais ou a menos — é bonito; acho que ela merece o diploma. Para aqueles que o obtiveram: — Vocês vão colorir para cima do planning, e eu vou dar-vos o diploma para que o colem no caderno azul. Aqueles que o obtiveram: Existem critérios de rigor e, também, de estética na escrita. Lydia tem dificuldade em encontrar o sítio onde colo rir em cima do planning: — o seu nome; — a coluna do diploma de escrita. Liliane — Pede a um outro que te ajude. — Martine diz-me: «Se eu escrever tudo, terei o meu diploma?» Eu acho que isso não basta; tendo escrito tudo, ou não, importa que esteja bem escrito. Xavier Nicquevert — Fabienne está amuada. Porquê? 60 A PEDAGOGIA FREINET Liliane — Tive a pouca sorte de lhe dizer que ela escrevia com uma letra muito pequena e sugeri-lhe um modelo. Ela não o aceita. Ela terá também que dominar isso. Xavier Nicqüevert— O que levanta o problema da exigência a ter em relação às crianças (9). Liliane — Sim, certamente: a natureza da exigência e o momento dessa exigência; no caso de Fabienne, porém, a coisa é bastante pessoal: o pai morreu recentemente quei mado num avião, ao que se deverá acrescentar a posição da mãe, que é franca oposição à óptica da classe. Por exemplo, a mãe acha que ir à Mareschale é perder tempo. A Mareschale é uma propriedade que fica .paredes meias com a escola, tendo sido comprada pela cidade e posta à disposição do bairro; existe nela um casarão, um prado e um pequeno jardim. É um local extraordinário para as crianças da Z. U. P. fazerem experiências, uma vez que ali podem correr, trepar às árvores, fazer cabanas, balouços, atear fogueiras, fazer rolar barris e pneus... Vamos para lá todas as tardes sem outro objectivo que não seja o de permitir todos estes tacteamentos, e foi pre ciso explicar aos pais, muitas vezes reticentes, o porquê das nossas saídas quotidianas. Xavier Nicqüevert — Tenho a impressão de que aca bas de conceder o diploma a um garoto a quem os seus camaradas não reconhecem mérito suficiente para isso. Liliane — Oh, sim! Mas eu não tenho escrúpulos em desempenhar o meu papel; é preciso que as crianças com preendam que o mérito é julgado em relação a si próprio. Olha como ele escrevia antes; eles chegam mesmo a dizer: «Ah, sim! para ele, está bem!» Para alguns, é importante obter um diploma para que se produza um efeito de bola de neve e esse êxito se repercuta nos outros sectores da actividade. NUM CURSO PREPARATÓRIO 61 Liliane — Eu disse que iríamos ver os dispositivos, quando o pequeno ponteiro estivesse na mesma posição e o grande por cima do 12; que horas serão? —11 horas... Liliane — Vou escrever 11 horas no quadro. Eric — A mãezinha disse: «Quando fizeres um ditado, é preciso que recebas um diploma.» Liliane — Oh, sim, mas repara como escrevias no prin cípio do ano; agora estás a escrever pior. Falas demasiado, divertes-te. Para Stéphane: — Vai depressa colorir. Stéphane— O meu paizinho vai ficar contente! O texto livre é muito mais que o texto livre por Nicole e Camille Delvallée (reportagem de R. U.) Sartrouville, mais de 50 000 habitantes, uma escola urbana entre outras do arrabalde parisiense, com, todavia, um recanto de jardimonde as crianças de Nicole e Camile Delvallée manipulam a pá e o ancinho como engenhos incômodos mas mágicos... Entre os seus cursos médios (eles acompanhavam os alunos durante dois anos) uma sala vazia foi transformada em oficina. Ela recebe, em certos momentos, o excedente das classes; evita ter de arrumar todos os acessórios incômodos. Indispensável e rarís- simo privilégio. Na realidade, os alunos das duas classes dispõem de três salas para viver: a de Nicole, a de Camille e a oficina, o que evita muitas tensões. Neill dizia aos seus alunos: «Vai ver se eu estou lá fora», quando estes o importunavam. Aqui, lá fora, são os outros — recurso ou consolação. Roger — Para muitos mestres, o texto livre (*), inicial mente, é um exercício de francês que vem substituir a redacção; no entanto, não tardam a aperceber-se de que o texto livre fornece pormenores sobre a vida íntima da criança, ou simbolizações da sua vida ou das suas pró prias preocupações. O que cria, então, uma certa surpresa, por vezes um certo embaraço e um grande receio de pene trar na vida da criança e na vida familiar. No teu caso, 64 A PEDAGOGIA FREINET o que te interessa é precisamente o facto do texto livre funcionar como uma espécie de termômetro da vida duma criança, como um indicador, um indicador que te permite saber em que estádio se encontra uma criança num dado momento. Nem sequer é, propriamente, um exercício de francês. Nicole — É evidente que eu procuro conseguir que os textos sejam textos verdadeiramente íntimos, que venham do mais fundo deles próprios. Procuro acima de tudo a sinceridade. Reli os meus jornais escolares destes últimos anos e encontrei uma garota que elaborara um texto. Dizia ela: Não quero escrever mais. Estou farta de escrever car tas, textos; com Nicole, tudo tem de ser sempre exacto, íntimo (não foi esta a palavra que ela empregou), pessoal e original, e é preciso que não haja erros de ortografia; então, não quero escrever mais, não mais voltarei a escre ver; sim, escreverei ainda uma vez. E ela escreve: «aa bb cc ...». Para além disto, na série de textos, houve várias crianças que fizeram o meu retrato, e todas elas sublinham a minha exigência (10) no que diz respeito aos textos e a todas as produções. Eu quero que elas desçam ao mais profundo de si mesmo, que atinjam verdadeiramente uma certa intimidade, uma certa sinceridade, que me parece ser a única desejável. O que diz respeito, ao mesmo tempo, à qualidade do que eles produzem, e à necessidade de se exprimirem a si próprios. Eles têm a impressão que é no plano da qualidade que eu insisto; na realidade, faço-o, essencialmente, no plano do conteúdo, da autenticidade. Então, eles sentem-se verdadeiramente tocados por aquilo que vem do coração, pelo que é verdadeiramente sincero, e condenam muitas vezes um texto narrativo, descritivo, dizendo: É bonito, tu encontraste belas imagens, mas onde estás tu, lá dentro? Que pensas tu disso? Não te reconhe O TEXTO LIVRE 65 cemos, é uma coisa anônima. Eu, precisamente, procuro lutar contra este anonimato — tanto ao nível das crianças como dos pais. Trata-se dum problema próprio das grandes cidades, dum problema de relações humanas. Na classe, temos problemas de relações entre as crianças. A coisa torna-se de ano para ano mais difícil. Procura-se, então, pôr as crianças em relação umas com as outras, em rela ção com os pais, e estes entre si. Actua-se, nesse caso, em diferentes planos; e, no entanto, é importante que a auten ticidade e a sinceridade estejam directamente ligadas; o que resulta, essencialmente, duma comunicação que se deve estabelecer. Ora, para que haja comunicação, é preciso que se saiba ouvir. É toda uma educação que está em causa. Quando o texto livre conquista os pais Camille — A este respeito, vivemos nestes dois últimos anos qualquer coisa de interessante. Partimos, Nicole em 72, eu em 73, para um mês de aulas na neve. O que era, então, um problema para os pais (11), que, pelo menos numa percentagem de 50%, nunca se tinham separado dos filhos. Confiavam-nos a criança durante um mês, e ficavam inquietos. Procurámos recriar relações com eles, o que foi muito interessante. Partimos para as aulas da neve levando o nosso aparelho fotográfico e o magnetofone, e depois decidimos que lhes enviaríamos notícias com diapo- sitivos a preto e branco e fitas magnéticas. Vivemos uma experiência de correspondência (12), mas uma correspon dência fortemente motivada no caso dos pais, desejosos de ter notícias dos seus garotos. Dissemos-lhes que, todas as semanas, na sexta-feira à tarde, se faria uma reunião com os pais. Eu organizava a reunião em Sartrouville, enquanto s 66 A PEDAGOGIA FREINET Nicole se encontrava na classe da neve, e, depois, trocáva- mos os papéis. A princípio, deslocar-se à escola era para eles uma pro vação. Eles sempre tiveram um certo medo da escola — a coisa não lhes interessava muito. Reuniram-se umas vinte famílias, vinte e cinco, trinta; da segunda vez, estiveram presentes muitas mais e, da última vez, reuniram-se umas cem a cento e vinte pessoas. Vinham os tios, as tias, os avós, vizinhos. Vinham, porque os divertia verem e ouvi rem os seus filhos a contar coisas. Demos então início à expressão livre com os pais. Depois de terem escutado a fita magnética dos seus filhos, os pais disseram entre si: Mas poderiamos responder-lhes! Encontrei-me perante uns trinta a quarenta pais que mais me pareciam gaiatos, embora alguns fossem mais velhos do que eu. Disse-lhes: — Sim, poderiamos responder-lhes. Mas, como o fazer? Exactamente como as crianças no primeiro dia, excepto que estamos seis horas por dia com as crianças, enquanto que com os pais era apenas uma hora por semana. É, então, que nos apercebemos que tudo está ligado: a expressão livre, a correspondência, a cooperação, a vida em comum, as relações. O que me leva a dizer que o problema dos efectivos é menos importante que o das relações... Tinha o microfone na mão e recordo-me de momentos verdadeiramente comoventes: mamãs que falavam ao meu rapazinho — o microfone tornava-se no rapazinho, elas pegavam-me na mão e apertavam-na. Todos eles quiseram falar cada um por sua vez, uma vez que, neste caso, não havia cooperação possível entre eles. Cada um falava ao seu garoto. As mensagens dos pais eram do género: Meu filho, espero que estejas bem, que comas bem, que te portes bem e, sobretudo, sê educado, ajuizado... diverte-te e não te esqueças de me escrever. A coisa ficava por aqui. Então, evidentemente, quando as crianças ouviam as fitas, tendo O TEXTO LIVRE 67 de ouvir trinta vezes a mesma coisa, tinha-se dificuldade em fazer com que eles escutassem a fita magnética até ao fim. Eles fizeram a crítica dos pais e enviaram-na dizendo que eles faziam muito barulho à volta do magnetofone, que não se devia ouvir ruídos de cadeiras, de dedos sobre o micro fone. Por outro lado, censuravam-nos por fazerem per guntas a que eles (os filhos) já tinham respondido na gra vação. Um dos pais pegou no microfone (importa precisar que se trata do médico do bairro, portanto, uma pessoa que todos conhecem), e disse muito a sério:—Bom-dia, meus rapazes. Vocês mandaram-nos fotografias em que nos mostram que há alguma neve em Lamoura; devo, no entanto, dizer-vos que isso não nos causou surpresa, pois, aqui, temos uma altura de neve de 1,20 m, fazemos esqui na rua. Instalámos um cabo especialmente para o efeito. Vocês parecem estar muito satisfeitos por estarem a viver juntos, entre vocês, mas, nós, os pais, queremos fazer tam bém a mesma experiência. Decidimos encontrarmo-nos todos os fins de tarde na escola. Instalámos um dormitório no segundo andar. Nicole vem despedir-se de nós todas as noites, e a directora também. Vocês cantaram uma canção para nós; pois bem, é o que iremos fazer também. E ele fez com que todas as famílias entoassem uma canção. Era muito cómodo e divertido. As conversas dos paiscom os filhos adquiriram então, subitamente, um novo tom. Criou-se como que uma ligação, uma ponte. Os pais come çaram a dizer graças e a falar num tom muito mais descon traído. E as gravações que você recebeu eram nitidamente melhores. Nicole — Deste modo, os pais descobriram a expressão livre e a correspondência, porque as viveram. Havia, então, por um lado, o grupo de crianças que realizava uma expe riência de vida colectiva; por outro lado, graças a este 68 A PEDAGOGIA FREINET médico, havia o grupo dos pais que começaram a dizer bom-dia uns aos outros. A princípio, quando chegavam, não se conheciam entre si, pois cada um vive no seu H. L. M. ou no seu pavilhão. Agora, eles diziam entre si: Bom-dia, ah!, você está cá, é o pai de... etc. As crianças, depois de viverem um mês juntas durante as aulas da neve, convi dam-se à volta para as casas umas das outras. Os pais começaram a visitar-se uns aos outros, e, depois, passaram a apresentar-se muito mais vezes voluntariamente na escola. No fim do ano, disseram-nos: A cerejeira está carregada de cerejas; venham colhê-las! Eram coisas que nunca nos tinham acontecido, e é o que se passa nas aldeias. Camille — Eu, pela minha parte, lembro-me de ter ido ao correio de Sartrouville. É, mesmo assim, um correio importante, pois serve 50 000 habitantes. Subitamente, oiço: — Ora vejam lá, Camille! Era a mãe de um aluno que trabalhava nos correios, e como os garotos me tratam por Camille, os pais seguiram-lhes o exemplo, o que é engra çado. Assim, mesmo numa grande cidade, pode talvez recriar-se um espírito de aldeia. As pessoas conhecem-se, e é importante que possam entrar de novo na escola. Há pais que vêm frequentemente à escola, e são os garotos quem se ocupa deles. Levam-nos às quatro e meia a visitar as belas realizações. Os pais regressam muito confiantes e as crianças voltam para junto de nós com um estado de espírito idêntico ao dos pais. Graças ao texto livre, todo um tecido de relações afec- tivas fazem com que a expressão íntima se possa verda deiramente exteriorizar. Roger — Até agora, o texto livre foi concebido quer como uma técnica de francês, por parte de alguns, quer como um instrumento visando o conhecimento psicológico O TEXTO LIVRE 69 da criança. Você conseguiu transformá-lo num instrumento de comunicação social (22), em última análise, num ins trumento de transformação de relações no interior dum bairro. Nicole — Eu gostaria, também, de insistir noutro aspecto: se, ao nível do texto livre, se consegue trabalhar duma maneira aprofundada, é porque conservamos as crianças junto de nós o máximo de tempo. A coisa prolon ga-se por dois, três anos; então, é formidável. O primeiro ano é necessário para desbloqueá-las, e, depois, obtém-se verdadeiramente a qualidade ao fim do segundo ano. Obtêm-se textos que não nos deixam indiferentes, que nos sensibilizam. Um grito do coração, e o texto «arranca»... Roger — Como procedes para que as crianças tomem consciência do que é simples tagarelice superficial e daquilo que verdadeiramente as implica? Diz-se muitas vezes que as crianças vivem muito pouco de acontecimentos; nada têm para dizer porque, mesmo na cidade, as crianças, se exceptuarmos a televisão, não vêem grande coisa. Nicole — Sim, é verdade; na cidade, a vida deles é absolutamente banal, mas na classe passam-se coisas! Se a vida entra na classe, eles vão ser obrigados a discutir, a debater, a encontrar pessoas, a fazer perguntas — porque é que elas não são como as outras pessoas... Então, a expressão escrita nasce e organiza-se. Basta mostrar-se receptivo a todas estas coisas, basta estar vigilante. Eu, pelo que me toca, confesso que, quando entro em contacto com novas crianças (13), dou a maior atenção a tudo o que elas possam dizer. Há dois anos, o primeiro texto livre, que era um verdadeiro grito de alma, foi uma curta frase escrita num fragmento de papel. As crianças vinham de 70 A PEDAGOGIA FREINET classes tradicionais, e enviavam umas às outras curtas mis sivas. No género de:—Não gosto de patetas e de idiotas como tu. Quando me apercebi do caso, disse para mim própria: cá está, a expressão livre «arranca»! Então, não ralhei com a rapariguinha que tinha escrito aquilo, o que todos esperavam que eu fizesse. Peguei no papel e disse: Que se passa contigo, Véronique? Ao que ela me respondeu: — Acabo de receber um bilhete de Hervé. Ele escreve-me palavras feias. — O que é Hervé te escreveu? — Ele diz que gosta de mim. Mas, isso não me agrada; foi por essa razão que lhe respondi. — Tu escreves a Véronique a dizer que gos\tas dela, mas com palavras grosseiras; uma coisa não está a dizer com a outra, explica-te lá — disse eu para Hervé. Fez-se um silêncio de morte, e, depois, os outros puse ram-se a falar; perguntavam-se porque é que eu fizera esta pergunta, e debateram o assunto durante um hora e meia. Forneceram-me incontáveis pormenores sobre o amor, sobre o nascimento. Não sabiam como tinham vindo ao mundo, e levantaram muitas questões. Programámos, então, as investigações, o que foi formidável. À tarde, disse-lhes que não eram poucas as pessoas que tinham escrito bilhetes de amor durante a sua vida, e que os mais belos encontra vam-se nos livros. Livros estes que se encontravam no fundo da classe; eles só tinham que se servir deles. Mas nenhum dos garotos se levantou para os ir buscar. Então, que fazer? No dia seguinte, peguei em todos os livros de poesia e distribuí-os. A coisa foi, então, extraordinária. Gostarias de ter visto os garotos a folhear! Fizeram a descoberta de Queneau, que dizia palavrões «proibidos na escola». Descobriram Éluard, que se tornou o seu livro de cabeceira não sei por quanto tempo. Descobriram Ara- gon, Lorca, Desnos. Era divertido vê-los voltar as páginas O TEXTO LIVRE 71 e, subitamente, estacar diante duma palavra ou duma imagem. Copiaram textos, e decoraram os que mais lhes agradavam. Foi pouco depois que escreveram no livro de vida (14): Nós gostamos de ler os poemas, não gostamos das recitações (*). Roger — O teu «arranque» consistiu em facilitar a comunicação entre crianças, sem mesmo ter em mente que eles iam fazer textos. Nicole — Consistiu, também, em acolher aquele grito de alma. Para mim, aquilo era a expressão livre no estado puro. Inicialmente, os meus textos eram: A Pequena Tar taruga Doente; Em Férias; Os Meus Hamsters; O Meu Gato; e, dum momento para o outro, surgem-nos poemas à maneira de Éluard, que foi o seu deus durante dois anos. Quando se pegava no caderno de Ismael, toda a gente ficava espan tada ao ver que a quatro textos perfeitamente desenxabidos se seguia uma explosão; todos eles se perguntavam porquê. Eu dizia-lhes:—Consultem o livro de vida na página refe rente ao dia 21 de Setembro. Roger — O teu livro de vida é o teu diário de bordo? Nicole — Sim, trata-se de um grande álbum em que eu escrevo muita coisa no princípio do ano, depois do que incito as crianças a escreverem nele. Ali anotamos tudo o que fazemos, tudo o que se diz, o que se traz, o que se realizou. Sim, é um diário de bordo. Freinet salientou a importância do livro de vida. Eu, porém, não conseguia dar vida a um livro de vida na minha classe. Foi então que reli os artigos de Freinet, que investiguei verdadeiramente, e que consegui «arrancar» com o meu primeiro livro de vida; a coisa correu da melhor maneira. Porque é que anteriormente as coisas não corriam da melhor forma? Porque eu o reservava exclusivamente para 72 A PEDAGOGIA FREINET mim. Quando o confiei aos garotos, tudo começou a fun cionar por si mesmo e da melhor forma. Mostramo-nos sempre reticentes e falhos de confiança nos garotos. No ano seguinte, desloquei-me à escola Freinet e pedi para ver livros de vida, tendo ficado muito contente por ver que os seus conteúdos se pareciam bastante com o meu. O livro de vida é uma coisa importante; as crianças folheiam-no, voltam a consultá-lo — sabem que podemencontrar ali tudo o que se não quer esquecer; procura-se e encontra-se sempre qualquer assunto que tenha sido discutido. Eu, pela minha parte, tomo muitas notas em folhas móveis, presas por uma pinça de desenho, e que colo no livro de vida. BOLA DE NEVE ... 15 de Outubro STOP... Parem, parem, operários. Parem de fabricar automóveis, comboios, aviões e outros engenhos do mesmo género que poluíram tudo. Parem e vão destruir esses grandes prédios. Tornem a plantar todas as árvores que arrancaram pela raiz. E não se esqueçam de incendiar todas as fábricas que produ ziram tanto gás e tanto fumo... Retirem-se depressa para o campo, onde poderão final mente repousar. Vocês agora são livres. Vocês já «nadaram» de mais no meio do fumo- Cathou. EU NÃO ESTOU DE ACORDO Eu não estou de acordo com Cathou., Se não existissem fábricas, não teríamos vestuário correcto, nem tijolos para construir casas, nem automóveis para nos deslo carmos, nem aviões para viajarmos até aos outros países, nem medicamentos para nos tratarmos. Se ela prefere viver como há 100 anos, ela não teria nem auto móvel, nem electricidade, nem aquecimento central. Ela teria de ir buscar água com uma bomba (de tirar água). Critica-se o betão, mas eu gosto do betão. Gosto também das auto-estradas. Sim, eu gosto do mundo moderno. Pierre 0 TEXTO LIVRE 73 No princípio do ano escolar, tudo é larvar, as coisas não resultam, não se vai longe, a coisa verdadeiramente não «arranca». É preciso que um disparador seja accio- nado para que o processo «arranque», e é por isso que importa estar verdadeiramente vigilante; talvez eu não tenha sabido aproveitar algumas ocasiões. Se quiseres estar atento a tudo o que se passa, sobretudo no início do ano, terás de suportar uma tensão terrível para procurar des cortinar o que se esconde por detrás de cada rosto. Camille — Recordo-me de, no ano passado, quando Nicole passou por aquela fase sobre o problema do amor, ter reagido, dizendo-lhe: — Tu manipula-os com o amor, etc. Comigo, nessa época, eles entregavam-se aos retratos. Livrá- mo-nos de dificuldades fazendo um álbum para os corres pondentes (15). Fizemos os nossos trinta e três retratos. Este ano, os meus alunos, as raparigas sobretudo, cresce ram. Este tema preocupa-as por sua vez. Escrevem abun dantemente. Paralelamente, devido ao martelamento da televisão, o tema da poluição e da morte monopolizou tam bém as atenções gerais. Registaram-se grandes discussões sobre a poluição e, o que muito me agradou, apareceu também uma oposição muito clara. Um rapaz respondeu a uma rapariguinha que apresentara um texto sobre a poluição: — O que tu propões, é o regresso aos homens pré-históricos; eu esforço-me então por imaginar um pouco como seriam as coisas. Gera-se, então, uma discussão. Um pequeno Argelino que mora num bairro de lata fez-nos a descrição da sua casa; não dispõem nem de água corrente nem de electricidade, as paredes são de tijolo, mas, sobre tudo, de madeira e papelão alcatroado, e eles vivem lá den tro; o telhado é constituído por uma espécie de chapa ondu lada, e instalam bidões para recolher a água. Este garoto tinha então explicado o que era a vida não moderna 74 A PEDAGOGIA FREINET sem conforto dos nossos H. L. M.( pois os nossos H. L. M. (casas de renda limitada) são muito criticados na aula. Um miúdo que tenho acompanhado desde o C. P. redigiu um texto: Eu gosto da vida moderna, gosto das auto-estra- das, gosto do betão. Diz-se mal do betão, mas eu gosto do betão. E ele acrescentava: — A vida é uma coisa compli cada; eu preferiría que a minha vida fosse uma auto-estrada, porque uma auto-estrada é uma coisa recta, simples e clara. Há então um que lhe diz: Acontecem acidentes e mortes nas auto-estradas, ao que ele respondeu: — Nas minhas auto- -estradas não acontecem acidentes nem mortes, pois não circulam automóveis; são apenas autojestradas, são rectas. Nicole — O meu problema são os bons alunos, os que ingressam na classe (16), que fazem o seu trabalho com perfeição, que apresentam um caderno em ordem, que se sentem à vontade em coisas bem estruturadas, que resol vem com êxito todos os exercícios. Essas crianças, quando se trata de tomar uma iniciativa ou de emitir uma ideia pessoal, apagam-se e sentem-se infelizes porque as crianças que sofreram, num primeiro período, não vão dizer nada, mas desde que vão ser libertadas, desde que vão ser des bloqueados, são elas que se tornam os primeiros da classe, trazendo para dentro desta toda uma vida e correntes de pensamento, ao passo que os bons alunos não saberão rea gir. Trata-se de crianças que adquiriram o hábito de obe decer e de trabalhar quando solicitadas, e quando nada se exige delas sentem-se abandonadas e mostram-se incapazes de conquistar a sua própria liberdade. Roger— Eu tinha a impressão que você utilizava a palavra manipulação para caracterizar uma atitude de intervenção da sua parte. Creio que a palavra tem um sentido ainda mais pejorativo: trata-se duma intervenção O TEXTO LIVRE 75 que visa conduzir crianças ou adultos para onde eles não querem ir, um pouco contra vontade e quase em seu prejuízo, pois o manipulador deve tirar benefício da coisa. Quando você fala de manipulação, pretende antes referir-se à sua intervenção pessoal (17) num sentido que é o da liber tação da criança. Nicole — Tu compreendes, se nos servíamos desta palavra, é porque no-la tinham lançado em rosto; pela nossa parte, nunca parámos de reflectir sobre o papel do pro fessor (*), de reler Freinet, que se opõe inteiramente ao abandono, à anarquia, ao deixar correr. O professor é um adulto, um adulto responsável. Aquilo a que alguns cha mam manipulação, chamamos nós o papel do professor. Temos empenho em ser adultos e em ser responsáveis. Camille — Eu penso que se trata dum aspecto muito importante da pedagogia Freinet, e sentimo-lo profunda mente com as normalistas que temos em estágio. Uma delas quis fazer o que viu nas nossas classes, mas imediata mente (18). Conhecendo as crianças há dois ou três dias apenas, ela propôs-lhes que a tratassem por tu e que esta belecessem relações de camaradagem, sem suspeitar um instante que fosse que a simplicidade com as crianças não se impõe dum dia para o outro, que é preciso também obter o concurso dos pais (19). Quando os pais ficam surpreen didos, vêm procurar-me. Ainda recentemente uma mamã perguntou-me se eu achava que era interessante discutir com as crianças os acontecimentos do Chile (20). Era exacto. Falara-se do Chile e, do ponto de vista da neutra lidade, é indefensável abordar problemas políticos nas aulas. Foi muito simplesmente porque os correspondentes nos tinham escrito: Vocês fizeram greve por causa do Chile? Discutimos o assunto e apurou-se que não eram as crianças 76 A PEDAGOGIA FREINET que faziam a greve, mas sim os professores — e nós, preci samente, não a tínhamos feito porque não tínhamos recebido a circular em que era convocada essa greve. O rapazinho, cuja mãe me viera procurar, disse: — Óptimo!, teriamos jogado futebol. Eu não me pude impedir de dizer ao garoto: — Se entramos em greve, não é para que garotos como tu joguem futebol, é porque existem no Chile rapa zinhos como tu que neste momento choram a prisão ou o fuzilamento do seu pai ou da sua mãe no estádio de San tiago. O rapazinho e a mãe ficaram muito chocados. Estes contactos com os pais são frequentes nos domínios mais diversos. QUEM SOU EU? Nicole — Eu gostaria de voltar ao tema do «arranque» com o texto (21). Eu disse-te que esperava este ano a «faísca» com os meus novos alunos. Surpreendí outro dia algo de interessante. Tínhamos organizado uma viagem escolar para irmos visitar os nossos correspondentes e, antes da partida, há uma rapariguinha que diz: — Taivez fosse preciso que nos apresentássemos aos nossos corres pondentes para, quando chegarmos, eles já nos conhecerem um pouco. Houve então um outro que lhe cortou a palavra: —Oh, sim, vamos tirar fotografias. Ao que ela respondeu: — Como se fosse com a fotografia da cara de alguém que se pudesse saber quem se tem diante de si! Reagiu outro então dizendo:—Mas, com certeza, uma fotografia não mostra coisa nenhuma; seria preciso dizer qual é o nosso carácter, do que é que gostamos, quais os nossos gostos. Eles discutiram o assunto durante algum tempo, depois do que um rapazinho se levantou e interrogou em voz alta: Mas, quem sou eu? Eu aproveitei então a ocasião para dizer: — Quem sabe responder a esta pergunta? Alguns 0 TEXTO LIVRE 77 ficaram estupefactos, outros ficaram pálidos ao darem-se conta de que não sabiam quem eram. Eram incapazes de responder a esta pergunta. Protesto duma rapariguinha: Ah bom, se é assim, eu recuso-me a fazer o meu texto; não me apresentarei porque tenho mau caracter, porque sou colérica, e se digo isso aos correspondentes ninguém gostará de mim. Eles tinham já antes efectuado comigo textos de «desbloqueio», mas neles não se ouvira ainda a voz do coração. Para que tal aconteça, é preciso que haja verdadeiramente uma provocação ou então que o clima mude. Espontaneidade e exigência Roger — Não haverá aqui dois aspectos que parecem paradoxais? Por um lado, procura-se libertar a voz do cora ção, portanto, o máximo de espontaneidade e de autenti cidade; por outro lado, procura-se obter o máximo de exi gência em relação a eles próprios mediante uma espécie de interiorização da nossa própria exigência. NICOLE — Posso dizer-te que, por exemplo, quando uma pequenita me traz um desenho, neste período do ano, eu fico muito contente e tento depois propor-lhe uma valori zação do seu desenho (23). Aceito tudo, mas em relação a certas crianças que frequentaram a classe em vias de modernização, quando me trazem qualquer coisa de ver dadeiramente medíocre, recuso-me a aceitar: — Régine, eu julgava que tu fazias coisas bonitas; é tudo o que tens para me trazer? É isto a exigência; havias de vê-los então a afastar-se! Observei mesmo crianças que se dirigem para mim, mas que a meio caminho voltam para trás. Ao fim dum certo tempo eles sabem que não vale a pena virem mostrar o que fizeram, e põem-se de novo ao trabalho. 78 A PEDAGOGIA FREINET Camille — Uma vez que Nicole tem a seu cargo as salas de pintura a tinta da China e a tapeçaria, alunos meus vêm muitas vezes mostrar-me coisas e dizem-me: — Que pensas disto? Muitas vezes sinto-me um tanto embaraçada e digo-lhes: — Vai mostrá-lo à Nicole. — Ah, não, pois da dirá que não está suficientemente bom. Eles sabem já adiantadamente qual a crítica que ela vai fazer. Nicole — É uma verdadeira desordem. É difícil, cor re-se o risco de ser traída pelas palavras, pois há toda uma questão de intuição e de relação com a criança. Aceitarei seja o que for dum pobre rapazinho que faça a sua pri meira oferta, mas já não aceitarei qualquer coisa de alguém que sendo capaz de dar o melhor de si próprio o não tenha feito. Houve uma garota que fez um lindo bordado, que ela iniciou durante as classes de Inverno do ano passado; insisto absolutamente em que ela o termine. No entanto, há zaragata todos os dias, pelo que eu ultimamente pro curei resolver a dificuldade de uma forma indirecta; as minhas raparigas querem costurar, e eu não tenho tempo para me ocupar de tudo, pois as crianças querem desen volver toda a espécie de actividades; chamei então Fátima, e disse-lhe: — Escuta, tu costuras verdadeiramente muito bem; se isso te agradar, podes ajudar-me ocupando-te do atelier de tapeçaria, impulsionando todos os trabalhos que das começaram. Desgraça! Havia uma Beatriz que tinha começado um belo ponto de cadeia duma maneira um tanto desajeitada. Fátima pegou na tesoura e desfez tudo, pois em seu entender não havia nada que se aproveitasse. Era uma coisa que eu nunca me teria permitido fazer. A outra garota não disse nada, Fátima recomeçou o tra balho e deu conselhos, pelo que se não recusou a participar. O TEXTO LIVRE 79 Em contrapartida, esta mesma Fátima, quando lhe peço para acabar o seu trabalho, tem uma birra! Mas ela há-de lá chegar. Sinto que ela já está suficientemente preparada para retomar o seu bordado. É nisto que consiste ser exi gente: levar a cabo, concluir os trabalhos. Camille — Em relação aos circuitos eléctricos, uma das minhas garotas não conseguia passar dum circuito com uma única lâmpada eléctrica. Eu disse-lhe:—Gostaria que me fizesses um circuito com duas lâmpadas e que elas se acendessem alter nadamente. Por agora, ela apenas conse gue acender as duas ao mesmo tempo. Ser exigente é esforçar-se por que uma criança se ultrapasse. Eles repe tem (24); sempre que se registou um êxito, permanece-se durante algum tempo (nisso consiste o tacteamento expe rimental (*)) no mesmo «patamar». Há garotos que trans põem rapidamente as etapas, e outros que sobem os «degraus» muito lentamente. Então, ser exigente é, tam bém, ajudar um garoto a ultrapassar a fase da repetição e a atingir o «degrau» superior. O encontro com os criadores adultos Nicole — Falou-se do «arranque» com o texto livre, mas, depois, o texto livre evolui em ligação com o texto de autor (25). É uma crítica que nos têm feito: vocês não lêem, limitam-se a repisar as mesmas coisas, infantilizam as crianças. Ora, na sala de aulas, encontram-se todos os livros de poesias que estavam em nossas casas, onde não tinham qualquer espécie de utilidade. E os discos? As crian ças são muito sensíveis à canção, e é importante que os discos estejam na classe à sua disposição. O que é muito curioso, é vermos as crianças, elas próprias criadoras no domínio da expressão literária, procurarem adultos cria 80 A PEDAGOGIA FREINET dores no mesmo domínio. Dá-se um verdadeiro encontro, eles aprendem espontaneamente os textos. Deixa de haver necessidade de proceder à leitura. Eles próprios lêem uma enorme quantidade de textos. A comunicação de textos à classe constitui um momento privilegiado que se pro longa por quatro ou cinco textos. Procura-se ir ao fundo das coisas, cada um esforça-se por precisar o seu próprio pensamento, por ver se todos compreenderam a mesma coisa, o que permite aos outros aprenderem a escutar, a responder e a dar outra orientação ao debate. É muito frequente a referência a textos de autores. É indispensável, e, tal como no domínio da pintura, a arte infantil não está isolada. Quando se leva crianças a visitar uma exposição, dá-se um encontro. Isto, para mim, é muito claro no domí nio da música. Com efeito, foram as crianças que me abri ram à música contemporânea que se faz neste momento, pois orientam-se nela com à-vontade. Quando eu aprendí piano, em casa, Debussy, Ravel, nem sequer se podia falar nisso. A minha cultura musical não ia além de Debussy e Ravel. Eu não podia ouvir a música contemporânea, e não havia nada que se pudesse fazer contra isso. Foi por inter médio das crianças que consegui perceber essa música e ter prazer na sua audição. Foram eles que me ajudaram a entrar nesse mundo. Os seus alunos têm medo de si? por Jacky Chassanne É uma pergunta que me sinto tentado a reformular sob a forma de hipótese, recorrendo para tanto à minha experiência e a esta aventura: — Têm medo de si. Era dito por meias palavras, mas, mesmo assim, era dito. Se havia uma confidência .para que eu não estava pre parado, era decerto essa! E o choque que isso provocou em mim!... Já não sei muito bem como é que a coisa começou. Na realidade, terá sido já há muito tempo, pois alguns dos meus garotos passaram quatro anos comigo. Quatro anos que vivemos juntos, o que pressupõe numerosas tro cas, sobretudo de ordem afectiva. Então, passados quatro anos, ouve-se dizer... Julgamos, primeiro, que se trata duma brincadeira, sobretudo quando o humor é de regra na classe, pelo menos entre alguns. Todavia, a expressão de certos rostos não engana: há alguma verdade no caso. Foi por ocasião dum conselho de cooperativa,e eu ficara na berlinda já não 6 82 A PEDAGOGIA FREINET sei por que razão; a verdade é que me fizeram sentir que eu era uma personagem intimidadora: Têm medo de si. Daí a pensar que eu estava a mais no grupo... Esse conse lho teve lugar num Sábado de manhã. Ao meio-dia, depois de os garotos terem partido, desco bri em cima da minha mesa, dentro dum sobrescrito, o seguinte bilhete: Sr. Chassanne quando estamos diante de si sentimo-nos intimidados (Huguette e Maxime) quando o senhor passa diante de nós temos medo de si (Patrice e Maryse) Temos menos medo da Sr.a Chassanne pois ela é mais carinhosa. Há também mais qualquer coisa mas não sabemos como explicar-lhe. (Patrice Maxime Huguette Maryse.) Huguette Uma rapariga grande, em tudo uma falsa débil, sen sível, particularmente teimosa. Em geral, fica melhor dizer-se «temperamental». Será que ela o foi? Já não o posso dizer com certeza. «Ajustámo-nos» logo um ao outro, o que tinha toda a aparência duma estima recíproca. Éra mos coniventes. Eu sentira que era preciso considerá-la como uma rapariga crescida e evitar qualquer choque, dei xá-la assumir as maiores responsabilidades, oferecer-lhe a livre escolha total das suas actividades. Consequência: adaptada ao meio classe que é o nosso, disortografia em regressão constante, sem nenhuma aprendizagem sistemá tica de ortografia. Quanto à estima... é o que poderão ver mais adiante! Finalmente, eis um só exemplo escolhido dentre toda uma produção, o que esta «inadaptada» é capaz de nos ler, uma bela manhã, dum jacto: OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? A SENHORA FADA Oh! senhora FADA A senhora é tão BELA,, tão BELA! Oh! senhora FADA A senhora é tão LINDA, tão LINDA! Oh! senhora FADA HÁ QUEM diga que a senhora não existe, MAS ENTÃO que vi eu esta noite em sonhos Via-a a si caminhando pelo céu estrelado; Podem perguntá-lo à lua que foi TESTEMUNHA. Vivo, aberto, este texto pode parecer convencional, ainda afastado duma expressão autêntica aonde não aflo rem clichês. Talvez. Denota, porém, um equilíbrio, uma certa alegria de viver. Maxime Franzino, mas sólido, activo, hábil, cooperativo, enge nhoso. Cheio de qualidades, em suma. Passados quatro anos, sinto-o ainda dependente do adulto; essa necessidade de aprovação é sem dúvida alimentada pela atmosfera familiar onde Maxime não recebe todos os carinhos que o deviam rodear. É verdade que, já há alguns meses, ele vem mostrando má cara aos pais — é pelo menos o que estes dizem — e eu próprio me dou conta dum fenómeno 84 A PEDAGOGIA FREINET semelhante na escola. Uma libertação sempre mais evidente que me leva a levantar uma questão: o rapazinho Maxime está a tornar-se um rapaz crescido depois de quatro anos passados na nossa companhia? Ele é, todavia, muito autô nomo, dispõe de numerosas aptidões, é um líder da classe (não monopoliza a palavra, mas utiliza-a largamente, mas nem por isso se limita a falar: trabalha em numerosos ateliers, domina numerosas técnicas e contribui eficaz mente para o êxito dos seus camaradas graças aos seus conselhos judiciosos e eficientes). Ele, tão àvontade em palavras e em actos, não manifesta uma real autonomia. Mas, então, que se poderá esperar dos outros? Maryse É o seu segundo ano connosco. Intensa procura da aprovação ao princípio, atitude muito obsequiosa, difícil de aceitar, e que era preciso aceitar. Alguns meses basta ram para fazer de Maryse uma rapariguinha aberta, volun tariosa, aparentemente independente do adulto. Recor do-me dum depoimento dos pais que na altura me levara a encolher os ombros: — O certo é que ela tem medo de si! — Como? Vocês estão a brincar! — Oh! sim, ela tem medo de si! O que é, sem dúvida, digno de meditação... Terei eu nessa altura meditado o suficiente no caso? Não, muito provavelmente, pensando que a verdade era outra... Pois, finalmente, todo o comportamento de Maryse se transfor mava: ela gracejava, afirmava-se na escolha das suas acti- vidades e nem sempre reagia favoravelmente às minhas raras propostas de trabalho. Os pais comunicavam-me, OS SEUS ALUNOS TEM MEDO DE SI? 85 decerto, o estado de espírito aparente da sua filha, mas este deixara-se porventura impregnar pela percepção tradi cional do mestre-escola num meio rural, tal como a impõem os pais: Oh! tu vais-te encontrar com o teu professor, ele é que te vai ensinar! Era Maryse ou eram os pais que temiam o mestre-escola? Patrice Está na minha classe apenas há três meses. Acha-se ainda muito marcado pela sua passagem por outras classes: fugidio, sem iniciativa, falho de imaginação. A hipocrisia terá de passar, como aconteceu com os outros, mas só passará se eu deixar de ser visto como o detentor da auto ridade. Aos olhos das crianças, nós recebemos delegação da autoridade parental, e somos ainda outra coisa mais; como o analisa R. Cousinet: «Não só o professor considera desprezíveis as ocupações ordinárias dos alunos, não só o seu pensamento permanece ininteligível aos alunos, como ainda aquele se opõe à satisfação dos desejos infantis, des- trói como um castelo de cartas aquele mundo romanesco em que a criança se deleita, esforça-se por lhe impor moti vos de interesse que julga superiores. Acha-se, portanto, permanente e necessariamente ocupado em contrariar os desejos e os prazeres dos seus alunos, bem mais ainda do que os pais na educação familiar, uma vez que exige das crianças, para além das virtudes domésticas, virtudes esco lares (obediência, trabalho) que elas desconhecem por completo. À violência da educação acrescenta-se a da disci plina... O professor manda pelo prazer de mandar, é o mestre, ou seja, o inimigo... No espírito dos alunos, a escola é um conjunto de convenções pelas quais eles devem passar com uma atitude igualmente convencional, contra- feita, hipócrita, para se verem livres dela o mais depressa 86 A PEDAGOGIA FREINET possível; depois, o professor é para eles aquele que manda, e eles são os que obedecem, não podendo haver entre o primeiro e os segundos qualquer laço comum, qualquer aproximação possível.» Eis uma análise que põe bem em evidência o fosso que a escola criou entre o adulto docente e a criança. Ê a detenção desta autoridade, e não apenas a dum pretenso «saber», que afasta o professor dos alunos. E é disso que se ressente o meu Patrice. Cabe-me a mim aproximar-me dele, subverter pela minha maneira de ser as convenções escolares que o levam a ter este comportamento. Será isso possível? Vou ficar-me por esta descrição sumária de cada criança. A classe, no entanto, não é apenas estas quatro individualidades, mas ainda Bernard, o ex-casmurro, Daniel- -o-bom-rapaz, Alain, o ex-«emparedado», etc. São, porém, aqueles quatro que trocam comigo, de sua livre vontade, as suas impressões sobre o «mestre-escola» que lhes coube em sorte. O debate Na segunda-feira, segundo uma proposta minha, o grupo dos quatro tenta aclarar a questão (isolando-se na cantina), mas não consegue desfazer o nó do problema. Ao fim duma hora, pedem a minha comparência: é preciso que eu participe no debate. Sinto, a partir desse momento, que devo ajudar as crianças a exprimirem-se; eles devem ter a percepção confusa de que chegamos a um momento muito importante da nossa vida comunitária. Vai seguir-se uma troca profunda, na qual terei ampla participação, pois sinto-me muito implicado, além de que as crianças espe ram de mim que eu as solicite, que as ajude a «dar à luz» os seus pensamentos. OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 87 Huguette— Na escola, na... eu tinha uma mestra, ela era má, e depois eu fiquei sempre com muito medo das outras professoras, porque me lembrava, porque a outra era de tal maneira má. Eu — Tu tens a impressão que se passa a mesma coisa comigo. Huguette — Não, não é a mesma coisa, mas eu lem bro-me, não o posso evitar. Isso mete-me medo. Consigo, tenho menos medo, mas não consigo tirar esta ideia da cabeça. Eu — Portanto, você não se sente à-vontade naminha presença. Sente com os seus pais a mesma impressão que sente comigo? Huguette — Com os meus pais é diferente, eu não tenho medo deles, eles não são maus. Não digo que o senhor seja mau, mas enfim, não é a mesma coisa! Não sei como é que me hei-de explicar. Maxime — Eis o problema! Não sabemos como nos havemos de explicar. Huguette fez uma breve referência a um tio de quem ela não gosta muito. Compara a sua reacção ao tio com a sua reacção perante mim — não se pode dizer que seja uma comparação muito lisonjeira! Depois, é a vez das crianças explicarem que a minha voz é «áspera». Do meu físico, é isso o que eles parecem considerar mais rebar- bativo. Patrice — Por exemplo, quando nos encontramos aqui, no atelier, e que o senhor nos vem ver, ficamos sempre com medo de ser repreendidos, quando o vemos chegar. 