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Prévia do material em texto

a pedagogia Freinet 
por aqueles 
que a praticam
TITULO ORIGINAL:
La Pédagogie Freinet 
par ceux qui Ia pratiquent
COPYRIGHT:
© by François Maspero
© 1976 by Moraes Editores
para a língua portuguesa
TRADUÇAO:
José Gomes Filipe
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO: 
Tipografia Lousanense 
Lousã
LIVRARIA MARTINS FONTES, EDITORA, LDA.
Praça da Independência, 12 
Santos - Brasil
Venda Interdita em Portugal
a pedagogia Freinet
por aqueles
 que a praticam
A PEDAGOGIA FREINET 
POR AQUELES QUE A PRATICAM
Dezanove reportagens nas aulas de Gérard Baclet, 
Monique Bolmont, Jacqueline e Jacques Caux, Liliane Corre, 
Albert Cuchet, Nicole e Camille Delvallée, Claude Duval, 
Mimi Ernult, Anne-Marie Georges, Mohamed Haken e Abdel 
Kader Bakhti, Michel Launay, Jean-Pierre Lignon, Jacque­
line e Raymond Massicot com Jean-Louis Dubois, Mado 
Merle e Roger Montpied, Anne-Marie e Ligia de Lisbonne, 
Mimi e Lucien Reuge, Halina Semenowicz e Alina Blacho- 
wicz, Maryse e Jacky Varenne,
realizadas por Claude Charbonnier, Janou Lemery, Jean- 
-Pierre Lignon, Xavier Nicquevert, Josette e Roger Uebers- 
chlag,
e três depoimentos de Jaky Chassanne, Jeannette Le 
Bohec, Jean Le Gal.
Prefácio
Este livro não pretende fazer uma abordagem nem um 
estudo sistemático e exaustivo da pedagogia Freinet nos 
nossos dias. Não se trata duma obra didáctica especial­
mente destinada a agentes de ensino.
Através das dezanove reportagens e dos textos publi­
cados que ele contém, quisemos tão-só testemunhar, dar 
imagens actuais, variadas e vivas, duma prática pedagógica 
sempre presente, duma investigação e dos problemas que 
ela levanta, da vivência actual dos professores do movi­
mento da Escola Moderna — Pedagogia Freinet.
Estas imagens são incompletas, não apresentam um 
panorama definitivo; faltam ainda numerosos aspectos (par­
ticularmente todo o segundo grau) que poderiam figurar 
num segundo tomo. Trata-se dum livro mosaico... com 
lacunas, mas onde se lê permanentamente o compromisso 
de professores que continuam a trabalhar de acordo com 
a linha traçada por Célestin Freinet.
Apresentando embora aspectos, situações pedagógicas 
muito diversos, estes professores situam-se efectivamente 
no eixo da pedagogia Freinet. Neles se poderá reconhecer, 
com efeito, a utilização constante e não dogmática dos
8 A PEDAGOGIA FREINET
utensílios e técnicas que fazem a originalidade desta peda­
gogia:
— o texto livre
— a arte infantil
— a correspondência
— o estudo do meio
— a individualização do trabalho
— o conselho de turma
— etc.
Em face da desorientação e das mistificações que impe­
ram, hoje, na pedagogia, ele representa uma nota de auten­
ticidade e de seriedade, a que saberão mostrar-se sensíveis 
os pais e os educadores preocupados em dar aos seus filhos 
a melhor educação possível.
No fim do livro, um ÍNDICE TEMÁTICO (para que remetem 
os números incluídos no texto) e uma BIBLIOGRAFIA (para que 
remetem os asteriscos) permitem uma leitura aberta a mais infor­
mações e, ao mesmo tempo, a possibilidade de sínteses consoante 
os interesses de cada um.
O MOVIMENTO
DA ESCOLA MODERNA
PEDAGOGIA FREINET
O materialismo 
em pedagogia
Certos termos, que ocorrem com muita frequência na 
nossa linguagem falada e escrita, correm o risco, se não 
nos acutelarmos, de se converterem em fórmulas feitas 
dum dicionário das ideias avançadas pela Escola Moderna, 
pelo que se torna necessário limpá-los da pátina dos hábi­
tos para ver se eles conservam um valor sempre actual.
Termos como materialismo escolar, primazia do uten­
sílio, mediação pelo utensílio fazem parte daquelas fórmu­
las que não seria inútil «decapar» um pouco. Com efeito, 
tal como uma interpretação literal da pedagogia pôde fazer 
crer que o importante era agir, manipular, também seria 
fácil deixar-se deslizar de materialismo para material e ver 
o problema unicamente sob o ângulo do utensílio manu- 
facturado e, em última análise, do instrumento pedagó­
gico. O materialismo de Freinet é coisa bem diferente.
Materialismo contra verbalismo
Desde o princípio Freinet demarca-se dos pedagogos 
idealistas que pretendem mudar a escola com ideias, por
1 Reler Elise Freinet, Naissance d'unee pédagogie populaire, 
Maspéro, Paris, 1968.
12 A PEDAGOGIA FREINET
vezes generosas e sinceras, por vezes mistificadoras. Toma 
sobre isso, e será uma escolha definitiva, uma posição que 
muitas vezes se descreveu como anti-intelectualista e que é, 
mais rigorosamente, antiverbalista, uma vez que ele recusa 
à linguagem o monopólio da expressão das ideias. Para 
ele, a filosofia pedagógica do começo do século não pode 
reduzir-se a palavras ou a escritos, mas acha-se materia­
lizada em utensílios, técnicas, estruturas e instituições. 
É muito característico o facto de a Universidade só se ter 
interessado por doutrinas veiculadas pelos livros, nunca 
por aquelas que se acham cristalizadas num regulamento 
interior de liceu, na arquitectura duma escola, na altura 
duma porta de gabinete.
Freinet é um dos primeiros e dos raros educadores a 
preocupar-se com as infra-estruturas do sistema educativo. 
A maior parte dos outros, inclusivamente muitos marxistas, 
raciocinam unicamente ao nivel das superestruturas ideoló­
gicas; certamente, quando afirmam que uma mudança de 
regime político é indispensável à transformação da escola, 
põem em causa as infra-estruturas da sociedade, não, porém, 
as da escola, que não contestam necessariamente. É toda­
via sobre estas que Freinet vai exercer a sua reflexão e a 
sua acção.
O estrado e o manual escolar
No princípio da III República, a escola laica aberta 
a todos triunfou do embargo clerical. Proclama a sua 
rejeição do dogmatismo e do autoritarismo, retomando 
ideias que já Montaigne e Rousseau tinham desenvolvido. 
Ora Freinet, ao regressar dessa guerra de 1914-18 que se 
pretendia fosse a «última das últimas», vê-se obrigado a 
concluir que a escola republicana participou largamente 
na doutrinação belicista e que está, portanto, longe de
O MATERIALISMO EM PEDAGOGIA 13
aplicar as concepções que ela pretende encarnar. Levando 
mais longe a análise, descobre que, apesar do seu anticle- 
ricalisimo, a escola laica conservou a cátedra sob a forma 
do estrado magistral e o catecismo sob a forma do manual 
escolar.
Pelo que Freinet declara guerra desde o princípio a 
estes dois atributos do dogmatismo. Alguns pretendem ver 
nisso um acto puramente simbólico, mas importa ver a 
coisa de mais perto. O professor, único adulto no meio 
dum grupo de crianças, é já, pela estatura, a idade e a 
experiência, aquele que domina e que por vezes inspira 
medo contra a sua vontade; isso, porém, não basta, é neces­
sário empoleirar a sua secretária acima das carteiras dos 
alunos para que estes compreendam bem que tudo o que 
será dito de importante virá da boca do mestre (etimolo- 
gicamente, aquele que se encontra por cima) e que do alto 
do seu miradouro este último espia e sanciona a menor 
das suas faltas. A decisão de Freinet de se instalar entre 
os alunos, de renunciar ao estrado, quer deitando-o abaixo, 
quer conservando-o como cavalete acessível a todos aqueles 
que tenham qualquer coisa a mostrar, vai muito mais longe 
do que um mero gesto espectacular, introduz uma nova 
topologia da educação, independentemente da atitude pes­
soal do educador.
A condenação do manual escolar insere-se na mesma 
ordem de razões: a sua situação de livro único na sua disci­
plina converte-o, independentemente do seu conteúdo, no 
utensílio do dogmatismo. Quando uma concepção peda­
gógica nova, uma apresentação mais agradável fazem com 
que certo manual se pareça com os outros livros de livraria, 
ele só perde a sua nocividade de catecismo laico na medida 
em que, deixando de ser o livro único possuído por cada 
alluno, for ocupar um lugar ao lado dos outras livros na 
biblioteca da classe.
14 A PEDAGOGIA FREINET
O utensílio: uma intenção materializada
Pouco a pouco, Freinet irá reexaminando todos os 
utensílios da escola e todas as técnicasde trabalho ligadas 
à utilização destes utensílios, especialmente aqueles que só 
existem na escola e que obrigam a perguntar-se por que 
é que foram ali introduzidos ou por que é que conseguiram 
sobreviver. Isto porque, subjacente ao utensílio, à técnica, 
até mesmo ao rito pedagógico, existe uma concepção implí­
cita que continua a exercer a sua influência, mesmo quando 
já se não dá claramente por ela.
O quadro preto é um suporte da materialização efé­
mera do pensamento, quase uma concessão do orador em 
deixar alguns vestígios materiais que não tardam a desa­
parecer. («Despachem-se a arrumar isso na memória, pois 
não tardarei a apagar o quadro.») A imagem dos alunos 
de Einstein desmontando e envernizando o quadro após 
uma demonstração particularmente brilhante do sábio 
revela bem o hiato entre o jovem criador e o utensílio 
utilizado.
A ardósia ilustra o mesmo princípio em sentido inverso, 
materializando uma força de exercícios que pode repetir-se 
à vontade sem deixar rastos. E a analogia de certas ses­
sões lamartinianas com o manejo de armas da caserna 
levarão Freinet a falar do inútil trabalho de soldado. (Ler 
Les dits de Mathieu, trad. port. Pedagogia do Bom-Senso, 
Moraes Editora).
Entendamo-nos bem, não se trata de lançar às chamas 
quadros negros e ardósias, mas de tomar consciência das 
suas reais limitações de utensílios, e os camaradas de cur­
sos preparatórios que transcrevem os textos em folhas 
afixadas nas aulas têm perfeita consciência desta realidade.
Depara-se com o mesmo problema a propósito do 
caderno diário destinado a que a criança nele transcreva,
O MATERIALISMO EM PEDAGOGIA 15
tremendo de nele deixar uma nódoa ou fazer uma rasura, 
o rascunho que depois suprimirá. Os camaradas que se 
interessam por recuperar os tacteamentos das crianças, 
inscritos num caderno de textos livres ou de investigações 
matemáticas, e que permitem que os resultados sejam 
recopiados em folhas independentes dum ficheiro ou dum 
álbum, comportam-se de harmonia com uma filosofia da 
educação inteiramente diferente, mesmo que não tenham 
consciência da importância ideológica dos utensílios de que 
se servem.
Novos utensílios, novas técnicas, novas atitudes
Por consequência, Freinet vai procurar a transforma­
ção da educação, não pedindo aos educadores que alterem 
a sua relação com as crianças, mas introduzindo utensílios 
e técnicas que vão contribuir para transformar esta relação. 
Pois não basta suscitar boas intenções entre os agentes de 
ensino que unicamente conhecem e aplicam a técnica do 
ensino tradicional: exposição magistral oral seguida de con­
trole da memorização a curto prazo. Esta pode apresentar 
variantes (aditivos visuais e audiovisuais na exposição, a 
interrogação oral em que a boa pergunta suscita a única 
resposta válida, que ela por vezes «assopra», se necessário; 
a interrogação escrita, o exercício imediato na aula ou dife­
rido para casa, a interrogação a distância após memoriza­
ção da lição), mas, na realidade, existe apenas um único 
esquema de relação.
A expressão livre, a imprensa, o jornal escolar, a cor­
respondência, a livre investigação introduzem outros esque­
mas de relações de que nem todos passam pelo mestre, 
o que está longe de ser insignificante, já que o objectivo 
da pedagogia Freinet é, antes de mais, fazer das crianças 
seres autónomos. Não nos enganemos a esse respeito, os
16 A PEDAGOGIA FREINET
ficheiros autocorrectivos não foram criados para libertar 
o professor de modo a ele poder dedicar-se a alguns (na 
pedagogia tradicional, utiliza-se para esse efeito a plasti­
cina ou, como último recurso, o exercício extraordinário 
(imposto a um aluno)), mas para libertar as crianças da 
tutela do professor, que detinha o monopólio da correcção, 
e da do grupo nos exercícios colectivos. Que se não diga: 
«um professor à altura, com poucos alunos, pode dispensar 
estes útensílios». O professar, sem dúvida; já as crianças, 
é menos certo.
Certamente, é sempre possível utilizar um utensílio sem 
respeitar o espírito que lhe está subjacente — não se poderá 
impedir os ignorantes ou os imbecis de quererem apara­
fusar com um formão. Muitas vezes, porém, o que irrita 
os nossos camaradas é antes a subutilização do utensílio 
que se emprega superficialmente. Não é, portanto, o uten­
sílio que é limitado ou perigoso; é antes a consciência das 
opções ideológicas que ele oculta que não é suficientemente 
clara. Não será, por conseguinte, atribuindo menos impor­
tância ao utensílio que se resolverá o problema, mas, pelo 
contrário, reflectindo sobre todas as suas implicações.
Os ritos e os mitos escolares deverão ser também 
reconsiderados
Prosseguindo a análise, dar-se-á conta de que a maior 
parte dos ritos pedagógicos com que nos conformamos 
muitas vezes sem pensar nisso estão carregados de ideo­
logia e que importa contestá-los e propor soluções novas. 
Depois dos trabalhos de Baudelot e Establet2, falou-se lar­
gamente da separação dos circuitos primário-professional
2 Ver L’École capitaliste en France, Maspero, Paris, 1971.
O MATERIALISMO EM PEDAGOGIA 17
e secundário-superior, mas trata-se tão-só neste caso duma 
das aplicações do mito mais geral da homogeneidade do 
grupo-classe, noção confusa que abrange tanto as idades, 
as potencialidades intelectuais, como os ritmos de aqui­
sição, os conhecimentos já assimilados. Como uma tal 
homogeneidade não pode existir, a escola encerra-se nas 
«desnatações selectivas», nas experiências segregativas. 