88 A PEDAGOGIA FREINET Eu — Porquê? Patrice — Tenho medo de que o que fazer esteja mal feito, qualquer coisa como isso. Eu — Tu pensas que é pelo facto de eu ser como sou que reages dessa maneira? Patrice — Com o senhor X, passava-se a mesma coisa. Em cálculo, por exemplo, quando ele nos vinha ver, eu tinha medo que ele ralhasse comigo. Eu — Tu também tens medo que eu ralhe contigo? Patrice — Bem.. .hum, sim! Maryse— Já com o senhor Y, quando fazíamos qual quer coisa que não estava bem, ele ralhava-nos muito, não nos explicava; por isso, quando estamos com outra pessoa, continuamos a ter medo. Eu explico a Maryse que, ao longo de um ano e meio, não me recordo de a ter tratado com brusquidão, ou de me ter encolerizado por sua causa, ou de ter cometido uma injustiça particular. Huguette — Patrice diz que tem medo de si porque escreve mal, e depois todo o resto. O meu caso é dife rente, eu não sinto o mesmo, mas mesmo assim tenho um certo medo do senhor. Maryse — Por exemplo, começa-se na escola com alguém que é simpático, e depois crescemos e passamos a ter um professor ou uma professora mais severos, e depois destes um mais simpático. OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 89 Huguette — Sim, não sabemos como havemos de fazer. Passamos de uma pessoa bondosa para uma pessoa má. Haxime — Temos medo, teremos medo, continuaremos a ter medo. Maryse— Quando começámos, eles eram simpáticos a princípio, e depois, quando cometíamos erros, eles come çavam a tratar-nos com aspereza; começávamos, assim, a ter medo, e quanto mais eles nos ralhavam, mais aumen tava o nosso medo. Eu — Era-te penoso vir para a escola? ■Maryse — Sim. Ralhavam connosco. À tarde, se não tínhamos tempo para fazer qualquer coisa, essa ideia não nos abandonava durante a noite e no dia seguinte tínhamos medo de ser repreendidos. Huguette — É a mesma coisa, a mestra que eu tinha antes em... ela dizia-nos que não era isso, repreendía-nos, mas não nos dizia .porque é que não era isso. Éramos três companheiros muito unidos, andávamos sempre juntos. Por vezes, conversávamos durante as aulas; então, à tarde, tínha mos de partir uns depois dos outros, não nos podíamos ver, não podíamos falar uns com os outros (ao falar, nesse momento, Huguette chora). Eu — Você tem a impressão de que tudo isso a mar cou. Tem a impresão de que eu sou o culpado da sua reacção. Huguette — Um pouco menos. Maryse — A coisa é um tanto diferente. Quando está vamos com M... ele era severo, mau; o senhor é menos severo. 90 A PEDAGOGIA FREINET Maxime — Não é nada severo! Eu (para Maryse) — Para ti, eu sou severo. Maryse— Não, não é; dir-se-ia... Patrice — Dir-se-ia que o senhor é severo, pois fala muito alto. Às vezes, julgamos que nos está a ralhar. Huguette — Sobretudo quando nos fixa, perguntamo- -nos porquê. Maryse — Julgamos ter feito alguma coisa de mal. Eu — Vocês vêem no meu olhar como que um juízo. Podem-me dar um exemplo? As crianças referem então um acontecimento que não tem aparentemente nada a ver com o que eles acabam de descrever; fazem alusão a tábuas de multiplicação que, de comum acordo, tínhamos combinado que eles aprenderiam, depois de se ter verificado uma lacuna. Confessam o seu «medo» nessa ocasião, uma vez que ninguém se sentiu à-vontade no assunto no dia seguinte. Mostro-me muito surpreendido, convencido de nada ter imposto de maneira unilateral, o que é sem dúvida um erro. Uma sugestão, um olhar, uma observação adquirem muitas vezes um carácter obrigatório aos olhos da criança condi cionada à autoridade do adulto. Preciso, de passagem, que este tipo de «lição» a aprender é excepcional. Além disso, tratava-se duma decisão do grupo. É também evocado o sacrossanto ditado da escola pri mária. Fazemos, também, às vezes, um pequeno exercício ortográfico que se parece com um ditado, por grupos de nivéis. Relativamente a este assunto, as crianças contam OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 91 os maus tratos que anteriormente padeceram: cópia do ditado («SEIS VEZES», diz uma delas). Eu fico mais uma vez surpreendido: os nossos pequenos «ditados» passam-se de outra maneira! E, entre nós, não existe qualquer puni ção... E quando eu digo; —A escola, para Vocês, é o castigo, Maryse responde-me: — Não, nós gostamos de ir à escola, mas quando entramos para a camioneta, as pessoas dizem: «Olha os burrinhos», e outras coisas no género; ficamos então sem vontade de ir trabalhar, por nos dizerem isso. Vi-me obrigado a truncar algumas intervenções, entre elas as minhas. Também não figuram na transição os numerosos silêncios e as repetições. Mas, o essencial ficou dito. À saída do encontro, as crianças pediram-me que lhes falasse deles, já que eles tinham falado tanto de mim... O que eu fiz. Huguette pontuou a discussão exclamando, muito comovida: — Faz bem falarmos assim uns com os outros, faz bem... Penso que o conteúdo deste debate é suficientemente eloquente para que eu não tenha necessidade de o comen tar demoradamente. Ao longo dele, transparece o carácter repressivo do aparelho escolar que tem origem em: • o papel ideológico que a sociedade atribui à sua escola: «temos medo, teremos medo, continuaremos a ter medo»; • o poder de coacção e violência de que se serve o corpo docente na sua grande maioria; • a prova ao vivo, a prova sensível da segregação escolar, que a população reforça (a referência aos «bur rinhos»); • a submissão dos pais — e portanto das crianças — à relação hierarquizada, ao saber imposto, esquemas cons tantemente perpetuados; 92 A PEDAGOGIA FREINET • a prática da aprendizagem e do controle sistemá ticos e colectivos, dos grupos de nivéis; • a obrigação escolar que, tal como é concebida, corta a escola da vida, independentemente da pedagogia prati cada. É possível que a expressão das crianças, «ter medo», reflicta um vocabulário restrito. O seu sentimento deveria talvez matizar-se consoante as situações. Mas não é evi dente. Como, por que razão acreditar na autogestão? As condições de vida do nosso grupo-classe derivam muito evidentemente das minhas opções pessoais. Depen dem, em seguida, da orientação colectiva, em que participo na medida das minhas opções pedagógicas e da minha per sonalidade. Há perto de quatro anos que me oriento progressiva mente no sentido duma atitude não directiva. Já tive oca sião de tentar uma definição desta investigação pedagógica (L’Éducateur, II, 1972-73). Não vejo agora necessidade de voltar a abordar a fundo o problema. Saliento, no entanto, mais uma vez, quanto, em meu entender, são importantes as atitudes que reflectem um propósito de autenticidade, de empatia, de consideração positiva; quanto são essenciais, quer a participação do adulto na totalidade do seu ser, quer o respeito pela orientação de cada criança, pela démarche do grupo; estes dados podem afigurar-se contraditórios. Como mostrar-se uma personagem segura de si sem se mostrar omnipotente ao ponto de travar a dinâmica do grupo de crianças? É esta uma contradição com que todos nos enfrentamos. Muitos camaradas dizem não acreditar na não-directi- vidade. A fórmula acha-se demasiadoaviltada para que eu pense que cada um fala da mesma coisa. Afirmo que é OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 93 totalmente inconsequente imaginar a auto-organização dos grupos — e em particular dos grupos de crianças — sem que se faça referência ao conceito de não-directividade. Com efeito, não se pode imaginar um avanço em direc ção à auto gestão sem o estabelecimento duma relação não directiva. Há sempre indivíduos que dispõem do poder, para além mesmo da posição social que ocupam, pelo sim ples facto da sua personalidade, a começar por aqueles que sabem usar — e abusar — da palavra. Os grupos não podem autogerir-se sem que seja contestada esta «correlação de forças». É esta a situação que nós, mestres-escola, vivemos nas nossas classes, qualquer que seja a nossa pedagogia. É preciso que me compreendam bem: quando me refiro ao conceito de não-directividade, não o faço insi nuando que seja preciso transpor para a classe, grupo de troca e de trabalho ao longo dum período extenso, a rela ção entre o terapeuta e o seu cliente tal como ela aparece na entrevista rogeriana. Esta relação específica está ligada a uma situação dada: o diálogo em tempo limitado. Por este facto, não pode aplicar-se completamente à vida dum grupo institucional. Podemos, no entanto, reter alguns dos seus aspectos, matizando-os embora. A escuta empática conduz à compreensão do outro a partir do seu sistema de referência, o que introduz uma aceitação incondicional. O que é possível no âmbito duma conversação torna-se inaplicável, senão absurdo, no caso da orientação tacteante dum grupo-classe. Escuta empática, consideração positiva decerto, mas não num sentido abso luto: aos olhos das crianças o adulto seria assimilado a um fantoche. Eu também tenho as minhas opções, os meus desejos e limites, e faço questão de os exprimir com per suasão. Se eu sei escutar, aceitar, introduzo uma dinâmica que conduz cada um dos membros do grupo a aproximar-se desta atitude, mas com a condição de eu me mostrar con 94 A PEDAGOGIA FREINET gruente, isto é, dos meus actos, palavras, pensamentos, do meu comportamento inconsciente manifestarem uma uni dade. Neste sentido, não-directividade não é sinônimo de dei xar correr, atitude que tem origem na recusa de influenciar as opções do grupo, na recusa de se opor a este para evitar qualquer diminuição do afecto (na realidade, este medo da agressividade provoca no adulto os seus .próprios aces sos de agressividade — não se pode ilimitadamente supor tar acções, atitudes que criam um desequilíbrio, um senti mento de insegurança, de negação de si. A reacção só se torna com isso mais violenta, o que confirma que o adulto só rejeitou o seu poder para beneficiar duma compensação afectiva). Não, está fora de questão para mim pôr-me à inteira disposição das crianças, aceitar tudo o que deles provenha, esperar pelas suas opções e decisões em todas as circuns tâncias e não ser mais do que um simples instrumento para facilitar e auxiliar. Eu fiz as minhas opções, e se deixo as crianças exprimirem em primeiro lugar as suas, sei tam bém pesar sobre certas decisões, e eles aprendem a criticar as minhas propostas, a rejeitá-las, se for caso disso. Em contrapartida, tenho de evitar conservar uma posição pri vilegiada nas discussões, nas acções que o grupo empreende. Não se impor duma maneira unilateral. Qualquer decisão relativa ao grupo, por mínima que seja, deve ser por ele discutida. Eis como me aparece a minha maior exigência actual: obrigar-me a submeter-me a este poder conflitual, calando o meu saber adulto, sem justapor ambiguamente dois poderes, o das crianças e o meu, o que conduziría a delegar no grupo o poder de decisão e de acção que me agrada consoante as circunstâncias, a transgredir as deci sões do grupo, a antecipar-me a elas. Não existe um poder colectivo — que eu defino como devendo construir-se pela OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 95 dinâmica dos conflitos e traduzir-se numa repartição pon derada das responsabilidades individuais — enquanto o adulto se substituir ao grupo e à criança em qualquer um dos diferentes estádios: propor, discutir, decidir, agir. Terei eu sempre vivido assim a vida de grupo? Certa mente que não... Não basta ter consciência do papel repres sivo que desempenha o adulto responsável por um grupo de crianças. E é-me muito difícil perceber qual a dialéctica que poderia jugular e, depois, destruir esta correlação de forças. Então, modestamente, procurei pôr em causa esta situa ção de facto. Quis deixar de ser visto como aquele que impunha, que decidia, por outras palavras, que dispuha da totalidade do poder. E vivi na ilusão deste poder aban donado. Na realidade, tratava-se antes dum poder alienado. Tenho consciência de ter aplicado um modelo pedagó gico (as minhas técnicas, a minha organização do trabalho, etc.) e de ter querido, em seguida, durante alguns anos, com as mesmas crianças, delegar o meu poder de decisão no grupo, pensando assim destruir a relação de autoridade que preexistia à nossa vida comum. Sei agora que não fui suficientemente longe nesta via, pois continuo a ser visto como o representante do mundo dos adultos, isto é, dum universo de coacções e violências, de tabos, de repressão dos desejos. Porquê? Pela minha parte, fixar-me-ei numa atitude que nos é comum a todos e que se me afigura ser uma das explica ções da situação que acabo de descrever. Quero falar da minha implicação excessiva no processo de educação, na vida da minha classe. Quer eu queira quer não, a minha classe é uma coisa que me pertence, e o apego que eu tenho à pedagogia que pratico é disso uma primeira prova. E visto que a minha 96 A PEDAGOGIA FREINET classe, a pedagogia, é uma parte da minha vida, um dos aspectos do meu engajamento político, eu implico-me enor memente nos meus actos de educador. Dou-me bem conta de que é aí que reside a dificuldade da atitude não direc- tiva e, consequentemente, da autogestão na escola. Como se manifestam esta implicação, esta sobrecarga afectiva? Procedendo a um regresso ao meu próprio pas sado, proponho-vos uma enumeração de factos, mais ou menos cronológicos. • Recordo-me dos primeiros textos livres nascidos na minha classe. Especialmente dum deles, de estilo narra tivo. Estava escrito com grande correcção. No entanto, muito imbuído dos preconceitos escolásticos, eu influen ciara suficientemente tanto o autor como a classe para que o texto aparecesse enfeitado com uma conclusão em que se manifestava mais o adulto do que a criança... • Eu tinha admirado bonitas pinturas nas classes dos meus novos camaradas da Escola Moderna; não seriam os meus garotos capazes de fazer o mesmo? Demasiado apres sado, ávido, sem dúvida, de belas obras, eu fornecera mode los (adultos, se faz favor, e por vezes infantis) aos meus alunos. E, posso dizê-lo, não para sugerir uma técnica mas para propor um conteúdo, um tema que fosse bonito! • Ah! as primeiras conferências. Como eu me mos trei rígido e pouco tolerante! Como eu queria que a coisa «andasse» imediatamente, que eles soltassem a língua! Mas foi por certo um esforço hesitante, tímido, e mal documen tado: à medida das possibilidades e da falta de hábito das crianças. Eu suportava-o, porém, mal. • Atitude idêntica em relação aos nossos «presidentes de dia». Fora eu quem aplicara essa estrutura, e estava talvez imbuído dum terrível preconceito: um responsável de dia não seria, então, o mestre por procuração? OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 97 • Terei sem dúvida manipulado muitas vezes o grupo, ao mesmo tempo na escolha das formas de trabalho, dos assuntos, dos suportes, porque eu, o adulto, tinha um objec tivo a atingir: ter «bom êxito» com uma classe, e talvez, por vezes, o desejo de alardear um triunfo. A nossa responsabilidade de professor não apresenta muitas vezes essa dimensão? Para além das técnicas e da expressão que elas permitem, eu tenho consciência da mes maimplicação na orientação institucional da classe. Como quero limitar o meu depoimento, farei apenas duas obser vações: • Considero ser inteiramente legítimo encolerizar-se. Isso aconteceu-me, e há-de me acontecer mais vezes. É muito simplesmente um fenômeno de autenticidade. Mas há cólera e cólera. Há aquela que exprime uma vontade de poder e que visa a fazer dobrar a vontade dum indivíduo ou dum grupo. Há aqueloutra que é a expressão de si, da mesma maneira que a outra, mas cujo interesse fica por aí; ponho- -me em cólera, exprimo uma impaciência, uma opção pes soal, mas, passada a sua manifestação, não a converto num «diktat». Acalmo-me e em caso algum aceito que uma deci são ou uma reacção intervenham a partir desta manifesta ção passional. Cabe ao indivíduo ou ao grupo reflectir, dis cutir, opor-se, aplicar-se. • Consequência da minha evolução, desta tomada de consciência, «sorrio» agora de algumas das minhas atitudes que me levaram a contrariar a evolução do grupo e de certas crianças, pois não me pude impedir de fazer preva lecer a minha visão do desenvolvimento desta ou daquela actividade que se me afigurava mal organizada, pouco estru turada, demasiado lenta ou demasiado desajeitada. Somos nós que conduzimos a classe, ou são as crianças? Por isso, quando oiço um camarada queixar-se do funcionamento 7 98 A PEDAGOGIA FREINET duma actividade na sua classe (a conversação, por exem plo), tenho um sobressalto interior; porque, enfim, é o adulto ou é o grupo que deve decidir do que é bom ou mau? Não será uma implicação excessiva o que nos leva a emitir um juízo de valor sobre a natureza e a importância das actividades dos nossos garotos? Somos nós educadores conscientes, ou manipuladores? Eis onde situo as raízes dos nossos abusos de poder, fazendo fé na minha experiência. A confiança que depositamos na evolução positiva da criança, com base no seu tacteamento experimental, na expressão livre, deve desembocar no assumir da totalidade da vida da classe por parte do grupo. Caso contrário, não pomos fundamentalmente em causa a escola da sociedade capitalista. Pois, afinal, que visamos nós? Em direcção à autogestão. A memória das actividades por Jean Le Gal — Josiane, não devias tu apresentar-nos uma canta para os nossos correspondentes de Nantes, esta tarde? — Oh! esqueci-me de reco piá-la! — Evelyne, perguntaste à tua mãezinha qual o preço exacto do caderno de que falas no teu texto cifrado? — Oh! esqueci-me! Perguntarei esta tarde. — Teresa, começaste a preparar a tua exposição sobre o gato? — Oh! esqueci-me! Vou começar amanhã. «Esqueci-me»; «esqueci-me»; «esqueci-me!». Neste prin cípio do ano, é muitas vezes esta a resposta que obtenho, no conselho da tarde, quando recordo a cada um as suas decisões relativamente a actividades. Evidentemente, eu poderia fazê-lo de manhã e assim tudo correría da melhor maneira, mas isso estaria em contradição com a minha hipótese: a criança e o grupo devem dispensar a tutela do adulto. A criança, para tanto, deve adquirir pouco a pouco uma autonomia que lhe permite organizar-se sozinha tendo em vista as suas actividades pessoais. Deve lembrar-se dos 100 A PEDAGOGIA FREINET seus projectos, dos trabalhos que encetou, dos seus tactea- mentos, das regras de funcionamento dos diferentes ateliers: O que é que eu previ? O que é que eu comecei? O que é que devo terminar? A que horas devo parar? Deve também, para que o grupo avance em direcção à autogestão, ser capaz de se lembrar dos acontecimentos do dia e da semana, dos projectos a curto e a longo prazo. A memória das actividades parece-me, portanto, ser um dos factores essenciais para uma prática pedagógica auto- gestionária; por isso ela veio tomar lugar entre todo um conjunto de hipóteses de trabalho que eu formulei, nesse ano, no âmbito duma experiência intitulada autogestão fragmentada. Em vez de arrancar, deixando as crianças tactearem numa situação-problema global, démarche relatada em Vers l'autogestion*, preferi instruí-las na autogestão levan do-as a fazer as experiências que correspondem às minhas hipóteses de que passo a expor algumas. Para que uma criança possa participar numa experiên cia de autogestão, deve ser capaz: • de se exprimir no seio dum grupo; • de fazer propostas claras e explicitar as suas impli cações; • de participar nos debates, portanto, de seguir o fio do discurso, de dar a sua opinião; • de fazer uma escolha consciente; • de analisar uma situação global; • de animar um conselho; • de respeitar as decisões colectivas; • de se recordar das actividades. «Recordar-se das actividades». É a maneira a longo prazo que entra aqui em jogo, uma memória que é, diz-nos EM DIRECÇÃO A AUTOGESTAO 101 Michel Lobrot', provocada por desejos muito profundos e muito intensos do indivíduo... uma memória que depende exclusivamente do próprio indivíduo, isto é, da sua vontade de se recordar, da sua vontade de «reter» (na memória). E, como todas as outras, esta actividade enraíza-se na afec- tividade do sujeito: a dependência da memória em relação à afectividade do sujeito constitui um ponto central na nossa teoria. A atenção e a vontade necessárias só nascerão duma necessidade fortemente sentida; é por isso que evito ser eu a memória da criança, limitando-me actualmente em fazer-lhe tomar consciência dos seus esquecimentos. Evito, também, propor-lhe meios tais como: agenda, plano de trabalho, se bem que eu pense que a capacidade de memo rização das crianças — e a minha — não é de molde a per mitir recordar-se das múltiplas actividades, acontecimentos, decisões, da nossa vida cooperativa. As nossas actividades podem classificar-se grosseira mente em: 1 Lobrot M., L'intelligence et ses formes, Dunod, 1973. 102 A PEDAGOGIA FREINET Face à carência da memória das actividades, pode optar-se entre duas atitudes: A Ajudar as crianças e o grupo-olasse propondo utensílios que correspondam às necessidades: plannings, quadros, plano de trabalho individual, etc. Esta solução permite encontrar mais rapidamente uma organização funcional. É a via da eficácia imediata, é a actividade antes de tudo, o êxito do projecto primeiramente decidido; mas é o educador que continua a ser o criador da organização. É ele que faculta os meios para a colectividade escoilhida pelas crianças. A coisa funciona!!! As crianças são felizes... e passivas. B Levar as crianças a criar os utensílios que lhes são necessários. Esta solução privilegia a imaginação, a invenção, a cria ção, levando as crianças a chamar a si a organização do trabalho. É a via do longo tacteamento experimental, em que o educador terá de funcionar como um «estimulador» de criação. Ele continuará a ser, numa situação de compromisso, a memória do grupo, enquanto este não tiver encontrado os seus instrumentos, relativamente às actividades de execução urgente. Exemplo: receber os correspondentes, requisição de mate riais, contrato relacional com uma outra classe da escola. Tanto no ano passado como neste ano, eu decidira levar as crianças a criar utensílios de memorização. Eis um balanço não exaustivo desta experiência: EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 103 Actividades de decisão colectiva Tomada de consciência duma falta No conselho de 22 de Outubro, peço a cada um para que procure lembrar-se das «actividades de decisão colec tiva» que foram iniciadas nas semanas precedentes e que ainda não foram dadas por concluídas. Não existe na classe nenhum «instrumento» que venha em auxílio da memória, pelo que as crianças só podem apelar para a sua capaci dade de retenção. A maior parte delas encontra uma ou duas actividades; apenas Eliane, a mais antiga, refere seis, enquanto duas crianças não se lembram de nenhuma. Por outro lado, nove num total de quinze confundem actividades de decisão colectiva com actividades de decisão pessoal. Escrevo no quadro o que se pôde apurar: 1. As contas da cooperativa: jornais calendárioscompras compra venda venda geleia fabrico venda 2. As questões da caixa de questões: exposição no papel. 3. O jornal. 4. Os álbuns: decisão de inventar contos para os mais pequenos do C. P. 5. A escultura. 6. Os testes de cálculo para a repartição dos cadernos autocorrectivos. 7. Fazer vinho. 8. Inventário das encomendas recebidas da Pébéo. 104 A PEDAGOGIA FREINET Pergunto: —Como poderiamos nós lembrar-nos do que foi decidido e do que foi iniciado relativamente às activi- dades de decisão coleativa, às actividades decididas por todos? São apresentadas diversas propostas: Eliane: poderia escrever-se numa grande folha que seria pendurada na parede. Teresa (antiga): poderia pôr-se a folha por cima do quadro para que se visse melhor. Didier: poderia escrever-se numa agenda. Após discussão, decidimos: As actividades decididas colectivamente serão inscritas numa grande folha por cima do quadro. Quando elas tive- EM DIRECÇÃO A AUTOGESTAO 105 ram sido iniciadas, indicá-lo-emos com um +. Um vez ter minadas, acrescentaremos um O. A folha é posta à experiência durante três semanas. No conselho de segunda-feira, 19 de Novembro, eu volto a perguntar-lhes pelas actividades começadas, desta vez com o auxílio da folha e ao plano de trabalho que figuram no quadro. Balanço Balanço relativo a 17 actividades começadas: 1. Ordenação das folhas do classificador. 2. Desenho: criação e envio para uma compilação departamental ¹. 3. Poema: criação e envio para uma compilação departamental ¹. 4. Álbum para os mais pequenos. 5. Estudo dum alpendre. 6. Exposição sobre o papel entregue. 7. Textos recebidos da Bélgica; carta-resposta. 8. Estudo da hora. 9. Continuar o jornal n.º 2. 10. Cartas de Natal. 11. Pintar as pranchetas do restaurante escolar. 12. Mudar alguns ateliers da escola. 13. Escrever os artigos previstos sobre a nossa vida. 14. Calcular os custos do filme. 15. Organizar a visita do inspector. 16. Envio do «Moulin de Papier» (Moinho de Papel) para a biblioteca municipal. 2 1 Os grupos departamentais organizam colectas de desenhos ou de textos das classes Freinet do departamento para realizar com eles exposições. 2 A classe criou as ilustrações duma antologia de poemas de Maurice Carême. 106 A PEDAGOGIA FREINET 17. Encomendas para os nossos correspondentes de Pornic. Plano de trabalho da semana Paralelamente a esta «memória das actividades», nós ocupamo-nos da repartição das actividades durante a semana, repartição essa que apela para a noção de DURA- ÇÃO DAS ACTIVIDADES. Durante o último conselho, dei-me conta de dois obstá culos que têm de ser superados: • A incapacidade de avaliar a duração, que diminuirá com a experiência e o trabalho imediato. • Incapacidade de um número considerável de crian ças para escutar outrem, ou, a partir do que os outros disseram, para fazer avançar a resolução do problema dis cutido. Neste caso, conto com a experiência e com os trei nos específicos que procuro ministrar-lhes. Evolução A folha mural para inscrição das actividades colectivas será conservada até ao fim do ano e, no fim de Fevereiro, utilizada de maneira satisfatória por todas as crianças. EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 107 Actividades de decisão pessoal Tomada de consciência da carência A carência assinalada no que toca à «memória das actividades de decisão colectiva» verifica-se também em relação às «actividades de decisão pessoal». Por isso, no conselho de 22 de Outubro, eu pergunto: — Como é que nos poderiamos lembrar daquilo que começámos pessoalmente? Seguiu-se um debate: Helena — Escrevêmo-lo numa folha e colamos a folha na nossa carteira. Sônia — Penduramos a folha ao pescoço com um cordel. Didier — Penduramos a folha na estante. (Temos um móvel com compartimentos para cada um.) Eliane — Sim, mas teremos de nos deslocar para a irmos ver. Proponho que a colemos num cartão. Podere mos pôr o cartão na nossa carteira. Evelyne — Eu proponho que colemos a folha na nossa canteira com fita-cola. Gérard — Sim, mas os alunos do estudo irão rasgá-las. Decidimos: cada um escreverá numa folha as activi dades que tenha começado. Organizará a sua folha como quiser. As folhas serão coladas num cartão. Inter-relação instrumento-uso A invenção dum instrumento funcional é necessária e está em inter-relação com o uso que dele é feito. 108 A PEDAGOGIA FREINET As actividades têm lugar colectivamente, por equipas, ou, outras vezes, individualmente. Durante as sessões de «ateliers permanentes», cada criança organiza ela própria o seu tempo. O animador de dia é responsável pelas actividades; eu, pela minha parte, auxilio aqueles que me pedem ajuda. No princípio de Novembro apareceu um elemento novo: o ATELIER OBRIGATÓRIO, em consequência duma decisão colectiva. Eis as notas tomadas por um estagiário: Actividades individuais de terça-feira, 6 de Novembro J. Le Gal pede a cada um para ler a sua folha, depois do que inscreve no quadro as actividades obrigatórias. Helena propõe que se represente as A. O. por um círculo. As crianças precipitam-se logo à primeira sobre as fichas de cálculo (ver documento anexo). Procura efectiva por parte de alguns, desinteresse por parte de outros. O interesse pelo trabalho individual é compreensível. É mais fácil mover-se individualmente do que fazer reagir uma equipa de três (tais como as de pintura). EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 109 Note-se que ninguém se serve dos elementos inscritos no quadro para se organizar. Atitude do professor Permissiva. Reserva-se um certo tempo (conselho) para fazer tomar consciência aos alunos do tempo perdido, do respeito dos compromissos assumidos para com a cozi nheira; com efeito, esta fizera um pedido a um conselho: a pintura, com carácter de urgência, das pranchetas desti nadas ao restaurante, escolar. Aceitação unânime. Resposta quase geral: 1. Esquecêmo-nos. 2. Julgávamos que o mestre nos ia dizer quando devía mos começar. Faltou nesse dia um animador de dia, não previsto pelo conselho. Não havia, portanto, ninguém para recordar as decisões tomadas. A atitude do mestre influi sobre o comportamento das crianças: 1. Se ele toma a iniciativa — eficácia — resultados imediatos (???). 2. Se deixa a iniciativa à criança — expectativa — tomada de consciência da necessidade de assumir a respon sabilidade das próprias necessidades — resultados a mais longo prazo (talvez um cunho mais profundo?). Quinta-feira, 8 de Novembro, manhã O conselho de terça-feira levantara a dificuldade expe rimentada para passar da fase da palavra à fase da reali zação. Estaríamos em direito de esperar esta manhã uma reacção inteiramente diferente a propósito das actividades obrigatórias. Só um grupo conseguiu decidir-se a efectuar 110 A PEDAGOGIA FREINET os trabalhos de pintura, ocupando-se os outros noutras actividades individuais (cartas, textos, desenhos, cálculo autocorreativo, oficina comercial). — Esquecimento geral do trabalho escolhido pelas pró prias crianças como o «mais importante». — Possibilidade de se assumir individualmente, mas não ao nível dum grupo. Dificuldade para se referir às indicações inscritas no quadro (7 das 15 crianças têm ainda dificuldades de com preensão da leitura). — O exemplo dum grupo não basta para desencadear a memória e o impulso necessário para o lançamento da actividade obrigatória e urgente. Tarde Ê necessária a intervenção do professor para lançar a actividade, e gera-se então toda uma precipitação. Todos se precipitam sobre as fichas. Dois grupos passam rapidamente à parte manual, enquanto outros dois grupos não conseguem desenvenci- Ihar-se das fichas: dificuldades de compreensão, distracção, hesitação em pedir o auxílio do professor. No conselho que teve lugar no fim da sessão, todos parecem ter compreendido o processo das actividades obri gatórias. FICHA PARA A PINTURA DAS PRANCHETAS 1. Cada equipa decide da ordem das seis camadas: EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 111 2. Cada equipaestabelece o seu calendário de traba lho, sabendo que são precisas 24 h entre cada camada e que uma camada seca em 8 h. 3. Pegar numa folha de lixa e cortá-la em três. Cada um pule uma parte da prancheta. 4. Quando a prancheta estiver bem polida, pegar na tinta branca e aplicar uma camada sobre um dos lados, tendo o cuidado de cruzar as pinceladas. 5. Cada equipa segue depois o seu calendário. 6. Os pincéis são limpos com white-spirit depois de cada camada. Sexta-feira, 9 de Novembro Todos se precipitaram sobre as pranchas, os pincéis, a pintura. Esta tarde, as actividades obrigatórias são em número de três. 112 A PEDAGOGIA FREINET Notamos uma dificuldade quase geral para passar sozinho dum trabalho a outro. Evolução do instrumento Depois desta semana, observo um processo inverso: certas crianças aguardam que eu inscreva no quadro as actividades que terão de fazer e avançam, portanto, para um condicionamento que as conduziría de novo à passivi dade individual, uma vez que o grupo existe para lhes dar directivas. No último conselho, propus que doravante cada um inscrevesse no seu «plano de trabalho» (palavra não ainda utilizada) as actividades que pessoalmente lhe foram atri buídas, após as decisões colectivas. No conjunto das actividades começadas, procurámos aquelas que se fariam: • em conjunto; • por equipa; • individualmente, e em consequência da tomada de consciência de que nos faltava tempo para realizarmos todos os nossos pro jectos: • as que só se podiam fazer na escola; • as que podiam ser feitas em casa. Terça-feira, 20 de Novembro Discutimos em conjunto COMO ORGANIZAR A NOSSA FOLHA PARA MELHOR NOS RECORDARMOS DAS NOS SAS ACTIVIDADES PESSOAIS? Encontrámos actividades obrigatórias decorrentes das nossas decisões colectivas: • Projecto de desenho, textos, poesias. EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 113 • Caderno de cálculo, pulseiras para a dança destina das às raparigas. • Treinar-se na leitura. • Escrever um artigo à escolha: coscorões, castanhas, visita do senhor Le Coz, o novo fogão de sala, filme sobre os répteis. Precisei a decisão colectiva que compromete o grupo inteiro e a decisão pessoal que só a mim me obriga. Cada um procurou, então, uma organização da sua folha que lhe permitisse VER claramente as suas actividades e... eu próprio também fiz a minha folha, pois tenho de possuir uma visão clara dos nossos múltiplos projectos e activida des... o que não é coisa fácil. Nas duas semanas que se seguem, noto uma nítida progressão na organização e na utilização do sumário, mas as duas semanas a seguir ao recomeço das aulas em Janeiro, apontam para um retrocesso nos dois planos. Debate sobre o instrumento É por essa razão que proponho um debate sobre o problema: — Que pensam vocês deste cartão-sumário que expe rimentámos? Helena — Eu penso que é uma coisa boa. As folhas fioam com os cantos todos quebrados. Eliane — Eu penso que é uma coisa boa, mas há quem não consulte com frequência o cartão. Evelyne — Seria preciso que nos servíssemos dele mais vezes, e, depois, que prestássemos atenção ao que lá vem. Didier — É bom, porque quando nos esquecemos pode mos olhar para lá. Mas é um pouco grande, o que atra vanca a canteira. Josiane — Eu não acho que seja bom, pois preferiría ter uma agenda, uma vez que o cartão é muito incômodo. Proponho então que, por grupos de cinco, as crianças 8 114 A PEDAGOGIA FREINET procurem um instrumento mais cómodo. Após apresenta ção e discussão, eles escolhem cadernos cortados em dois, por preocupação de economia. O plano de trabalho No mês de Fevereiro, Eliane propõe que cada um possua a mesma folha, pois os mais pequenos não conse guem organizar sozinhos como deve ser o seu cartão-sumá- EM DIRECÇÃO A AUTOGESTAO 115 rio. Após uma longa discussão, a sua proposta é adoptada e inventamos em conjunto o nosso «plano de trabalho». Em relação a todas as actividades manuais e pictóri cas, decidimos utilizar um planning metálico colectivo. Estas duas decisões serão mantidas até ao fim do ano e permitirão um bom funcionamento das actividades. A única conclusão que tiro actualmente desta experiên cia é a necessidade de a recomeçar este ano, mas procurando acompanhar melhor a evolução das crianças e a evolução dos instrumentos. Vou tentar anotar o máximo de observações, mas isso não é coisa fácil — os práticos que nós somos deixamo-nos envolver muito no «vivido» da classe. É possível ser-se ao mesmo tempo actor e observador? Paralelamente à procura de instrumentos funcionais de memorização, eu gostaria de descobrir meios de aumen tar a capacidade das crianças no plano da memória. Penso propor-lhes uma folha onde, todas as tardes, eles anotariam os grandes momentos e os acontecimentos do dia. Juntos, faríamos periodicamente o balanço para ver se este meio é eficaz. No domínio da memória, como nos outros, dois facto- res parecem-me essenciais: a motivação das crianças e as minhas capacidades para poder responder às perguntas. Das caixas de trabalho ao trabalho em sala de trabalho (em geral) por Albert Cuchet (reportagem de Claude Charbonnier) Albert Cuchet ensina num grupo escolar de Echirolles (arra balde popular de Grenoble). A classe compreende 28 alunos: 7 C.M. 2 e 21 C. M. 1, dos quais 9 alunos, «segundo as normas oficiais», estão «atrasados» e 1 «adian tado». Caixas de trabalho Claude Charbonnier— Os teus alunos de C.M. 1- -C.M. 2 utilizam frequentemente as «caixas de trabalho»; tu próprio és um adepto fervoroso deste instrumento. Antes que se discuta de maneira mais precisa, gostaria que fizes ses de algum modo o ponto da situação, que digas quais são as caixas de que as crianças gostam. Albert Cuchet — O que tem muito êxito é a «caixa dos imãs», a da electricidade, a caixa com que se pode aquecer água — andam aos encontrões por sua causa no princípio do ano—, a que permite soldar e, depois, a que permite «brincar» com a água (medida das capacidades, transvasamentos, sifões, vasos comunicantes, etc.). São estas as mais apreciadas, as que as crianças preferem... — E as outras, quais são? 118 A PEDAGOGIA FREINET — Temos lentes, uma caixa de «molas», uma de «espe lhos», uma constituída por engrenagens, e também broquéis, máquinas de transformar (caixa de «matemáticas»), uma caixa que permite uma primeira abordagem da noção de forças e de travessão (de balança), etc. Mas, num primeiro tempo, os garotos frequentam-nas menos. — Como são constituídas estas caixas? — Eu forneço o material em bruto. O que me parece muito interessante, pois permite à criança uma margem mais ampla de pesquisa. Além disso, permite um diálogo com os outros. Depois de a criança ter trabalhado durante algum tempo com a sua caixa, depois de ter encontrado qualquer coisa, ou de não saber já o que fazer a seguir, discute-se em conjunto. E, com as ideias de todos, conse gue-se organizar algo que se parece com uma aproximação científica. Nada, em meu entender, pode substituir a caixa, e, aten dendo às condições que são as nossas, em classe urbana, creio que ela representa a única solução para que as crian ças possam experimentar. — Sim, mas, por exemplo, a tua caixa «imanes» não contém apenas ímanes. Encontra-se nela toda uma varie dade de materiais diferentes (bronze, ferro, alumínio, madeira, etc.). Sim, isso é importante. É por essa razão que, na caixa de lentes, creio que vou introduzir, para além da vela e do écran, uma régua móvel que incitará a medir, abrindo, por tanto, uma pista para investigações. Gostaria, também, de nela introduzir tubos que, encaixando-se uns nos outros, permitem montar as lentes, fazer lunetas... — Havia muitos garotos no filicortador *. Muitos pas saram por lá, enquanto outros aguardam a sua vez. Este entusiasmo é assaz, impressionante. DAS CAIXAS DE TRABALHO 119 — Sim! O filicortador conhece um enorme êxito; fazem bicha por sua causa, até mesmo as crianças que já estive ram comigo no anopassado. Eles saem-se bem: fazem maquetas, maquetas histó ricas, por exemplo, coisas muito simples a princípio para evitar o insucesso e o consequente desânimo. Seguidamente, tento incitá-los a construir maquetas * (modelos) que funcionam (motor a dois tempos, * etc.). A partir destes modelos, discute-se a respectiva história, procura-se situá-la no tempo, procura-se conhecer a evolução das coisas. Mas, na realidade, o que este êxito do filicortador traduz, é essen cialmente, em meu entender, uma necessidade de trabalho manual (26) que eles nem sempre podem satisfazer em suas casas. — Mas eles talvez possuam mecanos (brinquedo), não? — Sim! Eu próprio tenho peças de mecano — roldanas, engrenagens. Mas o êxito destas é muito menor, talvez por que os garotos as possuam em suas casas, talvez porque eu as não tenha sabido introduzir bem na classe. O que eu observo, é que eles inclinam-se de preferência para aquilo que não têm o hábito de fazer ou de tocar: fazer ferver água, acender fósforos (ao princípio do ano, uma caixa das grandes não dura uma semana), acender o fogareiro de álcool, etc. Isso dura um trimestre. É o trimestre da descoberta. Eu tenho uma balança, mas como existem balanças por todo o lado, eles só raramente lhe dão atenção. Depois do primeiro trimestre, as coisas evoluem e consegue ir-se mais longe. — Ao observá-los, eu tive a impressão <de que o filicor tador apresentava um duplo aspecto apaixonanite: eles cria vam qualquer coisa, mas, ao mesmo tempo, davam a impressão de experimentar um certo «prazer proibido»; não havia ninguém para lhes dizer: «atenção, isso queima», «não 120 A PEDAGOGIA FREINET faças asneira», etc., e, ao mesmo tempo, eles mostravam-se muito prudentes. — Sim, esse género de prazer existe efectivamente. Pas sa-se a mesma coisa com a água, com a qual eles podem este ano fazer o que quiserem, pois têm o corredor à sua inteira disposição; procedem a numerosas experiências: transvasar, comparar volumes, brincar com os tubos, fabri car vasos comunicantes, sifões, estudar a flutuação dos corpos... Experiências* muito simples, mas que lhes pro porcionam um prazer intenso, talvez porque só ali as possam fazer. A organização do trabalho — Como se organiza este tipo de trabalho (27)? — Nós funcionamos em «ateliers» (salas de trabalho) todas as tardes excepto à segunda-feira, em que temos pis cina e canto com um monitor municipal. Às vezes, das 15 h 30 às 17 h, outras vezes ao princípio da tarde. Na sexta- -feira, as salas de trabalho duram toda a tarde; os garotos terminam o que tinham previsto fazer no seu plano de tra balho *; os outros podem começar uma nova tarefa. Rema ta-se sempre com uma reunião de cooperativa em que se discute sobre a classe, sobre o que se passou, e durante a qual se prevêem os trabalhos a realizar, os quais são ins critos num planning. Por ocasião destes momentos de atelier, os garotos têm as caixas à sua disposição, no fundo da classe. Todas as tardes, eles decidem o que irão fazer no dia seguinte... Podem escolher trabalhar com uma caixa, desde que, evi dentemente, tenham dado por concluído o seu trabalho precedente. O que faz com que no dia seguinte, após cinco minutos de preparação, todos se ponham a trabalhar. DAS CAIXAS DE TRABALHO 121 — Não tens problemas de distribuição de tarefas, de repartição pelos diferentes ateliers (salas ide trabalho)? — Não, eles prevêem os trabalhos no seu plano de trabalho; dispomos dum planning mural onde cada um se inscreve. Eu próprio possuo um outro planning — trata-se duma tabela de dupla entrada (actividades, nomes das crianças) que me permite saber quem faz o quê e, ao mesmo tempo, onde se encontram a cada instante os garotos. Certos garotos, por exemplo, se eu o permitisse, traba lhariam apenas no filicortador e nunca se interessariam por outra actividade. Eu sei bem que seria preciso deixá-los satisfazer-se tanto quanto quisessem com o filicortador, mas é preciso que os outros também entrem em contacto com ele, e também é interessante que eles desenvolvam outra actividade. Procuro, então, controlar as coisas de maneira a que as salas de trabalho mais procuradas fiquem abertas a cada um pouco mais ou menos da mesma maneira. — Não haverá garotos que não mostram vontade de fazer o que quer que seja, que não têm qualquer ideia? — Acontece que há crianças que não têm qualquer ideia, mas consegue-se sempre encontrar-lhes uma. Para tanto é preciso propor-lhes muitas. Há já nove anos que não me aparece um garoto que verdadeiramente não queira fazer nada. Será que eles não se atrevem a recusar todas as pistas que eu proponho? É possível, dado que nunca tive ram antes o direito de recusar! Nunca me apareceu, porém, um garoto descontente. Em contrapartida, admito facilmente que um garoto que conduz uma experiência pare num dado momento da sua investigação, não queira passar para um segundo está dio. Por exemplo, a garota que tu viste trabalhar com os ímanes, conduziu as suas experiências; ela poderia ter ido ainda mais longe; eu sugeri-lhe isso mesmo, mas ela 122 A PEDAGOGIA FREINET ESTA TARDE OS ALUNOS TRABALHAM: — Com a ficha 016 do F. T. C.: «Constrói um barco a reac- ção» (1). «Para ver se desta vez funciona, pois no ano passado explodiu.» Uma vez que este aluno tenha esgotado as suas reservas de material (tubos perfurados), dirigir-se-á para o estudo dos travessões (de balança); — Na pintura (3); — No filicortador (3); — Na imprensa: tiragens de textos para o jornal (3); — Numa exposição sobre «a Guerra dos Cem Anos» com a ajuda de B. T., de manuais e duma ficha de trabalho (2); — Na construção dum gráfico da evolução da população de Echirolles de 1841 a 1973; — Na construção de modelos (2); — Numa balança com travessões variáveis (2); — Na construção dum sistema de fogos (vermelho, verde; B.T. n.º 326); — Em experiências com lentes; — Com a caixa eléctrica; — Com a caixa de «ímanes»; — Com um mapa de França para nele situar os corresponden tes e Echirolles; — Na reprodução do escudete de Echirolles (para os correspon dentes); — Na acção de pôr a descoberto um corte geológico (em conse quência duma investigação); — Na ilustração do jornal (linogravura) (2); — Com uma pilha (desmontagem para saber como é feita); — Numa classificação dos artigos de Amis Coop (2). N. B.: Alguns participaram em dois trabalhos. estava farta... Então, ela parou, o que é normal. Porquê forçá-la? — Eles prevêem com muita antecedência a sua passa gem para as salas de trabalho, ou determinam-se em fun ção do interesse do momento? — Isso depende; existem as duas atitudes. Aquele que queria pôr o seu barco a flutuar¹, pretende realizar diapo- sitivos; há muito tempo já que ele mo vem dizendo. Mas ele quer, primeiramente, conseguir pôr a flutuar o seu barco. 1 Ele realizava a experiência proposta pela ficha 016 do Ficheiro de Trabalho Cooperativo (F. T. C.). DAS CAIXAS DE TRABALHO 123 Hoje, como ele esgotou o material de que dispunha sem que tivesse êxito na sua experiência, interessou-se pelos travessões; portanto, durante algum tempo, ele irá estar mobilizado nesta direcção. Mas eu sei que ele recomeçará a experiência do barco2 e que fará os seus diapositivos, pois é essa a sua firme intenção. 2 Ele recomeçou-a e teve êxito logo dois dias depois da nossa discussão. A orientação das crianças — Quais são as orientações (démarches) que condu- zem os garotos às investigações com as caixas de trabalho, com as fichas, com as experiências?... — Como é que isso acontece? Pois bem, de várias maneiras. Temos, em primeiro lugar, as perguntas dos garo tos: por exemplo, porque é que um pedacinho de ferro vai logo para o fundo ao cair na água, enquanto que um grande barco de ferro flutua? Eis um problema que foi ontem discutido; alguns pensam que é a forma, e não o peso, que é importante. Imaginam-se, então, ideias de expe riências, e aqueles que as quiserem realizar fá-lo-ão, man- tendo-nos ao correntedas suas observações... Às vezes, o procedimento não é rectilíneo: por exemplo, nós tivemos uma discussão sobre o serviço militar, durante a qual se falou, entre outras coisas, dos riscos de guerra evocados pelo Papa no seu discurso de Natal... Foi então que um garoto fez a seguinte pergunta: «É verdade que houve uma guerra que durou cem anos?» O que te explica que, hoje, duas raparigas tivessem preparado uma expo sição sobre este tema. Certos trabalhos são também motivados pela corres pondência. Tínhamos investigado em conjunto o que se podería fazer para dar a conhecer Echirolles aos correspon 124 A PEDAGOGIA FREINET dentes. Por isso, hoje, um aluno trabalhou com o gráfico da população, outro com a carta do Isère, sobre o brasão da nossa cidade. Há, também, as caixas de trabalho de que falei e que proponho sem ficha; em si próprias, elas são iniciadoras. O garoto tacteia, e eu intervenho; discutimos em conjunto, e ele recomeça. Às vezes, é toda a classe que pára durante cinco minutos para procurar ajudar algum que esteja «.parado», para lhe sugerir ideias. — Se voltarmos ao que tu dizias sobre a flutuação, houve, depois das perguntas, uma fase de formulação de hipóteses, por exemplo: «Não é uma questão de peso, é uma questão de forma.» Portanto, vocês vão fazer experiências com corpos do mesmo peso e de formas diferentes. — Sim, e veremos os resultados que isso possa dar. Em função dos resultados das experiências, surgirão por certo outras hipóteses que procuraremos verificar. Ao fim dum certo tempo, chegar-se-á a qualquer resultado con creto... E eu, pela minha parte, penso ser essa a atitude científica ideal (28): há uma reflexão, depois uma experi mentação a partir da qual se estabelece uma nova hipótese, uma nova experimentação, etc. Modificam-se as condições da experiência. Os garotos adoram fazer isso! Quando se obtém um resultado, ou quando surge um problema, há sempre alguém que propõe uma ideia ou uma explicação que se procura pôr em prática com os meios disponíveis. Houve um ano em que eles pensaram que a flutuação depen dia da massa de água no recipiente. O que levantou pro blemas, embora nos saíssemos bem na experiência rolhando os lavatórios! — Depois destas experiências, há sempre um «regresso» à classe (29). Hoje, por exemplo, tu tiveste uma hora de trabalho em cheio, pois preparação e ordenação proces sam-se muito rapidamente. E a última meia hora foi con DAS CAIXAS DE TRABALHO 125 sagrada ao balanço: quem terminou as sitas investigações? que conclusões se tiraram delas? — Sim, eu procuro sempre conseguir que aquele que descobriu qualquer coisa o comunique a todos. Depois, examinamos as conclusões, os problemas que se levantam. Por exemplo, hoje, aquele que trabalhava com as len tes tinha necessidade dum «empurrãozinho» para ir mais longe, pois, abandonado a si próprio, tendia a marcar passo. É também nesse momento que aqueles que acabaram pre- vêem o seu próximo trabalho. — Acontece, nesse momento de comunicação das expe riências, que um aluno diga: «Eu fiz esta experiência, obtive tal resultado», e que outros proponham então continuações, pistas novas? — Sim. Isso acontece mesmo com muita frequência. Eles dizem-lhe por exemplo: «Se tivesses modificado certo elemento, talvez que o resultado tivesse sido diferente?» Aconteceu-nos fazer electrólises. Houve um que disse: «E se tivesses posto chumbo como eléctrodo?...» É um género de questões que surge com frequência por ocasião de experiências com as lentes, os espelhos, água ou com as experiências de química. — E então? — Então, verifica-se, fazem-se novas experiências, par te-se de novo. Este momento de comunicação das expe riências afigura-se-me essencial; certos dias, é um pouco difícil, pois eles estão fartos, e a hora é já tardia. Mas é muito importante, pois permite muitas vezes ir mais longe. — Deve acontecer, em certos casos, que os garotos tenham chegado a um ponto em que não avançam mais, enquanto tu sabes que eles podem ir mais longe, que exis tem prolongamentos possíveis desta investigação? Que fazes tu, então (30)? 126 A PEDAGOGIA FREINET — Se tenho ideias, tento sugerir-lhes uma modificação da experiência que conduzem, propor-lhes uma ideia suple mentar, fazer com que lhes ocorram analogias. Com as len tes, esta tarde, eu sugeri àquele que procedia à experiência: «Se tu não moves a fonte luminosa (a vela), e se deslocas o écran sobre o qual recebes a imagem, a partir de que momento é a imagem nítida, e até quando? Tu podes tomar medidas.» Disse-lhe ainda: «As tuas lentes são dife rentes. Tenta substituir uma grande por uma pequena a ver o que se passa.» — Antes da tua intervenção, ele não se sentia muito à-vontade. Foi talvez por isso que a tua parte foi maior? — Sim, trata-se duma criança que tem necessidade de estar acompanhada. Contrariava-me que ele estivesse sozi nho, mas mais ninguém tinha desejado trabalhar com as lentes. — Ao princípio, ele parecia sobretudo preocupado em fazer aparecer a vela. Os que trabalhavam ao lado, diziam: «não está nítido» ou: «a tua vela está ao contrário». Mas isso não lhe punha problemas. — Aliás, ele não me disse que recebia a imagem da vela invertida sobre o écran. — Como é que isso se explica? — Talvez ele não tenha tido tempo suficiente para se imbuir da sua experiência, talvez o fenômeno não lhe apa reça ainda com grande nitidez... — Como é que eles formam os circuitos eléctricos? — A caixa «electricidade» contém fios, pinças croco dilo com fio soldado, lâmpadas eléctricas, pilhas. Sem ajuda, a criança procura ligar os fios e as lâmpadas. Tacteia durante muito tempo antes que a lâmpada se acenda. Quando o conseguiu com várias lâmpadas, faz outras expe riências interessantes que são relatadas no fim da sessão. —As crianças chegam a seguir ao esquema? DAS CAIXAS DE TRABALHO 127 — Quando montam circuitos mais complicados com comutadores, diversos fios, a coisa fica emaranhada. Para o representar, procura-se esquematizar em comum os dese nhos para os esclarecer. — Passam eles sem custo do trabalho concreto para a esquematização? — Sim. Eles vêem às vezes em suas casas esquemas nos seus aparelhos eléctricos e isso interessa-os. Uma caixa de trabalho que ainda não lancei, é a caixa «electrónica». Eu tenho o material, mas penso que eles têm necessidade de saber em primeiro lugar manipular bem e de se terem tornado suficientemente hábeis para que o trabalho seja válido. — Eles conseguem descobrir as leis? — Em electricidade, não penso que elas possam ser descobertas mediante os circuitos. As caixas são feitas para a esquematização dum circuito lógico, enquanto se chega de outra maneira à descoberta da electricidade. É antes utilizando fichas mais guiadas que se descobrirá, por exem plo, os efeitos magnéticos e calóricos da corrente eléctrica. Em contrapartida, com a pilha, as crianças formula ram a seguinte interrogação: «O que é que existe dentro da pilha? Como é que isso funciona?» Então, poderá talvez passar-se à descoberta da electricidade. Eles não descobri rão por si próprios que fazendo passar um íman pelo inte rior duma espira se produz uma corrente eléctrica. Vamos tentar construir um detector de corrente utilizando a ficha que existe. E veremos... — O esquema permite-lhes um recuo? Ou o seu objec- tivo é, simplesmente, a comunicação da experiência? — Creio que o esquema serve unicamente .para a sim plificação. Permite enviar para os correspondentes uma espécie de adivinhas (31). É uma troca interessante e importante. 128 A PEDAGOGIA FREINET A propósito das fichas — Gostaria que tu precisasses um pouco o teu ponto de vista sobre as fichas... Tu dizias que preferes dar a caixa sem ficha; pensas que isso é preferível? — Sim, pois só a caixa permite a verdadeira experiên cia (por tentativas). Com a ficha (32), em meu entender, recai-se um pouco no mesmo inconveniente que com as caixas docentes — o garoto éde tal maneira guiado que não formula a si próprio interrogações, ou formula menos. Dizem-lhe «faz isto», e ele fá-lo sem procurar modi ficar seja o que for, sem tentar imaginar. Eu falo pela minha classe urbana; eles estão tão pouco habituados a experimentar, mas antes a serem dirigidos, que, automati camente, se lhes entrego uma ficha, eles limitam-se a obe decer. — Na realidade, o que tu deploras é que o trabalho seja uma espécie de papinha antecipadamente feita, e que a ficha não deixe lugar suficiente à descoberta (33). — Sim, mas é também verdade que as fichas podem contribuir para aliviar o professor, quando há muitas ques tões, muitas pistas exploradas; ou então, ao contrário, elas podem abrir horizontes, quando há falta de ideias. — Talvez elas sejam também interessantes, pois per mitem o êxito, portanto, a valorização? — Nem sempre; prova-o o garoto que falhou a sua experiência com o barco a vapor. — Sim, mas era uma questão de instrumento, de mate rial insuficiente ou pouco resistente. — De acordo! mas, de qualquer maneira, se a coisa não funciona, o garoto não se sente numa situação de êxito... Então, é preciso que a coisa funcione bem. DAS CAIXAS DE TRABALHO 129 — Quer isso dizer que vocês não utilizam as fichas? No entanto, tu possuis o conjunto do F. T. C. (Ficheiro de Tra balho Cooperativo) na tua classe... — Sim, utilizamo-las! Quando esgotámos as nossas idéias, voltamo-nos para o ficheiro; vemos se podemos ir mais longe. — Elas servem, portanto, para que vocês se ultrapassem. — É isso. Verifica-se no ficheiro se se descobriu tudo o que havia a descobrir, se há outras experiências a fazer. Muitas vezes são abertas pistas suplementares. O papel do professor (34) — Poderiamos já, a partir do que tu acabas de dizer, circunscrever aquilo a que se chama o papel do professor: fornecer instrumentos, elementos que permitirão experi mentar... Dar o «lempurrãozinho» que permitirá ir mais longe, quer forneças um elemento novo ao nível dos ins trumentos, quer sugiras um procedimento (quando dizes àqueles que trabalham com as forças e os travessões: que 9 130 A PEDAGOGIA FREINET se passa, se se suspender um dos pesos em direcção ao centro?). Numa palavra, tu tens um papel «provocador»: tu fazes com que eles se interroguem, com que eles formulem per guntas a si próprios. Tens por vezes, também, um papel «técnico»: como fazer que o modelo se aguente de pé? Neste caso, és tu a revelar o truque... Mas existem segura mente outros aspectos ainda. Como encaras tu o teu papel neste tipo de investigação? — Trata-se dum papel importante de preparação e de animação. — Mas também duma exigência. Tu incita-los constan temente a ultrapassar-se. Por exemplo, o modelo não estava pintado dos dois lados, ou estava-o de uma maneira um tanto atamancada. Ora, tu acentuaste que o trabalho poderia ter sido feito com maior perfeição. Creio que seria necessário ser claro a este respeito; com efeito, ouve-se às vezes dizer. «Esta pedagogia é o reino do deixar correr, os alunos fazem tudo o que querem, é uma barafunda», etc. (35). Ora, esta tarde, por três ou quatro vezes, vi-te intervir para incitares as crianças a ir mais longe, a superar-se. Foi o que aconteceu com aquele que trabalhava na desmon- tagem da pilha, e a quem tu disseste: «Bom, tu retiraste o cartão, viste o que havia lá dentro? E depois?... O que é que se encontra por baixo «daquilo que é preto»? O mes mo aconteceu ainda com os pesos e as alavancas, com a vela e as lentes, etc. — Sim, eu creio ser essa a função do professor. Existe um material sobre o qual eu reflecti um pouco, sei o que se pode fazer com ele, aonde isso nos pode levar, aonde isso pode levar as crianças. E deixando-os tactear à-von- DAS CAIXAS DE TRABALHO 131 tade, e respeitando este tacteamento experimental, sei final mente que, num dado momento, a minha opinião permitirá que eles vão mais longe. Então, emito-a. É essa a minha função de professor. É essa a minha preparação da classe (36): imaginar o que eu poderia empregar para per mitir um aprofundamento das démarches. A minha função de professor pode ser, por exemplo, em electricidade, for necer um fio suplementar dizendo: «Se o acrescentares, o que é que se passa?» — Ao nível da formulação dos resultados das experiên cias, como é que a coisa se passa? Em relação aos ímanes, a formulação das conclusões tinha relativamente pouca importância. A propósito do travessão (de balança), a coisa vai ser mais difícil. Presentemente, eles estão muito perto de descobrir a formulação (tipo F X 1 F' X 1')... mas como o conseguirão eles? — Creio que devo deixá-los tactear, desenvencilhar-se sozinhos mais algum tempo ainda. Por agora, eles não parecem estar desanimados. Talvez amanhã um deles, durante a apreciação crítica, diga «Porque é que eles não medem as distâncias para saber se não há uma relação massa-distância?» Se ninguém o disser, serei eu a sugerir mais uma vez que façam um novo esforço de análise. — Para o controle (37) dos registos escritos deste tipo de investigações, qual a fórmula que tu adoptaste? — Não faço um controle tipo caderno mensal. Exijo, apenas alguns esboços no fim da experiência, os quais são inseridos no caderno dito de «despertar». De tempos a tem pos, organizamos também sessões colectivas (estudo e natu ralização dos animais que eles mencionarem) de que resulta a redacção duma acta elaborada em comum e, às vezes, duma página do jornal. 132 A PEDAGOGIA FREINET Conservar os alunos por dois anos... — Em geral, tu só conservas os teus alunos por um ano. Isso não te levanta problemas ao nivel da aquisição desta técnica de trabalho por parte dos alunos? — Eu gostaria de poder conservar os alunos por dois anos, mas isso não é possível. Este ano, havia um C. M. 1 - - C. M. 2, e eu conservei no C. M. 2 alunos do ano passado que sentiam dificuldades. — Notaste uma mudança na sua atitude relativamente ao ano passado? — Estou pasmado! Este ano, eles são autônomos, posso confiar neles 100%. Eles desenvolvem um trabalho cuida doso, preciso, impecável. — Eles ajudam os outros na organização do seu tra balho? — Sim! e isso é estupendo! Alguns deles tornaram-se «especialistas» em certas matérias. Os outros sabem que se podem dirigir a eles em caso de necessidade; Paul, por exemplo, é o especialista do lino, mas há outros em ortografia, em matemática, em «pre- gagem»... Eu aliás, em vez de ser eu próprio a ajudar, remeto para eles os que têm necessidade de auxílio. O que diminui, assim, a tensão, a agressividade na classe. Da necessidade da investigação em ciências na escola elementar — Tu organizas, na tua classe, tempos para investiga ção em ciências. Ora, eu tenho a impressão, ao ouvir o que dizem colegas ou pais de alunos, que se pratica cada vez menos as ciências na escola primária (se exceptuarmos, DAS CAIXAS DE TRABALHO 133 certamente, as actividades habituais do tipo «a vindima», «a noz», etc.) e, sem dúvida, muito pouco de investigação. — Sim, também o creio. — Como explicas tu este fenômeno? E como te desen- vencilhas para te reciclares (38), pois ouve-se muitas vezes dizer: «Em ciências, faltam-me bases para ajudar as crian ças a investigar, a ir mais longe»? — Não sei explicar esta falta de interesse de muitos professores primários pelas ciências, tanto mais que estas matérias interessam aos garotos, que existe uma motiva ção muito forte... Eu tive a sorte de assistir ao trabalho de camaradas neste domínio, de poder discutir com eles. Para me reciclar, utilizo livros, livros de física do segundo ciclo, por exemplo; na semana passada, comprei um livro de experiências de electrónica. O que lamento, é que no seio do grupo departamental não nos possamos reunir mais vezes para trocarmos mais ideias neste domínio. Seria pre ciso, também, ter a possibilidade de ir ver os outros «fun cionar» com os seus alunos. Porque, isolado, não nos ocorrem todas as ideias;e depois nem sempre sabemos explorar uma pista aberta pelos garotos — o tempo de fazer o ponto, de encarar o problema, e a ocasião passou, a moti vação enfraqueceu. Se pudéssemos trabalhar em grupo relativamente a este ponto, cada um iria muito mais longe na classe. E depois, haveria uma espécie de reciclagem permanente, cada um facultando aos outros as suas competências neste ou naquele domínio. Poderia também organizar-se uma série de fichas para uso dos professores indicando, a propósito dum problema determinado ou dum certo tipo de material, elementos de base que lhes permitiríam deixar as crianças experimentar e ajudá-los nos seus tacteamentos. 134 A PEDAGOGIA FREINET Entrada DAS CAIXAS DE TRABALHO 135 Dou-me bem conta do perigo destas «fichas de recicla gem»: quando se conhece bem todos os pontos duma ques tão, corre-se o risco de não deixar mais que as crianças tenteiem livremente. Ora, este tenteio é fundamental, a meu ver, nas ciências... Simplesmente, é ainda mais grave não fazer coisa alguma! Dos tabos aos instrumentos por Maryse e Jacky Varenne (reportagem de R. U.) Na nossa gíria «escola moderna», utilizamos geralmente a pala vra «instrumentos» num sentido muito geral: tudo o que permite à criança criar um produto. Neste sentido, os ficheiros autocorrecti- vos ocupam um lugar idêntico ao do filicortador. Entre estes utensílios, alguns existem que são cópias dos que já existiam no comércio. Outros correspondem a uma criação colectiva, em todo o caso a uma afinação colectiva. Muitos foram imaginados para corresponder a exigências escolares: a aprendiza gem das matemáticas, das ciências, da ortografia. Mais raros são os que devem o seu aparecimento a uma observação das actividades livres, espontâneas das crianças, como é o caso aqui em que expo mos a génese da série «100 experiências fundamentais do F. T. C. *» Maryse Varenne — Há três anos, durante um estágio de matemática, discutimos as actividades «selvagens» das das crianças, isto é, aqueles trabalhos que se faziam fora do nosso controle, que não tomávamos em conta, que não eram nem socializados nem explorados. Contei então que, na minha classe, nesse ano, os garo tos tinham fabricado com uma velha pauta um plano incli nado, e durante meses brincaram com ele. Faziam rolar toda a espécie de objectos: canetas de tinta permanente, caixas, e observavam. Não diziam nada. Eu tinha a impres são de que eles não estavam a perder o seu tempo, e, no entanto, não me sentia à-vontade. Tinha uma reacção de insegurança; não estava à altura de avaliar o proveito real 138 A PEDAGOGIA PREINET desta experiência. No fundo, eu teria preferido que eles se dedicassem ao ritmo, ao desenho, a qualquer coisa que se aproximasse duma actividade escolar que eu estaria apta a guiar e avaliar. E foi então a vez de todos os camaradas exclamarem: «Ah! a coisa passa-se também contigo!» Isto porque, evi dentemente, também os garotos deles «brincavam», tinham distracções «parasitas»; gostavam, com efeito, de se divertir com o reflexo do sol num espelho, com a água da torneira, variando as experiências. E demo-nos conta de que gosta ríamos de encontrar uma justificação para estas «fantasias» tantas vezes mal vistas pelos adultos: balouçar-se numa cadeira, acender fósforos, empilhar louça... Foi então que interveio Jean-Paul Blanc: — Imaginam vocês a riqueza de todos estes tenteios servagens?... Por exemplo, a história que contaste duma pauta utilizada como plano inclinado; acontece que os teus garotos tenteiam, desse modo, no domínio dos móveis, do equilíbrio, das trajectórias, dos pesos, das forças, do centro de gravidade, do polígono de sustentação... Apenas isso? Jean-Paul está a fazer humor... mas mesmo assim! Não tardámos a instalar um plano inclinado, e eu repeti os gestos que via fazer aos meus garotos, e de cada vez Jean-Paul particularizava aquilo que eu experimentava empi- ricamente... A coisa pareceu-nos duma riqueza extrema! Recensear o que proibíamos Começámos depois a recensear as experiências que tínhamos tendência a proibir às crianças, porque as consi- derávamos demasiado pueris ou consumidoras de tempo. Uma verdadeira lista de tabos! Tudo o que nós lhes proi DOS TABOS AOS INSTRUMENTOS 139 bíamos porque «isso molha, isso faz barulho, isso inco moda os outros, isso pode ferir, pode ser perigoso». Ela borámos uma segunda lista, a do material utilizado... Res tava apenas descrever e interpretar as experiências. Tínhamos cerca de trinta ideias para fichas, e o nosso trabalho de todo o estágio, de nós cinco, mestras dos «mais pequenos», consistiu em redigi-las, com a ajuda dos cama radas de matemática que nos explicavam as noções mate máticas ou físicas abordadas. Jacky Varenne — Logo que as fichas foram redigidas, oomunicámo-las aos nossos camaradas. Idêntica surpresa e idêntico entusiasmo: — É verdade que há um monte de coisas que temos medo de deixar fazer aos nossos garotos, pois temos a impressão de que eles perdem o seu tempo. Se eles fazem vibrar um duplo decímetro apoiando-se no bordo da mesa, oonsidera-se que seria preferível que eles façam outra coisa, uma actividade que nós teríamos preparado e de que vería mos o objectivo. Levámos este ficheiro a todas as nossas reuniões para o enriquecermos. Um único remorso: hesi- távamos em propor a crianças da escola maternal que fizes sem fogo para o dominar e observar, e, no entanto, trata-se duma descoberta e duma actividade fundamental dos homens... Maryse— Dispúnhamos de umas trinta fichas, mas tínhamos consciência de não ter ainda recenseado todas as pistas interessantes. Podia-se muito bem encontrar umas cem! E depois, 100 fichas sempre ficava bem numa edição. Impunha-se, então, alargar a pequena equipa inicial e apelar para colaborações dispersas no plano nacional. Foi então que a ajuda da C. E. L. foi capital: as trinta primeiras fichas foram fotocopiadas numa tiragem de cinquenta exemplares e comunicadas a colegas de diferentes departamentos. 140 A PEDAGOGIA FREINET A troca de correspondência que se seguiu a esta distribui ção podería encher agora muitas malas — um verdadeiro monumento cooperativo! Jacky — Apercebemo-nos em primeiro lugar, graças a esta correspondência, de que aquilo que nós propúnhamos como que «andava no ar»; que o nosso projecto corres pondia a reflexões e a tacteamentos experimentais no seio do nosso movimento. Em seguida, as críticas recebidas levaram-nos a elimi nar um certo número de fichas de aspecto demasiado esco lar, em particular aquelas em que as crianças se serviam unicamente de lápis e de papel para traçados, por exemplo. — Finalmente, a apresentação das fichas tornou-se mais clara, mais rigorosa. Na primeira página, a fotografia que mostra a situação e que constitui para a criança da mater- nal a leitura-incitação ao seu nivel. Foi preciso modificar muitas delas a pedido dos próprios miúdos, que declaravam não ver o que se lhes queria mostrar. No verso da folha, as mestras desejavam poder encontrar indicações pedagó- gicas precisas: outras actividades possíveis como prolonga- mento do tacteamento experimental, os materiais de subs- tituição susceptíveis de despertar de novo o interesse, os perigos e as precauções a tomar, os domínios abordados, as remissões para fichas de outros ficheiros... Uma nova tiragem das fichas foi comunicada aos múl- tiplos autores, mas também a psicólogos e a matemáticos. Os primeiros explicavam, por exemplo, porque era impor- tante que algumas crianças construíssem cabanas, mesmo que na cidade se tivessem de contentar para o efeito com uma grande caixa de cartão. A utilização de caracteres maiúsculos para titular as fichas, a escolha das palavras- -chave tinham também a sua importância para crianças no — limiar da leitura. _ DOS TABOS AOS INSTRUMENTOS 141 Testado pelas crianças Roger — Fez a soma total das pessoas que contribuiram desse modo para este trabalho cooperativo?JACKY — Houve pelo menos umas 60 a 70 pessoas que lhe consagraram entre dez e vinte horas, e uma vintena que lhe dedicaram entre duzentas e trezentas horas! Roger — E o papel das crianças? Jacky— Pode dizer-se que foi primordial, no sentido «primeiro» do termo, pois eram as suas experiências que formavam a matéria das fichas. Mas, além disso, os nossos alunos ajudaram-nos, por um lado, na correcção do texto de cada ficha, que devia ser revisto para se tomar bem compreensível; por outro lado, ajudaram-nos nas fotogra fias. Em relação a um determinado tema — uma criança tentando fazer flutuar um vidro numa selha com água, por exemplo —, foram tiradas diversas fotografias. Estas eram mostradas às crianças, e pedia-se-lhes que comentassem o que viam. Todas as fotografias que não permitiam uma interpretação sem equívocos foram postas de parte. Roger — E quando vocês notavam com destino aos professores referências como «estrutura granular»?... Jacky — Nem sempre era possível explicitar tudo, mas podia-se remeter os leitores para brochuras já editadas na colecção «Livres Investigações Matemáticas *». Quando isso não era possível, suprimiram-se as referências. Maryse — Deveria também mencionar-se que aquele que fabrica um instrumento se enriquece a si próprio tanto como à colectividade a que o destina. Aprendemos muitas coisas em matemática e física! Fomos obrigados a regres sar às fontes. A nossa observação das crianças tornou-se mais exacta e profunda, pois era nossa intenção conhecer as suas reacções e obter a sua participação. DEVERÁ RENUNCIAR-SE À PEDAGOGIA FREINET NA ESCOLA URBANA? Na região parisiense por Emilienne e Lucien Reuge (reportagem de R. U.) A presença do movimento Freinet na região parisiense é insigni ficante, se nos ficarmos pelos números: aproximadamente cinquenta classes Freinet nos seis departamentos que, só por si, totalizam um quinto da população do país. Os nossos camaradas Lucien e Emilienne Reuge, directores de dois grupos geminados em Choisy-le-Roi, no Val-de-Marne, tentaram durante toda a sua vida dar corpo a uma escola Freinet urbana que emparelharia com as da província. Gastaram-se nesta tarefa, mas não se deixaram desanimar, pois cada criança, cada professor, cada pai conquistado para uma educação libertadora contribui com a sua quota-parte de alegrias e esperanças para a torre de Babel que é toda e qualquer escola duma grande cidade. Roger — Quando um camarada do I. C. E. M. se torna director, mostra vontade de realizar na sua escola um pouco do que fez na sua classe, sabendo embora antecipa damente que nem todos os colegas desta escola se mostram favoráveis à pedagogia Freinet, nem mesmo preparados psicologicamente para mudar de pedagogia. Tens portanto de desenvolver na tua escola, durante anos, todo um tra balho de formação (40) e de animação, antes mesmo que se fale de formação interna e de animação. Poderás falar- -nos da tua experiência neste campo? Lucien — De início, só nos podemos basear no volun tariado. Alguns colegas desejavam experimentar determi nadas técnicas que me viam praticar na minha classe. Isso, 10 146 A PEDAGOGIA FREINET porém, nunca ia muito longe, e pude constatar, por exem plo, que quando eu deixava uma escola, tudo isso termi nava. Depois da minha partida, eles regressavam ao ensino geral tradicional. 