Importa ter bem presente a ideia fixa da mestiçagem socio- 
cultural que impede tantas pessoas, mesmo progressistas, 
de admitir esta realidade: sendo qualquer grupo fatalmente 
heterogêneo, é preciso abandonar o monolitismo pedagó­
gico e misturar todas as crianças em grupos de vida que, 
dissolvendo-se, possam caldear-se em actividades multifor- 
mes (oficinas, trabalho independente).
Importa compreender também o carácter arbitrário de 
centos hábitos: o monolitismo do ano escolar, única unidade 
contabilizável (o ano, ou se passa em bloco, ou terá de 
ser repetido), a concepção do programa por fatias anuais 
(e porque não mensais ou trimestrais?), a progressão do 
programa que pretende fazer passar por rigoroso o que é 
puramente convencional (compare-se, em especial, as pro­
gressões dos programas de matemática antigos e recentes), 
a notação numerada, a média, os coeficientes, sem os quais 
classificações e exames não podem sobreviver.
Importa mostrar as intenções subjacentes à introdu­
ção de todos estes ritos, mas isso não basta; é necessário 
investigar e experimentar as técnicas, os utensílios que 
permitirão instaurar outros hábitos. Com esta condição, 
e unicamente com esta condição, será o que diremos da 
criança, da sua psicologia, da nossa pedagogia, outra coisa 
que não mero palavreado.
2
O que somos 
O que queremos
I. A nossa verdadeira riqueza: o nosso trabalho
Vivemos um tempo em que tudo se torna mais com­
plexo; a fórmula poderá parecer banal e foi certamente 
empregada noutras épocas!
Todavia, duas verificações incitam-nos, mesmo assim, 
a utilizá-la: vivemos um tempo em que somos mais nume­
rosos do que nunca e em que todos recebem uma soma 
de informações nunca igualada. E grandes concentrações 
de pessoas, muitas informações em desordem, isso faz ainda 
mais...
Então, num tempo como este, será demasiado ambi­
cioso saber um pouco em que situação nos encontramos?
As nossas riquezas
Os encontros e os estágios do Verão mostraram uma 
vez mais, pelo seu número e pela diversidade das suas 
concepções, a grande riqueza de possibilidades que existem 
no nosso movimento.
Trata-se, efectivamente, duma demonstração de vida e 
de vitalidade, da garantia de que está em marcha um 
movimento e de que existem forças para prosseguir esta 
marcha.
20 A PEDAGOGIA FREINET
Todavia, não pudemos evitar viver certos momentos 
em que riqueza e diversidade se tornam sinônimos de con­
fusão, em que a efervescência da vida esbate a diferença 
entre os respectivosêxitos e contradições, em que — pelo 
menos assim nos pareceu — um pouco de recuo e de análise 
se tornam indispensáveis para não confundir a bússula e a 
direcção que ela indica.
A expressão livre
Falamos de expressão livre. Acreditamos ainda que é 
partindo da expressão da criança que partimos efectiva- 
mente do estado exacto em que ela se encontra no momento 
em que se exprime e que é a partir daí que se estabelece­
rão as melhores motivações, que se traçarão as melhores 
trajectórias. E a experiência mostra-nos que esta livre 
expressão continua a ser indispensável. No entanto, nesta 
expressão expressão livre, existe um termo: livre. E este 
adjectivo com uma história muito longa exerce ainda um 
fascínio muito grande que nos impede, nos faz esquecer 
de o observarmos por duas vezes e de mais perto — condi­
cionados que fomos por um certo vivido, não será que, 
por simples atitude de reacção, concedemos virtudes exces­
sivas ao que não passa duma ideia, duma faceta — a mais 
sedutora, de certo — duma realidade bem mais complexa?
Pode a expressão livre ser mais do que um ponto de 
partida, outra coisa que aquele momento em que, acolhido 
e tranquilizado, um indivíduo pode deixar aparecer ao 
mesmo tempo as suas forças e as suas alienações, a sua 
vontade de crescer e o que o impede de o fazer, ou ainda, 
como hoje se diria, o seu lugar exacto entre o desejo e o 
poder?
 Então, esta expressão livre não pode continuar a ser 
uma simples expressão: é indispensável que ela permita
O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 21
ao indivíduo empenhar-se no campo real, em termos de 
evolução, e isso, mediante a démarche a que chamamos 
tacteamento experimental com a inseparável participação 
do mestre. '
O tacteamento experimental 
Com efeito, falamos também do tacteamento experi­
mental, mas como de um processo mediante o qual um 
ser se constrói, e não de um processo que se justifica por 
si próprio e se exerce pelo simples prazer do tacteamento. 
Freinet, aliás, definiu-o, inscreveu-o numa série de leis 
— tiradas da experiência e destinadas a enriquecê-la — 
onde aparece claramente que este tacteamento do ser se 
processa e rectifica mediante a crítica permanente dos 
factos e das pessoas que rodeiam todo e qualquer indi­
víduo, mediante o jogo subtil dos recursos-barreiras, refor­
çando assim toda a importância reconhecida ao meio; tor­
na-se então possível o êxito de que ele (Freinet) sublinha 
a enorme importância.
A experiência e os utensílios
Além disso, no pensamento de Freinet, este tacteamento 
nunca tem lugar no vácuo, ou meramento no domínio 
das palavras; daí o papel muito grande que ele reconhece 
à experiência, aos utensílios que a permitem. Pois é por 
intermédio deles, destes objectos com forma, existência real 
e funções rigorosas a desempenhar, com exigências fora 
das quais não há êxito possível, que os processos adopta- 
dos perdem a sua dependência em relação às ideias, às 
hipóteses e mesmo aos homens, para dominarem a reali- 
dade e progredirem verdadeiramente.
Acaso não nos sentimos muitas vezes tentados a quei­
mar étapes, a evitar ou a abreviar esta confrontação com
22 A PEDAGOGIA FREINET
o material, com a realidade, precipitadamente seduzidos 
pelo poder das palavras, sobretudo das mais recentes?
Poderá então designar-se com a expressão «tacteamento 
experimental» qualquer atitude de pesquisa mais ou menos 
desordenada, que recusa ou evita a crítica dos factos e 
das pessoas, que não encara a parte indispensável de êxito 
e que, então, mantém o indivíduo no círculo fechado dos 
seus limites sem qualquer ligação com o meio em que se 
insere?
O papel do professor
Importa, por fim, que retomemos ao papel do profes­
sor. De a criança em primeiro lugar, que era a preocupação 
do movimento desde as suas origens, parece ter-se operado 
um deslize que não tardaria a traduzir-se por um novo 
slogan: o professor em primeiro lugar. Numerosas discus­
sões indicam que esse deslocamento está em curso — e é 
importante compreender o que lhe está subjacente.