68 e a formação contínua improvisada Conhecemos um período verdadeiramente privilegiado; foi o período de 68. Em 68, sentiu-se como que uma neces sidade de renovação, de pôr em causa todas as rotinas — foi um pouco como o que Freinet dizia do período que se seguiu à guerra de 14-18. Havia como que uma «efervescência». Por altura das greves, nós, que tínhamos feito numerosos estágios, pensámos que nos poderíamos organizar como para um estágio. No seio da escola, dispúnhamos de três salas: uma sala de reunião, de trabalho; uma sala que nos servia de refeitório; uma outra que nos servia de cozinha. O que permitia que, independentemente das reuniões sin dicais da subsecção, nos reuníssemos para falar de pedago gia. Nessa altura, realizámos progressos, tanto mais que, logo a seguir à greve, nos obrigámos a libertar as crianças de que os pais podiam tomar conta no sábado à tarde. Como os professores não tinham a tarde de sábado livre, estavam na obrigação de ficar na escola; organizámos um infantário para as restantes crianças, o que fez com que, das 27 classes, ficássemos com um efectivo de aproximada- damente três classes de que tomávamos conta por turnos, ao mesmo tempo que o meio-dia de trabalho dos outros mestres era organizado da seguinte maneira: em primeiro lugar, deslocávamo-nos com crianças a uma classe para assistir à prática duma técnica: exposição, texto livre, inves tigação, etc. Depois, discutíamos, na própria classe, até à hora habitual do recreio. Seguidamente, deslocávamo-nos NA REGIÃO PARISIENSE 147 à sala dos professores para a pausa do café e discutíamos qualquer problema de pedagogia levantado por uns ou por outros. O que fez com que, até ao fim desse ano, tivésse mos a impressão de realizar progressos, porque os profes sores tinham debaixo dos olhos exemplos vividos sobre os quais reflectíamos. Roger — O que na época me impressionou, quando me desloquei à escola, foi o facto de quase se 'ter formado uma comunidade de vida. Durante os acontecimentos de 68, um certo número de colegas não tinham dinheiro, outros não sabiam onde ir comer; e vocês organizaram uma vida comunitária. Lucien — Sim, alguns de nós chegaram mesmo a afas tar-se muito de Paris para arranjar vegetais frescos e batatas, enquanto um dos nossos colegas se encarregava da cozinha; foi sobre nós que ele realizou o seu tactea- mento experimental — foi assim que comemos macarronete durante três dias, pois a princípio ele não soube avaliar a quantidade em função dos racioneiros. Todavia, esta vida comunitária criou um clima que aproximava bastante direc- tores e adjuntos. Foi verdadeiramente aí que ocorreu uma mudança de clima na escola entre o pessoal. O que repre sentou um trabalho preliminar muito eficaz no sentido da renovação pedagógica; a tal ponto que, a seguir, eu escrevi dois artigos em L'Éducateur, ficando-se também a saber que mais de 50% dos colegas praticaram mais ou menos a pedagogia Freinet durante esse período. Dos 27 mestres de que então dispúnhamos, restam apenas quatro em con sequência de todas as mutações ocorridas, e, destes qua tro, uma única trabalha em ligação com o grupo departa mental I. C. E. M., enquanto dois nunca praticaram a peda gogia Freinet. Roger — Não significa isso que, numa escola, antes de 148 A PEDAGOGIA FREINET falar de pedagogia, importa criar um certo clima de rela ções? Como procede de maneira a poder instaurá-lo? Lucien — Procurámos, muito antes de 68, criá-lo desde o princípio instalando uma sala de professores relativa mente confortável; nela existe um meio de aquecimento suplementar, um fogareiro eléctrico para fazer café ou chá e, durante os recreios ou as reuniões da tarde, arranja-se sempre tempo para uma pausa do café ou discutir um pouco. O tempo é, no entanto, relativamente escasso, e nem sempre podemos participar nisso, pois temos que asse gurar a fiscalização geral. O que faz com que não mais se tenham repetido as condições de 68. Ora, essas eram as condições ideais! Depois da desmobilização Actualmente, temos a impressão, em relação a certos docentes, que eles chegam às 8 h 30, partem às 16 h 30, e que não há que lhes exigir mais coisa nenhuma. É preciso dizer que imperam na região parisiense condições muito difíceis; temos jovens mestres que são chefes de família, que fazem todas as cantinas, todos os estudos, que se encon tram portanto, aqui, desde as 8h30 às 18 h da tarde; são eles quem assegura, às quartas-feiras, o funcionamento do cento de aeração, e têm, ainda, de dar lições particulares para conseguirem equilibrar o orçamento caseiro. Pedira essas pessoas que sacrifiquem o seu dia feriado, que se deixem ficar até à noite para se aperfeiçoar, é muito difícil! Mimi — No entanto, para aqueles que o desejem, nós organizamos ainda encontros de trabalho. Em 1969, con tinuámos a fazer reuniões nas tardes de sábado, se bem que este dia já seja um feriado regular. Pouco a pouco, demo-nos conta que este procedimento se revelava contra NA REGIÃO PARISIENSE 149 producente. Então, solicitámos a opinião dos mestres e marcámos as nossas reuniões para o fim da tarde, duas vezes por semana, de modo a perfazer as três horas. Ao fim de dois anos, houve alguns que disseram: «Duas vezes por semana é demasiado.» Por isso, actualmente, temos a ses são das segundas-feiras, a qual tem lugar entre as 16h30 e as 18 h, excepto para os colegas que se encarregam do estudo: só vêm aquelas pessoas que o quiserem, e outras que fazem parte do grupo departamental podem vir tra balhar connosco, de tal forma que somos no total umas vinte pessoas. Lucien — Pouco mais ou menos metade da escola e metade do exterior. Mimi — Praticamente quase sempre os mesmos. Faze mos também reuniões nas classes com as crianças, e nós próprios trabalhamos. Estabelecemos um planning de tra balho a pedido dos mestres. Os visitantes e a vida da escola Roger — As visitas de colegas durante as horas de olasse conseguem dar-lhes a impressão de que eles formam um grupo? De que se acham «soldados»? Lucien — Muitas vezes as professoras ficam aborreci das com estas visitas que as perturbam, pela sua frequência, no seu trabalho. Constituem também um elemento pertur bador, sobretudo nas classes dos mais miúdos. Roger — Aconteceu-vos que estas visitas sejam activas, isto é, que estas pessoas trabalhem com as crianças? Lucien — Isso depende; nas grandes classes, nós tra balhamos por quarto de dia, isto é, até ao recreio; limi tamos os grupos a 6 ou 7 pessoas. Mimi — Alguns vieram como observadores ao longo do ano; fizeram, portanto, um trabalho seguido. Estou a pen 150 A PEDAGOGIA FREINET sar nos Dias, de Portugal, que acompanharam uma classe de C. P., e em Ismael, um estudante das Comores, que tra balhou muito com os C. M. 2. Lucien — É preciso distinguir: temos aqueles que vêm uma vez passar um meio dia. Segue-se uma discussão. Não é em metade dum dia que alguém se pode inteirar do que se faz numa classe. Por outro lado, há pessoas que vêm passar junto de nós um período muito mais longo. Temos actualmente um professor de matemática dum liceu de Paris que prepara um mestrado em psicopedagogia. Ele vem acompanhando uma classe. Desloca-se até cá uma vez por semana, e, futuramente, passará a vir duas vezes. Estas pessoas adquirem uma visão inteiramente diferente da daqueles que apenas estão de passagem. Mimi — Há pessoas que passam por cá e que depois pedem para vir trabalhar connosco. Com os pais Roger — Em que medida ajudam os pais (42) a escola a formar um grupo, uma equipa pedagógica (43)? Mimi — Temos reuniões de pais que organizamos de acordo com os professores. Na sua grande maioria, eles mostram-se satisfeitos; mas há sempre pais que não com preendem, e chegamos então ao que outros pais lhes res pondem. Na última reunião, apresentámos a gramática tal como a praticamos actualmente; os pais mostraram-se satis feitos. Pediram-nos para lhes falarmos das actividades de despertar e das matemáticas modernas na próxima vez. Queremos mostrar-lhes o que se pode fazer nestes domínios a partir da vida das crianças. Lucien — Estas reuniões de pais ganharam maior am plitude a partir de 68. Tínhamos em primeiro lugar uma NA REGIÃO PARISIENSE 151 parte comum, e depois os pais deslocavam-se até às classes para falar mais particularmente do trabalho dos seus filhos. Procuramos fazer com que esta parte comum apro veite aos professores que não vêm às nossas reuniões de trabalho, o que os leva a assistir aos esforços que desen volvemos no sentido de transformar a pedagogia. Alguns adoptavam uma atitude em que se tornava notória uma reticência da sua parte. Aconteceu mesmo que alguns só aparecessem cerca duma hora depois do início da reunião, de modo a chegar apenas no momento em que acolhiam os pais nas suas classes. Todavia, tinha-se a impressão de que a coisa interessava aos pais. Já, desde 1958, Emilienne organizava reuniões de pais na sua classe. Os outros colegas da escola onde ela era minha auxiliar nessa altura tinham também aceitado rece ber os pais. Quando ela se tornou directora, instaurou por sua vez as reuniões de pais na sua escola. Devido ao facto de eu passar à reforma no fim do cor rente ano escolar, estabeleceu-se uma certa divagem entre as nossas duas escolas. Na escola de Emilienne, está-se de acordo para continuar da mesma maneira. Na minha, pre tende-se limitar as reuniões a uma por trimestre. Sente-se a vontade de diminuir as conversações de pedagogia com os pais. Creio que se verifica, entre outras coisas, uma valo rização de certos professores aos olhos dos pais. É preciso vir estimular certos professores sem ferir os outros. Roger — Pude também verificar que se operou nos pais uma maturação pedagógica muito importante, mas eles não se dão conta das dificuldades de mutação do professor. Com efeito, pensam que a partir do momento em que uma técnica é dum interesse evidente, o professor a deveria aplicar; não se apercebem das inibições que o professor experimenta a mudar de métodos de pedagogia, de com portamento. Os pais não devem ditar a lei a um professor 152 A PEDAGOGIA FREINET pensando no seu próprio filho e imaginando ser fácil essa mudança! Mimi — Nós, aqui, estamos num bairro onde há pais que sentem eles próprios muitos problemas. A pedagogia Freinet não é espontaneísta Roger— O que mete medo aos pais na pedagogia Frei net, é que eles pensam que a pedagogia Freinet é uma peda gogia sem progressão nem controle. Tu, pelo que te diz respeito, conseguiste elaborar uma escala de progressão e inculcar nas crianças hábitos: um plano de trabalho (44) ao mesmo tempo ao nivel dos alunos e dos professores. Como é que tu próprio organizaste a \tua classe? Lucien — No ano passado, soube, na véspera do reco meço das aulas, que a minha dispensa de dar aulas fora suprimida e que logo no dia seguinte devia tomar a meu cargo uma classe. Cheguei, portanto, no dia seguinte sem ter podido preparar o que quer que fosse (45). Fiz falar as crianças sobre o que tinham feito durante as férias, e depois disse-lhes:—São nove horas, vamos passar a outro assunto, que querem vocês fazer? E eles responderam-me: — Queremos fazer ditados, conjugação, problemas, ciências, geografia, história... Nada que pertença propriamente à pedagogia Freinet! Eles queriam começar com um ditado. Disse-lhes eu: —Está bem, fazemos um ditado. Disse a uma criança que conseguira prender a nossa atenção para ditar a história que acabava de nos contar. Ela respondeu-me: — Eu não a escrevi. — Tu vais reflectir e irás ditando ao mesmo tempo as frases aos teus camaradas. Foi este o primeiro ditado. Depois disso, fez-se um exercício de gra mática, a que se seguiram exercícios de cálculo, etc. Foi assim que «arrancámos». Depois, pouco a pouco, conse NA REGIÃO PARISIENSE 153 guiu-se introduzir algumas técnicas novas, e a partir do dia em que eles tiveram correspondentes foi isso que pas sou a orientar o seu trabalho. Eu queria chegar a que eles organizem eles próprios o seu trabalho. A coisa não foi fácil, e levou tempo. Todos os sábados de manhã, uma criança trazia o plano de trabalho da semana seguinte: simplesmente, um quadro antecipadamente traçado numa folha de grande formato, sobre a qual ela marcara os pon tos fixos, ou seja, a educação física e a sessão na piscina. Depois do que, pegávamos no planning das exposições. O responsável do dia perguntava se as exposições estariam prontas na data prevista. Estando estes pontos fixos assi nalados, elaborávamos todas as manhãs o planode traba lho quotidiano. Eles tiveram depois a ideia de elaborar um quadro recapitulativo que foi afixado sob o plano de trabalho, o que permitia, quando se discutia aos sábados, dizer: Não fazemos conjugação há 15 dias ou 3 semanas; temos de a praticar. A pouco e pouco eles foram-se encar regando da organização do seu trabalho. O que, ao fim e ao cabo, faz com que eu intervenha muito pouco. Uma rapariguinha disse-me:—Aqui, nunca fazemos deveres; na classe do lado, que é também um CM2, eles fazem deveres todos os dias. Respondi-lhe que o regulamento proibia que se fizessem deveres desde 1956, mas que havia ficheiros autocorrectivos tanto em francês como em matemática e que, palavra de honra, esta criança não tinha feito muitos, apesar de ter a possibilidade de levar esse material para sua casa, como o faziam muitos dos seus camaradas. Depois duma discussão durante uma reunião, acharam-se 3 ou 4 que queriam regressar à pedagogia tradicional. Disse-lhes que a única solução era transferir-se para uma outra classe. E eles responderam: — Não, aqui temos companhei ros, entendemo-nos bem com eles, e mesmo que se trate da pedagogia Freinet preferimos praticá-la com os nossos com 154 A PEDAGOGIA FREINET panheiros de preferência à pedagogia tradicional noutro lado. Roger — Há aí uma projecção familiar. Eles retrans mitem os desejos da família. Tu dispões dum planning geral onde as crianças podem verificar se houve lições de matemática, de gramática, ditados e, também, trabalhos individuais. Que fazem as crianças? Como se articulam os trabalhos individuais? e as sessões de explicações colec- tivas (46)? Lucien — Se, em relação a um exercício dado ao con junto da classe, uma criança se mostra mais rápida do que as outras, pode terminar um trabalho individual em que pegará livremente quando quiser. E certos momentos do dia são consagrados aos trabalhos ditos individuais — que, na realidade, o não são. Pois se, pana alguns, se trata ver dadeiramente dum trabalho individual, para outros, trata-se dum trabalho de grupo. Está previsto no quadro do plano de trabalho diário. Além disso, existe um painel com fichas móveis, e cada criança assinala o trabalho individual que conta fazer durante o dia e nos dois dias seguintes. Roger — Fazem eles uma ideia do que se chama um programa? Podem eles situar o seu nivel de aquisição rela tivamente a uma escala possível? Lucien — Não conseguimos ainda fazer qualquer coisa de completo, de perfeito. Durante uma reunião de pais, fomos muito vivamente atacados pelos adeptos duma asso ciação de pais de alunos. Tínhamos enviado um pequeno questionário aos pais: «Temos duas reuniões de pais por trimestre. Que ponto gostariam de ver debatido, ou que técnica gostariam que fosse apresentada?» Um dos pais de alunos respondera-nos que a pedagogia Freinet era uma pedagogia sem finalidade, que ela não levava à aquisição de qualquer conhecimento, que instalava uma disciplina deficiente na escola, etc. Eu tornara a atacar essa questão, NA REGIÃO PARISIENSE 155 mas fui colhido de surpresa pela agitação que a seguir se gerou. Tive a impressão muito nítida de que se tratava duma coisa preparada; com efeito, eles respondiam uns aos outros dum canto ao outro da sala. Felizmente, alguns pais tomaram o nosso partido. A seguir, dissemo-nos que, na sua crítica, sempre havia alguma coisa de válido: é o facto de que eles não se podem aperceber dos progressos reali zados pelas crianças (47). Ora, para nós, não se trata de progressos do ponto de vista do conhecimento, mas de pro gressos do ponto de vista do desenvolvimento da persona lidade da criança, da sua expansão, etc. Isso, porém, é coisa muito difícil de medir. Dissemo-nos num primeiro tempo: vamos procurar, em relação a certas disciplinas, estabelecer uma espécie de escala. Sentimo-nos pouco à-vontade, pois achamo-nos em equilíbrio instável entre estes problemas de aquisição de conhecimentos e de desen volvimento da personalidade, e não sabemos muito bem como estabelecer e afinar uma escala. O que faz com que, à excepção das nossas escalas de leitura, não tenhamos feito grande coisa. Pôde-se comprovar em diversas classes que os progressos de facto não eram os que tinham sido previstos. Roger — Toda a gente tem as mesmas dificuldades em estabelecer escalas, isto é, escalas que não levem o pro fessor a fazer adquirir um cento número de conhecimentos duma maneira artificial, quando o nosso desejo seria que através de actividades globais se pudesse, posteriarmente, constatar a existência de aquisições pontuais. Mimi — A criança constrói-se progressivamente. Penso nas actividades de «despertar» e nas exposições. Pude veri ficar que as crianças apresentam exposições um tanto seme lhantes. Se existisse um verdadeiro trabalho de equipa no interior da escola, seria possível comunicar ao professor seguinte o balanço das aquisições realizadas com o mestre 156 A PEDAGOGIA FREINET precedente. Eu veria esta comunicação não só do ponto de vista colectivo, mas também do ponto de vista indivi dual. Seria necessário poder situar a criança com os seus progressos, e situá-la também relativamente ao que uma criança dessa idade deveria saber. Lucien — Não se trata duma questão de saber ou de conhecimento, mas duma questão de habilidade. Mimi — No que diz respeito à preparação duma expo sição, por exemplo, seria necessário avaliar aptidões tais como: — a criança soube procurar documentos sozinha; — soube seleccionar esta documentação; — soube expor oralmente, sem ler o seu texto; — soube fazer um esboço... Seria necessário dispor duma escala de habilidade (saber-fazer). Se a criança, inicialmente, tem necessidade do livro, poderá consultá-lo. Uma criança que soubesse verdadeiramente escolher, seria já um progresso! Mas como o conseguir! Depois deste ataque por parte de certos pais, com preendemos que era efectivamente preciso conseguir fazer alguma coisa. A escala foi um trabalho colectivo. Depois, alguns aplicaram-na, outros não. Roger — Como se manifesta, por exemplo, a colabo ração entre os professores dum mesmo nivel? Que fazem eles em conjunto? Mimi — Verifiquei que eles se agrupavam, em geral, por idades. Acontece que as idades e o nivel se corres pondem pouco mais ou menos. Eles mostram uns aos outros os seus êxitos. Às vezes, tenho tempo para me des locar a um local; aproveitam então a minha presença e convidam-me para ir ver o que experimentaram. NA REGIÃO PARISIENSE 157 Lucien — No conjunto, no plano da escola, não se pode dizer que haja verdadeiramente colaboração entre os professores. Não há, efectivamente, uma verdadeira equipa, com tudo o que isso pressupõe de confrontação e de busca em comum, fora das horas de classe. Mimi — Na medida em que nos ocupamos de certas classes, há colaboração entre os professores dessas classes. Mas em relação aos outros, não. No início do ano, nós bem dissemos que estamos à disposição de seja que pro fessor (tradicional) for da nossa própria escola para o auxiliarmos no seu trabalho. No que toca à pedagogia Freinet, eles podem recorrer a um de nós dois no plano das duas escolas, consoante as técnicas e os nivéis. Muito poucos, dentre os professores tradicionais, recorrem a nós. A abertura sobre uma biblioteca municipal Na cidade, certamente, conhecemos dificuldades, mas também dispomos de possibilidades que não estão ao alcance dos nossos camaradas do meio rural. Podemos, assim: — em história, graças à proximidade de Paris, estudar monumentos e vestígios de épocas passadas; — do ponto de vista artístico, visitar exposições de obras conhecidas ou contemporâneas; — do ponto de vista expressão corporal e ritmo, a municipalidade põe desde há vários anos à nossa disposi ção animadores; — levar as nossas crianças à biblioteca infantil onde os mais crescidos aprendem a efectuar investigações e a escolher livros, e os mais pequenos adquirem o gosto pela leitura. No ano passado,os nossos 4 C. P. «Freinet» foram frag mentados em grupos de nivel. Num quadro diferente do 158 A PEDAGOGIA FREINET quadro escolar, eles souberam vencer as dificuldades da decifração. Achavam-se repartidos por grupos (forte, mé- dio-forte, médio e crianças com dificuldades). Cada um por sua vez, um grupo partia para a biblioteca acompa nhado por uma professora e por mim própria. As profes soras ocuparam-se de todos os grupos alternadamente e fizeram ciclos completos. Adaptávamo-nos às possibilidades das crianças. O grupo forte, muito pouco numeroso a prin cípio, foi crescendo, ao mesmo tempo que ia diminuindo o dos que sentiam dificuldades. Jovens bibliotecárias encontravam-se à nossa disposição. Repartíamos as crian ças por duas salas (pequenas mesas para 4 e bancos), 12 a 15 aproximadamente em cada sala, comigo ou juntamente com uma professora, auxiliada por uma bibliotecária. Após uma liberdade completa de 5 minutos para a escolha dos livros, as crianças decifravam silenciosamente. Passávamos junto delas para as obrigar a ler. No fim da sessão, eles liam em voz alta a sua página preferida e contavam a his tória aos camaradas. Ao deixarem a biblioteca, estavam autorizados a levar consigo o livro da sua escolha. As crian ças com dificuldades liam-nos as palavras que conheciam. No fim da sessão, uma jovem bibliotecária apresentava-lhes ao episcópio uma história ilustrada. Entretanto, os outros grupos trabalhavam na escola consoante o seu nivel com textos infantis ou, no caso dos mais fortes, com os livros da biblioteca da classe. Pudemos comprovar a realização de muitos progressos entre os mais novos, bem como uma grande alegria sem pre que eles «descobriam» a possibilidade de decifrar uma história. Vamos recomeçar esta experiência este ano. Lucien — Após vinte e cinco anos de direcção escolar e de esforços para promover a pedagogia Freinet, aconte NA REGIÃO PARISIENSE 159 ce-me, às vezes, pôr-me a pensar num balanço; o meu objectivo era constituir pelo menos uma equipa praticando a pedagogia Freinet por forma a permitir a algumas crian ças a realização duma escolaridade completa de acordo com a pedagogia Freinet. Era não contar com as mudanças contínuas de pessoal na região parisiense, com o afastamento involuntário de substitutos nomeados estagiários noutro lado, com o aban dono de alguns que regressaram a uma pedagogia tradi cional. Não consegui formar esta equipa durável ideal. Teremos, então, falhado? Em relação a este ponto preciso, sim. Todavia, sabemos às vezes que este ou aquele colega que trabalhou vários anos connosco prossegue os mesmos métodos noutros lugares, e se torna mesmo, por sua vez, animador. Deste modo, se falhámos a nossa colheita, aqui, em Choisy, nem por isso todas as sementes se perderam... Em Portugal, no ponto mais alto da esperança no Externato da Torre (uma reportagem de R.U.) Uma visita ao Externato da Torre (Lisboa), onde Ana Maria e Lígia praticam as técnicas Freinet. Maio de 1974. Duas semanas após o golpe de Estado libertador e a dissolução da P. I. D. E., a polícia política, Lisboa continua a viver num clima febril. Na rua. as pessoas disputam os jornais, em especial o primeiro número do Avante, órgão do P. C. Desfiles, reuniões, proliferação de panfletos e de cartazes atestam a vivência duma liberdade recuperada. Inscrições feitas à pistola convidam todos a celebrar o Primeiro de Maio Vermelho ou a darem caça aos agentes da P. I. D. E. emboscados. Paira no ar uma embriaguez de férias. No ar e nas escolas, pois nenhum estabelecimento ficou indiferente ao grande «chinfrim» e os alunos, mais depressa do que os adultos, têm idéias precisas sobre as mudanças a promover: suprimir o espartilho de exames numerosos, minuciosos, enciclo pédicos (revisões que abarcam vários anos), criar conselhos de alunos nos estabelecimentos de ensino, limitar a selecção, adoptar a semana de cinco dias... Nos arredores de Lisboa, vou visitar Ana Maria e Ligia que fizeram funcionar durante quatro anos numa espécie de semiclan- destinidade uma escola Freinet. Semiclandestinidade, pois por oca sião das inspecções era preciso esconder os jornais escolares e fechar à chave o compartimento onde se encontravam as imprensas escolares. Trata-se duma escola privada. No sector do ensino público, os professores são catalogados em fichas. Ana Maria está em boa posição para o saber: bastou-lhe assistir a um festival de juventude no estrangeiro para ser expulsa do ensino oficial. Além disso, a rigidez das tradições escolares nas escolas urbanas interdita ai qualquer inovação; tudo se resume a uma corrida contra-relógio para «engolir» o programa e apresentar alunos para um ingresso 11 162 A PEDAGOGIA FREINET no secundário que se faz mediante um exame muito selectivo, pró ximo do concurso. Trata-se duma escola privada para filhos de gente rica. Alunos tão infortunados quanto felizes, já que, entre eles, os brinquedos e os gadgets são distribuídos em superabundância e mascaram carências afectivas ou nevroses possessivas. E os pais? Não indi ferentes, pelo contrário. Prestáveis, sensíveis, mas profundamente desamparados, angustiados numa sociedade de fachada. Clientela privilegiada? Ah, não!, protesta Ana Maria. A pedagogia Freinet com crianças das classes populares, crianças novas, ávidas, é um sonho! Aqui, o que se oferece já não desencadeia motivação numa infância saciada e mimada. Nostalgia da ilha deserta que a todos permitiría reconstruir a partir das verdadeiras necessidades... Ana Maria — Há vários anos já que Lígia e eu falámos em fazer qualquer coisa em colaboração, e chegámos a acordo para fazermos uma pequena escola. Foi há cinco anos, em 1969. Começámos por um pequeno grupo de trinta alunos, na maternal. Concordámos em aumentar a escola todos os anos de uma classe por ano. Instalámo-nos na casa que meu pai me deixara. Como vês, é uma grande casa de três andares; a maior parte dos meus irmãos tinham partido para a guerra, e a casa estava, portanto, livre. A escola aumentou de uma classe por ano; ao mesmo tempo, procedíamos aos arranjos necessários para pôr estas clas ses a funcionar. A escola foi crescendo juntamente com o número de crianças. Presentemente, temos uma centena de crianças distribuídas por três anos de escola maternal e três anos de escola primária. No próximo ano, inaugura mos o quarto ano de escolaridade, e passamos assim a cobrir todo o ciclo elementar. Roger — Isso dá, portanto, aproximadamente, uma média de quinze par classe. Tu começaste com amigos; como recrutaste as tuas auxiliares? ANA Maria — Foram amigos que reuniram o dinheiro. Fomos cinco a inaugurar a escola. Roger — Já tinhas antes ensinado? EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 163 Ana Maria — Sim, eu já tinha dado aulas, mas durante dez anos estive proibida de ensinar por razões políticas. Antes disso, ensinava no liceu, mas isso não era verdadeira mente o que eu desejava fazer — preferia ocupar-me de crianças. Roger — E os dez anos durante os quais não pudeste ensinar, foram de 1960 a 1970? Ana Maria — Sim, logo a seguir aos meus estudos universitários; dei aulas durante dois anos, mas fui afas tada do ensino por ter participado no festival mundial da juventude na União Soviética. Começámos a escola com trinta alunos e duas educadoras. Foi muito agradável, nesse ano, ver tantas crianças nesta casa. Apresentar as técnicas Freinet aos pais Roger — Procuraste introduzir métodos novos, e che gaste, assim, às técnicas Freinet. Como é que isso aconte ceu? Como levaram vocês os pais e os professores a aceitar estes métodos? (51) Ana Maria — Em relação aos pais, nós fizemos nume rosas reuniões no princípio do ano. As primeiras crianças que para aqui vieram eram filhos de pais que nós já conhe cíamos. Eles tinham ouvido falar do nosso projecto de fazer uma escola dum género diferente. Eram quase pes soas amigas. Diziam-nos eles: «Ah! com vocês eles estarãobem.» Realizámos, quase durante dois meses, reuniões muito frequentes com os pais. Explicámos-lhes o que íamos fazer e o que pensávamos da escola em geral. Seguida mente, durante três anos, discutimos com os pais de maneira muito regular problemas de pedagogia, de psicologia e de aprendizagem, ao mesmo tempo que as atitudes a adoptar em relação às crianças. Era sobretudo Lígia que falava, pois 164 A PEDAGOGIA FREINET ela conhece muito bem todos estes problemas. Este ano, não tivemos praticamente alunos novos, e alterámos um pouco o espírito da nossa escola. Em vez de fazer reuniões plenárias, convidamo-los cada um por sua vez, se assim o desejarem, a assistir aos nossos conselhos de professores, como viste há pouco (tinham aparecido três pais). Quinta- -feira, Lígia receberá os mesmos pais na qualidade de psica nalista. Geralmente, ou são os pais que pedem para entrar em contacto connosco, ou somos nós mesmos que deseja mos ver os pais por ter surgido uma situação qualquer com os seus filhos. Suspendemos as reuniões sistemáticas, e dissemos aos pais: vocês agora já sabem muitas coisas; podem também ler—aqui estão algumas obras — e se, indi vidualmente, ainda tiverem problemas, venham-nos ver individualmente. Em vez das reuniões de informação, con vidámos os pais a assistir ao trabalho dos filhos na pró pria classe. Roger — Vocês fixaram um dia da semana para isso? Ana Maria — Não, eles marcam, simplesmente, uma entrevista. Certos dias, eles acorrem em grande número. Repartem-se pelas classes com a professora, depois do que os reunimos num salão e discutimos com a totalidade dos pais. Roger — Retiraram vocês benefícios dessas reuniões? Ana Maria— Sim, elas permitiram falar a todos os que aqui trabalham, e não apenas a Lígia e a mim. As profes soras ganharam mais segurança e desembaraço, e estas reu niões constituem agora uma espécie de motivação para o seu trabalho. Actualmente, estamos a preparar uma reu nião durante a qual iremos projectar uma montagem que permitirá compreender melhor o trabalho das crianças. Montagem essa que eles fazem inteiramente sozinhos. EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 165 Roger — Quanto ao pessoal, vocês já não sentem actual- mente dificuldades? Lígia — Temos muita dificuldade em recrutar profes sores. Quando se apresentam voluntários, damos prioridade aos que manifestam antes de tudo uma boa relação com as crianças. Ana Maria — Geralmente, Lígia e eu falamos com a pessoa que se apresenta. Depois, a formação é feita aqui; trabalhamos juntos em classes. Pois tanto Lígia como eu encarregamo-nos muito facilmente duma classe e trabalha mos com as crianças, o que tranquiliza bastante as pessoas que chegam. Roger — Os professores ficam geralmente quantos anos nesta escola? Ana Maria — Todos os mestres que cá temos, estão cá desde a inauguração da escola. Há apenas uma professora que nos vai deixar no próximo ano, pois está à espera dum segundo filho. Freinet em Portugal Roger — Como travaste conhecimento com a pedago gia Freinet? Ana Maria — Há quinze anos que estou familiarizada com as idéias de Freinet, pois conheci a introdutora de Freinet em Portugal, a Sr.a Borges. Conheci Maria Borges no ano em que fui obrigada a abandonar o ensino. Segui um dos cursos que ela tinha organizado. Durante os anos que estive afastada do ensino, ocupei-me dos meus próprios filhos e li todos os escritos de Maria Borges, todos os livros que ela recomendava. 166 A PEDAGOGIA FREINET Roger — Tu também frequentaste um cento número de estágios e de congressos Freinet? Ana Maria — Sim, frequentei um estágio nos Pirenéus em 1970. Roger — Tinhas visto funcionar classes em França? Ana Maria — Não, porque os estágios tinham geral mente lugar durante as férias. Aquele estágio realizou-se em Aragnouet. Foi um grande êxito, e quando regressámos, tínhamos desejo de fazer muitas coisas com o pequeno grupo que se constituíra à minha volta. No ano seguinte, convidámos alguns amigos franceses presentes no estágio de Aragnouet a virem a Portugal, e organizámos um pequeno estágio. Roger — Vocês, nessa altura, tinham de fazer tudo isso de maneira clandestina, não? Ana Maria — Não, nós evitávamos fazer publicidade nos jornais, mas reuniões pedagógicas era uma coisa que tínhamos, mesmo assim, a possibilidade de fazer. A coisa teve lugar numa casa particular, de modo que não houve qualquer manifestação exterior que pudesse chamar a aten ção para os participantes. Liberdade ou negligência? (52) Roger — Quando se vive na vossa escola, tem-se a impressão de estar verdadeiramente numa escola Freinet: as relações são sensíveis, afectuosas, as crianças estão liber tadas. Todavia, a crítica que duma maneira geral se faz à nossa pedagogia é a de não ser suficientemente exigente e eficaz. Vocês deparam com o mesmo tipo de crítica por parte dos pais? Ana Maria — É essa a questão que estamos precisa mente a estudar neste momento, pois agora a relação é EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 167 muito boa entre os professores e as crianças, mas temos algumas dificuldades em conseguir que, relativamente a certos pontos, as mestras apresentem uma certa exigência; o temperamento português inclina um pouco a deixar cor rer, a tolerar demasiadas coisas. Elas puseram de lado o tradicional e têm agora a impressão de que, quando siste matizam um pouco os conhecimentos, regressam ao tradi cional. Lígia— Pelo que me toca, creio que isso deriva essen cialmente de elas serem muito novas; se tu lhes falas de liberdade, elas não compreendem que se não trata sim plesmente duma tolerância, mas também duma exigência para consigo próprio. Para elas, ,a liberdade é um pouco a anarquia. Esta noção de liberdade é mesmo difícil para mim própria, e compreendo muito bem que elas se sintam tentadas pela anarquia. Roger — Vocês falaram deste problema com os profes sores? Ana Maria — Sim, é também um pouco por culpa minha, pois eu não me sei impor. Creio também que me devo comportar para com elas tal como desejo que elas se comportem para com as crianças, e evito, portanto uma rigi dez excessiva. E ao ter para com elas esta atitude de aceita ção, não dou a impressão de ter um projecto; portanto, não obtenho da sua parte uma resposta a este projecto. Lígia — A única solução parece-me ser a de deixar uma grande liberdade às crianças e aos professores nos seus projectos, mas mostrar-se depois exigente no que respeita à realização, à apresentação deste projecto. De maneira que é através da forma que vamos talvez fazer sentir às crianças as necessidades do esforço, da superação de si próprio. É aqui que deparamos com a maior dificuldade: as crianças, um pouco como os adultos, não compreendem 168 A PEDAGOGIA FREINET a necessidade de se interessar por um projecto, de o terminar; passam dum projecto a outro e não se con vencem da necessidade de certas sistematizações. Sim, ao princípio do ano, tudo «arranca» muito bem, fazem-se pla nos de trabalho e cumprem-se os planos de trabalho. Ao fim de dois ou três meses, o interesse diminui. Roger — Acaso não se podería chegar a acordo com os pais relativamente a um certo número de exigências que encontrariam também correspondências na vida familiar? Lígia — Aqui, é muito difícil, porque os pais dão tudo às crianças; são crianças muito protegidas. Quando a riqueza esteriliza Ana Maria — Devido a terem sido estragados com mimos, as crianças e os pais não têm em consideração os esforços da vida escolar; por exemplo, um jornal escolar, para eles, não significa grande coisa, pois eles dispõem de revistas, de magazines, de álbuns. Estou certa de que com crianças de meios populares se obteriam resultados bem melhores neste plano. Roger — Então a cooperativa escolar não faz muito sentido na tua escola? Ana Maria—Podemos muito facilmente obter dinheiro; as crianças têm todo o dinheiro que quiserem, mas não vêem a utilidade de consagrar estedinheiro a uma acti vidade escolar. Por exemplo, este ano, dissemos às crian ças: vocês não trazem nada de vossas casas, e vamos instalar uma espécie de cooperativa na escola destinada à aquisição dos objectos de que temos necessidade. A coisa funcionou bem durante um certo tempo, mas devido ao facto dos recursos em dinheiro provirem da família e não das suas EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 169 próprias actividades, a motivação não era a que se teria conhecido num meio popular. Roger — Vocês nunca procuraram encontrar motiva ções na correspondência escolar? Ana Maria — Tentámos introduzir a correspondência escolar na nossa escola, mas é muito difícil. Temos duas classes que trocam correspondência, mas enquanto em França o correio é muito rápido, aqui, é muito mais lento e os hábitos familiares são quase exclusivamente os do tele fone, muito mais que os da correspondência. É por isso que, na classe, a motivação para a correspondência é muito reduzida. Roger — Quais foram as repercussões na vossa escola dos acontecimentos do 25 de Abril? Ana Maria — Todas as crianças estavam sobreexcita- das, e agora temos ainda muita dificuldade em conseguir uma concentração de espírito normal. As crianças são for temente afectadas pelo que se passa na rua, pelas discussões familiares, pelos jornais, e não tardou que as crianças nos apresentassem os seus primeiros poemas. Roger — Poderías ‘tu .traduzir-nos alguns dos poemas? ALEGRIA E TRISTEZA Estou contente com tudo o que aconteceu, mas não com uma coisa: o meu tio estava na guerra e morreu. Os presos podem sair da prisão mas os que estão mortos não podem sair da morte. A guerra acabou estou contente, mas o mais belo seria que o meu tio ainda estivesse vivo. Catarina, 6 anos 170 A PEDAGOGIA FREINET O PESADELO Eu tive um pesadelo As pessoas deviam partir para a guerra por sete anos deram-me um uniforme, uma espingarda, e botas que faziam doer os pés. Um rapaz de dez anos era o comandante ele obrigou-me a dar corridas pelos campos, eu parti para a guerra Puseram-me num comboio e disseram-me: Senhor Pedro a espingarda serve para defender e para atacar, eu tive medo e acordei. Pedro, 7 anos Volto a encontrar Ana Maria e Lígia, algumas horas mais tarde, por ocasião da reunião do grupo português de escola moderna que terá lugar na sua escola às 22 horas e se prolongará pela noite dentro. Entretanto, José leva-me a apanhar fresco até Cascais. A estrada passa nas proxi midades da sinistra prisão da P. I. D. E. onde a Gestapo portuguesa internava os seus suspeitos. José e sua mulher conheceram-na cada um por sua vez, por motivos fúteis, como seja a criação duma cooperativa cultural legal que editava obras literárias de autores jovens. O que se reve lava mais duro? Preparar o seu filho de oito anos para a ideia de se ver bruscamente privado dos pais, habituando-se EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 171 a viver com esta obsessão. Mas, entre suspeitos, internados e ex-internados, reinam a ajuda mútua, a astúcia e a fra ternidade, mesmo nos limites da provocação: um piqueni que gigante organizado no arvoredo que rodeia a prisão, um desfile de automóveis a buzinar. Estas coisas são ditas com simplicidade, sem vaidade, sem fanfarronice. Ana Maria conclui:—Se queres saber, prefeririamos não ser citados num jornal ou numa revista. Tantos outros fizeram mais do que nós pagando-o com a vida. Não somos mártires. Simplesmente, sobreviventes da esperança. Uma certa alegria de viver por Roger Montpied e Mado Merle (reportagem de Janou Lémery) — Eu gosto dos professores... gosto das matemáticas... gosto das salas de trabalho... Trabalho no atelier todas as noites em minha casa. Algumas frases do painel «Criticas e Sugestões», algumas pala vras ouvidas de passagem... reveladoras duma ambiência familiar, calorosa, animada. Algumas crianças trabalham com fichas de gramática, outras retomam textos livres, outras preparam-se para uma leitura sonora individual, outras ainda trabalham colectivamente na descoberta do número 14, verificam com a máquina de calcular as dádivas destinadas à cooperativa durante o mês de Janeiro. Outros dois redigem cheques para encomendas. O livro de poemas acompanha nas compras os cestos do catálogo de La Redoute... É a vida que está ali presente, tanto nos seus aspectos materiais realistas como nos seus aspectos mais secretos e íntimos. Passo dum grupo a outro. Observo, escuto — as crianças são directas, cheias de bom-senso, abertas. Informam-se reciprocamente, criticam-se sem complacên cia. Mais uma vez, a vida com as suas asperezas, a sua diversidade, os seus constrangimentos; uma vida que se pode agarrar com as mãos, a matemática, a poesia, o lado a lado com o companheiro de trabalho, a leitura solitária, a palavra e o olhar do professor amigo. São estas as primeiras impressões que colhemos junto de Mado Merle, de Roger Montpied e dos seus alunos do C. P.-C. E. E depois, quando você decide interiormente ganhar um certo recuo, distanciar-se para ser objectivo e transmitir uma mensagem, apercebe-se, então, do que torna possível este fervilhar de vida. 174 A PEDAGOGIA FREINET • Uma organização racional do mínimo espaço: uma distribuição equilibrada dos cantos para atelier, do centro- -fórum e dos cantos pessoais — unicamente objectos úteis e desde logo utilizáveis pelas crianças; engenho no porme nor do instrumento (um pára-brisas de automóvel no atelier de estampilhas (lâmina com letras, desenhos, etc., recor tados para pintar) o que elimina os acidentes com o cilin dro, os dedos...), uma incitação à ordem fecunda (guarda- -fato de plástico para os trajes de teatro...); corredores aproveitados para o trabalho de investigação em ciências e em música. • Uma multiplicidade de técnicas de trabalho aliando a investigação livre à investigação guiada, o esforço soli tário e o esforço colectivo, a provisão de exercícios tradi cionais e a maior liberdade possível na descoberta — audá cia, mas também uma certa ponderação própria na Auvérnhia. • A imagem duma mulher e dum homem verdadeiros, com os seus impulsos, os seus entusiasmos, as suas hesita ções. Têm certezas, mas também dúvidas; paciência, muita disponibilidade interior, mas os seus minutos de enerva- mento, de irritação. Mado e Roger existem nas suas classes e completam-se. Como souberam eles tirar proveito da sua complemen taridade? Ouçamo-los: — Materialmente, reorganizámos as nossas classes me diante economia de espaço e uma melhor utilização: mate rial de francês dum lado, de matemática do outro; material de composição do jornal juntamente com o francês, im prensa e decoração do outro; divisão dos ateliers de ante UMA CERTA ALEGRIA DE VIVER 175 infantil (pintura, pirogravura, costura, trabalhos ma nuais...). Esta repartição do material fixa o professor na sua classe, sendo os alunos que mudam: segunda-feira de manhã numa classe, segunda-feira à tarde e terça-feira de manhã noutra, terça-feira à tarde na primeira, etc., de maneira a permitir às crianças alternarem e não terem francês ou matemática todas as manhãs. Consultamo-nos para equilibrar o trabalho individual fornecido por cada professor, para explorar um assunto abordado durante uma conversação em francês... Em suma, embora repartindo entre nós as matérias a ensinar, evitamos especializar-nos e consideramos que a continuidade do trabalho da criança (tem prioridade sobre a compartimentação escolhida e imposta pelos professores. É importante que a criança sinta que não existe descon- tinuidade de que tanto ela podería beneficiar como... ser prejudicada. Os momentos de intercâmbio entre os professores tendo em vista a coordenação processam-se durante os recreios ou rapidamente antes ou após as aulas. Um outro aspecto do nosso trabalho de equipa: a pos sibilidade de recuperação de atrasos escolares em peque nos grupos. Por exemplo, durante a última hora de segunda--feira, Mado ocupa-se da recuperação dos que se atrasaram em francês durante a semana (10 a 15 em três cursos), ao mesmo tempo que Roger se ocupa dos restantes em inten ção dos quais passa documentos audiovisuais muitas vezes recebidos do C. R. D. P. e relacionados com os temas abor dados na disciplina de «despertar». Para que estas recuperações sejam eficazes e consigam «preencher os fossos» que se aprofundam incessantemente ao longo da escolaridade, seria preciso chegar a um número 176 A PEDAGOGIA FREINET de três professores para o efectivo de duas classes actuais. Assim, podería fazer-se um bom trabalho! Razões de queixa avançadas pelas crianças: algumas gostariam de ficar com o mesmo professor (preferência afectiva); outros acham que isso obriga a arrumar muitas vezes a «tralha» escolar, o que é verdade, mas representaria antes uma vantagem para a escolaridade futura na medida em que, desse modo, a criança aprende a seleccionar o que lhe é necessário. — Foi preciso, a princípio, explicar muito bem aos pais. — Vantagem: a criança fica menos tempo bloqueada num insucesso, e ao mudar de lugar, tem a possibilidade de se resgatar mais facilmente, pois não permanece durante o dia inteiro com o mesmo professor. — Com o acordo do nosso novo inspector, estamos deci didos a continuar e a ir mais longe, se possível, mas a falta de espaço e os efectivos impedem-nos de trabalhar em atsliers permanentes. — Cada um ganha uma consciência mais clara do seu trabalho, e as noções novas decantam-se mais facilmente. — Corrigimo-nos e enriquecemo-nos mutuamente, gra ças à necessidade das consultas, das discussões e dos inter câmbios para harmonizar o trabalho. — Para «julgar» a criança, dispõe-se de duas opiniões em vez duma, corre-se o risco de cometer menos erros e acompanha-se a evolução ao longo de três anos. Se se quiser entrar um pouco mais profundamente na intimidade das crianças, basta observar algumas produções gráficas que enfeitam as paredes, ler um ou dois textos livres do dia, que nada têm de anódino, uma pesquisa matemática... os documentos não faltam. Os professores são modestos, as obras raramente são publicadas, a menos que os obriguem a isso... a socialização, são os correspon UMA CERTA ALEGRIA DE VIVER 177 dentes de Saint-Babel, de Artonne, no Puy-de-Dôme, o seu jornal é Nos Monts, difundido pelos pais associados à vida do grupo. HISTÓRIA DE DEUS Um dia, Deus veio até à feira, depara com um velho muito curvado e outro muito divertido. AH! COMO ERA DIVERTIDO! Deus ri às gargalhadas, que ecoam por toda a feira. Todos olham para ele verdadeiramente embasbacados. Deus ri ainda mais alto e depois afasta-se sempre a rir. Tropeça numa pedra, E CESSA DE RIR, faz uma careta muito cómica, e então todos se põem a rir. Deus ri por sua vez. Outras pessoas, atraídas pelo barulho, aproximam-se e riem também. DEU-SE 0 CASO DE QUE TODA A FRANÇA SE PÔS A RIR! E no entanto, Mado Merle e Roger Montpied têm pro blemas, como vocês e eu. Cada um tem a sua família, preo cupações, trabalha aqui ou ali até ao limite das suas possi bilidades físicas muitas vezes, da sua disponibilidade. 