Ou situamo-nos em relação ao interesse da criança que 
temos diante de nós, e o nosso trabalho tende a fazer com 
que esta criança alcance um grau mais elevado de saúde, 
de discernimento, de saber e de felicidade. Nesta perspec­
tiva, a nossa função não é a de sermos o modelo, o exem- 
plo, a encarnação do único possível, mas antes a dum 
mediador, daquele que, tendo feito e continuando a fazer 
com outros uma análise da realidade, pode permitir à 
criança situar-se, por sua vez, numa perspectiva de pro­
gresso (e de progresso sobre nós, em relação a nós) em 
que seja menos vulnerável. Não será absurdo recusar ou 
negar um poder que o adulto possui efectivamente, se este 
poder permite armar a criança, por sua vez, com o poder 
que deriva de se saber ler, de saber raciocinar, de saber 
falar, de saber viver com os outros? A maior exigência
O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 23
a que não nos deveremos furtar não será a de aceitar luci- 
damente este poder, de lhe prescrever limites e de não 
abusar dele? E poderá fazer-se isso sozinho, sem que, pela 
nossa vez, uma vida de grupo no-lo ensine?
A nossa prática pedagógica é a nossa força
Ou então situamo-nos em relação a qualquer objectivo 
de ordem ideológica ou política, e o nosso trabalho é deter­
minado por escolhas hipotéticas sobre as quais a criança, 
que temos diante nós, não foi consultada. É inegável que, 
pelas suas opções e a prática duma pedagogia libertadora. 
O Instituto Cooperativo da Escola Moderna (I. C. E. M.) 
representa uma força política, força que se pode associar a 
outras no combate político que diz respeito a todos os 
cidadãos. Mas, que o I. C. E. M. possa dispor um dia dos 
métodos e dos objectivos dum agrupamento político é o 
que é fundamentalmente contraditório com a sua vontade 
de permitir à criança e ao adolescente construírem-se a 
autonomia suficiente para se empenharem eles próprios 
na luta pela sociedade que garantirá melhor a sua expan­
são, quando chegar a sua altura.
Deparamos, finalmente, com camaradas, professores, 
que, por terem tomado súbita consciência de alienações 
durante muito tempo suportadas, se colocam em situação 
de reacção violenta e radical contra as fontes destas alie­
nações. Por conseguinte, consideram insuportável pelos seus 
alunos o que a eles próprios se tornou insuportável, e é 
então que a expressão livre e o tacteamento experimental, 
bem como o papel do professor, se tomam noções despro­
vidas de matizes, noções perigosamente estiradas pelo movi­
mento extremo duma grande revolta ou duma dificuldade 
pessoal.
24 '~ ~ r A PEDAGOGIA FREI N ET
Porque nos ensinaram a matemática, a física ou a 
poesia por processos aberrantes, deverão por isso riscar-se 
vinte séculos de história do pensamento humano? Porque 
sofremos com as manifestações duma autoridade excessiva, 
iremos preferir-lhe o abandono puro e simples? Porque des­
cobrimos que as nossas famílias nada tinham de ideal em 
face das análises hoje possíveis, deverá mesmo assim 
negar-se a necessidade de segurança que caracteriza cada 
indivíduo? Porque o trabalho adquiriu, praticamente por 
toda a parte, o aspecto duma corveia ao serviço duma socie­
dade /virada para o lucro, deveremos marginalizarmo-nos 
desta sociedade, ou antes transformá-la? Porque uma buro­
cracia sem imaginação e uma censura idiota continuam a 
exercer-se, deverá poar isso negar-se a necessidade dos níveis 
de organização (de que a própria vida dá o mais belo 
exemplo) e a necessidade de coerência?
•1. A educação do trabalho '• .
A ■ ■ ■■ ■ t .. ..... . ..
: O I. C. E. M. tem representado, até hoje, um movi­
mento, um estaleiro de realizações pedagógicas, um agru­
pamento de trabalhadores que, aqui e agora, gradualmente, 
todos os dias, têm procurado fazer com que a escola sirva 
todas as potencialidades das crianças, mediante utensílios 
e técnicas de trabalho elaborados em comum e seguindo 
as pistas desbravadas por Freinet. Trata-se dum movimento 
de trabalhadores em queas diferenças são aceites, em que 
a hierarquia — os níveis de organização — nascem exclusi­
vamente do trabalho e das suas exigências, em que os .tes­
temunhos de experiências são o alimento das reflexões e 
das pesquisas, antes dos tratados teóricos. •
O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 25
II. Levamos em conta as realidades
 . . í
Vivemos numa sociedade dominada pelo dinheiro, estru­
turada pelo lucro, e L’Éducateur prolétarien (O Educador 
Proletário), primeiro título da nossa principal revista, dei­
xava bem vincada a nossa vontade de a condenarmos.
Nesta sociedade e em função da nossa contestação, 
qualquer actividade de que resulta o aparecimento no mer­
cado dum produto qualquer suscita em muitos dos nossos 
camaradas uma certa desconfiança. Desconfiança tanto 
mais justificada quanto os costumes do nosso tempo nós 
mostraram demasiadas vezes as misérias e as catástrofes 
exploradas, as acções generosas, desencadeadas para lutar 
contra certos flagelos actuais, confiadas às manobras dos 
grandes organismos publicitários ou dos profissionais da 
caridade, pagando-lhes um tributo garantia de eficácia...
A Cooperativa do Ensino Laico (C. E. L.) que, para 
numerosos agentes de ensino, não representa mais do que 
um catálogo, não escapa a esta desconfiança que raia, por 
vezes, pela hostilidade.
Ora, a C. E. L., criada por Freinet, é antes de tudo 
uma vasta oficina cooperativa, destinada a assegurar à 
acção pedagógica por ele empreendida a eficácia e a inde­
pendência. Estava fora de questão, na época, por volta 
de 1930, que as editoras se interessassem por um pequeno 
professor primário que faz afirmações inquietantes e pre­
tende regenerar a escala e os educadores. As brochuras e 
os utensílios produzidos por Freinet e seus camaradas não 
correspondiam, evidentemente, aos critérios habituais da 
rendabilidade.
A C. E. L., inicialmente movimento pedagógico ao ser­
viço das crianças, só podia, então, contar consigo própria 
para assegurar até ao fim o processo de criação e de difu­
26 A PEDAGOGIA FREINET
são dos utensílios que deviam permitir a instauração duma 
pedagogia popular e libertadora.
A razão de ser da C.E.L. é fabricar e editar material 
que seja útil à nossa escolha pedagógica, enquanto que as 
empresas comerciais capitalistas editam unicamente o que 
lhes traz proveitos.
Hoje em dia, é por vezes difícil fazer compreender que 
um movimento pedagógico, que recusa colocar-se na depen­
dência do ministério, deva dotar-se dos meios capazes de 
assegurar a sua eficácia e independência. Pois não temos 
o direito de nos contentarmos com um verbalismo estéril. 
O que visamos é uma profunda transformação revolucio­
nária da escola em benefício de .todas as crianças e de 
todos os adolescentes. E, para tanto, a C. E. L. deve cons­
tituir uma arma mestra do movimento Freinet.
Não nos deixemos, porém, enganar. Vivemos no sis­
tema capitalista, numa sociedade de consumo. Não pode­
mos ignorá-lo, nem recusar o contexto económico com as 
obrigações e os constrangimentos que isso implica. Sem 
que se pretenda combater esta sociedade com as suas pró­
prias armas, também não podemos, inversamente, recusá- 
-las a todas. Tal como na nossa vida de todos os dias, 
temos de aceitar compromissos. Aqueles que nos permitem 
existir e, sobretudo, agir, pois a recusa dos compromissos, 
na sociedade actual, conduz ao imobilismo e à irresponsa­
bilidade.