12 178 A PEDAGOGIA FREINET Eles sabem, como você e eu, que gostariam de fazer sempre mais pelo grupo departamental em que nos senti mos tão bem, fazer sempre mais ao nivel sindical, polí tico, etc.... mas vinte e quatro horas é pouco tempo. A vida é feita de opções... cabe a eles fazerem as suas. O arquitecto também educa por Raymond e Jacqueline Massicot com Jean-Claude Dubois (reportagem de R. U.) Um arquitecto (53) ao serviço das crianças, e não do prestígio municipal. Uma arquitectura que prova que, se a escola é cara às crianças, sai menos custosa à comuna que um edifício clássico. Uma arquitectura na qual a pedagogia Freinet deixa de ser a qua- dratura do círculo. Essa arquitectura existe agora, e é em Magny -Cours que a vamos encontrar. Podemos dizer que ela assinala o aparecimento dos arquitectos-educadores. Jacqueline e Raymond Massicot, os seus colegas e ainda menos as crianças não conhecem o Sr. Arquitecto. Jean-Claude é o nome por que conhecem aquele que desde há três anos os vem visitando regularmente. Dezenas de conversas tiveram lugar entre ele e os alunos, fora de qualquer espécie de publicidade. Nada de «mesas redondas» transmitidas pela televisão, como se vê noutros lados sempre que excepcional e artificialmente se improvisa uma con frontação entre criadores e utentes. Aqui, o diálogo tornou-se numa rotina. Jean-Claude Dubois (do atelier «Volume») passa por ali e a sua presença não é mais notada que a do carteiro. Ele sabe, porém, ouvir as crianças, e nenhuma interrogação se lhe afigura fútil ou impertinente. Hoje, são Thierry, Stéphane, Nadine e Monique, alunos dos cursos médios, que desejam saber mais coisas sobre a decoração da estacada. Uma vigilância precoce Stéphane — Eu gostaria de saber quando é que você traz de novo as tintas para continuar as personagens. Pois eu vi, quando da inauguração, que isso era uma coisa que agradava. 180 A PEDAGOGIA FREINET Jean-Claude — Há ainda tinta. É preciso que ela acabe, e depois há que pedir à câmara municipal um pequeno orçamento para continuar. Stéphane — As cores serão sempre as mesmas? Jean-Claude — Não! É preciso mudar, com certeza. É preciso que haja a maior liberdade possível. Stéphane — Você escolheu, mas vai escolher outras, quando as tintas acabarem. Houve outros que fizeram modelos, será você ainda quem os irá escolher? Jean-Claude — Outras cores ou outros desenhos? Stéphane — Não! Outros desenhos? Jean-Claude — Não, eu escolhí quando da inauguração, mas agora é a vossa vez de escolher, de descobrir. Nadine — O que eu não acho bonito, são os coisos brancos, sobretudo agora que estão sujos, enegrecidos; seria preciso pintá-los. Jean-Claude — Sim, está previsto pintar um certo número muito simplesmente para indicar as classes, certas passagens e fazer uma espécie de policromia exterior; mas isso só será por altura da próxima reabertura das aulas. Antes de o fazer, pensou-se que era preferível que a relva crescesse um pouco e que os acessos estivessem um pouco melhor .preparados para se não correr o risco de sujar os painéis. Nadine — Tratar-se-á de desenhos de crianças, como sejam bonecos, ou então de desenhos unidos? Jean-Claude — Isso depende dos painéis. Nadine — Os túneis, por exemplo, se forem unidos, será essa a cor das classes? Jean-Claude — Não, as cores poderão ser outras. É preciso descobrir cores que se adaptem bem exterior mente e que não choquem demasiado em relação às cores interiores. O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 1«1 Monique — Agora, estou longe disso, mas suponhamos, por exemplo, que dentro de seis anos, o grupo começa a estragar-se; você mandará repará-lo? Jean-Claude — Sim, mas não há razão para isso, pois a coisa foi construída duma maneira muito sólida e muito pesada para que precisamente não surjam problemas de envelhecimento. Mas, se por acaso isso vier a acontecer, a reparação far-se-á imediatamente. Monique— Na realidade, chovia lá dentro, mas eles vão repará-lo? Jean-Claude — Sim, com certeza, eles estão neste momento a reparar todas as fendas. Thierry — Em relação ao problema do futebol, num certo sentido, é bom ter um pátio como este, alcatroado, enquanto que no outro havia poeira. Noutro sentido, já não é tão bom, pois não se pode jogar futebol; mas, quando a relva tiver crescido, poderá jogar-se sobre ela? Jean-Claude — Sim, sim! está fora de questão não se poder pisar a relva. Stéphane — Eu gosto mais desta escola, deste pátio, porque no outro podíamo-nos magoar; mas não se deveria jogar futebol, pois podemo-nos magoar e, sobretudo, as bolas podem partir os vidros... Thierry — Eu gostava muito do pátio da antiga escola. Aqui, o que há é alcatrão, e as calças ficam muitas vezes rasgadas, o que acontecia com menos frequência na antiga escola. Jean-Claude — Sim, masquando puderes pisar as par tes relvadas, irás para onde não corras o risco de rasgar as calças. Poderás escolher. Na antiga escola, tinhas um pátio de terra batida, e quando chovia o que havia era lama. Também corrias o risco de cair. Monique — Nas actividades da escola, do que eu mais gosto é da possibilidade de se fazer reuniões. Na outra, 182 A PEDAGOGIA FREINET não o podíamos fazer. Tínhamos menos actividades artís ticas, etc., e havia falta de espaço. Outra coisa de que gosto muito é da claridade das salas de aula devido às grandes janelas, enquanto que a outra escola era escura. Gosto também muito do atelier, que agora é uma sala inteira, enquanto antes os ateliers apenas ocupavam um canto da classe, o que não me agradava. Enquanto, agora, gosto! Nadine — Eu também; na outra, estávamos bem, mas não era a mesma coisa. Gosto mais desta escola. E do mobiliário também, pois antes as mesas estavam ligadas às cadeiras, enquanto agora podemos deslocar as cadeiras. Monique— Além disso, também gosto muito, aqui, das casas de banho, porque antes, quando lá queríamos ir, não o podíamos fazer, e tínhamos de esperar. Agora, podemos ir sempre que nos apetecer. Roger — E a instalação das casas de banho é melhor, e mais asseada? Monique — Sim! É muito melhor e mais higiénica. Roger — Tratam-vos como adultos, e não como crianças. Monique — Nas outras latrinas, quando chovia, havia lama, e quando fazia sol, cheirava mal. Nadine — Cheirava mal, até não se poder mais. Monique — Além disso, as latrinas dos rapazes e das raparigas estão separadas, o que é melhor. Stéphane — No próximo ano, a relva terá crescido, pisá-la-emos constantemente, o que acabará por estragá-la, não? Jean-Claude — Não, porque no campo de futebol cal ca-se a relva com uma intensidade muito maior; e ali onde vocês vão poder andar, como a superfície é muito grande, não é forçosamente no mesmo sítio. Stéphane — Mas vamos poder andar lá em qualquer altura? O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 183 Thierry — Do que eu não gosto são das torres de cimento das platéias do pátio. Monique — Sim, e eu, pela minha parte, gosto dos ateliers, pois não existiam na outra escola, pelo que está vamos sempre encerrados na nossa sala de aulas. Não podíamos ir ver os companheiros e as companheiras, enquanto que, agora, podemos. Stéphane — Os ateliers ficavam dentro das salas de aula, o que dava cabo dos ouvidos aos que trabalhavam nos planos, impedindo-os de prosseguir os seus esforços, ao contrário do que agora se passa, havendo salas especial mente destinadas para o efeito. Roger — A que chamas tu «planos»? Stéphane — Fazer planos de trabalho, fazer fichas. Mas penso que você está ao corrente do que se trata. Tra- ta-se dum plano de trabalho que se completa todos os quinze dias com fichas. Roger — Do ponto de vista da camaradagem, permite esta escola ter mais camaradas ou menos? Porquê? Stéphane — No atelier, podem estar duas classes; assim, podemo-nos ver uns aos outros, ao passo que na outra escola era diferente, pois estávamos todos na mesma sala de aulas. Por isso eu gosto mais desta escola do ponto de vista da camaradagem, pois vemo-nos com maior fre quência. O arquitecto escolar... um arquitecto como os outros? Roger — Quando se constrói uma casa, temos pela frente um cliente com as suas necessidades definidas, com desejos precisos; mas, no caso duma escola, conhecemos nós quem são os clientes? As crianças e os professores serão recrutados quando a caserna estiver construída! 184 A PEDAGOGIA FREINET Jean-Claude— O cliente não dispõe de meios para definir rigorosamente a sua necessidade. Fornece as gran des linhas, mas é ao arquitecto que cabe fazer compreender ao seu cliente as vantagens de certas soluções ou abrir-lhe os olhos. Intervém também uma certa pedagogia: o papel do arquitecto, inicialmente, consiste em informar o seu cliente dos meios disponíveis para que se abram novos hori zontes a esse mesmo cliente. Mas como pode o cliente compreender o problema da arquitectura? Ao folhear as revistas, ele limita-se a ver imagens acabadas, sem saber o que se passou antes, como se chegou àquele resultado, e não se pode partir dum resultado para edificar novas cons truções; pode-se utilizá-lo como experiência, mas em última análise seria necessário conhecer todos os processos que conduziram a esse resultado, e não vejo como poderia ser de outra maneira. Roger — Em relação a esta escola, qual foi o processo utilizado? Jean-Claude — Ela foi feita duma maneira muito sim ples, muito directa. Praticamente, no primeiro dia em que tiveram lugar as reuniões em casa do presidente da câmara Bernigaud, e em que participaram o inspector Chassery, os directores de escola Raymond e Jacqueline Massicot e nós próprios. Apresentámos as primeiras propostas, que não passavam de grafismos. Inicialmente, procurámos saber o que se poderia saber, informámo-nos; fizemos como toda a gente, lemos livros, observámos o que foi feito na Finlândia, na Suécia, na Inglaterra, nos Estados Unidos, depois do que traçámos um pequeno esboço topográfico geral muito rápido. A partir daí, elaborámos um vago ante- projecto, que era pelo menos um desenho gráfico, e na melhor das hipóteses um organigrama que foi submetido à sua apreciação e sobre o qual começámos as discussões. Foi essa uma das bases. 0 ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 185 Roger — Você fê-lo com que espírito? Imaginava você, já, a actividade escolar que ali iria ser desenvolvida? Jean-Claude — Não, nada disso, não conhecíamos nada do assunto, éramos absolutamente nulos e incapazes. Faz-se como qualquer arquitecto a quem confiam a construção dum grupo escolar, e que não construiu nenhum antes — era esse o nosso caso. Depois do que, este organigrama serviu de base de partida, e começámos a trabalhar. Come çámos, apesar de tudo, a ir até à antiga escola para ver o que ali se passava; discutimos com os professores, com as crianças, fizemos perguntas. De que género, por exemplo? Jean-Claude — Como é que eles viviam no interior? 0 que era isso da pedagogia Freinet? Pois para nós a pedagogia Freinet não passava dum grande «buraco»! Esti vemos em alguns congressos para ver o que lá se passava, para tentar compreender e afazermo-nos ao «clima», e a partir de então tentámos elaborar um projecto adaptado realmente às suas necessidades e capaz de corresponder ao que se pensava pelo menos como a melhor solução arqui- tectural. Oferecemos ao mesmo tempo aos docentes possi bilidades técnicas que permitiam tentar adaptar as suas idéias a qualquer coisa de concreto, de sólido, e chegou-se, assim, ao sistema de construção actual. Sistema de cons trução que se define muito rapidamente: os sistemas por tadores de base são túneis. Quando existem quatro túneis, ou se procede à instalação dum casco, ou não. Partimos, portanto, de volumes primários portadores e de muito fra cas dimensões, nos quais podíamos instalar serviços sani tários, passagens, arrumações, cantos-classe, etc., diferentes tipos de actividades que nos foram definidos por profes sores como correspondendo a coisas muito precisas. O segundo volume, que é um volume muito mais alto e com tecto, corresponde a actividades de classes, de ateliers 186 A PEDAGOGIA FREINET e de salas polivalentes; é a combinação deste todo segundo certos princípios que faz com que se obtenha a escola. Roger— Representou para si alguma coisa construir uma escola, em vez de fazer uma casa para habitação? Jean-Claude — É cem mil vezes mais interessante. Roger — Porquê? Jean-Claude — Do ponto de vista do contacto com as pessoas, com as crianças, com uma multidão de pessoas afectadas por este problema. No caso duma casa individual, temos negócios a tratar com um cliente, um homenzinho e uma mulherzinha, e temos toda a espécie de chatices possí veis com estas pessoas. Enquanto que no caso duma escola, fazêmo-la em primeiro lugar para uma comunidade rela tivamente importanteonde tudo se pode passar e, consoante as propostas que se façam, pois bem, tanto se pode falhar como não. Quero com isto dizer que isso tem uma influên cia ao mesmo tempo sobre o ensino (não directamente sobre o ensino, mas sobre as facilidades para proceder a este ensino). Portanto, é relativamente grave; se se não tem consciência deste tipo de problema, será indiferente aquilo que se fizer—quero eu dizer, tanto fará instalar barracas pré-fabricadas para funcionar como salas de aula; em relação a uma escola tradicional, uma barraca pré-fabricada tem o mesmo interesse num espaço verde. Não é um ins trumento pedagógico definido. No nosso caso, considerou-se a escola como um instrumento pedagógico, como um espaço de arrumação, como uma cadeira, uma mesa, um quadro; trata-se dum instrumento pedagógico como qualquer outro, simplesmente a uma escala um pouco maior. A contribuição das crianças Roger — Você definiu este instrumento pedagógico refe rindo um certo número de funções, um certo número de O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 187 atitudes, de possibilidades de trabalho por parte das crian ças. .. Jean-Claude — ...Que nos foram definidas pelas crian ças e pelos professores imediatamente; foi desse modo que chegámos a este sistema de construção. Roger — Terá isso levado você a descobrir um outro tipo de ensino, isto é, uma outra forma de relação com as crianças, uma outra forma de aprendizagem? Jean-Claude — Certamente, isso leva-nos a descobrir o que se não conhecia; e que não conhecíamos, uma vez que nos encontravamos em salas de aula que em nada se pareciam com aquilo e que eram salas de aulas tradicio nais, como as que se podem ver em qualquer liceu de província; não imaginávamos que aquilo pudesse existir. Roger — Foram as suas viagens ao estrangeiro que lhe permitiram observar de algum modo uma outra maneira de ser, de viver em conjunto no caso de crianças e de adultos? Jean-Claude — Sim, mas não essencialmente, pois existem boas experiências em França, por exemplo na região parisiense ou em Grenoble. Você encontra-as um pouco por toda a parte; simplesmente, elas não são conhe cidas, não são divulgadas, o que me leva a criticar os peda gogos, pelo menos os que se reclamam de Freinet, pois existe uma falta de informação verdadeiramente horrível. A partir do momento em que nos começamos a ocupar deste problema da arquitectura escolar, repetimos todos os anos a mesma coisa: não dispomos de informação; antes de que rer propor soluções novas ou construir grupos modelo, etc., importa saber, em primeiro luar, o que se fez no estran geiro e mais particularmente em França, onde existem deze nas e dezenas de experiências que ninguém conhece. Ora, com o pretexto de se deleitar com soluções modernas, fica-se satisfeito quando alguém descobre uma pequena solução 188 A PEDAGOGIA FREINET que represente um avanço em relação à escola tradicional; na realidade, em certos casos, essa solução está dez anos atrasada em relação a outras experiências; por conseguinte, antes de chegar a este estádio de discussão, é preciso em primeiro lugar informar-se, e eu lamento profundamente que os grupos Freinet não se informem. No estrangeiro, existem evidentemente numerosas experiências; pela minha parte, não me desloquei nem à Finlândia nem à Suécia, mas um outro arquitecto do atelier «Volume» foi à Holanda, onde existem experiências interessantes deste tipo; ele foi também à Suécia, e pôde, portanto, ver o que ali se passava; eu próprio fui à Suíça e aos Estados Unidos, onde, desde há vinte anos se vêm ocupando deste problema do grupo escolar. Deverá visar se a felicidade das crianças? Roger — Você sentiu por certo que as crianças podiam ser mais autênticas no meio que você criou. Você criou para elas um quadro de vida, mas não irá você ser objecto de críticas, nomeadamente a de que procurou tomar as crianças felizes, plenamente realizadas? Ora, pela sua arqui- tectura, você preparou-as muito mal para a .tortura dos C. E. S. pré-fabricados ou dos liceus-cidades-escolares. Jean-Claude — Sim, mas se não se começa muito cedo, quando se poderá começar? E se, de certa maneira, isso pode levar as crianças, que mais tarde serão adultos, a conceber outros tipos de habitat e a querem exigir outros quadros de vida, tipos de equipamento, de escritó rio, etc., pois bem, trata-se de um real progresso. É preciso pensar no que se passa depois, e é preciso mostrar-lhes que pode existir outra coisa, que cabe a eles exigi-la, reclamá-la. Creio que se trata duma coisa bastante positiva. É verdade que certos pais de alunos pretenderam que as crianças não O ARQUITECTO TAMBÉM EDVCA 189 podiam trabalhar num ambiente tão claro, tão colorido e tão agradável. Trata-se, no entanto, do mínimo vital, pode-se fazer muito melhor, mas apenas no tocante à forma, não ao fundo; o fundo é o que verdadeiramente conta, e aqueles pais não compreenderam que com este tipo de instrumento pelagógico os seus filhos podiam progredir muito mais rapidamente e libertar-se muito mais depressa, ao mesmo tempo que os contactos com os seus camaradas se fariam duma maneira menos formal. Penso que isso pode fazer evoluir as crianças. Roger — Não acha você que, em última análise, é o espaço que tvocê lhes concedeu que constitui um dos elementos primordiais do seu desenvolvimento? Se você se encon trasse numa situação urbana, limitado a espaços medidos, disputados, poderia você fazer alguma coisa? Jean-Claude — Certamente; aqui, o terreno é muito grande e partimos duma base horizontal de um só nivel, mas podem perfeitamente encarar-se soluções de duplo nivel, com meios-nivéis, espécie de «duplex» para crianças, etc. Trata-se dum outro princípio, mas que visa o mesmo objectivo. É um problema de arquitectura que não levanta dificuldades de maior, e é o que se deveria fazer num meio urbano. No caso presente, demos resposta a um problema preciso e concreto: deram-nos um grande campo, espaço verde, possibilidades e espaço; é evidente que, num meio urbano, teríamos de pensar noutra solução. Roger — E se você tivesse de construir agora uma outra escola, que tipo de escola lhe interessaria? Jean-Claude — Gostaria de reconstruir a mesma escola, mas para me poder servir do que há de positivo e esquecer o que há de negativo; para evoluir. Pois, a partir desta base, é evidente que vejo agora as coisas com outros olhos e que uma segunda proposta se parecería vagamente com a primeira, excluindo embora os aspectos negativos. 190 A PEDAGOGIA FREINET Roger — A que chama você «aspectos negativos»? Jean-Claude— Muito simplesmente, problemas de organização interior. Não falo dos pequenos problemas arquitecturais ou técnicos, esses não são muito graves. Problemas de organização interna: quanto a mim, o orga- nigrama inicial foi falseado pelo facto de se ter dividido o grupo escolar em duas vezes quatro classes para as pri márias e uma vez duas classes para a maternal. Na reali dade, deveria-se ter reagrupado as oito classes primárias, centrando-as à volta das oficinas (ateliers) e em torno duma mesma e enorme sala polivalente, em vez de duas salas polivalentes divididas em dois, duas vezes, o que represen taria uma solução de todo em todo preferível; trata-se dum problema de escolha inicial, que se previu ao longo de dis cussões, no .papel; mais tarde, quando da utilização, aper- cebemo-nos de que existe um pequeno problema daquele lado e que seria preciso reagrupar muito mais ao nivel das salas polivalentes. Quem se dê conta do que ali se passa, vê que se trata de um grande defeito. Uma outra formação para os arquitectos escolares Roger — Não pensa você que a formação dos arqui tectos escolares não é suficiente e que se podería conceber uma espécie de formação em que eles estariam em situa ção durante um certo tempo antes de executar o trabalho proposto? Jean-Claude — Não existem trinta e seis soluções para fazer coisas desse tipo. No caso de gruposescolares como no de outros equipamentos, seria preciso, em última análise, exercer funções docentes durante dois ou três anos seguidos para bem compreender ao mesmo tempo o arquitecto e o utilizador-docente. 0 ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 191 Roger — Não poderia a formação encarar semelhante hipótese de trabalho? Jean-Claude — Não, pois nesse momento você tem de ser arquitecto com todos os problemas técnicos da constru ção; além disso, docente... Roger — Mas você quer fazer tudo. Não há possibili dade de especialização? Jean-Claude — Não, de maneira nenhuma; um arqui tecto deve ser um homem completo que deve poder res ponder a todas as soluções... Roger — Mal. Jean-Claude — Talvez mal, mas deve mesmo assim tentar encontrar resposta para elas, e todo o problema con siste em procurar ter uma abertura de espírito suficiente mente vasta para tentar responder a todas as questões. É evidente que, quando se é responsável por um grupo escolar, ao fim de dois anos, quando se construiu esse grupo, começa-se a ser um pouco entendido em pedagogia, nos problemas de ensino. O mesmo acontece quando se faz uma clínica. É isso que explica o facto de os arquitectos só começarem a ser válidos a partir dos 50 anos. A partir do momento em que saem da escola, são-lhe precisos 20 a 25 anos de aprendizagem no próprio local de trabalho. No caso dum grupo escolar, deve-se confiar nos utiliza dores, tentar corresponder ao que eles exigem. De resto, teria sido preciso que eu, dois anos antes, solicitasse uma colocação docente aqui; não sei se a teria obtido, uma vez que não possuo as habilitações suficientes. Roger — Sem ir tão longe, não podia você frequentar durante um mês uma escola? Jean-Claude — Um mês não basta; limitamo-nos a «sobreviver», a «patinhar». 192 A PEDAGOGIA FREINET Como associar as crianças a uma investigação em arquitectura Roger — Os arquitectos discutiram com os garotos, mas, nesse momento, podiam as crianças ter ideias técnicas sobre a arquitectura? Raymond — Pusemos os garotos a procurar por si pró prios! Roger — Vocês fizeram alguma vez esta pergunta aos alunos: o que é que vos apetece fazer e, para fazerem isso, de que espaço ou de que volume necessitam? Jacqueline — Solicitámos muito a sua imaginação; dissemos aos garotos: vamos ter um grupo escolar intei ramente novo, procurem desenhá-lo como quiserem. Eles fizeram coisas muito tradicionais; como querias tu que estas crianças, que vivem num habitat tradicional, pudessem exercer a sua fantasia de outra maneira? Então, depois, dissemos-lhes: procurem imaginar à vossa vontade. No fundo, talvez tivéssemos necessidade da ajuda dum psi cólogo para nos auxiliar a interpretar os desenhos, mas sentimos que eles tinham necessidade umas vezes dum pequeno recanto, enquantos outras vezes a coisa ia da sala de leitura ao salão de baile, passando pelas salas de cinema, de televisão, do ordenador, que poderia distribuir as fichas, passando pelos canapés para poderem beber ao mesmo tempo que faziam a leitura... Sonhos impossíveis. Conseguiu-se determinar com os arquitectos, apesar de tudo, o que as crianças queriam; os arquitectos discutiam muitas vezes com elas. Aqueles não faziam a mínima ideia do que fosse a pedagogia e ficaram verdadeiramente surpreendidos e encantados com os garotos. Foi absolutamente sensacio nal — uma descoberta recíproca — e então os garotos deram livre curso à sua imaginação, começaram a formular toda a espécie de perguntas. O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 193 Raymond — Através das pesquisas muito anárquicas dos garotos, consegue-se, mesmo assim, isolar algumas gran des ideias, e creio que J.-C. Dubois conseguiu realizá-las em Magny-Cours. O cantinho, a sala maior e a sala ainda maior... Falta uma sala de grandes dimensões; uma sala polivalente corre o risco de não ser suficiente, tanto mais que os alunos dos colegas que não praticam a pedagogia Freinet gostariam muito de participar nas nossas reuniões comuns. O que levanta um problema, mas creio, mesmo assim, que através de todas as pesquisas dos garotos se consegue isolar as seguintes ideias: o cantinho, o grupo classe dispensador de segurança, e, depois, a violenta irrup ção no todo. Todavia, o que se deve evitar a todo o transe, é tomar ao pé da letra o que a criança diz. Com efeito, é preciso que existam os recantos fechados, mas há neces sidade de outras coisas para além disso. Jacqueline — Para evitar cometer erros, não se quis estruturar demasiado a arquitectura; deram-nos volumes para que os utilizássemos como melhor nos parecesse. Este ano, utilizámo-los duma maneira; no próximo ano, pode mos utilizá-los doutra maneira. É uma coisa muito rica de possibilidades. Quisemos uma arquitectura que nos possa dar todas estas possibilidades. Roger — Como decorreram as reuniões entre os arqui- tectos e vocês? Eles submetiam planos à vossa apreciação, projectavam diapositivos? Raymond — Jean-Claude projectou-nos diapositivos; ele dá grande importância a certas arquitecturas de Grenoble. Ele projectou-nos diapositivos por ocasião do congresso de Nevers, e, além disso, sugeria ideias. Eram discussões sem sequência. As conclusões foram-se tirando com o andar do tempo. Roger — Eles participaram muito, também, na vida das vossas classes, estiveram nas vossas classes? 13 194 A PEDAGOGIA FREINET Raymond — Sim, os garotos conhecem-nos bem, consi deram-nos autênticos camaradas. Jacqueline— Isso, porém, não se fazia de maneira organizada; eram encontros muito anárquicos. Roger — Quantos encontros, pouco mais ou menos, quantas deslocações até aqui fizeram eles? Raymond — Durante três anos, Jean-Claude apareceu uma vez por semana. Quando os locais modificam as atitudes Roger — Como reagiram as crianças durante os pri meiros dias de escola nessa nova estrutura? Jacqueline — Recomeçámos a funcionar no mês de Setembro com quatro classes. Quisemos responder a todos os desafios, pois tratava-se verdadeiramente do edifício em construção. Os pré-fabricados que tínhamos já não se encontravam lá, pelo que tínhamos efectivamente de encon trar uma solução. No meu caso, porém, os meus garotos (estou encarregada dum C. M. 2) estavam muito motivados, pois tinham sido eles a escolher o seu mobiliário. Jean- -Claude Dubois tinha-o experimentado no ano anterior, mas a coisa não funcionou — excessiva rigidez. Quando eles regressaram, eu tomei a temperatura todos os meses. Mas embora eles estivessem motivados, o que nos punha fora de nós era o facto deles permanecerem no seu grupo, de caminharem ao lado uns dos outros, vivendo como na sua antiga escola. Quando o mobiliário escolar chegou, eles precipitaram-se sobre os camiões para irem buscar as mesas, montaram as suas próprias mesas. Entregaram-se, então, a todas as espécies de tacteamentos: dispondo, primeiro, as mesas à maneira duma réstea de cebolas, agrupando-as depois em pequenos grupos, e, finalmente, dando ao con junto uma forma algo parecida com um friso grego. 0 ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 195 Ao nivel das oficinas, eles caminhavam uns ao lado dos outros, discutiam uns com os outros, incomodando o fun cionamento das classes uns dos outros. Foi preciso esperar por Dezembro para eles tomarem perfeito conhecimento da sua classe e do seu túnel, para se sentirem bem na respectiva oficina, e depois ao nivel da sala polivalente. A seguir, o facto determinante foi a circunstância dos mais miúdos esta rem a fazer nesse momento uma casa de cartão, enquanto os meus alunos procediam a montagens eléctricas. Então, eles olharam uns para os outros, observaram-se, e disseram: mas, afinal de contas, nós podemos instalar a luz eléctrica na vossa casa. E recordo-me da reunião de cooperativa na classe em que Olivier disse: — É apesar de tudo extraordi nário que funcionem lá dentro quatro classes, que se tenha correspondentes, que se façam montes de coisas, sem que se esteja a par do que acontece. Quanto às regras de vida no estabelecimento,queria-se que ele estivesse limpo, que as latrinas se conservassem em perfeito estado de limpeza, que não houvesse papéis pelo chão. Dissemos a nós pró prios: precisamos de proceder a reuniões de cooperativa com as quatro classes. A coisa foi proposta e aceite com muita alegria. Foi assim que todas as sextas-feiras, à tarde, durante meia hora, mostramos uns aos outros o que esta mos a fazer, lavamos em família a nossa «roupa suja»; igualmente tomamos iniciativas em comum de cada vez que há qualquer coisa a fazer. O arquitecto, por exemplo, propôs-nos que decorássemos a paliçada, o que fizemos em comum. Vivemos verdadeiramente bem em comuni dade. Raymond — A minha primeira reacção foi esta: ao fim de quatro ou cinco dias de classe, eu disse:—Meu velho, tu estás a ponto de falhar, simplesmente porque tens uma arquitectura formidável mas não te serves dela. Falei então no assunto a Michèle, a Jacqueline e também a Odile. Pro 196 A PEDAGOGIA FREINET curámos depois ver o que se podia fazer. Deveria dizer-se aos garotos:—Atenção, vocês dispõem duma arquitectura singular, é preciso tirar partido dela, utilizem os locais ao máximo? Eu estava na disposição de o fazer: finalmente, elas responderam-me negativamente dizendo-me que era preferível esperar. 0 que se verificou ser correcto. Quando organizamos a nossa semana em relação a todas as acti vidades de «despertar», procuramos agora que os garotos estabeleçam uma tabela de dupla entrada na sala poliva- lente. Sabe-se, assim, que na segunda-feira, às catorze horas, na classe de Jacqueline, há uma exposição, etc., e todos aqueles que estiverem interessados poderão dirigir-se para lá. Roger — Isso não perturba o horário das outras classes? Raymond — A coisa levanta problemas, quando há uma exposição na classe de Jacqueline e os meus alunos têm qualquer trabalho entre mãos. Mas, apesar de tudo, eles sabem-no antecipadamente. Enfim, espero que se venham também a obter bons resultados em matemática e em francês. Jacqueline — No plano da criatividade, é muito inte ressante. Os pequenos deram uma grande contribuição aos grandes e vice-versa. Trata-se de algo que anteriormente se desconhecia. Só uma arquitectura diferente nos podia proporcionar semelhante experiência. 33 pessoas num F3, por que motivo se não fala no assunto? por Jeannette Le Bohec Tem-me parecido até à data que o I. C. E. M. era um movimento cooperativo — cada um facultando aos outros o fruto do seu trabalho, cada um procurando apoiar o camarada em dificuldades. No entanto, tenho sempre a impressão de esbarrar numa parede quando falo das más condições materiais da minha classe. Indiferença... Impotência... não sei. Cada um, no Movimento, dá a impressão de vir haurir no tesouro comum idéias novas para as trazer de volta para a sua classe e transformá-la num local paradisíaco onde as crianças se desenvolvem na harmonia total. Há muito tempo já não ouço falar nem dos efectivos, nem dos locais. Deverei eu acreditar que se tenham eliminado do Movi mento todos aqueles que compreenderam que procurar aplicar a nossa pedagogia era, sem determinadas condições de trabalho, pura loucura, pura utopia? Estes professores revelam-se muito judiciosos. Eles têm toda a razão em não 198 A PEDAGOGIA FREINET quer ouvir falar destes paraísos inacessíveis e de não se culpabilizar. Eu, pela minha parte, deixo-me ficar ainda — apesar de tudo. Adoptei esta pedagogia há tanto tempo já que não saberia aplicar outra. Não posso dispensar os textos livres, que a pouco e pouco me permitem conhecer os meus alunos, e sobretudo a arte infantil que não cessa de me maravilhar. Mas por que preço! No ano passado, eu tinha 31 alunos, nos CE1, CE2, CM1; este ano, tenho 33 em CE1 e CE2 num local demasiado exíguo para nele poder instalar oficinas (ateliers) perma nentes. Então, o que sucede? Tento, apesar de tudo, fazer alguma coisa: texto livre, arte infantil, exploração do meio... Mas as crianças trabalham no meio dum tumulto de tal ordem que eu grito, descomponho, empurro, e digo: — Cala-te àquele que tem ainda alguma coisa para dizer, reconduzo energicamente para o seu lugar aquele que orgu lhosamente me vem mostrar o seu trabalho acabado, ao mesmo tempo que lhe digo: — Se os outros se pusessem a passear como tu! Ontem, ao fim da tarde, tal como costumamos fazer duas vezes por semana, desempacotámos laboriosamente todo o material necessário para o funcionamento dos diver sos ateliers de pintura, modelagem, electricidade, etc., e repartimos o trabalho antes da saída para o recreio. Aba- lancei-me a esperar que, encontrando cada um o trabalho que lhe cabia à sua frente, tudo pudesse correr da melhor maneira e que cada um pudesse entregar-se às alegrias da criatividade numa calma relativa. Nunca o tumulto foi tão grande; eles empurravam-se uns aos outros nos corredores demasiado estreitos, as míni mas descobertas eram comentadas alto e bom som por 33 33 PESSOAS NUM F3 199 vozes, vinham-me procurar para eu ir a quatro sítios ao mesmo tempo, tudo isto à força de gritos, de queixas contra aquele que tinha dado um pontapé; outro, por sua vez, pegara na lata de «vermelho», outro ainda tinha surripiado um instrumento, etc. Era impossível ver claro no meio daquela tempestade. Saí quase a rebentar em lágrimas, apesar de estar de longa data habituada a este género de sessões. Aos poucos visitantes que, na minha classe, observam os trabalhos dos alunos, replico agora sempre que tudo isso se não fez no meio da facilidade e da alegria. Mediante as nossas belas exposições de arte infantil, mediante os nossos relatos exaltantes de experiências, damos a todo o momento a impressão de que a nossa pedagogia pode solucionar as situações mais difíceis e, o que é mais grave, contribuímos para dar má consciência àqueles que falham. Recuso doravante qualquer participação numa exposi ção se esta não for acompanhada de queixas e de reivin dicações. Recuso qualquer reunião pedagógica em que não figu rem os leit motiv: efectivos, locais, material. Recuso-me a ser cúmplice dum governo e dum minis tro que ousam falar-nos de renovação pedagógica na nossa miséria actual e que arrastam para o desespero aqueles que os incriminam pelos insucessos. A minha amargura é tanto maior quanto pude observar este Verão, na Dinamarca, condições de trabalho ideais: salas de aula com imensas comunicações (entre aposentos) inteiramente alcatifadas e perfeitamente insonorizadas onde 200 A PEDAGOGIA FREINET as crianças corriam em peúgas, sendo qualquer ruído ou estridência de vozes amortecidos em cerca de três quartos. Estas salas mais se parecem com um pequeno aparta mento com divisórias reservadas para os diferentes ateliers. Existe mesmo, a meia altura do tecto, num ângulo, uma espécie de cubículo suspenso, ao qual se ascende por uma escada e donde as crianças, sentadas sobre colchões ou almofadas, acompanham a lição de leitura. Trabalham na escola efectivos de 15 alunos por classe, 2h 1/2 por dia, até aos 9 anos. Professores descontraídos, que recebem sucessivamente duas equipas de 15 alunos, uma das 8 h às 10 1/2, a outra das 11 h 1/2 às 14 h. A pausa das 10h 1/2 — 11h 1/2 é consagrada à ligeira refeição nórdica que os professores desembrulham ou aque cem numa agradável sala, ultramoderna, provida de foga- reiros, de mesas e de profundos sofás. Trata-se de profes sores do ensino primário, sublinho-o. Professores sem pro blemas que não fazem ideia da pressão social a que está submetido o ensino francês. Ali, a aprendizagem da leitura começa aos 7 anos e pode prolongar-se até aos 9 ou 10 anos... sem que a criança tenha de repetir qualquer ano. Não existem classes de aper feiçoamento, passando todas as crianças para a classe supe rior. Uma abundância incrível de material escolar. Em suma, crianças e professores reunidos em condi ções humanas, e isso em relação a todo o país. Tudo isto se passa a 1.300 km de nós, enão se trata dum conto, mas da pura verdade. Em França, encontramo-nos, nesta óptica, em plena Idade Média... Mesmo uma das nossas escolas novas faria miserável figura na Dinamarca. Quanto às dos nossos cam pos, mais se pareceríam com estábulos onde se amontoam crianças juntamente com um pobre imbecil — o professor — que continua a tudo suportar porque as coisas sempre se 33 PESSOAS NUM F3 201 passaram assim, até que a depressão nervosa ou o deses pero o vençam por completo. Já é tempo de se fazer seriamente alguma coisa. P. S. — Este artigo foi redigido em 1972. Não se des tinava à publicação. Trata-se dum texto que eu redigira tendo em vista um encontro regional I. C. E. M. porque eu já não me podia calar mais, o que explica o seu carácter um tanto excessivo. De então para cá, muitas coisas mudaram no seio do I.C.E.M. Posso hoje acrescentar que, se as condições materiais (efectivos, locais, etc....) são absolutamente necessárias, nem por isso são suficientes. Observa-se, cada vez mais, o crescimento da angústia escolar dos pais. Pergunto-me o que seria preciso fazer para que cesse neles esta necessidade de se realizarem nos filhos com base em critérios que já não se revelam conve nientes e que paralizam professores e crianças. E se os pais descobrissem outros campos de realização?... J. Le B. 16 de Julho de 1975 AS DESVANTAGENS SOCIOCULTURAIS Quando os pequenos se calam por Mimi e Fernand Emult (reportagem de J. e R.U.) A beira duma estrada normanda, a pequena escola de duas classes de Saint-Ouen-les-Champs (Eure-et-Loir) parece mais assente do que construída no arvoredo. Posto duplo de Mimi e Fernand Emult, que uma gravação sobre a educação sexual * deu a conhecer aos camaradas e a muitos trabalhadores sociais. Fernand orientou-se para a psicologia escolar, enquanto Mimi lhe sucedia na sua classe (C.E.l— C.E.2); no sábado de manhã, porém, as aulas são dadas em família. Surpreendêmo-los nesse dia. Roger — Actualmente, quais são, para ti, as dificulda des mais importantes no que respeita à organização da tua classe, que é quase uma classe única? Mimi — A integração dos mais pequenos na classe; sinto que eles estão verdadeiramente perdidos no momento da entrevista, nos momentos colectivos — conferência, debate. Acompanho-os unicamente em trabalhos escolares: leitura, matemática, ortografia. Ao nivel da expressão, eles sentem-se completamente perdidos. É este um dos meus grandes problemas. Por outro lado, tenho alguns objectivos de aquisição, o que me provoca dificuldades, pois descubro que os meus 206 A PEDAGOGIA FREINET miúdos não estão de maneira nenhuma preparados para isso. Em matemática, quando se trabalha com a noção de 400 metros, verificamos que isso não diz nada às crianças. Eles não têm nenhuma noção real da medida, do peso. Não sabem avaliar (coisas que se me afiguram verdadeiramente muito simples); o mesmo se passa com o mecanismo das operações. Roger — Seria preciso fazer-se uma ideia das dificul dades de qualquer um numa classe que vai do C. E. 1. ao C. M. 2; a organização do plano do dia, por exemplo. Josette — Consegues mostrar-te suficientemente disponível para todos os grupos? Por exemplo, esta manhã, Myriam podia fazer as suas manipulações sozinha, com certeza, mas precisava da ajuda dum adulto, pois no ponto em que se encontrava não se conseguia desenvencilhar sem uma ajuda exterior. Em toda a tua classe, é preciso ajudar os pequenos a ler, e os grandes a contar; como organizas tu isso? Mimi — Sinto-me muitas vezes atrapalhada. Quando estou com os mais pequenos, aparece muitas vezes um grande que me pergunta: — Madame Ernult, o que é que isto quer dizer? Mas os meus problemas não são apenas esses. Roger — Qual o ritmo que imprimes ao dia de traba lho (54)? Mimi — Procedemos a uma conversação colectiva de manhã (55). Vou procurar mudar, pois dei-me conta de que os mais pequenos se sentiam vexados. Roger — Em que consiste essa conversação? Mimi — Neste momento, procedemos à leitura de tex tos de jornais escolares. Textos que lhes tenham agradado. Ou textos