Quantos camaradas docentes, que pretendem ignorar 
a C. E. L. em nome duma certa pureza cooperativa, se recu­
sam a admitir as contradições entre as ideias que expõem 
e a sua acção de todos os dias?
O nosso primeiro compromisso — e não é, por certo, o 
menos significativo — é o facto de sermos funcionários dum 
Estado de que contestamos as estruturas e os métodos. 
Mas — pelo menos no imediato—, é o único meio de que 
O QUE SOMOS, O QUE QUEREMOS 27
dispomos para ajudar o maior número possível de crianças 
e adolescentes, particularmente os das classes populares:
— a tomarem consciência das taras da sociedade actual;
— a desenvolverem as suas faculdades criadoras e a 
imaginação a fim de serem capazes de arquitectar, cons­
truir e fazer viver a sociedade que melhor lhes convenha;
— a libertarem-se dos tabus impostos pelos defensores 
da sociedade actual — e inconscientemente, por vezes, pelas 
famílias — e dos bloqueios ou traumatismos que esta socie­
dade ou estas famílias lhes causaram desde a mais tenra 
idade.
Não se constrói uma sociedade com ideias e estruturas, 
mas com homens.
É por isso que pensamos que os nossos objectivos justi­
ficam a nossa acção; que esta acção passa obrigatoriamente 
por compromissos; e que devemos aceitar estes compro­
missos sem vergonha nem remorsos.
Mas, quais são estes compromissos, que causam uma 
impressão tão desagradável na nossa consciência?
Em primeiro lugar, todos aqueles a que está sujeita 
uma empresa que exerça uma actividade comercial. Poderia, 
certamente, imaginar-se uma cooperativa cujos membros se 
bastariam a si próprios, em que todos os utensílios utiliza­
dos nas aulas seriam fabricados por eles, cooperativamente. 
Mas, além de que isso conduziría a uma limitação perigosa, 
nem por isso escaparíamos ao sistema de produção capi- 
tallista.
Quando professores constroem, durante um estágio, o 
seu próprio limógrafo, limitam-se a proceder à montagem 
de materiais produzidos por empresas capitalistas.
Da mesma forma que os folhetos e os jornais revolu­
cionários são impressos em papel cuja produção constitui 
uma parte importante da actividade dos grandes mono­
pólios internacionais.
28 A PEDAGOGIA FREINET
A C. E. L. tem, portanto, necessidade, como qualquer 
empresa, de dispor de capital e de aumentar este capital 
à medida que a sua actividade — reflexo da audiência da 
pedagogia Freinet— se desenvolver. Tem necessidade de 
vender para assegurar a rendabilidade das suas produções 
e— nisso consiste a sua originalidade — para continuar a 
produzir brochuras e utensílios, cuja rendabilidade não está 
garantida, mas que se verifica serem indispensáveis à prá­
tica pedagógica que escolhemos.
Pedagogia do bom-senso* 
Barragem ou cabaças
* Tradução portuguesa de Moraes Editores.
por Célestin Freinet
A nossa unidade, são as nossas necessidades comuns 
de trabalhadores, as nossas necessidades e as nossas preo­
cupações de educadores do povo que a implicam, a pre­
param e a cimentam.
Não nos reunimos nos nossos congressos para discu­
tirmos os nossos sentimentos filosóficos, ou as nossas 
tendências sociais ou políticas. Isso não passa de jogos 
intelectuais que unicamente separam os homens que não 
souberam reencontrar, na base, os fundamentos inabalá­
veis dos seus esforços comuns.
Somos os habitantes dum bairro que têm necessidade 
de água de irrigação e que decidiram unir-se para executar 
os trabalhos de pesquisa e de construção que nos permi­
tirão melhorar as nossas condições de vida e de trabalho.
Estamos forçosamente de acordo sobre o princípio da 
necessidade da água. Só as questões técnicas nos podem 
separar — a saber, se se deve construir a barragem com 
cestões ou com betão moderno, se se deve construí-la, arro­
jadamente, nesta garganta abrupta, ou tão-só no ponto 
30 A PEDAGOGIA FREINET
em que o rio se encontra com a planície, ou se não seria 
preferível instalar um elevador.
Estas considerações técnicas só seriam graves para a 
unidade do nosso grupo se as abordássemos, não sob o 
ângulo da experimentação científica, mas sob o do dogma- 
tismo e da autoridade, ou se não tivéssemos sabido, ou 
podido, dominar os interesses particulares que correríam 
o risco de impor soluções contrárias às necessidades da 
maioria do grupo.
Mas, se procuramos lealmente, cientificamente, sem 
preocupação egoísta de interesse pessoal, tactearemos, 
talvez, durante muito tempo, enganar-nos-emos, mas recti- 
ficaremos os nossos erros e acabaremos por triunfar.
Há que contar por certo, para nos olharem ironica­
mente, com os embrutecidos, que já não têm nem força 
nem vontadepara lutar por uma melhoria da sua sorte 
e que continuarão a ir buscar água ao rio com uma cabaça. 
São os mais difíceis de convencer, mas não os que mais 
devemos recear. São menos de temer que os que vendem 
a água do rio ou que fabricam as cabaças, e que se sentirão 
prejudicados pelo canal generoso que vivificará amanhã 
a aldeia. E menos de temer, também, que os espertalhões 
que inventaram uma vasilha especial para o transporte da 
água ou uma bomba (de tirar água) que afirmam ser 
superior à poderosa barragem, e que querem vender a 
sua mercadoria ordinária com patente reconhecida.
Montemos a nossa barragem, instalemos a nossa cana­
lização. Quando a água sair aos borbotões límpidos do 
cano da fonte, os próprios cépticos virão bebê-la, e as vasi­
lhas e as cabaças irão juntar-se nos sótãos aos vestígios 
mortos das técnicas ultrapassadas.
Célestin Freinet*
* Texto publicado em L’Êducateur, 1 de Fevereiro de 1950.
UM ENCONTRO COM A 
PEDAGOGIA FREINET
Num «sana» polaco
por Halina Semenowicz e Alina Blachowicz 
(reportagem de Roger Ueberschlag)
Quer seja em França, na Polônia ou em qualquer outro pais, o 
encontro dos docentes com a pedagogia Freinet foi muitas vezes 
obra do acaso; e isso porque esta pedagogia continuou muitas vezes 
a ser contestada e, sempre, contestatária, sendo ainda difícil chegar 
até ela pelas vias oficiais.
É, portanto, às vezes, por ocasião dum congresso, duma con­
ferência ou de qualquer outra reunião, por uma leitura ou por um 
contacto pessoal, que ela é descoberta.
Mas, a partir deste primeiro encontro, por toda a parte se 
processam as mesmas démarches: contacto com os responsáveis, 
experiências, confrontação, organização da investigação e duma 
autoformação entre colegas interessados conduzindo a uma parti­
cipação mais activa na vida do movimento da Escola Moderna onde 
se realizarão os aprofundamentos e as análises indispensáveis.
É porque a narrativa da nossa amiga Halina Semenowicz 
ilustra de maneira notável esta descoberta e esta evolução, que esco­
lhemos inserir aqui o seu depoimento, se bem que ele tenha sido 
vivido na Polônia; o facto de este país ser socialista não tem, para 
o caso, qualquer relevância — uma vez que «a pedagogia Freinet é 
por essência internacional» (carta da Escola Moderna), ela diz res­
peito às crianças de todos os países.
A quarenta quilômetros de Varsóvia, chalés castanhos 
e vermelhos numa floresta de pinheiros. Poderia tratar-se 
duma aldeia de férias. Trata-se, desde há vinte e cinco anos, 
dum sana provisório erigido para durar dez anos. Está, 
porém, tão bem conservado e as crianças sentem-se ali tão 
3
34 A PEDAGOGIA FREINET
felizes que se adiou para 1976 a construção do complexo 
moderno destinado a substituído. Efectuámos uma visita, 
quase a última, ao berço do movimento Freinet polaco, 
guiados por uma mulher obstinada, Halina Semenowicz, à 
qual se deve actualmente a existência de 67 grupos de tra­
balho, de 474 educadores e de 261 jornais escolares.
Este florescimento de jornais escolares não deve nada 
a uma larga dotação em meios técnicos, habitual nos países 
socialistas (1). As escolas urbanas possuem duiplicadores, 
mas as escolas rurais realizam jornais escolares com os 
meios mais primitivos — ali, tira-se proveito duma máquina 
de escrever antiga; noutro lado, recorre-se a papel de car­
bono para multiplicar à mão um texto de criança, e, em 
certos casos, cada exemplar é único. Nenhum obstáculo 
existe, assim, para aqueles que estão convencidos de que 
o jornal escolar é capital para a comunidade infantil, para 
a motivação do trabalho.
Dois pobres diabos
Roger — Tu dirigiste esta escola durante mais de vinte 
anos, e agora é a tua auxiliar, Alina, que instruíste nas 
técnicas Freinet, quem te veio substituir. Porque é que 
as ideias de Freinet ganharam raízes aqui, e não em qual­
quer escola de aplioação da capital?
Halina — A escola existe desde a criação do sanatório, 
ou seja desde 1949. Ao princípio, tratava-se dum preven- 
tório construído pelos Suecos e destinado às crianças pola­
cas tuberculosas, vítimas da fome e das atrocidades da 
guerra...
Quando cheguei, vinha preparada para trabalhar com 
crianças doentes. Encontrava-me então à procura dum 
método terapêutico e que ajudasse ao mesmo tempo as 
crianças, a todos os nivéis, que sentem dificuldades por 
NUM «SANA» POLACO 35
causa da sua doença, da sua fraqueza. Desejava esse método 
para animar as crianças. Nesse momento em que procurava 
adaptar o método escutista — há muito tempo que eu era 
batedora—, isto é, o ensino pelos jogos, o trabalho de 
equipa (conhecia um pouco Makarenko), experimentava 
tudo o que podia; não me cansava de investigar e procurar. 
E incitei a minha equipa a procurar comigo.
Roger — Como é que chegaste a conhecer Freinet?
Halina — Em 1955, realizou-se, em Varsóvia, um 
grande congresso dos sindicatos dos docentes do mundo 
inteiro. Fui contratada pelos sindicatos como intérprete 
de honra junto dos franceses. Neste grupo de aproxima­
damente sessenta pessoas encontravam-se dois professores 
primários que eram diferentes de todos os outros. Eram 
os únicos que tinham trazido uma exposição. Não se can­
savam de me perguntar: — Trazemos uma exposição con- 
nosco; onde a poderiamos instalar? Ocupei-me de tudo, pois 
o meu feitio é assim — não era apenas tradutora, organizava 
tudo o que me era pedido. Em relação a estes dois pobres 
diabos, após o seu segundo ou terceiro pedido, interessei-me 
pela sua exposição. Eles indicaram-me que ela se encon­
trava no salão. Para lá me dirigi, e, ao ver todas aquelas 
coisas por terra, fiquei com a respiração suspensa: trata- 
va-se daquilo que eu procurava. Pego num jornal escolar, 
em desenhos de crianças e começo, por terra, a ler uma 
brochura da Educação Moderna ou um artigo de L’Éduca- 
teur. Não apenas como tradutora, mas já muito interes­
sada. Encontrei-lhes um gabinete de trabalho. Produzimos 
e afixámos cartazes. Quando todos os restantes se iam 
divertir, durante os momentos livres, eles dirigiam-se para 
o gabinete e era com o maior entusiasmo que aguardavam 
a chegada de alguém! Eram eles Paulette Quarante e 
F. Deléam — já lá vão quinze anos! Liguei-me de amizade 
36 A PEDAGOGIA FREINET
com eles. Eles deixaram-me algum material, e eu regressei 
à escola no mês de Agosto. Em Setembro, escrevia uma 
carta a Freinet pedindo-lhe alguns conselhos e se ele acei­
tava entrar em relação comigo. Ele respondeu-me imedia­
tamente, como eu esperava. Assim se estabeleceu uma 
correspondência durante dois ou três meses; eu contava 
e traduzia tudo aos meus camaradas. Decidimos experimen­
tar em duas turmas (2). Começámos pelo texto livre e a 
pintura. Não nos sentíamos muito seguros. Começámos a 
corresponder-nos (3) com Paulette. De cada vez que eu 
escrevia a Paulette e a Deléam, acrescentava desenhos, e 
fazíamos trocas. Era muito difícil, pois só eu conhecia a 
língua francesa. Mas, mesmo assim, conseguimos; pouco 
a pouco, iam-se realizando progressos, Paulette escrevia-me:
— Tu poderías, agora, ligar todos estes textos e fazer 
um jornal, como nós.
— Sim, mas não possuo um duplicador.
— Faz um limógrafo.
— Conto é que se deve fazê-lo?
Enviaram-me o método. Enviei o texto a Freinet. Ele 
animou-me — recebi muitas cartas. Compreendí muito 
depressa o espírito do I. C. E. M., pois ele já se me comu­
nicara.
Um inspector surpreendido
Recordo-me de que, no fim do primeiro ano, trabalhá- 
vamos um pouco com quatro classes. O inspector chegou 
e ouviu dizer que procedíamos a uma experiência nova. 
Ele examinou minuciosamente a escola inteira. Começou 
pelas classes mais adiantadas. Não existia ainda a oitava. 
Em cada turma, para ver se as crianças pensavam logica­
mente— era essa a sua ideia fixa — apresentava a mesma 
NUM «SANA» POLACO 37
anedota: Na turma, existem 12 raparigas e 14 rapazes; 
qual é a idade do professor? Nas classes avançadas, as 
crianças punham-se imediatamente ao trabalho. Faziam 
operações, equações, subtraíam,dividiam, multiplicavam. 
Após quinze minutos de trabalho, apercebiam-se de que 
faltava alguma coisa. O inspector dirigiu-se, depois, à classe 
de Alina, à de Ella... e, em cada uma destas classes, a 
reacção era imediata. As crianças riam, ou uma delas levan- 
tava-se e dizia:—Perdão, Senhor, talvez tenha esquecido 
alguma coisa?, ou ainda:—É um problema que se não 
pode resolver, ou até: — Adivinhas como essa já a nossa 
professora nos apresentou; o senhor não nos consegue enga­
nar! Em seguida, as crianças perguntaram-nos: — O que é 
que este senhor veio cá fazer? Ele não se apresentou! 