orais, ou então episódios, acontecimentos vividos por eles. Roger — E qual é a tua contribuição? QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 207 Mimi— Leio-lhes, também, textos. Apercebi-me desde o princípio do ano que os textos deles eram bastante pobres. Procedo à escolha de textos nos jornais escolares, depois do que lhes leio alguns. Os outros fazem perguntas sobre o que eles dizem c discute-se. Isto serve-nos muitas vezes de lição de vocabulário: enriquecimento da expressão. Fernand — A partir destas discussões matinais, há toda uma profusão de pistas que se abrem para a pesquisa em muitos domínios. Mimi — Por exemplo, se se falou da raposa, e se se desconhece o que ela come ou como vive, isso vai orien tar-nos para a preparação duma conferência, para a confec ção de álbuns, tanto para nós com destinados aos corres pondentes. A partir disso, elaboram-se também textos escritos. Tudo isto toma-nos aproximadamente uma meia hora. Não se trata, porém, duma actividade sistemática; às vezes, a conversação é muito breve. A seguir, eles dedi cam-se geralmente ao trabalho individual (56). Então, há toda uma série de trabalhos de investigação que se podem fazer em regime de trabalho individual, como sejam: cartas aos correspondentes, pesquisa de francês, de matemática, fichas (já que eles começam a fazê-las), autoditados, inves tigação de poesia, leitura, preparação de álbuns, de confe rências. Nesse momento, os C. M. 1 trabalham, enquanto eu vou ler juntamente com os C. E. Roger — Eles trazem livrinhos nos quais podem ler individualmente (57) ? Mimi — Sim, eles têm livrinhos que podem ler indivi dualmente. Temos uma espécie de escala de circulação: eles passam a dois e dois, todos os dias, diante dos outros. Roger — E à tarde? Mimi — Há um trabalho importante no que toca à cor respondência (58). A redacção do que se descobriu em matemática ou do que se inventou em ginástica. Pois parti 208 A PEDAGOGIA FREINET mos de ideias de crianças para fazer a ginástica. Represen tamos isso em intenção dos correspondentes. E depois, muitas vezes, praticamos nos ateliers (oficinas): teatro, madeira; os rapazes dedicam-se a trabalhos em madeira, recortes, pintura, entretens, enquanto os mais pequenos fazem colagens (às vezes os mais pequenos escrevem tam bém textos, pois acontece que eu esteja mais disponível para eles da parte da tarde, devido ao facto de os maiores se encontrarem na oficina). Alguns dedicam-se a escolher o desporto que se poderá praticar depois, inventando per cursos, deslocamentos, movimentos, danças. As raparigas trabalham neste momento numa dança. Isto processa-se ao nivel dos ateliers. Roger — Vocês têm fantoches? Mimi — Sim, mas as crianças preferem nitidamente o teatro (59) aos fantoches. Os mais pequenos prefeririam os fantoches, mas os mais crescidos desejam verdadeira mente inventar peças de teatro, e representá-las diante dos outros. Representá-las é algo de muito importante. Para tanto, eles isolam-se na cantina, pois temos a sorte de ter uma cantineira amável que lhes faculta a utilização da cantina às 14 h 30, dispondo eles, assim, dum local. Ali, eles fazem o que querem, pegam na loiça, é formidável. Não deverão ser mais de 4 crianças a fazê-lo; com efeito, dei-me conta de que para além de 4 se gerava uma grande perturbação. Aliás, esse número é muitas vezes de três. Josette — Porque um grupo de três funciona muito bem, enquanto num grupo de quatro há sempre um que não sabe o que há-de fazer. Mimi — Sim, mas eles são muito espertalhões, e quando têm necessidade de ser quatro, dizem: Ela não fala, é a criança! O que é revelador da atitude dos pais em casa: — Não, não, «Madame» Ernult, ela não fará barulho, ela é a criança! QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 209 Roger — Nas suas peças de teatro, quais são as perso nagens que eles põem em cena? Mimi — É quasesempre a família, infelizmente! Roger — E no entanto, parece que o meio familiar pouco lhes proporciona, quando não os proíbe mesmo às vezes de falar. Também te apercebes disso, aqui? Mimi — Quando fiquei com os mais crescidos, este ano, em Setembro, foi essa a coisa que mais me chocou: preci samente, a pobreza da sua linguagem (60), do seu vocabu lário, da sua expressão, não só oral como escrita. Eles não sentem absolutamente qualquer necessidade de se exprimir bem. Não se pode estar constantemente a apon tar-lhes os erros. Procuro neste momentos as técnicas que permitam melhorar a sua expressão. Roger — Não é exactamente o que eu queria dizer. Os mais pequenos (tu acompanhados desde o C. E. 1 até ao C.M.2), quando se procede à reunião de cooperativa e mesmo durante toda a manhã, falam muito pouco. Não é uma coisa exclusiva da tua classe, pois tem sido consta tada na maior parte das classes. Mimi — Isso deve-se ao facto de não falarem em casa. Trocam-se palavras simplesmente para satisfazer necessi dades imediatas, materiais, nunca tendo em vista estabele cer um diálogo. Não saem do sítio onde vivem, não têm acesso a outros meios, portanto, não há matéria para dis cussões, matéria para diálogos. Roger — Não existe também, entre outras, uma velha tradição que proíbe as crianças de falar à mesa? Não se lhes pede, sobretudo, que estejam caladas? Nítmi — Isso vai-se tornando mais raro, embora se veri fique em certas famílias. Há já alguns anos, porém, passa ram-se algumas coisas interessantes; crianças houve que contestaram precisamente o facto de se não poder falar à mesa, organizando para tanto um sistema em que cada um 14 210 A PEDAGOGIA FREINET falava alternadamente, tal com se fazia na escola... Um membro da família, quando estivessem todos à mesa, dava a palavra aos outros para que todos se pudessem exprimir. Creio, apesar de tudo, que essas coisas evoluem e que as crianças acabam por conseguir falar à mesa. No entanto, em relação a certas famílias, não posso dizer que essa proibição tenha sido levantada. Fernand — Tenho a impressão que, em certas famílias, não existe uma vontade deliberada de proibir falar à mesa, mas que isso faz parte dos hábitos — o mundo da palavra pertence aos adultos da família; e quando a criança se exprime, não se dá muita atenção a isso. Só comunicam com ele quando há uma necessidade imediata: para lhe dar ordens, para responder às suas necessidades. Não existe no seio da família a preocupação de comunicar com as crian ças. Poderia existir, em certos meios, uma tendência deplorável para exigir que as crianças apresentem logo à primeira uma linguagem elaborada, para procurar desen volver nelas uma linguagem muito construída — o que tam bém pode ser catastrófico. Aqui, porém, não é esse o caso; não existe sequer esta preocupação da comunicação neces sária com uma criança. A linguagem é toda uma aprendi zagem; ajuda-se uma criança quando ela dá os primeiros passos, mas já não se ajuda uma criança que dá os seus primeiros passos na linguagem—espera-se que ela fale. Não existe a mesma preocupação. Irão ensiná-lo a segurar uma colher, uma faca, um garfo, etc., mas não o ajudarão a dominar a linguagem. Roger — Acaso se admite que a criança tenha uma opinião? Mimi — Penso, antes de tudo, que os próprios pais não têm opiniões bem definidas, e não discutem verdadeira mente com profundidade, quer seja, aliás, no domínio polí tico ou no domínio cultural. Estão convencidos de que as QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 211 opiniões das crianças não têm interesse, e mesmo de que estas não têm ou não podem ter qualquer opinião, já que para eles próprios (pais) se trata duma preocupação ver dadeiramente secundária. Fernand— Parece-me, mesmo assim, que se existem tabus, é no domínio da linguagem, da comunicação oral que eles mais se manifestam; é aí que eles são mais eviden tes, mais perceptíveis, mais sensíveis. Quando uma criança se exprime na escola, em todos os outros domínios, tu aper cebes-te, através da sua expressão, de qual é a sua situação afectiva do momento; quais são os problemas da criança ao nivel familiar, etc. São coisas bastante evidentes. Digo isto, pois disponho dum testemunho recente. Outro dia, pedi a Bruno que desenhasse a sua família (trata-se duma família bastante traumatizada pela situação dos pais sepa rados). O garoto, à tarde, ao regressar a casa, diz:—Ah!, tanto pior, se o fiz. Ele pediu-me, e eu fiz: não desenhei o meu pai. Portanto, ele tinha apesar de tudo a impressão de que havia qualquer coisa que não estava bem no facto de desenhar ou não o pai. Era um problema de que ele nunca tinha falado. Eis que no momento em que ele se vê confrontado pelo problema por intermédio do desenho, se apercebe de que vai revelar o que se passa ao nivel da sua família, de que vai violar um tabu. E revolta-se, o que faz aparecer a permanência desta espécie de tabu, ao nivel da linguagem oral. Não se fala dessas coisas e não há neces sidade de as dizer. Nos hábitos da vida familiar, acontece que muitos sectores da informação nunca são abordados — aspectos da vida política e quotidiana, crenças, problemas de sexualidade, as relações familiares. Roger — Isso determina uma certa pobreza cultural. Comparando essas crianças com as das cidades, poderiamos dizer que as crianças das cidades não possuem qualquer experiência quotidiana da natureza, nenhum contacto com 212 A PEDAGOGIA FREINET os animais, as plantas, os ofícios, o trabalho dos artesãos. Têm um contacto cultural muitas vezes muito superficial, mas que apesar de tudo existe. Isto porque se discute mais facilmente, porque existe a televisão, os títulos em paran- gona dos jornais e os próprios jornais. É mais fácil a pala vra entre as crianças, os adolescentes e os adultos. Mas, inversamente, não existe qualquer experiência sensível ao nivel da acção, das sensações primitivas, do contacto com a terra, a natureza. Consegues tu vencer este défice cultural na escola, ou, pelo contrário, vês-te impedida de praticar as técnicas Freinet correctamente em consequência deste défice cultural? Mimi — Não me sinto impedida de praticar as técnicas Freinet por causa deste défice cultural. Se há um certo número de aquisições escolares que não são feitas, não me culpo por isso e dou toda a prioridade à expressão. Eles têm montes de coisas a exprimir. Exprimem-nas mal, mas exprimem-nas. Por exemplo, Laurent falava esta manhã do morcego que vira. Eles falam do nascimento dos ani mais, do esquilo que encontraram no caminho para a escola, das flores, de coisas muito sensíveis de exprimir, mas que eles exprimem. O grande problema não é o de descobrir técnicas de desbloqueamento, pois eles não estão bloquea dos, mas o de ajudá-los a aperfeiçoar a sua expressão. Fernand — Quando dizes «não bloqueados», não estou inteiramente de acordo contigo. Existe, apesar de tudo, um bloqueio. Por exemplo, Martine, esta manhã, na sua con ferência, não se atreveu a empregar a sua linguagem. Ela não se atreveu a recorrer à sua linguagem habitual para comunicar o que sabia, ou então ela não soube transpor o que tinha lido. Mimi — Eu disse-lhe ontem: tu vais tentar, pois leste juntamente com Myriam... Ela, porém, não conseguiu trans por o que tinha lido. QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 213 Josette — A miudinha que estava sentada ao lado do electrofone, que falou a certa altura da escrita chinesa, mas que falava muito baixinho, embora tivesse coisas para dizer, não se encontra bloqueada? Mimi — Sim. Mas esta garota chegou-me este ano vinda duma escola tradicional; tem 11 anos. Creio que ela já fez alguns progressos. Ela mostrava-se passiva, não participava, não travalhava — esperava que lhe dessem trabalho. Ela passou a tomar a iniciativa e sempre fala um pouco mais, pois esta manhã conseguiu falar. Creio que tem medo pois está desabituada de falar desde há muito tempo. Existem também, certamente, no caso de Dominique,pro blemas familiares. A mãe considera-a como uma pessoa crescida, uma pessoa responsável. Ela ocupa-se de duas crianças de tenra idade em casa, faz os trabalhos da casa quando a mãe está ausente. A mãe acha isso perfeitamente normal. Ausenta-se muitas vezes, e, então, a rapariguinha substitui-se à mãe. Tenho a impressão de que a mãe quer que ela amadureça muito depressa, enquanto que ela é ainda muito criança. Acrescente-se ainda o facto de que, em casa, nada tem para dizer: — Dominique, é indiferente que estejas contente ou não. Serás uma mulher, preparo-te para os trabalhos da casa. Ela não tem que contestar, não tem que se exprimir. Dominique não ingressou na minha classe suficientemente cedo... Fernand — Eu queria voltar a referir-me a este pro blema da linguagem. No que diz respeito à família, eu não penso que a linguagem oral tenha um lugar importante, independentemente do que se pense acerca disso. A comu nicação processa-se através de muitas outras coisas. Algu mas palavras, atitudes, um tom. Os registos de comunica ção são, até, reduzidos. Seria talvez interessante ver em que domínios se comunica num meio familiar como o que agora consideramos. As palavras, em si mesmas, não têm 214 A PEDAGOGIA FREINET uma importância por aí além. Seria preciso contar as pala vras proferidas durante uma conversação de um dia; creio que o seu número seria relativamente reduzido. Acontece que, quando os garotos chegam à escola, não têm consciên cia de que a linguagem é um meio de comunicação verda deiramente importante. Foi isso que me impressionou quando utilizei o magnetofone na escola (67). A partir do momento em que a linguagem sai da escola, damo-nos conta de que se pode dizer uma quantidade enorme de coisas por aquele meio. Eu pensava, até então, que era sobretudo a coisa escrita, o desenho, o texto impresso que tinham uma importância considerável. É um outro aspecto da lingua gem. Quando os garotos tomam consciência de que através da linguagem oral comunicaram uns aos outros coisas importantes, profundas, quando se apercebem, após a mon tagem de tudo aquilo, que procuraram refazer o mundo no espaço duma meia hora, por exemplo, tomam pouco a pouco consciência de que falar é importante, de que é importante comunicar com os outros. Na realidade, é possí vel fazer aceitar muitas coisas a este nivel. Roger — Como se portam os teus alunos no secundário? Mimi — Encontrei um aluno que entrou para a sexta classe (correspondente à primeira do liceu português). Per guntei-lhe:— Então, isso vai bem? Ao que ele me res pondeu:— Tenho dificuldades em redacção. Perguntei-lhe que tipo de exercícios ele vinha fazendo desde o princípio do ano: —Tenho um livro com imagens, e eu devo escrever o que penso das imagens. Portanto, nada que se relacione com a personalidade da criança. No primeiro ano, não foi proposto um tema de redacção desde o princípio do ano. Eles limitam-se a fazer comentários de imagens. Fernand — Houve também qualquer coisa que desapa receu; antigamente, os serões passavam-se a contar histó rias, contos, etc. Havia uma personagem que tinha um papel QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 215 importante: o avô ou a avó. Mais frequentemente, era a avó que desempenhava esse papel, era ela a contadora de histórias da família, histórias essas que faziam o encanto das crianças. Ora isso desapareceu. Já não existe tradição oral. As pessoas vêem a televisão; é uma coisa dramática! Mimi — Como explicar, então, que as crianças rurais sejam ainda mais pobres, no plano da expressão, que as outras? Fernand — Elas são mais pobres, mas há um outro aspecto a considerar. Actualmente, cada vez se abandona mais os campos, e as famílias que ficam são as que não têm possibilidades financeiras de ir morar para a cidade. Se observares as famílias que aqui vivem, compreenderás que se fica no campo porque se tem de pagar uma renda mensal de 100 francos, enquanto que o grande problema que se põe para ir viver para a cidade é o de pagar 300 ou 400 francos por mês; hipótese desde logo excluída, pelo que essas famílias têm de continuar no campo. Todas as aldeias situadas na proximidade duma zona industrial conhe cem essa sorte. É o subproletariado que aqui fica, enquanto que os mais ricos dispõem doutro recurso: matricular os seus garotos num colégio. O que fazem com muita frequência. Roger — Podemos voltar ao assunto da vossa maneira de utilizar o audiovisual (61)? No que respeita ao magne- tofone, à projecção, à utilização de diapositivos desenhados ou de diapositivos e ao intercâmbio escolar, quais as acti vidades bem ou menos bem sucedidas? Mimi — Com os mais pequenos, comecei por registar os seus cantos livres. A coisa despertou neles um grande interesse, mostrando-se eles permeáveis a uma gravação de textos livres ou de conversações. Fizeram-se coisas muito bonitas, mesmo ao nivel dos grandes. 216 A PEDAGOGIA FREINET Fernand — Tivemos toda a série dos textos orais: os garotos contavam, como durante a conversação, mas gra vando ao mesmo tempo. Pouco a pouco, fomos conhecendo quais as histórias que melhor convinham ao magnetofone, como, por exemplo, as que iam poder ser acompanhadas de diapositivos desenhados *, bem como as que se reves tiam dum interesse especial por excederem o âmbito da aldeia. Realizámos uma montagem que foi depois objecto duma troca. Roger — Como é que vocês se instalavam tecnicamente? Como funcionavam? Fernand — As salas de aula são relativamente grandes em relação ao número de crianças. Temos um grande cabo, o que é muito prático, pois permite deslocar-se na classe, ter o magnetofone sempre no mesmo sítio, e mesmo quando nos dispomos em círculo para discutir a coisa passa-se muito bem. São os garotos que manipulam os aparelhos, e isso não levanta problemas. A técnica é rapidamente domi nada. Roger — Quantas crianças, no conjunto da classe? Fernand — Isso dependia. Roger — Vocês faziam uma passagem do oral ao escrito? Exploravam às vezes de maneira escrita coisas orais? Fernand — Isso aconteceu sob a forma de álbum. Roger — Tratar-se-á dum meio para desbloquear crian ças que dizem: — Eu não escrevo? Diz-se a essas crianças: — Vamos gravar-te, e depois tu farás uma transcrição? Mimi — Com os mais pequenos, era eu que transcrevia. Os seus cantos, por exemplo, ou os seus textos, nas secções infantis, curso preparatório. Fernand — Eu fi-lo com Michel. Ele era formidável a contar histórias. Ele era forçado a comunicar com a sua língua oral, pois não podia fazer de outra maneira. Tinha QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 217 muita dificuldade em escrever. Em relação aos depoimen tos, ele conseguia descrever coisas simples, mas com muitos pormenores exactos. A gravação era muito boa, pois as crianças denotam sempre falta de pormenores, ao passo que ele tinha essa preocupação. Roger — Por quanto tempo são eles capazes de escutar uma gravação que lhes venha de fora? Fernand — Isso depende da natureza das gravações. Por exemplo, toda a gente escuta com facilidade a série das mensagens pessoais, excepto a partir do momento em que a sua própria mensagem já se fez ouvir. Mesmo assim, porém, o interesse é bastante constante. As gravações de dez minutos ouvem-se muito bem. Raramente elas ultra passavam esse limite de tempo. Temos, mesmo assim, uma boa experiência com o magnetofone na escola, pelo que a coisa corria bem. Nunca fomos enfadados por gravações de meia hora, ou coisa no género. Tínhamos chegado a um acordo com os nossos correspondentes. Roger — Que conselhos darias tu para a preparação duma banda de intercâmbio entre duas escolas? Fernand — Que não seja sistemática; de vez em quando, mensagens pessoais. Por vezes é delicado, pois a muitas crianças repugna-lhes exprimir-se diante do microfone; mesmo se eles dizem pouca coisa: —Bom dia, Pedro! Como passas? Adeus, Pedro!, é já interessante, pois é a primeira maneira de se exprimir diante dum microfone; isso permiteàs crianças constatar que, apesar de tudo, a sua men sagem tem importância, uma vez que o outro vai responder. Pode-se enviar todos estes pequenos textos orais ilustrados com diapositivos, o que é relativamente fácil. Pode enviar-se, também, um texto oral. Se a criança se engana grosseira mente, se se corrige, corta-se a fita; a coisa é muito rápida. A ilustração com diapositivos desenhados torna-se muito rápida com feltros. O ritmo das trocas deve ser constante: 218 A PEDAGOGIA FREINET pode fazer-se isso 4, 5, 6 vezes por trimestre. Porque não reportagens no exterior? Tudo é possível. Roger — Tu gravavas, então, mensagens pessoais, mas para todos os alunos? Fernand — Não sistematicamente. Embora isso seja bastante delicado, pois a criança que não recebe uma men sagem pessoal sente-se frustrada. Ou então, é preciso subs tituí-la por outra coisa. Por exemplo, o garoto que tem um texto oral não tem necessidade de enviar uma pequena mensagem pessoal. Já tem a sua voz, a sua participação, o que é suficiente. Roger — A totalidade representava uma gravação duma meia hora? Fernand — No máximo. Mas uma meia hora de gra vação não quer dizer que se vá escutar durante meia hora seguida. Basta enviar uma pequena nota:—De tal troço a tal troço, com as crianças, é tal coisa. O camarada chega a acordo quanto aos momentos que se vão escutar. Mimi — Quanto aos mais pequenos, enviámos cantos livres, pois essa era uma das expressões que mais lhes agra dava. Textos livres, pequenas poesias que eles inventavam, além de músicas que eles tinham criado com instrumentos que eles próprios fabricavam ou com o Ariel * ou com o guia de canto (porque o guia de canto entusiasma-os). Acontece-lhes inventar música e canto ao mesmo tempo. O teste dos arames farpados por Teresa e Claude Duval (uma reportagem de R. U.) Roger — O que me surpreende na tua classe única, Claude, é o facto de as tuas crianças estarem muito mais à-vontade que as duma classe parisiense, mas dominarem menos a linguagem (62), terem menos facilidade de palavra. Claude — É evidente, para quem conhece bem o mundo do campo, que a linguagem não é o meio privilegiado, o que é mais empregado pelas pessoas para comunicar. Isso torna-se muito perceptível quando se tem a ocasião de passar algum tempo junto dessas famílias ou de comer na sua companhia, como me aconteceu. As crianças, evi dentemente, estão no mesmo caso. Entre irmãos e irmãs e mesmo entre camaradas de classe na aldeia, numerosas comunicações processam-se duma maneira não verbal. Este aspecto das coisas não interessa à escola em geral, e mesmo quando ela se intitula «pedagogia Freinet», ou quando inves tiga no sentido da pedagogia Freinet. Estamos muito defor mados pela nossa própria cultura; o que nos interessa é o verbal, ou talvez mesmo, mais especificamente ainda, o escrito acadêmico. Teresa — O problema é o seguinte: impõe-se às crian ças uma cultura que não é a deles, pelo que, então, a sua resistência se afigura bastante normal. 222 A PEDAGOGIA FREINET à natureza e compreendem muito bem a nocividade de certos actos, mesmo quando os praticam por interesse, por cupidez, ao passo que o industrial chega a poluir tranquila mente a natureza, pois já não tem o sentimento do que seja um acto delituoso. É evidente que, para mim, é ainda muito difícil deitar balanço a esta questão e ver quais são os caracteres particulares duma cultura popular e duma cultura rural. Um estudo científico, realizado por pessoas mais competentes, torna-se necessário. Uma das tarefas da escola, tal como procuramos cons- truí-la, seria, creio eu, a de permitir a plena expansão duma verdadeira cultura popular. Roger — Supondo que se privilegie as formas de vida escolar que respeitam ou favorecem a cultura local, que se seja menos exigente nos exercícios de gramática, de orto grafia, no que respeita à aquisição duma língua dita «clás sica» ou «pura», não irá este esforço para tornar as crianças mais autênticas no seu meio voltar-se contra elas, quando tiverem de aparecer perante os seus patrões ou mesmo quando quiserem prosseguir estudos mais elaborados? Elas não serão capazes de o fazer, pois não disporão da língua que se lhes exigirá. Querendo desenvolvê-las no sentido delas próprias, está-se a ir contra os seus interesses e, tal vez, contra as oportunidades que lhes possam aparecer nesta sociedade. Claude — Penso que o argumento merece ser discutido. Nas classes mais tradicionais, em que se insiste na gramá tica, na ortografia, no vocabulário, obtêm-se resultados muito limitados. Basta consultar as estatísticas nacionais para ver o número de crianças de operários agrícolas que ingressam na faculdade ¹. Para essas crianças, que, de qual- 1 Para aqueles que possam não ter presente no espírito a desigualdade de oportunidades em vigor no nosso sistema escolar, O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 223 quer modo, não terão podido seguir estudos secundários e superiores, e que irão ocupar postos de operários fabris ou de operários agrícolas, a escola terá sido uma punição perpétua e completamente injustificada; terá, ainda por cima, impedido que eles realizem investigações por sua pró pria iniciativa. Com as nossas técnicas, que favorecem a a expressão livre e o tacteamento experimental, estou con vencido de que não corremos o risco de desfavorecer as crianças das classes populares (63). Daí a acreditar que a pedagogia Freinet possa, só por si, lutar eficazmente contra a desigualdade social, vai um grande passo que eu não estou disposto a dar. Algumas crianças, graças a uma preparação particular, conseguem aceder a postos de responsabilidade ou seguir carreiras para as quais se torna necessária a cultura domi nante. No plano psicológico, a maior parte deles, e alguns deles escreveram-no, sofrem dum perpétuo dilaceramento entre tudo o que representa os valores da sua família e passamos a referir alguns números (em BOURDIEU e PASSERON, Les Héritiers; cf. também BAUDELOT e ESTABLET, L’écote pri- tnaire divise..., Maspero 1975): 224 A PEDAGOGIA FREINET a sua própria ascensão social2. Pergunto-me se devemos tomar partido nesta questão e se temos o direito de arrastar para essa via crianças que o ignoram. Dum ponto de vista mais político, certos responsáveis dizem-nos que se tem a obrigação de formar as pessoas para que estas dialoguem com o patronato. Damo-nos conta de que são muito raros os que persistem nesta via; a maior parte dos que realizam estudos secundários ou superiores, sendo oriundos dos meios mais populares, encontram-se mais frequentemente ao lado dos ricos e dos poderosos do que ao lado dos explorados. O que é um terceiro aspecto das coisas que não deverá ser desprezado, mesmo que nos seja desagradável. 2 Citarei, para recordação, um dos pontos de conflito mais correntes: a atitude face ao trabalho manual. De qualquer maneira, mesmo quando nos esforçamos nas nossas classes por respeitar ao máximo as crianças, somos forçados a compromissos; e creio que seria preciso distinguir dois nivéis: 1. É verdade que muitas crianças entram para a classe sendo incapazes de comunicar, mesmo com os seus irmãos e irmãs ou com os camaradas, e, evidentemente, o nosso dever, seja qual for a nossa definição da cultura, é de os ajudar. 2. Todavia, aculturá-los a qualquer coisa que lhes é perfeitamente estranho, é uma empresa mais difícil do que parece (há que consagrar a isso um tempo extremo que é tomado às outras actividades) e cujos resultados são sem pre aleatórios. Aí, atingimos nitidamente os limites da escola, e talvez mesmo de qualquer formação escolar. Seja como for, creio que é utópico imaginar uma igualização das oportunidades O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 225 e uma sociedade mais democrática unicamente por este expediente. A fonte profunda das desigualdades entre os homens pode certamente manifestar-se com frequência sob a forma da linguagem, pois a linguagem é um instrumento depoder que permite agir sobre o nosso mundo e explorar as pes soas; isso é, porém, apenas um aspecto. Nada impedirá, penso eu, que existam homens mais poderosos do que outros, mais fortes do que outros, e tudo está em saber se nos abandonamos duma maneira fatal a este processo, ou se procuramos, pelo contrário, mediante toda a nossa acção educativa, contrariá-lo e corrigi-lo. Roger — Trata-se unicamente duma acção educativa, ou deverá prever-se uma acção política e social? Claude— A esse nivel, e sem fazer jogos de palavras, é preciso que a acção educativa tenha uma dimensão polí tica e social, e é preciso que a política se queira educativa, porque não faz parte da natureza do homem, quando este é poderoso, ceder o seu lugar ao que o é menos, ou ajudar aqule que é menos poderoso. É, talvez, uma virtude desejá vel, mas não é uma virtude que se encontre naturalmente entre os homens. Roger — Então, o que é que se faz na classe? Claude — Estou a pensar numa anedota que é verda deira e que ilustra um pouco o nosso assunto. Um dia tínha mos saído a dar um passeio, desencadeara-se uma corrida espontânea e encontrámo-nos brutalmente com uma veda ção de arame farpado pela frente. Sem que eu tivesse tido tempo para intervir, toda a classe passou para o outro lado da vedação. Ora, entre os garotos havia miúdos de 4 anos e um mais crescido de 14 anos. Na minha experiência ante rior de colônias de férias, nunca tinha constatado um fenô meno semelhante. Habitualmente, o mais forte transpõe a vedação, enquanto os mais fracos aguardam a ajuda do 15 226 A PEDAGOGIA FREINET professor que sente que tem almas a seu cargo. Estou con vencido de que foi ao mesmo tempo uma longa preparação de ordem pedagógica e «política» na classe que provocou esta reacção particular. A esse nivel, o papel do professor continua certamente a ser preponderante, embora na maior parte dos casos seja um papel indirecto. Roger — É bastante fácil de instaurar no plano da vida escolar. Mas poder-se-á, no plano geral da vida social e política, imaginar uma regulação do mesmo tipo? Claude— Todo o problema está nisso! Roger — Não são estas reacções visíveis em todas as classes únicas? Esta ajuda mútua que tu pudeste teste munhar neste teste do «arame farpado», se assim o pode mos chamar, não se deverá atribuir, simplesmente, ao facto de as crianças se terem encontrado numa classe única? Claude — Não creio que isso seja o que se passa habi tualmente. Quando deparamos com classes únicas, encon tramos geralmente uma hierarquia muito forte entre os alunos mais velhos e os mais novos, e afora uma ajuda mútua copiada do exemplo da família no que toca aos mais pequenos, os outros defrontam-se muitas vezes em realidades muito violentas. Com muita frequência, consi dera-se a classe única como um mal menor. Penso, pelo contrário, que a classe única pode ser aceite como um lugar privilegiado de aprendizagem, com a condição de se pôr a tónica precisamente no grupo-classe e na cooperativa (64). Quando cheguei pela primeira vez à aldeia onde actualmente ensino — um tanto ingenuamente, mas a coisa correu, aliás, melhor do que poderia ter corrido — falei imediatmente aos alunos na cooperação. Antes mesmo de apresentar outros aspectos, disse-lhes: —Até ao presente, na classe, era cada um para si. Vamos tentar fazer a classe duma maneira diferente. Será cada um para os outros... (A expressão não é lá muito boa, mas enfim!) Expliquei-lhes o que queria O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 227 dizer a palavra «cooperação», que íamos criar uma «coope rativa», que deixaríamos de ter uma classe, para passarmos a ser uma cooperativa que estaria à disposição de todos para a realização do que se quisesse fazer... Roger — Na vida quotidiana da classe, existem activi dades, por exemplo em leitura, nas matemáticas, à excep- ção talvez do estudo do meio, em que a mistura das dife rentes idades é mais fácil, em que a ajuda mútua surge a diferentes nivéis? Claude — É raro que trabalhemos colectivamente; na maior parte dos casos, os alunos fazem trabalho individual ou em pequenas equipas. Em matemática, há vários anos já que venho reunindo equipas não homogêneas. Os gran des e os pequenos, a partir do C. E. 1, conseguem com faci lidade trabalhar juntos, pelo menos no que toca a «lançar» os trabalhos, as pesquisas. Alguns dos mais pequenos, muito vivos, têm ideias, por vezes bastante bizarras aos olhos dos grandes, mas que, precisamente, lhes permitem tornar a «arrancar» em diferentes direcções. Quando a matemati- zação da situação conduz a problemas mais difíceis, os pequenos retiram-se durante algum tempo para um desenho ou uma actividade deste gênero e, desde que possível, reto mam o trabalho conjunto com os mais crescidos. Em leitura e em elaboração de textos livres, agrupa- mo-nos por equipas de três ou quatro que são, grosso modo, equipas de crianças do mesmo nivel. Isso não perturba a boa atmosfera da classe, pois estes grupos são constituídos duma maneira transitória, com vista a um trabalho preciso, e, além diso, o grupo que apronta textos livres em vinte minutos não é considerado moralmente superior ao que leva meia hora para fazer o mesmo trabalho. Em relação a todas as outras actividades, os grupos são não homogêneos, tanto no que respeita às actividades de oficina como no estudo do meio, em ginástica, etc. 228 A PEDAGOGIA FREINET Por outro lado, de cada vez que isso me parece dese jável, é reservado um tempo em que os grandes, alterna- damente, funcionam com monitores junto, por exemplo, dos miúdos do C. P. Com muita frequência, os mais crescidos retiram dessa experiência tanto proveito como os mais peque nos, pelo que não se trata, para eles, de tempo perdido. Roger — Nas reuniões de cooperativa, os mais peque nos tomam facilmente a palavra na presença dos grandes? Claude — É preciso distinguir muito nitidamente os 4 e 5 anos, e depois todos os outros. Quer isto dizer que, a partir do curso preparatório, da aprendizagem da leitura, não existe verdadeiramente qualquer diferença sensível, na reunião de conselho, entre os pequenos e os grandes. Em contrapartida, os 4 e 5 anos só intervêm verdadeiramente se forem solicitados, temos de confessá-lo. Penso, aliás, que isso se deve atribuir muito mais ao facto de o meio social ser um meio onde as crianças só falam a partir duma dife rença de idade. Em relação a todos os alunos da minha classe, qualquer que seja a sua idade, falar diante dos cama radas representa, de qualquer maneira, uma dificuldade... Roger — Bonvillers é uma aldeia do Oise com 150 habi tantes, e há quantos anos diriges tu ali uma classe única? Claude — Este ano é o sexto. Roger — Equipaste-a muito ricamente, se a comparar mos com outras classes únicas. Poderias tu pormenorizar o material que foste adquirindo com o andar do tempo (65)? Claude — Por um lado, dispomos de material bastante completo para a produção do jornal escolar *; temos, efectivamente: — 2 prelos, — 5 corpos de imprensa, — 2 limógrafos, — um certo número de materiais acessórios para as diferentes técnicas de ilustração. O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 229 Para além disto, consegui obter do município um mate rial audiovisual correcto: — um magnetofone muito bom, — um bom electrofone estereofônico. Roger — O que se me afigura também singular, é o facto de a tua classe não ser simplesmente uma espécie de barracão... conseguiste organizar dentro dela cantos de tra balho! Claude — Sim, existe de facto: — um canto para os mais pequenos, que ganhou impor tância à medida que o efectivo de crianças de 4 anos foi aumentando e que se parece um pouco com uma classe maternal, incluindo um lavatório, armários para arruma ção, um pequeno fogão de cozinha para a preparação do jantarinho, etc.; — um canto pintura e um atelier de ilustração; — o canto audiovisual; — o canto imprensa; — um armário aberto que serve para classificar a docu mentação, todos os B. T.e todas as produções do movi mento; — uma dezena de caixas com documentos diversos reco lhidos ao longo dos anos pelos alunos e por mim próprio... Além disso, adaptámos determinados locais fora da pró pria classe: — o celeiro foi convertido em oficina de marcenaria e de electricidade; existe, também, um atelier de fotografia que está ainda a dar os primeiros passos, mas que não tardará, certamente, a prestar-nos muitos serviços; — a lavandaria existente no pátio foi transformada em oficina polivalente; por um lado, para ali se poder praticar música (sem perturbar o resto da classe), por outro lado, fazemos ali criação de porcos da índia. Além disso, as 230 A PEDAGOGIA FREINET crianças que fazem escultura ou actividades congêneres dirigem-se para lá para poder trabalhar tranquilamente. É preciso dizer, também, que existe um jardim culti vado cooperativamente. Roger — Assim, é toda esta instalação e este material que, no fundo, permitem à tua classe funcionar como um lugar onde as crianças podem praticar uma espécie de fra ternidade por intermédio das técnicas, por intermédio duma actividade real, e não através da audição dum curso ma gistral. Partir do 0 com 74 alunos por Abdel-Kader Bakhti (reportagem de R. U.) Em Sidi-Bel Abbès, uma escola construída no estilo colonial francês: classes distribuídas por edifícios rectilíneos em volta dum pátio central. Por sorte, a de Abdel-Kader Bakhti está situada no rés-do-chão, numa ala frente a um muro. Ao pé do muro, um jar- dinzinho cultivado pelos alunos é como que a antecâmara duma pedagogia arrancada à monotonia da repetição e à obsessão da disciplina. Roger — Após quinze anos de luta, conquistaste o direito de ter um local bem teu, com mesas juntas para o trabalho em equipa e não para a escuta dócil entre dois exercícios de aplicação... Kader — Sim, comecei a minha carreira de professor em 1959. Exerci num meio deserdado, situado ao sul de Oranie. O facto de trabalhar entre crianças muito pobres veio apenas reforçar em mim o gosto pelo trabalho. Nunca tinha ouvido falar da pedagogia Freinet. Isso só aconte ceria em 1963, quando cheguei aqui a Sidi-Bel-Abbès e come cei a trabalhar numa escola na companhia do meu colega Hakem. Este último participara num congresso da Escola Moderna em Annecy e praticava algumas técnicas na sua classe. Fiquei impressionado pela sua maneira de trabalhar e quis imitá-lo. Realizámos ambos, em Dezembro de 1964, um estágio em Mazagran (Mostaganem). 