O inspector pediu desculpa. Nas classes mais adiantadas, 
as crianças interessavam-se pouco pelos visitantes. Nas 
nossas, estavam habituadas a que se lhes explicasse o por­
quê da vinda de alguém. O inspector ficou de tal maneira 
admirado com os resultados que me ordenou que introdu­
zisse os métodos Freinet em todas as classes. Expliquei-lhe 
que isso não era possível, que era preciso que eu preparasse 
as pessoas que estivessem dispostas a fazê-lo. Eu não dis­
punha de tempo para proceder a estágios, pelo que traba- 
Ihávamos da seguinte maneira: todas as semanas, reunía- 
mo-nos, procurávamos em conjunto. Tão-pouco dispunha 
cu, nessa altura, de uma verdadeira classe Freinet. No ano 
seguinte, após o congresso Freinet em França, pedi para 
ficar de modo a visitar algumas classes. Visitei Deléam, 
nas Ardenas, e, em Paris, Raymond Fonvieille e Oury. Pois, 
durante muito tempo, entendi-me muito bem com eles, e 
lamento muito que eles tenham partido.
Encontrei Freinet em todos os congressos — Avignon, 
Saint-Etienne... A este último acompanhou-me Marilka 
Marakowa, que era minha auxiliar. Dava toda a atenção 
38 A PEDAGOGIA FREINET
que podia às minhas duas auxiliares; procurava sempre 
vê-las no futuro. Preparava-as. Queria deixar, após a minha 
partida, uma equipa sólida. Formava-as não só por inte­
resse prático, mas também para que os inspectores acadê­
micos as respeitassem, na altura em que eu as propusesse 
para me sucederem. Agora, desta equipa, dois são directo- 
res de escola, Marilka é vice-directora do Instituto, e um 
é director de colégio no sanatório, pois, na verdade, o espí­
rito Freinet tornou-os criadores; o que conta muito!
Um auditório intrigado
Eu teria gostado de fazê-lo mais cedo, mais a fundo. 
Procurámos deslocar-nos a escolas para fazer demonstra­
ções com outras crianças, pois estas não podiam vir até 
nós. Em Schwinder, por ocasião duma grande reunião de 
professores primários, organizada pela academia, fizemos 
uma bela exposição oral, isto é, cada uma de nós fazia um 
comentário — revezávamo-nos. Nunca se fizera ali uma 
exposição como aquela. Depois, procedemos a quatro 
demonstrações:
— um texto livre;
— imprensa;
— uma carta;
— pintura livre.
E isso com crianças que não eram as nossas; era pre­
ciso coragem para fazê-lo! A minha participação foi total 
a fim de as estimular. Naturalmente, acorreram a minha 
casa todos os professores para verem o que esta Seme- 
nowícz ia mostrar. A professora primária desta classe acha­
va-se sentada atrás de mim; à minha frente, 44 garotos. 
Era uma aula de biologia. A parede mostrava chanfradu- 
ras, pequenas janelas, e estavam presentes pelo menos 
NUM «SANA» POLACO 39
80 adultos, amontoados; não havia qualquer mesa, apenas 
grandes bancos rústicos. Disse às crianças para treparem 
para cima dos bancos e olharem pela janela para o que 
se passava lá fora. Estava uma bela manhã de Inverno, 
com neve. Comecei a falar com eles:
— Quantas Marias existem entre vocês? Ah! Três, qua­
tro!, etc. Vamos divertir-nos duma maneira formidável. 
Como não vos conheço, não se zanguem se tne enganar 
no nome, ao dirigir-me a um de vocês.
Foi assim que entrei em contacto com eles; a coisa 
divertia-os muito. As crianças mostraram-se muito alegres. 
Num dado momento, surpreendí a professora a ameaçá-los, 
pois ela sentia-se envergonhada pelo facto de, diante dos 
inspectores, a sua classe se mostrar tão animada ao ponto 
de falar comigo. Ora, era precisamente isso o que eu que­
ria: libertá-las imediatamente, fisicamente mesmo. Aproxi­
mei-me dela e disse-lhe:
— Se não consegue, do ponto de vista nervoso, supor­
tar o que eu faço, saia, pois está a perturbar o meu tra­
balho que, aqui, não é nada fácil.
Em voz alta, pedi então:
— Que as pessoas sentadas atrás de mim passem para 
a frente, pois é desagradável voltar as Postas a quem quer 
que seja!
Dessa maneira, ela já nada podia fazer. Punha-se-me, 
porém, outro problema. Eu nunca fizera texto livre com 
44 garotos (4). Ocorreu-me então uma boa ideia: a leitura 
em equipa. Expliquei às crianças que elas iam escrever 
40 A PEDAGOGIA FREINET
o que quisessem, o que pensassem, o que sentissem, o que 
gostariam de dizer às crianças da minha escola.
— Dar-lhes-ei o que vocês escreverem. Aquelas crian­
ças não podem sair, não vêem todas estas bonitas coisas 
que vocês vêem quando vão para a escola, não sabem como 
é que vocês se sentem em vossas casas. Vocês podem escre­
ver absolutamente tudo o que quiserem. Os vossos traba­
lhos não receberão notas, e vocês podem perguntar-me a 
ortografia das palavras sobre que tenham dúvidas, pois 
eu gostaria que os vossos textos fossem bem escritos. Podem 
escrever a lápis.
Trazia um dos meus bolsos cheios de lápis, para o 
caso de algum deles precisar, e de pequenas cartas...
— Estamos prontos? Então, ao trabalho.
Foi então que dei por um garoto que não sabia o que 
havia de escrever. Aproximei-me cautelosamente dele e 
e falei-lhe com brandura: — O que é que gostarias de escre­
ver? Isso para mostrar o que a professora primária deve 
fazer. E, em relação a alguns mais, repeti a mesma ope­
ração. Quinze minutos depois, comecei a ficar inquieta: 
disponho apenas de dois períodos de tempo de 45 minutos 
cada; como é que eu vou fazer? Nunca me permitirão que 
eu trabalhe mais tempo, ou então hão-de criticar-me. Tenho 
de encontrar uma solução, depressa. Foi então que lhes 
propus:
— Eu gostaria muito de ouvir todos os vossos textos, 
mas desta vez não me é possível fazê-lo. Vocês vão reu­
nir-se em grupos de quatro e constituir, assim, pequenas 
equipas. Cada um lerá o seu texto, vocês escolhem o que 
NUM «SANA» POLACO 41
mais vos agradar, e o autor do texto escolhido far-nos-á 
a sua leitura.
Enquanto as crianças trabalhavam, aproximei-me das 
professoras e disse-lhes:
— Vocês 'ssistiram a dois momentos metódicos: o tra­
balho de redacção, absolutamente livre, com a correcção 
imediata da minha parte. Se eu conhecesse bem as crian­
ças, sabería a quem mais ajudar, e, portanto, de quem me 
deveria aproximar em primeiro lugar. Pois, nesse momento, 
não há necessidade de ajudar toda a classe. A leitura em 
voz baixa, com compreensão; é preciso compreender para 
poder escolher. Não basta ler (à primeira vista), é preciso 
reflectir. É um excelente momento metódico. Seguida­
mente, vocês ouvirão a leitura em voz alta, e, depois, a 
escolha do texto. Os critérios da escolha talvez não apa­
reçam às primeiras; pode ser que eles digam: porque gosto 
de Zocha, ou: isso agrada-me, simplesmente. Pouco a pouco, 
escreveremos o texto no quadro...