0 animador desse 232 A PEDAGOGIA FREINET estágio era René Linarès. Regressados do estágio, lançá mos de novo o trabalho e sensibilizámos outros colegas, e foi verdadeiramente a partir deste período que arrancámos. Roger — Como puderam vocês inicialmente introduzir esta pedagogia? Quais foram as primeiras tentativas? Em que domínios? Kader — As primeiras tentativas foram, antes de tudo, a nossa atitude em relação às crianças. Compreendê-las mais, estimá-las, deixá-las exprimir-se espontânea e livre mente, ensinar-lhes o sentido da responsabilidade, eis por onde começámos. Prosseguimos depois com a introdução do texto livre. Pessoalmente, incitei as crianças a fazer investigações, a ir recolher informações onde desejassem. Compreendi que todo o resultado deste trabalho devia ser comunicado, e foi isso o que me levou a redigir o nosso jornal de classe, que foi feito com a participação dos alunos de Hakem. Como ele era bilingue, o nosso jornal compor tava duas partes: uma em árabe, e outra em francês. O seu título era L'Ere nouvelle (A Nova Era). Como Hakem e eu nos encarregávamos dos mais miúdos (curso prepara tório de iniciação), um camarada, que se interessava pelo nosso trabalho e que desejava trabalhar no mesmo sentido que nós, enviáva-nos alunos mais crescidos para se poder tirar cópias dos textos no limógrafo. Precisamente no está gio de Mazagran, cada estagiário confeccionava o seu pró prio limógrafo *, que lhe ficara por uns 5 francos. Roger — Depois, vocês tentaram a correspondência escolar... Kader — Não imediatamente, mas um pouco mais tarde, tentei a correspondência escolar. Hakem correspondia-se já com alguém. Roger — Com que escolas? Kader — Em primeiro lugar, com escolas da Argélia, pois em 1966, por ocasião dum estágio muito importante PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 233 realizar em Alger, e em que participaram uma centena de camaradas, fui designado responsável nacional pela Corres pondência Escolar nacional e internacional. O movimento argelino era muito importante nesse período, correspon dendo-se uma centena de classes. Da correspondência nacio nal, passámos à correspondência internacional. Um grande número de classes argelinas correspondiam-se com classes francesas, tunisinas, marroquinas, belgas, polacas. Roger — E que te proporcionou esta correspondência, para além do que tu já então fazias? Kader — A correspondência escolar é uma coisa for midável (66)! É uma abertura para o mundo. Antes de tudo, o facto de comunicar ou de receber qualquer coisa dá prazer. Basta observar a alegria das crianças quando recebem, por exemplo, uma carta ou uma encomenda dos seus amiguinhos. Dão saltos de alegria! Além desta alegria, há a considerar o aspecto descoberta: crianças e professo res descobrem uma outra vida, que é talvez diferente da nossa, e procuram desvendar o seu mistério mediante um questionário. Coisa mais maravilhosa ainda, a correspon dência cria laços amistosos e fraternos. Roger — Então, tu foste equipando progressivamente a tua classe, e quando eu lá entrei vi os bancos dispostos duma maneira muito diferente da das outras classes, as paredes decoradas. Kader — Sim, certamente, com os anos, o material foi melhorando e também a maneira de trabalhar. Para alcan çar estes resultados, era preciso não só dispor de material, mas também procurar melhorá-lo. O texto livre «chama» a imprensa, esta última, por sua vez, outra coisa... o material de cálculo, etc. Parti do zero para conseguir todo o material que tenho. As despesas com a compra dum certo material, que não pude fabricar com os meus alunos, vieram onerar o meu 234 A PEDAGOGIA FREINET modesto orçamento, pois eu pagava tudo do meu próprio bolso. O primeiro instrumento foi o limógrafo que eu fiz durante o estágio. A seguir, criei uma «oficina de pintura». Era preciso comprar as tintas (que fazer? utilizei corantes em pó, goma arábica), pincéis, papel. Eu não podia pedir aos garotos que me ajudassem a pagar tudo aquilo, pois a maior parte destas crianças eram filhos de jornaleiros. Criá mos, depois, uma oficina de «trabalhos manuais». Fabricá mos a partir de zero filicortadores * — dois transforma dores recuperados de emissores de rádio que nos davam 6 volts, mas depois fomos obrigados a comprar um trans formador maior para termos uma corrente de 12 V e de 18 V para podermos cortar as tábuas mais grossas. Comprá mos, também, um pirogravador. Em cálculo, eu queria pôr os meus alunos a trabalhar com bandas e caixas docentes *. A amizade que liga entre si os docentes Freinet é uma amizade actuante. Recebi de Yvette Boland, da Bélgica, 5 caixas docentes. Eu próprio fiz algumas caixas docentes, o que me permitiu criar uma «oficina de cálculo». Fabrica ram-se balanças para as pesagens, etc. Todo este material foi sendo melhorado de ano para ano. Roger— Tu deste um novo salto em frente depois de teres passado três anos numa escola de animação peda gógica? Kader— Sim, nos anos de 69-70-71. Trabalhei como professor de aplicação numa escola de animação pedagó gica em Sidi-Bel-Abbès. Roger — Em que consistia essa escola? Kader — O ministério criara em certos departamentos da Argélia escolas-piloto chamadas «escolas de animação pedagógica». Professores recrutados logo a seguir à inde pendência e que não tinham obtido os diplomas necessários PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 235 após sete anos de exrcícios foram chamados a frequentar um estágio dum ano. Da parte da manhã,assistiam aos cursos nas classes regidas por professores devidamente qua lificados (tradicionais ou modernos) e, da parte da tarde, recebiam uma formação cultural geral ministrada por pro fessores. Fui escolhido nesta escola para familiarizar os estagiários com as modernas técnicas de ensino. Fizemos um bom trabalho juntos (estagiários, alunos, director, ins- pectores, peritos da U. N. E. S. C. O. e professores). Fiquei satisfeito e penso ter cumprido com êxito a minha missão, pois muitos estagiários apreciaram os métodos modernos e empregam-nos actualmente nas suas classes. A minha classe correspondia-se com outra do Canadá. Tínhamos recebido uma fita magnética, diapositivos e um álbum. Os meus alunos, muito satisfeitos com esta encomenda, quiseram retribuir o gesto. Eu tinha possibilidades de satis fazer esse desejo, na medida em que esta escola estava dotada dum material muito rico e variado (material audio visual, de ensino doméstico, de jardinagem, etc.). Roger — E foi aí que sentiste a necessidade de experi mentar as técnicas audiovisuais? Kader — Antes de ir para esta escola, eu tinha feito a minha primeira montagem sonora a que dei o nome de Classe n.° 5. Esta montagem, que descrevia uma classe arge lina vivendo a pedagogia Freinet, foi apresentada em diver sos liceus de Oranie, na Itália, em França e na Espanha. Tive dificuldades em realizá-la, pois carecia de meios mate riais. Consegui que me emprestassem o magnetofone durante meio dia e procedi sozinho à montagem. Mas, na escola de animação pedagógica, podia realizar muitas coi sas e dedicar-me ao audiovisual; podia utilizar a meu bel- -prazer o magnetofone, o écran, o projector de diapositivos, etc., e foi este material importante que me permitiu rea lizar muitas coisas. 236 A PEDAGOGIA FREINET Roger — E deixaram-te ficar com esse material, com esses aparelhos? Kader — Não, eles pertencem à administração, e foi em 1971 que me lancei na compra de aparelhos. Comprei um magnetofone para os meus garotos, um aparelho de pro- jecção de diapositivos, um aparelho fotográfico e um elec- trofone. A partir de zero, fizemos altifalantes, um écran, e montámos uma «oficina audiovisual». As crianças uti lizam o magnetofone e o aparelho fotográfico. Procede-se a manipulações, à iniciação nos diversos aparelhos, grava-se, desgrava-se, etc. Sinto-me muito feliz, pois todos os alunos não tiveram dificuldade em compreender o funcionamento do magnetofone e venceram o medo dos aparelhos. Os objectos fotografados pelos alunos são recolhidos num álbum. Roger — E tu trabalhas com 74 alunos? Kader — Sim, mas não com os 74 ao mesmo tempo. Tenho duas classes: um C. M. 1 com 34 alunos, e um C. M. 2 com 40. De manhã, estou com o C. M. 1 das 8 às 11 h. Da parte da tarde, tenho o C. E. 2 das 13 h 30 às 15h30. O que perfaz um total de 14 h semanais ao C. M. 1 e de 10 h ao C. E. 2 Roger — Que podes tu fazer durante três horas da parte da manhã com o C. M. 1? Kader — Bastantes coisas, com uma certa flexibilidade. Faz-se um trabalho colectivo (conversação, lição importante, exploração dum inquérito), ao que se segue a dispersão pelas oficinas. Reunimo-nos depois para proceder a um pequeno balanço do trabalho realizado. Roger — E tudo isso é feito de acordo com um plano de trabalho? Kader —Um plano de trabalho estabelecido todos os sábados. PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 237 Roger — Como se desenrola essa sessão? Qual a tua contribuição, e qual a deles? Kader— Para estabelecer o plano de trabalho semanal, é necessário tanto a participação dos alunos como a do pro fessor. Organizamo-lo tendo em conta as necessidades de cada um. Há crianças que não compreenderam certas lições, que não adquiriram ainda certos conhecimentos, e que que rem rever certos pontos antes de abordar uma nova lição. Outras, pelo contrário, querem avançar. Fazemos estudos monográficos. Fixamos as visitas da semana. Mediante o plano de trabalho, prevê-se tudo: os contactos, o material, numa palavra, os preparativos. O que permite às crianças tomar consciência do trabalho. Roger — Existe comunicação com os pais (67)? Kader — Sim, com certeza! Na classe, tu deves ter visto um planning «visita dos pais» afixado na parede. Logo no princípio do ano, convido os pais para uma reunião de trabalho. Trata-se apenas dum contacto amigável, mas nem por isso deixam de ser tomadas em comum numerosas decisões. Explico-lhes que a classe está aberta para eles e que podem vir aos sábados observar o trabalho das crian ças. São postos ao corrente de todas as nossas actividades: inquéritos, acções em relação à natureza, iniciação no código da estrada, correspondência escolar. Isso leva os pais a tomar consciência de que os seus filhos não vêm unica mente adquirir conhecimentos, mas também PREPARAR-SE PARA A VIDA. Roger — E os professores de árabe, trabalham em ligação contigo? Kader — No início do ano escolar, «detecto», se assim me posso exprimir, o colega que vai trabalhar paralela mente comigo. Por vezes, é fácil; o professor, experimen tando a necessidade de repensar o seu ensino, tendo neces sidade de se modernizar, convencido da eficácia destas 238 A PEDAGOGIA FREINET técnicas, toma a iniciativa de se oferecer. Não irá trabalhar em profundidade, mas pode fornecer uma ajuda. As crian ças elaboram textos livres em árabe. Saímos juntos para os inquéritos, os quais são explorados em árabe e em francês. Roger — Aprendeste muitas coisas a partir de zero? Kader — Sim, isso permitiu-me aprender muitas coi sas, especialmente sobre a investigação pedagógica (68). Considero que a investigação em pedagogia deverá desenvolver-se paralelamente a uma procura de instrumen tos. Este último aspecto há muitos anos já que me vem preocupando, pois verifiquei que muitos colegas, que tinham feito estágios de iniciação, manifestavam boa vontade e desejavam praticar a pedagogia Freinet, viram o seu entu siasmo contrariado pela falta de material ou pelo preço ele vado da sua aquisição. Isso impressionou-me e esforcei-me, a partir de zero, por obter material a fim de os ajudar a vencer estas dificuldades. Fizemos investigações em mate mática e em pedagogia. Todavia, este aspecto: «Como obter o seu material a partir de zero» foi descurado, importa reco nhecê-lo, e foi só nestes últimos anos que se começou a falar nele. Além disso, não representará uma satisfação total para as crianças, para os professores, criar os seus pró prios instrumentos? Há que dar aos alunos a possibilidade de criar, há que ter confiança -neles. Dir-te-ei que o nosso jornal é bem impresso pelo nosso limógrafo. Para quê, então, procurar adquirir um por 200 francos? Uma criança propõe-se trazer uma tábua que servirá de base, outra encarrega-se de trazer duas dobradiças que irá bus car não sei onde, um outro traz pregos, outro ainda um pedaço de tecido que pedirá à mãe, e está montado o limó grafo. A classe sente-se feliz por ter participado na fabri cação deste instrumento. PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 239 Roger — Haverá outros domínios em que tenhas par tido de zero e em que as próprias crianças, também partindo de zero, te tenham proporcionado algo de novo? Por exem plo, na organização da classe? Kader — Há quatro anos, eu possuía na classe um grande pedaço de contraplacado. Os alunos propuseram-me transformá-lo num planning anual. Eles recortaram tiras de papel, utilizaram grampos e fabricaram eles próprios o planning que tu viste afixado numa das paredes da classe. Este planning convém-nos mais do que um planning com prado por 150 dinars. Em matemática, criámos balanças para a pesagem das cartas destinadas aos correspondentes. Fabricámos os nos sos próprios pesos com a ajuda de pequenos sacos cheios de areia, de pedras redondas. Utilizámos garrafas, caixas metálicas como relógios de água para inculcar nas crianças a noção de minuto e de segundo. Cada criança fabricou a sua própria medida a partir duma fita docente:«Como fabricar o seu metro?». Roger — Portanto, conheceste numerosos colegas nas tuas escolas; conheceste-os de esquerda e de direita. Hakem também. Existe, portanto, um movimento de pedagogia moderna em Oranie que parece ser o mais importante da Argélia. Como nasceu este movimento e como vive? Poderá Hakem dizer-nos alguma coisa a esse respeito? Hakem — Antes de 1962, as técnicas Freinet eram exclu sivamente praticadas por professores franceses. Logo a seguir à independência, alguns camaradas, como René Lina- rès, Cervera, Nalin e outros, agruparam-se e começaram a divulgar estas técnicas entre os Argelinos. Em 1963, teve lugar um congresso pan-africano em Oranie, o qual reuniu uma centena de participantes vindos da Tunísia, de Marro cos, de Madagáscar... Não foi um êxito total, mas não foi mau como ponto de partida. A partir de então, um grupo 240 A PEDAGOGIA FREINET de camaradas começou a reunir-se em casa de René e pros seguiu com o trabalho. Duas vezes por mês, reuníamo-nos em casa dele, em Bou Sfer, ao mesmo tempo que se efec- tuavam jornadas pedagógicas de informação em Oran, em Mostaganem, em Tlemcen, em Sidi-Bel-Abbès. Outros cama radas antigos na região de Argel criaram um núcleo que trabalhava em ligação com o grupo de Oran, o que nos per mitiu, em 1965, criar o Movimento Argelino da Escola Moderna (M. A. E. M.) O M. A. E. M. organizou durante as férias de Inverno diversos estágios (11 desde 1962). Além disso, todos os anos, o movimento envia uma delegação ao congresso inter nacional anual do I. C. E. M. desde o que teve lugar em Annecy (1963). Devido ao problema das divisas, os está gios em França não conheceram um grande incremento. Estivemos presentes em três R. I.D. E. F. *: Itália (1969), Dinamarca (1972), Tunísia (1973). Roger — O grupo promove a realização de reuniões? Hakem — Realizaram-se assembleias gerais, jornadas de trabalho e de informação em várias cidades da Argélia, mas levanta-se-nos o problema das distâncias. De 1968 a 1970, decorreu um tempo morto, se assim o podemos chamar. Foi o período durante o qual a maior parte dos nossos colegas prepararam os seus exames profissionais. Em 1971, o grupo de Oran, particularmente em Sidi-Bel- -Abbès, reestruturou o M. A. E. M. dotando-o de novos esta tutos. Pode dizer-se que a pedagogia Freinet, oficialmente ignorada até 1970, ganhou importância, tributando-lhe agora as autoridades uma grande atenção. Está presente nas nossas classes. Nas universidades, nos Institutos Tecnoló gicos de Educação (I.T.E.), colegas nossos, a quem envia mos uma rica documentação, fazem exposições sobre Frei net e a sua pedagogia. Todos os anos, por ocasião das festas PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 241 da cidade, no fim do ano escolar, tem lugar uma muito grande exposição organizada pela Escola Moderna. Roger — Qual o futuro do M. A. E. M., em teu entender? Esta colaboração com a administração irá servir ou pre judicar o movimento? Hakem — Com toda a franqueza, o Movimento Arge lino da Escola Moderna foi muito importante do ponto de vista efectivo nos primeiros anos, ou seja, de 1963 a 1967. À cabeça de grupos regionais encontravam-se inspectores primários. Todas as quintas-feiras, tinham lugar reuniões de grupo, além de que existiam contactos permanentes entre responsáveis de grupos. Ora, a partir de 1967, houve uma grande mudança, tendo afrouxado o ritmo da nossa acção. Porquê? Em primeiro lugar, os inspectores primários têm muito trabalho (pedagógico e administrativo). Apoiam-nos, mas não podem garantir responsabilidades no seio dos grupos. Em segundo lugar, na quinta-feira, há aulas. Já se não pode animar jornadas de trabalho, pois a maior parte dos professores estão ocupados com as suas classes. Os pro fessores só dispõem das tardes de quinta-feira para tratar dos seus assuntos pessoais. Um terceiro ponto: não se conseguiu o concurso dum animador para ir fazer exposições, falar do nosso trabalho; finalmente, a distância levanta grandes dificuldades. Temos camaradas que trabalham no Sul ou na região de Constan- tina. Eles não podem deslocar-se para nos vir ver trabalhar, e não têm outro meio de comunicação que não seja por carta. Em contrapartida, o nosso trabalho melhorou bastante. Até agora, temos conduzido investigações pedagógicas. O nosso trabalho aperfeiçoa-se de ano para ano. Há cama radas que trabalham com teimosia e que alimentam a espe rança de ver um dia o nosso movimento adquirir uma 16 242 A PEDAGOGIA FREINET importância muito maior. Sem meios financeiros, sem subsídios, organizámos não poucos estágios de iniciação na autogestão. Centenas de colegas foram iniciados na peda gogia moderna e, até à data, o movimento tem vindo a editar uma revista: L'Éducateur algérien. Comunicámos à administração as nossas pesquisas, o nosso trabalho, tendo chegado até nós numerosas cartas de felicitações do minis tério da Educação Nacional. Quanto a dizer-te se a administração vai ser útil ou prejudicial ao movimento, penso que, actualmente, o país desenvolve grandes esforços em todos os sectores. Depois da revolução industrial, da revolução agrária, será a vez da revolução cultural. No domínio do ensino, a construção de escolas, a formação de quadros e a renovação do ensino são tantos outros elementos de valorização. No ano passado, mais particularmente em Junho, uma nota do ministério da Educação Nacional fazia-nos saber que o Instituto Pedagógico Nacional procedia ao recruta mento de pessoal qualificado (inspectores, professares, mo nitores), o qual terá a missão de renovar o nosso ensino para que os nossos filhos possam, num futuro muito pró ximo, beneficiar dum ensino moderno, pois, nesta época, só uma escola aberta à vida, onde o trabalho seja moti vado por necessidades vitais, onde a vida da escola se ela bore cooperativamente, onde o dogma e os preconceitos sejam banidos, estará à altura de formar verdadeiros revo lucionários. É isso o que eu desejo de todo o coração à escola argelina. PERSPECTIVAS E SOLUÇÕES Desaprendizagem e desbloqueamento na classe de aperfeiçoamento por Jean-Pierre Lignon (reportagem de R. U.) A rua das Escolas, com os seus edifícios sem originalidade, está um pouco afastada do centro, das lojas, e o seu ar austero lembra ao transeunte que há que procurar noutro lado a fantasia. Jean-Pierre Lignon ocupa o rés-do-chão dum anexo. Classe-labirinto num alojamento adaptado de que um professor de aperfeiçoamento pode tirar partido para dispersar o grupo por oficinas. Imprime-se o jornal num corredor, meticulosamente, e as folhas são transpor tadas sobre uma tábua como pãezinhos frescos. Gavetas cheias de caracteres de imprensa, uma pirâmide de caixas de tinta de imprensa, instrumentos, chapas, tudo se acha sob o signo da recuperação. Incluindo os próprios alunos. Do que os outros já abando naram, Jean-Pierre procura fazer alguma coisa. — O que é impressionante quando se visita a tua classe, é o facto de se não assistir a sessões de leitura ou de cál culo por parte das crianças, e — enfim, assistimos a uma sessão de cinema que não é, talvez, a fórmula permanente do teu trabalho — tu disseste-me que tinhas a preocupação de «desaprender» um certo número de coisas, um certo número de más aprendizagens que as crianças tinham 246 A PEDAGOGIA FREINET sofrido e que para além de terem sido mal assimiladas eram, em si mesmas, deformadas, se assim podemos dizer... — Sim... é verdade, nós nem sempre nos encontramos nas oficinas... Não seria do agrado das crianças estar sempre nas oficinas. Eles gostam também de se reunir em grupo em volta dum texto que deverá ser lido ou decifrado, por exemplo. Vou contar-te a reacção dum colega que veio à minha classe num dia em que funcionávamos doutra maneira; havia outros centros de interesse, e ele achou que a classe era demasiado tradicional... Na realidade, os garo tos tinham um centro de interesse comum, o que fazia com que se parecessemcom uma classe... um pouco renovada, se quiserem, mas de estilo tradicional, uma classe em que cabe ao professor a iniciativa de todas as propostas. Pelo que ele encontrou motivos para criticar... — Mas, em que consiste isso de «desaprender»? — É o segundo ponto que eu queria desenvolver... Dirijo uma classe de aperfeiçoamento, e os meus garotos sofreram um insucesso escolar. Não é uma novidade, antes uma realidade bem conhecida. Trata-se, no entanto, dum insucesso mais ou menos repetido que os leva a sentir-se absolutamente incapazes, incapazes congénitos... e que, por conseguinte, façam eles o que fizerem, acabarão sempre por falhar... e isso em tudo o que possam empreender! Então, desenvolvemos uma actividade de desbloqueamento, a qual tende a regressar ao ponto zero, ou mesmo, para lá deste, a um ponto negativo, o que depende da escala; trata-se, em suma, de recuperar uma espécie de dinamismo fundamental — na realidade, de desaprender o que foi mal aprendido. — Quer isso dizer que, ao vir para a tua escola frequentar a classe que diriges, eles já não têm a impressão de que os ritos anteriores eram indispensáveis, podendo agora exprimir-se quando assim o desejarem, trabalhar DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 247 nisto ou naquilo quando lhes apetecer, tendo a leitura com L maiusculo e o cálculo com C maiúsculo deixado de preen cher todo o emprego do tempo... — A coisa não é tão simples, nem categórica. Há que ter presente que eles entram, desde logo, numa classe que não se parece com uma classe, que não tem qualquer seme lhança com a classe onde eles conheceram o insucesso (a «classe» acha-se instalada num apartamento com três divi sões...). (O que faz parte do capítulo «desbloqueamento»). Há também o facto de eles poderem ler constantemente e em qualquer momento: no momento de imprimir, quando da correcção dos textos, no seu caderno ou na imprensa, quando do contacto com os jornais que chegam, em todos aqueles momentos bem conhecidos numa classe Freinet, mas que não ocorrem duma maneira sistemática. — Não se regista uma aversão instintiva à leitura? Não seria suficiente para eles falar uns com os outros ou fazer música juntos? A partir de que momento passam a estar motivados a leitura e a escrita? — Elas são motivadas, precisamente, pela imprensa, pelo facto de se estimular o pensamento da criança... Pode parecer que se trata apenas de palavras, tenho receio de o dizer, mas a verdade é que se trata duma verdadeira expe riência vivida. 0 pensamento das crianças define-se face ao jornal numa situação de êxito, sentindo-se aquelas defi nitivamente seguras de si. É a repetição destes êxitos que suscita neles o desejo de se exprimir e, mesmo, de tomar conhecimento de outros escritos, de comunicar literal mente ao nivel do escrito. Inicialmente, havia insucesso, portanto rejeição. Eu tinha de aceitar que a criança não lesse, não escrevesse, em suma, não «trabalhasse»... o que, evidentemente, levantava problemas nas minhas relações com as famílias... 248 A PEDAGOGIA FREINET — Como reage a família quando a criança lhe traz um jornal e quando ela vê o texto da criança? — A primeira reacção é não acreditar que tenha sido a criança a fazê-lo. Tive diálogos com as famílias (69) que se podem resumir da seguinte maneira: — Como consegue que eles digam aquilo tudo?... Eles só compreendem ao fim de algum tempo mais ou menos longo. Tenho neste momento uma discussão com uma família que, finalmente, acabou por compreender bem, duma maneira «intuitiva», o que podia ser a liberdade de expressão, quando nos cen suram muitas vezes uma liberdade de «deixar correr o marfim», uma liberdade de má qualidade, uma liberdade que levaria as crianças a partir e estragar, relacionando-se tudo isto com a velha filosofia da «criança má». — A inexistência de manuais não suscita entre as outras crianças, entre os pais, uma certa inquietação, ao pensar que, afinal de contas, nunca poderão servir-se de livros, de verdadeiros livros? — Sim, conhecemos essa inquietação, mas conseguimos ultrapassá-la, simplesmente porque, no nosso grupo escolar, é cada vez maior o número de colegas que começam a imi tar o nosso exemplo ou que se inspiram nos nossos méto dos, o que faz com que nos considerem uma «vanguarda», que nos considerem avançados, pelo que todos se esfor çam por recuperar o seu atraso em relação a nós. Ainda há pouco tempo as coisas não se passavam assim, e éramos fidos por originais, por loucos; eu era tão louco como as crianças. De qualquer modo, íamos ao monte do lixo e tirávamos de lá coisas, portanto... — E se falássemos do desbloqueamento? Como é que a coisa se apresenta na tua classe? — Penso que ainda não acabámos de falar do primeiro aspecto, pois ainda tenho coisas para te dizer a esse res peito. Por exemplo, a leitura (70); «desaprendemos-lhes» DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 249 a ler. É uma actividade nobre a de desaprender o que foi mal aprendido ou o que foi percebido como um insucesso, ou como exterior à criança e à sua expressão íntima. Tra balhamos verdadeiramente nisso. O que significa que o garoto aprende a aceitar cometer erros. Institui-se uma escrita livre. Quando o garoto aprendeu a ler, sabia já escrever algumas palavras, mas continuava a não saber o seu significado. Sabe copiar muito bem, mas de maneira nenhuma sabe exprimir-se a si próprio dizendo: ...Os meus brinquedos são... o meu punhal... a minha boneca...; Annick foi a minha casa... Não sabem escrever isto porque estas coisas não vêm nos livros, não se encontram nos manuais. Sabem, porém, escrever: A casa de Poucet, ou ainda: Uma tulipa vermelha... A desaprendizagem pode passar-se da seguinte maneira: eu entrego o quadro às crianças. 0 quadro é, apesar de tudo, «pertença do pro fessor». Num primeiro tempo, eles tornam a escrever tudo o que aprenderam, libertam-se disso, depois do que defor mam o que escreveram, apagam, cospem em cima, mostram «falta de respeito» por aquilo que aprenderam. Trata-se duma actividade de destruição instituída, valorizada, que depressa atinge a fase dos «gatafunhos». Parece-me ser nesse momento que se chega ao fundo, ao ponto zero, isto é, a um plano de estabilidade sobre o qual se poderá cons truir. Tudo se passa como se o edifício estivesse construído sobre areia ou sobre lama; não se firmava bem. Num pri meiro tempo, é preciso demolir o que não está bem seguro para chegar ao mais profundo do solo, à rocha, às aqui sições sólidas, o que coincide na maior parte das crianças com a fase dos gatafunhos. É desta fase que partimos. Pouco a pouco, vão saindo letras destes gatafunhos. Tudo recomeça duma maneira verdadeiramente efectiva, pro funda. Em seguida, escrevem-se palavras. Mas palavras que correspondem a qualquer coisa de real para as crianças, 250 A PEDAGOGIA FREINET de verdadeiramente vivido. Passa-se do quadro para o papel; então, muito naturalmente, eles começam a tentar escrever. O texto é, assim, instituído na classe. Todos os retrocessos são possíveis, a todo o momento se pode voltar atrás. Tudo se faz tacitamente, tal é a lei da classe. Passa mos por uma escrita individual livre, escrita para a qual é indiferente o tipo das letras: maiúsculas, minúsculas, inglesas, script, etc., qualquer mistura serve. Aceita-se tudo. Cada garoto define, desse modo, o seu estilo, o qual é reco nhecido pelo grupo. Já não se trata duma actividade de cópia, mas de verdadeiras pesquisas. Uma escrita livre implica, também, uma ortografia livre. Tem-se o direito de escrever «bié» em vez de «billet» (bilhete), o que é con siderado como bom, não se fazendo qualquer correcção. Entre nós, os cadernos não são corrigidos. Seja como for, não se trata de cadernos, mas de -dossiers. Não corrigimos neste primeiro tempo. Trata-se efectivamente duma actividade de desaprendi- zagem que permite à criança recomeçar a partir de bases novas, de bases de expressão. Seguidamente, pode fazer-seuma verdadeira aprendizagem da leitura, não pela própria leitura, mas aprendizagem da leitura pela escrita. Apren- DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 251 de-se a ler escrevendo, e não lendo. A aprendizagem por meio da escrita dá somente em resultado a cópia. Quando a criança tem necessidade dum som, aprende-o. — Como é que se obtém oi, Jean-Pierre? — Pois bem, obtém-se oi com um o e um i. Faço muitas vezes o gesto com os dedos, pois nem sem pre estou disponível junto da criança — é como uma espé cie de morse que permite que comuniquemos à distancia —: o...i = oi, assim, com os dedos, como um cão que uiva1. O que serve, ao mesmo tempo, para fixar o som no espírito da criança. Os textos das crianças são muito íntimos, por exemplo: 1 Em francês, no texto: «...comme un chien qui abote.» (Subli nhado do T.) Um sol que chora. Um outro sol que chora. As lágrimas que se cruzam ao chorar. Uma rapariguinha e um rapazinho Brincam sobre as lágrimas dos sóis. Eles vão-se encontrar um ao outro. Brigitte FOUQUET Trata-se dum texto profundamente sentido pela garota, pois ela descreve nele a sua situação familiar, em todo o seu vigor e autenticidade. É uma situação sentida como impossível de traduzir por palavras, tal como é impossível vivê-la. Unicamente o símbolo permite desmistificar, per mite ser ouvido e aceite. Sobre esta base afectiva muito forte, pode-se construir. Tudo isto nos leva a falar das técnicas de desbloqueamento. — O que conta, em última análise, são as actividades de desbloqueamento? 252 A PEDAGOGIA FREINET — O que te acabo de descrever sumariamente, são actividades de desaprendizagem. O desbloqueamento é, para mim, outra coisa, embora esteja relacionado com aquela. Há necessidade de desbloqueamento quando existe uma impossibilidade de fazer. No que diz respeito à lei tura e à escrita, os garotos não se encontram impossibili tados de fazer — por exemplo, eles encontram-se em poten cialidade, em «possível» de reprodução—, mas antes em situação de não comunicação. Na realidade, existe um fosso entre eles e a coisa escrita. Então, é preciso retornar à base, desaprender tudo o que se relacione com esse aspecto e recomeçar dum ângulo diferente, o da expressão pessoal. Nisto consiste a desaprendizagem. O bloqueamento é uma coisa diferente. A criança gos taria de comunicar, está pronta para isso, quer fazê-lo, está motivada, mas não o pode fazer, está bloqueada. Se qui seres, está a abarrotar de imagens, culturais ou não, que não são suas, e não pode desembaraçar-se desse acervo de imagens para exprimir aquilo que tem real necessidade de comunicar. Achasse bloqueada. Em face do bloqueamento, há o desbloqueamento. Está fora de questão desbloquear toda a gente em relação a tudo. É impensável que eles se tornem todos dançarinos, ou todos tipógrafos, ou todos pintores, ou todos... sei lá que mais. A haver desbloqueamento, que ele se verifique no domínio em que eles têm real neces sidade de se tornar eles próprios, de se revelar, pois é desta expressão particular que eles têm necessidade. Pascalou era uma criança que se mostrava muito rígida, mas duma rigidez enorme, rara numa criança. Ora eis que um belo dia ela se resolve a ser dançarina, passando-se a interessar pela dança. Eu mostrava-me muito céptico, mas ela queria ser considerada como a campeã de dança da DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 253 classe. Nós entrámos no jogo; mas era ainda preciso que ela não caísse no ridículo e que, em face do grupo-classe, a coisa parecesse verdadeira. Então, quais as técnicas de desbloqueamento da dança que se deveríam empregar? Insisto no facto de a criança estar muito motivada para dan çar, devendo a operação situar-se unicamente ao nivel do desbloqueamento. A criança tinha conhecimento das suas impossibilidades, não ousava lançar-se, e todavia estava mais desejosa de o fazer; tinha necessidade disso, era para ela algo de muito importante. Fui buscar à caixa das par tidas, para lhos oferecer, as meias altas e os sapatinhos de dança. Tinha já observado que, quando íamos de passeio e fazia calor, ela tinha tendência para despir o vestido e a camisola, e a andar descalça. Mas ela também tinha neces sidade dum espelho. Entreguei-lhe um par de meias altas, sapatos de dança e uma camisola justa, e disse-lhe: — Veste isso para te pareceres com uma bailarina; olha, vê-te ao espelho! E podíamos então observá-la, ela já não era Pas- calou a gesticular diante de todos, era, agora, «a bailarina». A partir desse momento, ela começou a dançar muito, aliás, segundo a maneira como ela entendia a dança... Depois, no Natal, ela pôde encontrar sob a árvore de Natal um livro sobre as bailarinas. Viu raparigas que levantavam a perna desta ou daquela maneira, e procurou sistematicamente reproduzir os movimentos que observava. Além disso, trei- nava-se em casa. A garota pôde adquirir, assim, uma flexi bilidade incrível. — Os pais permitiam tudo isso? — Oh, sim! A coisa podia aparecerdhes como uma espé cie de jogo, embora, na realidade, o não fosse. Ela dan çou tanto que agora movimenta-se com muita graça para regalo dos nossos olhos. Pascalou tornou-se verdadeira mente «a bailarina da classe». 254 A PEDAGOGIA FREINET — E esse desbloqueamento teve repercussões noutras actividades? — Sim este desbloqueamento teve enormes repercus sões sobre a leitura, sobretudo a leitura-escrita. Por causa dos seus movimentos de todo o género, ela começa a ver o mundo em grafismos, em linhas. Anteriormente, ela con fundia tudo, misturava linhas e superfícies. O que a emba raçava no desenho; com efeito, os seus desenhos não eram legíveis, ela apagava toda uma organização de traços mediante linhas desastradas. Além disso, ela não diversi ficava as suas técnicas, o que também a embaraçava no plano da escrita. Tão-pouco a sua escrita era legível, pelo que a sua percepção motriz não lhe permitia ler, etc. Tudo está relacionado... Ao mesmo tempo que dançava, ela traçava linhas. Foram-lhe dados pincéis para ela pintar a sua dança. A par tir de então, ela pôde valorizar as suas linhas. Em seguida, libertei-a do eterno «fundo». Quando fazíamos pintura, eu dizia-lhe: — Tu não precisas de fundo, pois, para ti, que és bailarina, o mais importante são as linhas. Tive mesmo a impressão de abusar do estatuto que ela tanto apreciava. Agora que ela tem uma escrita legível, os progressos em leitura são rápidos, pois ela toma a ler o que escreveu. — Registam-se desbloqueamentos em cálculo? Como procedes tu no caso das matemáticas? — As matemáticas? É dizer muito! Não posso falar de matemáticas no que se refere àquelas crianças! Limita- mo-nos a contar, a classificar. As crianças não sabem ler os números; é preciso ensiná-las a ler os números. É neces sário que a leitura dos números corresponda a uma ideia dos números. Procedemos a muitas contagens. Mediante DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 255 1, 2, 3... fazemos montões. Os garotos também gostam muito dos «conjuntos», isto é, das «batatas», porque se trata dum meio fácil de separar qualquer coisa. Na reali dade, sinto-me muito embaraçado para te dizer que fazemos cálculo, pois a coisa não é assim tão clara. A posteriori, sabe-se se se faz cálculo ou não; de início não o sabemos. — Vocês procedem a medições, a pesagens?... — Sim, em grande quantidade. As crianças sentem ver dadeiro prazer em comparar coisas. Ora, os pesos e as medidas são meios de comparação, pelo que a coisa acon tece naturalmente. Lembro-me dum colega me ter confessado sentir difi culdades no que toca às medidas de capacidade. Os seus garotos, em seu entender, não compreendem o que é uma capacidade. Nós, pelo contrário, temos acesso directo a este conceito, uma vez que as crianças estão constantemente a manipular a água. Encontrámos velhos caracóis — havia-os grandes, pequenos, de todos os géneros... Eles descobri ram que alguns continham mais água do que outros, e precisaram essa quantidade. Narealidade, trata-se duma operação muito delicada, pois há sempre gotas que se per dem. Tínhamos discutido com os garotos sobre o que nós, adultos, poderíamos chamar a relatividade da medida. Nas pequenas medidas, damo-nos conta disso melhor do que com as grandes. Nas grandes medidas, apercebemo-nos de que se podia, impunemente, verter alguma água por fora. No caso das pequenas, porém, uma gota, é já muito grave... Não vamos mais longe que a enumeração, mas praticamo-la em diferentes domínios. E os garotos fazem as suas pró prias pesquisas. Com efeito, eles procedem a investigações pessoais diferentes umas das outras. Neste momento, Edith procura contar por conjuntos, mas por conjuntos anteci padamente definidos, procurando assim, se quiseres, «faci litar» o seu trabalho. Por exemplo, numa grande adição, 256 A PEDAGOGIA FREINET ela isola todos os 20 e procura quantas vezes tem vinte e o que resta. Depois, faz uma outra verificação. Tu sabes que em pedagogia didáctica se pretende que a criança passe por uma fase manual antes de abstrair. Edith, procede ao contrário: primeiro pensa, e só depois verifica no concreto. — Qual o estado de espírito, qual a situação dos garo tos que te deixam? — Se me deixam quando é esse o meu desejo, o que, infelizmente, nem sempre acontece, encontram-se num estado perfeitamente normal da criança normal, isto é, já não se pode dizer que eles sejam «débeis mentais». Procuro fazer «saltar», no caso desses garotos, a noção de debilidade. Eles mostram-se vivos, cheios de curiosidade. A tradicional lentidão de espírito dos débeis deixa praticamente de existir. Não se pretende, porém, logo de início, recuperar o atraso, evidentemente. —Verifica-se uma adaptação social e uma compreensão de si próprios que lhes permite desenvencilhar-se... — É isso. Eles já não se sentem como os «imbecis» num outro grupo de crianças. — Acaso podem eles ter presente no espírito um cento número de actividades que poderíam exercer mais tarde e que lhes permitiríam viver, pois os pais devem molestá-los a propósito disso? — Sim, sim, posso dar-te o exemplo dum ancião, Mar- tial, que sempre disse que haveria de trabalhar na viticul- tura — e é, actualmente, vinhateiro. Conseguiu fazer aquilo que queria. Francine tornou-se dactilógrafa, como era seu desejo. Evidentemente, não se trata, no que se refere à grande maioria, de profissões «intelectuais», mas... — Sim, com certeza... Os teus antigos alunos vêm às vezes visitar-te? — Sim, sim, revejo muitos deles, que tomam direcções que eu nunca teria imaginado. Posso citar-te o caso duma DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 257 criança que esteve comigo há já muito tempo; um garoto que nunca conseguiu aprender a ler e a contar (um caso extremo, apesar de tudo). Trabalhámos noutras bases... sublinhando, sobretudo, o aspecto oral, a discussão... Esse garoto adquiriu em muito pouco tempo uma «lábia» extraor dinária, uma facilidade de elocução maravilhosa. Tornei a vê-lo, não há muito tempo, e ele parece ostentar todos os sinais do êxito social... É representante comercial, possui um DS 21 novinho em folha. Acaba de mandar construir uma vivenda. Eis, pois, um representante comercial que não sabe ler nem escrever... — Isso é possível? — Sim... Ele não o sabe, segundo as normas escolares geralmente admitidas. Não sabe ler nem um texto nem um livro, mas reconhece, evidentemente, sinais, fórmulas... Sabe reconhecer os seus produtos num plano de vendas, possui uma excelente memória... Ele próprio não faz os cálculos, limita-se a inscrever cruzes... — Ele terá, mesmo assim, aprendido a ler, depois, não? — Não o creio... Ele próprio diz que continua a não saber ler, mas eu penso que ele toma conhecimento de certas coisas globalmente, fosse apenas nos painéis de sina lização das estradas... Mas ele tem uma «lábia» extraordi nária verdadeiramente sedutora, e vende tudo aquilo que quer. Em meu entender, o seu triunfo não se verifica ao nivel do conforto social, reside antes no facto de ele ter seguido a profissão que desejava, no facto de ter tirado partido dos seus dons. Como ele se sente orgulhoso! Ele próprio se admira com isso! 17 Deveremos desconfiar dos psicólogos? por Jacqueline e Jacques Caux (reportagem de R. U.) São vários milhares, em França, a tirar da sua mala de mão baterias de testes, questionários, cronômetros, em frente de crian ças amedrontadas, de operários perplexos e de quadros desempre gados e ansiosos. Amáveis, mas enigmáticos... Inútil será dizer que Jacques e Jacqueline Caux, no seu Morvan de gente rude e realista, não se reconhecem neste retrato-robot... «Perdidos para o movimento» Roger — Quando um camarada decide deixar de ser professor, e tornar-se psicólogo, ou conselheiro pedagógico, ou inspector, ou transferir-se para o segundo grau, isso é sempre visto como se ele abandonasse o movimento e rene gasse os seus irmãos professores. Assim, vocês os dois esti veram encarregados de classes Freinet, e, depois, foram, de algum modo, desertores das classes elementares. Como sen tem vocês esta censura? Jacqueline — Isso recorda-me uma frase de Hourtic ¹, que nos apresentou aos seus professores da escola anexa dizendo: 1 Director de anexo escolar em Mérignac. 260 A PEDAGOGIA FREINET — Eis dois bons educadores em matéria de pedagogia Freinet, dois bons pedagogos, dois elementos sólidos, mas que estão perdidos para o movimento. Jacques — Estão perdidos para o movimento. O que fez com que, desde o princípio, nos víssemos confrontados por este problema. Sim, isso não deixara de nos impres sionar. Dizíamos para nós próprios: «poderemos tornar a pegar numa classe, poderemos recomeçar», mas, finalmente, sabíamos bem que se tratava duma atitude irreversível; não mais tornaríamos a pegar numa classe. Então, que iría- mos fazer de todo aquele passado, ao mesmo tempo de pedagogo Freinet na nossa classe, e de pedagogo Freinet no movimento? Havia estes dois planos, e eu penso que se deverá distinguir sempre estes dois planos, porque se pode organizar uma boa classe Freinet, mas já não actuar tão bem no seio do movimento e vioe-versa. Ao fim e ao cabo, precisávamos dos dois anos de estágio para clarificar a questão. Roger — Vocês tinha escolhido essa via, não por faci lidade, mas porque queriam ir mais longe do que aquilo que tinham feito até então. Não haverá uma idade em que dizemos a nós próprios: tudo corre da melhor maneira na minha classe, mas eu quero ir mais longe, pois atingi o ponto de saturação? Jacqueline — Sim, era precisamente esse o meu caso. Eu tinha trinta anos, a minha classe funcionava muito bem, eu pensava não poder realizar mais progressos, e verifica va-o na correspondência escolar, na expressão das crianças; eu acumulava os dossiers, as investigações encetadas e, de cada vez, achava-me perante novos impasses. Recorria ao auxílio de camaradas: enfadava Beaugrand com as mate máticas; também te maçava a ti, Jacques, e não chegava a .coisa nenhuma. Foi então que se nos ofereceu a possi DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 261 bilidade de fazer este estágio para psicólogo escolar, preci samente, para irmos mais longe. Foi exactamente isso. Jacques— Toda a escolha tem um significado. Eu tam bém senti que a minha classe «patinava», que eu próprio estava a chegar ao extremo da paciência. Todavia, pode riamos ter encontrado na classe essa possibilidade de renovação. Roger — Acreditas verdadeiramente nisso? Como a terias encarado? Jacques — Acredito nisso, agora; naquela época, não. Creio que, se o movimento me tivesse podido oferecer algo mais no plano teórico, eu teria podido progredir. Penso que aplicava uma pedagogia (a expressão livre, o tacteamento experimental, os métodos naturais em toda a espécie de disciplinas), mas não dominava a respectiva teoria, e se tivesse podido encontrar no movimento ou em mim mesmo estas possibilidades de teorização, teria reali zado um salto em frente,mesmo no interior da minha classe. Um estágio: para ganhar recuo Roger — Existem, no entanto, camaradas que lêem, que consultam obras, que conduzem praticamente investiga ções autadidácticas. O que é que o estágio vos trouxe a mais do que esta leitura, do que esta actualização? Jacqueline — Dizia-te eu que o tempo como que parou para nós. Esses dois anos foram para nós um tempo de reflexão sobre a pedagogia que tínhamos praticado até então, uma reflexão sobre a nossa personagem de educa dores e, depois, sobre nós próprios enquanto mulher, enquanto homem, enquanto casal. Era algo de completo. Mas isso foi também doloroso. Recordo-me de que, durante esses dois anos, nos procurávamos a nós próprios. 262 A PEDAGOGIA FREINET e havia alguns psicólogos que diziam:—Ah, sim, com preendo. Eles podiam avaliar muito rapidamente as etapas que iam vencendo. Diziam, por exemplo: — Sim, já não verei a criança da mesma maneira. Enquanto nós dizíamos: — Não, isto não nos traz nada que nos faça ver a criança doutra maneira. A pedagogia Freinet já nos tinha ensinado a ver na criança uma criança particular, não um conceito. Eles diziam: — Eu tinha um grupo-classe, e tinha de fazer com que ele atingisse, de 15 de Setembro a 30 de Junho, um certo nivel; era isso o que eu devia fazer, mas agora já não encaro a criança da mesma maneira, vejo cada criança individualmente. Nós, pela nossa parte, dizíamos: nós não aprendemos isso, logo, falando com os nossos botões: não aprendemos nada. Marcávamos passo, patinhávamos na lama, investigámos, e fomos, assim, bater a muitas por tas. Este estágio foi um período durante o qual conhece mos muitas pessoas, em que nos relacionámos com pessoas com as quais, antes, não nos teríamos atrevido a falar. Jacques — Mantivemo-nos no mesmo eixo no tocante ao conhecimento da criança, pois existe, mesmo assim, uma coisa importante no movimento: precisamente esse conhe cimento da criança. É esta escola que nós queremos cen trar, e que efectivamente se acha centrada na criança, pois o professor Freinet conhece de algum modo pessoalmente cada criança, pode falar e fala efectivamente dela, como se diz em psicologia, singularmente. Ele sabe falar de cada criança na sua singularidade, pois vive com as crianças. Finalmente, o que é a psicologia, senão um conhecimento da criança? Então, foi este o motivo porque não tivemos de proceder a uma viragem no sentido duma centralização em torno da criança. Já estávamos centrados nela. Roger — O que vos marcou não terá sido, também, o facto de terem sido libertados de dar aulas, o facto de terem estado em contacto com outras pessoas? DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 263 Jacqueline — Para fazer compreender que mudei lite ralmente de pele, vou tentar explicar a diferença que existe entre um pedagogo e um psicólogo. Assim, nas conferências pedagógicas com o inspector, dispõe-se dum momento para apresentar a psicologia escolar. Então, digo aos professo res: uma das diferenças essenciais que existem entre nós e vocês, é o facto de vocês terem um projecto pedagógico; eu, pelo que me toca, não tenho qualquer projecto. Em face duma criança, o que me interessa, é SABER QUEM FALA ALI, E O QUE É IMPORTANTE PARA QUEM ESTA ALI À MINHA FRENTE; mas não tenho qualquer projecto, não tenho a intenção de que ele seja bom aluno em matemá tica ou que tenha zero erros no ditado, isso não me interessa nada. Eu não estou no lugar dele, estou noutro lugar, vejo a criança a uma outra luz, e tenho a impressão de avançar muito mais profundamente na descoberta da criança do que no tempo em que era professora. Roger — Trata-se duma capacidade de ser diferente, de não se achar empenhado na acção propriamente didáctica? Jacques — O que é importante é o facto de termos podido reflectir sobre a nossa acção de educadores; o que não podemos fazer enquanto somos educadores, porque nos achamos implicados — temos o trabalho da classe, temos as crianças, e, sempre, o maldito projecto; a'li, já não tínha mos nada disso, tínhamos apenas o documento, as produ ções e o nosso passado. Restava-nos apenas analisar, o que ambos fizemos, embora em trabalhos diferentes que eram, depois, apresentados a um grupo para discussão. E é bem certo que aprendemos a «ver-nos», pois, para que nos vísse mos, tornava-se necessário um recuo; não nos podemos ver enquanto «fazemos», só nos podemos ver quando paramos de fazer. É também por esta razão que penso, verdadeira mente, que seria necessário que, na profissão de educador, pudéssemos dispor de momentos de reflexão como estes; 264 A PEDAGOGIA FREINET por exemplo, a possibilidade de dispor dum ano de reflexão todos os cinco ou seis anos. Roger — Isso significaria, em primeiro lugar, um ano inteiro, e, depois, que esse ano se diferenciasse nitidamente da própria vida profissional. Não equivalerá isso a con denar a forma actual da reciclagem dos professores? Jacques — Exactamente. A forma actual da reciclagem dos professores não é uma reciclagem, não é coisa nenhuma. Aliás, não se viu ainda um professor que tenha sido trans formado por um estágio de reciclagem de três meses. Da preocupação de ensinar ao desejo de ajudar Roger — Como se sentem vocês agora nas vossas novas funções? Uma vez que vocês se sentem algum tanto frustra dos em relação a uma acção educativa, encontram vocês, no vosso novo sector profissional, satisfações pelo menos equi valentes às que tinham quando eram professores? Jacqueline— Eu, pelo que me diz respeito, não me sinto frustrada pelo facto de não dar aulas. Quando vejo uma criança, isso é de tal maneira importante, é uma expe riência de tal maneira completa para mim! Os momentos que passo com ela satisfazem-me por completo. Não, as aulas não me fazem falta nenhuma. Roger — Vocês funcionam actualmente duma determi nada maneira, e, depois, doutra maneira, isto numa ardem ideal. Poderiamos falar, em primeiro lugar, do vosso modo de \trabalho actual com as suas vantagens e inconvenientes, e imaginar, depois, qual podería ser um papel de psicólogo noutras condições? Jacqueline — Neste momento, estamos a aprender. A aprender a conhecermo-nos e a não exigir demasiado, a não ir demasiado longe. Começa-se, faz-se o que faz qual quer psicólogo: damos «caça» aos débeis. É esta a verdade. DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 265 Estou colocada num scctor rural onde apenas existem aldeias muito dispersas; chegam crianças ao C. M. que é imperioso orientar para qualquer lado, mas cuja sorte já está anteci padamente traçada. Limito-me a fazer uma comprovação, mas como quero ir tão longe quanto possível, procedo a uma verificação o mais séria possível, isto é, não apenas ao nivel da inteligência, mas também ao nivel da persona lidade. Procuro também recuperar o que porventura o possa ser; o que às vezes é possível, quando os pais cooperam, mas não alimento quaisquer ilusões a esse respeito; com efeito, a criança, nas melhores condições possíveis, terá de repetir o C.M. 2. Dá-se lhe ainda uma oportunidade. Encon tro-me com o professor e exponho-lhe a situação da criança. Esta, por exemplo, é muito inteligente, mas não tem bom êxito por esta ou por aquela falha; se a pudéssemos ajudar durante um ano mais, eu e o professor... pois tenho a preo cupação de acompanhar as crianças. Ao cabo dum mês, remeto ao professor uma folha de ligação; fazemos o ponto da situação, e fazemos outro controle dois meses depois, ou então torno a passar por lá. Dificilmente o poderei, no entanto, fazer, tendo de percorrer circuitos incríveis para ver dois garotos, ou mesmo um. Roger — Que espécie de conselhos podes tu dar nesses casos? Jacqueline — Muitas vezes, o professor é tomado por alguém que ele julga que não é. Por exemplo, é obrigado pela criança a reproduzir um estatuto de pai; como o pai é, em casa, muito punitivo, muito autoritário, o professor, sem se dar conta, acaba por reproduzir a mesma atitude. O que me leva a queas coisas se não possam compor, uma vez que tanto em casa como na escola o garoto depara com a mesma situação. Portanto, eu vou procurar fazer ver isso ao professor. Seguidamente, acalento muitas esperanças ao nivel da pedagogia, mesmo se, às vezes, não acredito muito 266 A PEDAGOGIA FREINET nisso; digo sempre: — Se existe um lugar onde a criança pode ter ainda uma oportunidade, esse lugar é a escola. E, procurando tirar partido disso, acrescento, também, por exemplo: — Tenta-se, durante três meses, fazer qualquer coisa. No que toca à ortografia, por exemplo, não lhe fale mais no assunto; dê antes mais atenção ao que se passa ao nivel da afectividade, pois existe uma grande exigência em relação a si ou a um seu camarada. Como vês, procuro esclarecer os problemas desta maneira. É um trabalho pon tual, que não compensa, mas que não deixo de realizar, embora gostasse de fazer outra coisa. Jacques — Eu encontro-me na cidade, escolhi o meu próprio sector. Encarreguei-me de dez grupos escolares. Pouco a pouco, ao fim de seis meses, começo a ser conhe cido nas escolas. Foi, mesmo assim, necessário que eu «cons truísse» essa imagem de mim próprio. E é bem certo que as minhas condições são melhores, pelo facto de eu me encontrar no mesmo sítio. O que me permite desenvolver uma acção talvez mais em profundidade do que Jacqueline. Por exemplo, uma professora chama-me a atenção para uma determinada criança; diz-me que esta criança é estúpida, que não aprende nada, que ela vem duma outra escola de Paris, que já foi observada por psicólogos. Finalmente, ele acabou por ser visto como o meteco da classe e da escola. O caso, então, agrava-se. Vejo a criança, e dou-me conta de que se trata duma criança normal no plano da inteli gência, apesar de ter um atraso escolar importante, mas que apresenta, sobretudo, um problema importante que eu posso circunscrever com grande precisão. Trata-se duma criança que repetiu por três vezes o C. P., que teve apenas professoras, cuja mãe se pode qualificar de abusiva, estando o pai ausente. Essa criança, manifestamente, já não pode suportar a autoridade sob uma forma feminina; além disso, toda a autoridade lhe aparece sob essa forma feminina, e, DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 267 para cúmulo, ei-la transferida para uma nova escola diri gida pela inevitável professora. Professora que se opõe a ela, e já não há nada a fazer! Procuro explicar àquela que, se a criança não é bem sucedida, é porque encontra uma mulher à sua frente. É difícil dizer uma coisa destas à professora; é sobretudo difícil que ela o aceite, pois pode tomar esta observação como um ataque pessoal. Desco nheço o que isso possa remexer nela, não conheço a sua constituição afectiva, mas é preciso que lho diga. Tentei explicar-lhe que a criança se opunha a ela enquanto mulher e não necessariamente a ela própria. Na altura, não tive a impressão de que ela tivesse compreendido. Voltei lá mais tarde. Dessa vez, não falei, aguardei que ela me dirigisse a palavra, o que ela fez nestes termos:—Verda deiramente, o garoto não é tão estúpido como isso. Noutra ocasião que por lá passei, ela disse-me: — Ele começa a falar-me; ele não se atreve a falar, durante a conversação, na presença dos outros, mas deixa-se ficar na sala durante o recreio. Aceito-o como você me aconselhou a fazer, e ele começa a falar comigo. Estou verdadeiramente convencida de que ele vai começar a fazer progressos. Revejo-a de tem pos a tempos, simplesmente devido ao facto da minha pas sagem pela escola; encontro-me com ela, vejo outras crian ças, etc. Encontro-me também com os pais desta criança; estive com a mãe, e tive de lhe dizer muitas coisas e de organizar todo um programa de mudança, tanto no plano relacionai como no plano material. A criança dormia jun tamente com a irmã. Foi preciso acabar com isso. A mãe ficou abalada, modificou algumas coisas e foi procurar a professora. Falaram uma com a outra, tendo-se assim esta belecido todo um conjunto de relações. Finalmente, graças à minha presença — pois se eu não tivesse estado presente as coisas teriam ficado no mesmo estado, a criança conti nuaria a ser o meteco, teria sido rejeitada—, produz-se, 268 A PEDAGOGIA FREINET mesmo assim, um certo número de modificações. Agora, irei dizer à professora: — Sei que esta criança tem um atraso escolar; todavia, é preciso que ele passe para a classe superior. Auxiliar o professor ou a criança Roger — O vosso trabalho não se situará mais ao nivel do professor do que ao nivel das crianças? Jacqueline — Tu sabes bem como alimentamos muitos desejos, como desenvolvemos um grande dinamismo; é uma profissão que nos enriquece muito. Abordamos toda uma profusão de domínios e mesmo, no caso de certas crianças, conseguimos ir muito longe. Há pouco tempo, uma profes sora chamou-me por causa de Albert (4 anos), na maternal, criança que dominava a classe pelo terror, que partia tudo. Ela já não o podia suportar mais, pelo que se impunha transferir imediatamente a criança para outro lado. Chego à classe, e ela diz-me: — Olhe, veja como ele parte tudo. Ela vai procurar a criança, e logo a criança se agarra avida mente a ela; fico um momento a observar como o garoto se lhe agarra ao pescoço, à barriga, e como ela o imita. Depressa me apercebo de que existe uma simbiose muito estreita entre esta professora de quarenta anos, solteira, que sente a grande exigência afectiva em relação a este garoto dum meio desfavorecido, que não tem mãe e que também sente uma grande exigência afectiva em relação à professora, e dou-me perfeitamente conta (como podes compreender, era muito ambivalente, pois ela estava dis posta a enviá-lo para o I. M. P. da esquina) de QUE ELA TEM NECESSIDADE DELE, pois era ela quem o lavava, quem lhe dava banho à tarde. Entro na classe e tomo o garoto de parte. Ele acompanha-me, não muito satisfeito, pois isso obrigava-o a separar-se da professora com quem DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 269 brinca ao TU DEVORAS-ME, EU DEVORO-TE, e depois regresso à sala de aulas. Diz-me ela: Então, apesar de tudo, ele não é assim tão estúpido, pois não? Ao que eu respondo: — Não, mas compreendo que ele tenha NECESSIDADE DE MUITA CALMA. Em casa dele, ele vive já com cinco irmãos em dois quartos, o que não é bom, e, na escola, parece-me que há muito barulho, além de que a sala é pequena. Vocês saem da escola de tempos a tempos? Falamos algum tempo, e vou-me embora. Três ou quatro dias depois, desloco-me a uma escola vizinha, e a professora diz-me: — Ah, você encontrou-se com a menina X? Ela disse-nos: — Vi a psicó loga que me disse que era preciso que EU ME ACALMASSE (o que era verdade, mas não fora dito). Aguardo um pouco mais, e depois vou até lá. Vou até lá como me acontece deslocar-me a classes ou a grupos escolares — na qualidade de catalizador. São momentos em que se passa alguma coisa, sei que qualquer coisa se está a fomentar nesse momento, e desloco-me até lá para receber, para verda deiramente catalisar; receber, ou a agressividade que nesse dia sou capaz de suportar, ou... mas qualquer coisa que, em todo o caso, se vai esclarecer. Ela recebe-me um tanto friamente, e eu digo-lhe: — Quer saber, falei da sua classe ao inspector. Como ele a conhece bem a si, disse-me que estava disposto a propor-lhe um estágio numa classe mater nal muito próximo de A... que funciona muito bem (porque era o primeiro ano em que ela dirigia essa classe). Se você estivesse de acordo, ele enviaria uma substituta para a sua classe. Ela, então, sentindo-se lisonjeada, contente, pois procurava mas não conseguia encontrar uma saída, aceitou e foi passar oito dias numa classe onde pôde verdadeira mente aprender. A professora junto de quem ela estivera veio depois visitá-la à sua classe para ver como as coisas se passavam e para a ajudar, e registou-se uma cooperação entre ambas, colaboração essa de que não tivemos conhe A PEDAGOGIA FREINET270cimento, mas que, apesar de tudo, só a nossa contribuição tornou possível. Trata-se, penso eu, duma acção importante junto da professora. JACQUES— Penso todavia que, na mesma ordem de acção, se tem também uma importância pedagógica. Por exemplo, eu desloco-me a uma classe chamada de readapta ção, onde se encontra uma substituta que faz o que pode. Há um montão de coisas relacionadas com as crianças de que ela não se dá conta. Eu sei, incontestavelmente, que ela não se pode aperceber disso. Então, como sei que não posso agir sobre a sua relação com a criança, procuro agir no plano de outros mediadores; mediadores estes que são, para mim, os instrumentos pedagógicos. Digo-lhe, então: — Você podería fazer teatro livre, pois estas crianças têm necessidade disso; olhe para aquele: veja como ele tem necessidade de se exprimir. Se ele se mexe, ou se fala, é porque há motivo para isso; introduza uma técnica que, precisamente, como que institucionalize a palavra da criança. E tento, então, mostrar-lhe todo o aspecto cons trutivo dessa técnica. Como não podia deixar de ser, as técnicas que aconselho o professor a introduzir na sua classe são técnicas da escola moderna. Modificar a inspecção Roger — Não surgirá, assim, uma espécie de rivalidade entre vocês e o inspector ou o conselheiro pedagógico? Jacques — Se existe um problema com o inspector, é o que diz respeito ao nosso estatuto; importa que esteja mos muito atentos às diferentes formas de percepção que as pessoas têm do psicólogo. A coisa pode ir desde o médico, ou do que se ocupa de loucos, ou do que lê os pensamentos dos outros... até ao subalterno do inspector. Então, precisamos de estar muito atentos tanto no que res DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICOLOGOS? 271 peita à criança como ao professor. Há crianças que, mani festamente, nos tomam por médicos; chegamos com a mala de mão, e há crianças que dizem: —Eu não quero ir lá, ele vai dar injecções. Isso é o mais difícil para nós, pois é imperioso que, no mais curto espaço de tempo possível, nós saibamos como as pessoas nos vêem. O que irá deter minar a nossa relação com os outros. Jacqueline — Tenho garotos que me dizem, quando se encontram em fila para voltarem para a sala de aulas: — Eu não, minha senhora, eu não sou maluco. Jacques — Estou a pensar numa criança de que pre sentemente me ocupo. Vi-o uma vez; é uma criança inte ligente, viva, mas difícil e agressiva. Mas não havia qual quer problema; sabia-se que ele ia passar para a sexta classe (correspondente à primeira do liceu português), ele tam bém o sabia. Vi a criança, e, depois, no dia seguinte, a mãe chega à escola a chorar e diz para o professor: — O senhor mostrou o meu filho ao psicólogo. Ora ele não é doido, não é anormal. Volto-me a encontrar com a criança três dias depois para abordar com ele os problemas do seu futuro:—O que é que tu vais fazer no próximo ano? — Não sei. — Tu sabes perfeitamente o que vais fazer, pois estás no C.M.2 — Sim, passo para a sexta classe. — Mas para que sexta classe vais .tu? — Eu gostaria de ir para a sexta normal. Que significa isto para a criança? A mãe dissera-lhe que ele fora visto e que, por conseguinte, ele era anormal e tinha agora de prestar atenção, pois, se continuasse a comportar-se da mesma maneira, iria para uma sexta classe para anormais. Dá-se, assim, uma enorme atenção às míni mas palavras, às mais pequenas coisas que se dizem. Jacqueline — O I. D. E. N., como sabes, ajuda-me. Como não conheço nem o sector nem os professores, ele diz-me: — Dê atenção a esse professor; neste momento, há m A PEDAGOGIA FREINET que não tratá-lo com muita dureza, pois ele conhece difi culdades de vária ordem; em seu entender, qual a situação em que ele se encontra? Desenvolvemos uma relação de auxílio recíproco em relação aos professores, embora nunca descurando a preocupação com a criança. Entendemo-nos muito bem, tendo sempre em vista proporcionar aos garo tos as melhores oportunidades. Jacques — Sim, trata-se duma verdadeira relação de ajuda recíproca em função da criança. O inspector pode, por exemplo, dizer-me: — Vá ver o que se passa nesta classe onde há qualquer coisa que não está bem; vá observar da minha parte certa criança, eu próprio não vou porque sou inspector, e já não me é possível fazer nada. Então, eu vou até lá, vejo o que se passa ao nivel da criança, mas tam bém ao nivel relacional; examino o que se passa com a professora ou com o professor. Falo no caso ao inspector, depois do que este pode lá voltar, pois outras coisas foram entretanto ditas e esclarecidas. Jacqueline — Eu entro forçosamente na pedagogia, vejo-me obrigada a dar conselhos pedagógicos, com o que ele está .perfeitamente de acordo. Roger — Não acontecerá, nestes casos, que os profes sores se dêem progressivamente conta de que vocês podem representar um auxilio para eles, o que, em última análise, levará alguns deles a solicitar a vossa ajuda? Jacques — Sim, mas há também o facto de que não gostaria de me limitar a «dar caça» aos débeis. Eu gosta ria, também, de desenvolver uma acção de ordem psicope- dagógica. Nos grupos escolares a que me desloquei, apli- quei testes a todos os C. M. 2 tendo em vista uma orienta ção mais séria (para que o trabalho desenvolvido fosse menos superficial e se pudessem fornecer elementos varia dos, válidos e quantificados ao nivel da orientação na sexta classe). Apliquei-lhes uma batería de testes bastante com DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 273 pleta no primeiro trimestre, o que me permitiu, por volta do Natal, dizer a cada professor do C. M. 2 como eu via a sua classe e, também, como via cada uma das crianças. Ele punha-me, então, ao corrente de todo o aspecto escolar e mesmo do aspecto relacional, isto é, dizia-me como reagia uma determinada criança. Além disso, eu informava-o sobre as possibilidades dessa criança, podendo desenvolver-se, assim, um trabalho de aprofundamento ao nivel da criança. Eu tinha construído a bateria de maneira a pôr em evidên cia tanto as possibilidades que eram nitidamente produto do meio, como aquelas que eram ao mesmo tempo produto do meio e da influência escolar. Então, como, em geral, são os directores que têm a seu cargo o C. M. 2, eu podia abordar o problema pedagógico de toda a escola. Isso cus- tou-me muito trabalho, mas permitiu-me, igualmente, passar a ser visto de outra maneira pelos professores — como alguém que podia ajudá-los. E, agora, são eles próprios que me chamam. Um outro olhar sobre a pedagogia Freinet Roger — Poderiamos passar a um outro aspecto da nossa conversa. A sua experiência de psicólogo permite-lhe olhar de outro modo a pedagogia Freinet? Jacques — Há que distinguir diversos planos. Em pri meiro lugar, a pedagogia Freinet acha-se, apesar de tudo, em vias de ser recuperada. Entramos, assim, em classes tradicionais, onde o professor nos diz: — Eu pratico a con versação; também faço o texto livre... Quando lhe per guntamos: — Por que razão os faz? Ele responde: —As ins truções a isso nos obrigam. Aborda-se, já, a percepção duma nova disciplina escolar, e é precisamente através desse expe diente que a pedagogia Freinet corre o risco de ser recupe 18 274 A PEDAGOGIA FREINET rada — e deformada, bem entendido. O que mostra bem que a pedagogia Freinet não é, em primeiro lugar, um problema de técnicas, mas um problema relacionai ao nivel da criança. Jacques — Mas eu penso também que os pedagogos Freinet, hoje em dia, não se dão conta de que quando dizem: primazia ao instrumento, esquecem que, subjacentemente, existe o problema da relação com a criança. Esta relação é, para eles, implícita, pois o instrumento só é necessário enquanto terceiro pólo da relação triangular. Aliás, não se fornece um instrumento ou uma técnica a uma criança, deixa-se que seja ela a interessar-se e a escolher. Roger— Não gostariam vocês de ajudar igualmente professores de classes Freinet? Jacques — Sim, certamenteque gostaríamos de ter acesso às classes Freinet. Com o acordo dos professores, que solicitariam, porventura, o nosso auxílio no caso duma criança, não forçosamente para nos dizerem: — Vem ver como as coisas funcionam na classe. É meu desejo perma necer integrado no movimento, não enquanto educador, mas sim na qualidade de psicossociólogo ou psicopedagogo. Roger — Vocês gostariam de frequentar essas classes, mas eles não pedem a vossa comparência? Jacqueline — Tu, Jacques, interessas-te pela psicosso- ciologia ou pela psicopedagogia; eu, pela minha parte, se fosse a uma classe Freinet, não penso que a minha ajuda se desenvolvería ao nivel dos garotos, pois estou convencida que o profesor de pedagogia Freinet, com os seus instru mentos, com o que sabe, não precisa de mim; creio que poderia ajudá-lo ao nivel dele próprio, enquanto educador naquela classe. Se há uma coisa que eu agora tenha difi culdade em suportar, é que o docente desconheça em que termos se processa a sua relação com a criança. Depara mos, também, com esta situação nas nossas reuniões, e, DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 275 para mim, é essa a razão da falta de diálogo. Fazem-se belos textos livres, belos desenhos, bonitas coisas, tudo corre da melhor maneira, mas há o DITO e o NÃO DITO. Jacques — Podemos tomar um exemplo: quando nos deslocámos à classe de transição de Mény 1 para observar crianças, deparámos com uma rapariguinha de doze ou treze anos. Mény mostrou-nos todos os textos livres pro duzidos ao longo dum ano por esta rapariguinha (71); tex tos livres que, praticamente na sua totalidade, apresenta vam a mesma factura, contavam o mesmo tipo de situação; mais particularmente, tratava-se de textos não muito mal redigidos onde ela contava o que fazia aos domingos com os vizinhos; na verdade, uma família feliz, ocupações inte ressantes, textos livres bastante razoáveis, e o que se pode chamar verdadeiramente textos livres, isto é, escritos quando a criança tinha vontade de o fazer, lidos na classe quando a criança o queria fazer. Aplico um teste a esta criança e sobressai imediatamente outra coisa, pois a rela ção que um psicólogo estabelece com uma criança é intei ramente diferente. Pude aperceber-me imediatamente que existia um problema familiar que a criança revelara, quer directamente na conversação, quer por intermédio do ima ginário, através dum teste projectivo, mas do qual o pro fessor não tinha possibilidades de se dar conta. É a esse nivel que, com os modernos mestres-escola, se pode esta belecer um outro tipo de relação, de colaboração; tende mos muitas vezes, na escola moderna, a projectar, a avan çar as nossas idéias teóricas ou pedagógicas ou as nossas técnicas como se fossem panaceias. A expressão livre, sim, mas o que é a expressão livre? Dirá a criança verdadei ramente tudo pela expressão livre? Ou, pelo contrário, a 1 Professor Freinet do departamento da Gironda. 276 A PEDAGOGIA FREINET criança não diz tudo? E não o diz muito simplesmente porque se encontra em grupo, porque tem os pais atrás de si, porque existe toda uma rede relacional de que a criança se apercebe intuitivamente, enquanto que com o psicólogo estas barreiras caem. Ela deixe de estar inserida na rede social. Penso que haveria, assim, um esclarecimento com plementar, o do pedagogo pelo do psicólogo, podendo tam bém registar-se a seguir uma correcção das ideias pedagó gicas. Roger — Será necessário, numa situação pedagógica, que uma criança diga tudo? Jacques — Não é necessário nem possível que ela diga tudo, mas, se se quiser conhecer essa criança, é preciso que se saiba efectivamente mais coisas do que aquilo que ela diz em situação pedagógica. Ao nivel do movimento, na medida em que o psicólogo toma uma certa distância em relação à prática quotidiana, podería, sempre em colabo ração com os professores, aprofundar as idrias. Se a expres são livre não é uma panaceia, o que é exactamente? Qual é o seu perímetro? Quais os seus limites? E a partir de então, podería procurar ver se não seria possível promover uma outra forma de expressão livre, e isso com base numa mesma classe, fazendo o balanço TANTO da acção pedagó gica COMO da acção psicológica. Roger — A expressão livre total não terá na classe, no plano social, o efeito dum verdadeiro explosivo? A maior parte dos incidentes conhecidos têm origem numa expres são que se libertou. Não haverá um estatuto social que faz com que o professor não possa permitir-se exercer um papel terapêutico? Jacques — É o problema da regressão. Pois, o que é uma expressão libertada? É, precisamente, uma expressão que mergulha no mais profundo do indivíduo. Ora, não se conhece o ponto de regressão que cada indivíduo pode atin DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 277 gir para, a seguir, tornar a arrancar. Ora, existem indiví duos para quem o ponto de regressão está tão longe que eles podem, mediante esta expressão livre, constituir um perigo para a classe. Importa que o professor conheça todos esses parâmetros, ou, pelo menos, que os saiba prever, e sobretudo prever estruturas, mediadores que neutralizem essa expressão relativamente ao grupo. Roger— Não significará o que acabas de dizer que, quando um professor Freinet e um psicólogo colaboram, o professor está protegido contra o aspecto traumatizante da expressão libertada, devido ao facto de ser o psicólogo que dela se encarrega ao nivel do seu contacto individual com a criança? Não será a intenção de certos professores de libertar socialmente a expressão na classe uma inépcia com consequências explosivas, talvez até perigosa para o próprio interessado que se libertou? Jacqueline — Sem ver as coisas duma maneira tão catastrófica, o perigo pode consistir, simplesmente, para a criança, em dizer que as suas relações com a mãe são más. Compreendes, o explosivo pode ser precisamente isso. Uma confissão semelhante poderá ser feita ao psicólogo, mas, às vezes não deverá ser confiada à classe inteira. Lugar do psicólogo no movimento Roger — Na evolução actual das ciências sociais e psi cológicas, o movimento deve poder integrar o que as ciên cias humanas apresentem de mais original, de mais inte ressante, fazendo apelo aos psicólogos saídos do movimento. Jacques — Pela sua história, pela sua estrutura, a escola moderna opõe-se à psicologia em geral. Penso verdadeira mente que o movimento Freinet não ultrapassou um estádio anterior. 278 A PEDAGOGIA FREINET Roger — Nesse caso, para sua própria conservação, deverá ele manter-se nesse estádio, ou poderá pôr-se em dia, e como se faria esta actualização? Jacques — Se o movimento quiser continuar, e não apenas sobreviver, deve voltar-se não só para a psicologia, como ainda para a biologia. Não somos nós que o pode mos dizer, pois É PRECISO QUE HAJA, EM PRIMEIRO LUGAR, UMA PROCURA POR PARTE DO MOVIMENTO. Se esta procura não existe, não há nada que possamos dizer ou fazer. Roger — Sim, mas não derivará a procura do facto de se não ver como ela possa ser satisfeita? Jacqueline — Existe, talvez, uma procura confusa e não explicitada, que não se manifesta, pois não se vê como é que um professor, na sua classe, possa ir mais longe. Jacques — Penso, porém, que, nesse caso também, isso é uma consequência da imagem do psicólogo veiculada pelos professores do E. M., quase nada diferente da imagem que é veiculada por qualquer outro professor. Somos vistos como médicos ou como gente que observa o que se passa na cabeça dos outros; apercebem-se de nós no plano fan- tasmático, não no plano da realidade. Quando formos per- cepcionados no plano da realidade, penso que, então, a procura será formulada. Roger — Não o conduzirá necessariamente o facto de ser psicólogo, isto é, sobretudo disponível para ouvir os outros, a deixar de ter uma atitude militante e activa no movimento, a não mais assumir responsabilidades? Em última análise, será o psicólogo um tipo que pode aceitar responsabilidades?Jacques — Esse é, com certeza, um problema que eu ponho a mim próprio. É certo, mas existem camaradas, particularmente do comitê de animação (C. A.) que me dis seram: — Depois dos C. A. que vivemos, teríamos finalmente DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 279 necessidade de gente como vocês; capazes de ver o que se passa e de o dizer... E de desviarem para si todos os golpes. Ao que eu respondo: —Não, isso seria furtar-se às respon sabilidades. O movimento tem actualmente necessidade de animadores, que podem não ser psicólogos, mas, simples mente, pessoas capazes de observar um grupo a trabalhar para depois dizerem: — Eis o que se passou, no plano duma síntese (de maneira nenhuma se trata de julgar as pessoas). Eis qual foi a vossa responsabilidade; em tal momento, houve um que disse isto, porque um outro tinha dito aquilo, e porque se passou qualquer coisa ao nivel relacional. Pro curar analisar uma situação para que, precisamente, não andemos em círculo, e para que, de cada vez, as nossas reuniões não sejam caldos de cultura ao nivel afectivo. Roger — Poderia um psicólogo ser útil por ocasião de reuniões de grupo departamental, por exemplo no movi mento Freinet, ou por ocasião de estágios, e qual seria o seu papel nestas duas situações? Jacques — Eu penso que não é fácil definir a nossa atitude ou a nossa participação no movimento. Todavia, vejo-a muito simplesmente numa presença do psicólogo na classe num dado momento, participação que deverá ser, em seguida, discutida com o professor num plano de total igualdade. Posso, portanto, trazer uma outra perspectiva de esclarecimento, mas sempre em relação com a vivência comum no seio da classe. Penso ser, então, possível ajudar a ver outra coisa, nas produções da criança, para além do que é vivido no plano pedagógico, pois é inegável que a criança projecta sobre o professor um certo número de imagens. E estes jogos de projecções que são inconscien tes — inclusivamente para o professor —, fazem com que existam lacunas na descodificação do professor. O psicó logo pode pôr a descoberto outra coisa, pelo facto de não se achar implicado. 280 A PEDAGOGIA FREINET Jacqueline — Precisamente, no tocante à pedagogia, eu veria com bons olhos que se tentassem experiências nas classes, a diferentes nivéis de tipo longitudinal, por exem plo do C. P. ao C. M. Jacques — Nesse caso, trata-se verdadeiramente duma pesquisa. Jacqueline — Sim, eu penso que a pedagogia Freinet deve organizar a sua própria investigação de maneira metódica *. Roger — E com um grupo de educadores que se reúne para discutir técnicas, ou simplesmente a organização, o funcionamento dum grupo departamental, podería, neste caso, ter o psicólogo um papel a desempenhar? Jacques — Sim, mas tenho agora a impressão de que os grupos departamentais são, apesar de tudo, grupos bas tante estruturados, isto é, grupos onde a relação de auto ridade é importante. Há alguém que detém a autoridade; esse alguém não é forçosamente o delegado departamental, mas o que é certo é que exerce a autoridade. Existe uma espécie de hierarquia que se estabeleceu, talvez, ao nivel do trabalho, e da qual se apercebem, aliás, os recém-chega dos. Por outro lado, existe esta percepção, esta compreen são do psicólogo — se éramos camaradas do movimento, somos agora, na melhor das hipóteses, camaradas psicólo gos, o que é diferente. Tentei frequentar as reuniões... mas era normal que eu me pusesse ao nivel mais baixo, isto é, o do tipo que regressa a um grupo departamental; depois, aguardei, até que houve a reacção de nos darem um pedaço de bolo: — Bom, vocês ocupar-se-ão do conhecimento da criança, mas sem que houvesse verdadeira procura por parte dum grupo de trabalho. Jacqueline — No que respeita à animação, creio que existe também um problema. Colocam-nos numa posição de voyeurs, o que implica forçosamente relações muito dife DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 281 rentes com os membros do grupo, e já não nos sentimos no interior deste da mesma maneira. Recuso-me a desem penhar este papel de voyeur, mesmo se me apercebo de coisas. Sei que, se me puser nessa posição, deixarei de pertencer ao grupo. Roger — Existe actualmente, em cada grupo departa mental, um certo número de responsáveis que não são for- çosamente animadores, que podem ser, simplesmente, orga nizadores. Como passar do papel de organizador ao de animador? Qual seria a intervenção dum psicólogo para garantir esta formação? Jacques — Penso que isso seria muito difícil de reali zar com um psicólogo membro do grupo. Este género de formação, finalmente, deveria fazer-se no exterior. O que eu verdadeiramente desejaria era encontrar-me de novo no grupo na companhia dos camaradas, em igualdade com eles, com o mesmo estatuto. Sei que isso não é possível pelo facto de eu ser psicólogo e de os camaradas me verem na qualidade de psicólogo. Seria preciso que conseguíssemos encontrar uma nova forma de relação; penso que a elabo ração desta nova relação não pode fazer-se no seio das reuniões departamentais — seria uma coisa artificial. Uni camente no seio da classe deste ou daquele camarada, tendo em vista esta ou aquela técnica, este ou aquele trabalho ou problema específico à classe ou à criança. Teremos, então, relações de trabalho entre duas pessoas que cooperam em plano de igualdade para solucionar um mesmo problema. Jacqueline — Sim, eu trabalhei com Jacotte, uma cama rada professora, sobre as suas conversações, desde o início do ano. Lia o conteúdo daquelas, procurava analisar a sua forma, sem nunca deixar de lhe pedir esclarecimentos. Pela minha parte, eu esforçava-me por desenredar as coisas e por identificar uma linha de conduta, uma linha de interesse ou de comportamento de que Jacotte não suspeitava. Além 282 A PEDAGOGIA FREINET disso, pode submeter-se este trabalho à apreciação do grupo, passando ele então a constituir uma experiência partilhada por todos. Jacques — É pela multiplicidade destes contactos direc tos através da classe que se poderá forjar uma nova rela ção, que poderemos ser integrados no grupo. Finalmente, a integração dum psicólogo num grupo departamental não deveria ser diferente da que é tentada por outros interve- nientes: arquitectos, médicos, directores de museu... e não deveria apresentar nem mais dificuldades nem mais reti cências. Como vês, trata-se de algo tão simples e, ao mesmo tempo, tão complicado como qualquer relação humana. É também uma dinâmica, e temos a impressão de nos achar mos no dealbar duma nova forma de comunicação que temos ainda de construir juntos. Uma reabertura das aulas numa classe segregativa por Monique e Roland Bolmont (reportagem de R. U.) Em 1963, Freinet definia-se assim: «Trata-se, em suma, da cate goria de crianças que actualmente se confia à escola Freinet; crian ças escolarmente bloqueadas, desgostadas com o trabalho escolás- tico e por vezes mesmo com todo e qualquer trabalho, e que nem por isso são menos dotadas, por vezes superiormente, mas não forçosamente nos ramos demasiado intelectualistas da Escola actual.» Que texto fará desaparecer estas crianças? Bastará prometer-lhes algumas horas de amparo, a elas que têm necessidade dum apoio constante? Bastará conceder-lhes algumas horas de recuperação (do atraso escolar), a elas que, afectivamente, têm toda a sua infân cia a recuperar? Então? Se alguma coisa há que mudar no primeiro ciclo, serão talvez as mentalidades— a atitude em relação as crianças em dificuldade. Tarefa para os professores? Sim, mas também para os pais e para as crianças. A democracia, a passar dos discursos para a vida quo tidiana, começa precisamente por ai: pela vontade de fazer triunfar os mais fracos, em vez de se contentar em classificá-los, em seteccio- ná-los em nome duma meritocracia que não passa dum espírito de casta camuflado e se traduz por um racismo de facto, quando as classes de transição já só aceitam, na