Conquistámos, assim, três simpatizantes. Eu não pre­
tendia um êxito maior. Receava que um inspector, entu­
siasmado, dissesse: todos ficam obrigados, a partir de ama­
nhã, a trabalhar com os textos livres! Pouco a pouco, ia-se 
ganhando terreno. Por exemplo, nos novos programas 
incluiu-se, sem qualquer menção ao nome «Freinet», o texto 
livre, a expressão oral e a correspondência interescolar para 
as classes mais jovens.
Um endireita inquietante
Entretanto, eu começava a escrever o meu livro, e des- 
loquei-me a Vence. Pedi a Freinet que me autorizasse a 
assistir às jornadas de Vence para trabalhar nos arquivos.
42 A PEDAGOGIA FREINET
Podia trabalhar ali duas a três horas por dia. Freinet con­
duzia-me a Cannes todas as manhãs; à tarde, regressávamos 
juntos. Ele conduzia duma maneira desportiva! Dizia-me:— Tens medo, Halina?
— Contigo? Isso sim!
Mas eu tinha medo.
Torci um pé, e havia ali perto um curandeiro. Freinet 
disse-me:
— Esta tarde, o endireita aparecerá par aí, e tu apro­
veitas para lhe mostrares o pé.
Eu tinha medo de sofrer, mas, sobretudo, de mostrar 
que uma polaca não é capaz de suportar a dor; tinha medo 
de começar a gritar ou a chorar. Eis uma orgulhosa polaca, 
que viveu as atrocidades da guerra, que se vai pôr a chorar 
por causa duma perna! Escondi-me no jardim, mas Freinet 
descobriu-me e conduziu-me pela mão, passou-me o braço 
por cima da cabeça, para que eu não tivesse medo; segu­
rava-me com força. Então, o endireita tocou-me com os 
dedos; falava-me e, depois, subitamente, pegou-me no dedo 
grande do pé e deu um esticão de tal ordem que fiquei 
convencida de que ele o tinha arrancado — não olhei para 
o meu pé, mas para a mão do homem. Nunca vi Freinet 
tão divertido como nesse momento. Aliás Freinet sabia rir, 
e com que vontade!
O curandeiro disse-me:
— Senhorinha, agora, um passo de dança.
— Como? Mas, não posso!
— Peço-lhe, execute um passo de dança.
NUM «SANA» POLACO 43
Assim fiz, e não senti mais nada. Ele disse:
— Hoje, aplique ainda compressas, e, amanhã, poderá 
seguir na excursão.
Foi assim que conheci Freinet. Trabalhei nos arquivos 
e escrevi o livro. Este livro contava para a obtenção do 
meu diploma de licenciada em pedagogia com a especia­
lidade de estética: a educação pela arte.
Você enlouqueceu? Eles vão partir...
Portanto, falávamos de Freinet, na Polônia, por toda 
a parte em que o podíamos fazer. O livro constituiu um 
estimulante formidável, pois de todo o lado nos chegavam 
cartas com convites. Repartíamos entre nós os departa­
mentos. Uma deslocava-se a Wroclaw e procedia a demons­
trações. Tinhamos adquirido o hábito de trabalhar com 
crianças diferentes das nossas. Eu própria fiz o texto livre 
com mestras da escola maternal. Com os mestres, trans­
formava a coisa num jogo. Ao princípio duma reunião, 
eles estavam todos sentados, rígidos nas suas cadeiras, e 
eu disse:
— Ah, não. Eu não seria capaz de falar a um conjunto 
de quinhentas pessoas numa grande sala de ginástica. Vocês 
ou adormecem, ou desatam a rir de tempos a tempos. Vocês 
não vão compreender coisa alguma, e vamos perder o nosso 
tempo. Peço-vos, portanto, para formarem uma classe, para 
trazerem mesas e um quadro.
Depois, dirigindo-me a um deles, de cujo rosto sim­
pático me apercebera:
— Você será, hoje, o aluno de serviço, le, logo que a 
ciasse esteja pronta, você irá chamar-me. Vou, entretanto, 
tomar um café.
44 A PEDAGOGIA FREINET
E parti! O inspector disse-me:
_ Que fez você? Eles vão-se todos embora!
Na Mina
Era uma vez um mineiro 
que trabalhava na mina 
Ali estava escuro 
na poeira do carvão 
O fato do mineiro é negro 
e negro é o seu boné 
no alto do qual se pode ver uma pequena lâmpada 
destinada a iluminar o seu trabalho 
Ele trabalha duramente 
Ele bate com força 
o mineiro na mina 
truz, truz
Ewa L., 8 anos 
Jornal Escolar Syrenka
— Não. Vi pelas suas caras que eles estão muito inte­
ressados!
Eram pessoas de concepções tradicionais, habituadas 
aos discursos de duas horas a que se seguia a partida do 
orador. Tinham feito com que viessem mais pessoas para 
se aproveitarem da Sr.ª Semenowicz! Mal tinha acabado 
de tomar o meu café, quando aquele que eu designara veio 
à minha procura. Chego e digo-lhes:
— Vamos desenvolver actividades; não se pode chamar 
lições ao que iremos fazer. Peço-vos que se ponham na 
pele duma criança da terceira classe, pois conheço bem o 
programa desta classe, e vós também. Reflictam durante 
alguns minutos, imaginem um dos vossos garotos e pro­
curem substituir-se a ele.
NUM «SANA» POLACO 45
Assistiu-se então a um singular teatro livre! Eles foram 
mesmo ao ponto de cometer os erros dos seus garotos, de 
imitar os seus defeitos. De tal modo que um espectador 
inadvertido teria podido acreditar que se trataria de loucos 
ou de atrasados mentais! Obtivemos textos muito interes­
santes. Tinha-lhes pedido para que os fizessem à maneira 
das crianças, e não como pessoas adultas. Mostrei-lhes, 
depois, como tudo se encadeava.
Em seguida, arrisquei-me a abordar o assunto dos 
empregos do tempo e as repartições, os quais são neces­
sários, não para o professor primário, mas para os ins- 
pectores. Isto porque o professor que começa a utilizar 
estas técnicas não sabe como integrá-las no seu emprego de 
tempo. Era minha intenção mostrar que todos os momen­
tos metódicos estavam presentes no que eu mostrava.
Começámos por elaborar um planning que um inspector 
pudesse compreender.
• Como elaborar o plano de trabalho para que ele seja 
compreensível?
• Como, no quadro do emprego do tempo escolar, inte­
grar as nossas técnicas de Freinet?
Todos os anos, mudávamos de plano. Pudemos chegar 
assim a um vasto plano que nos permite dizer ao inspector:
— Vimos todo o programa num número de horas sufi­
ciente.
A vida quotidiana
Roger — Assistimos esta manhã a uma entrega de diplo­
mas. Como tira partido duma tal «cerimônia» para impri­
mir emulação à actividade escolar? Qual a preparação que 
antecede a 'entrega dos diplomas (*)?
Halina — As crianças realizam no início do semestre 
— o nosso ano escolar está dividido em dois semestres — 
46 A PEDAGOGIA FREINET
uma reunião, logo no primeiro mês, pois já se conhecem 
bem entre si. Fazem então o seu plano de trabalho em 
função do que gostariam de realizar no plano escolar: este 
gostaria de aperfeiçoar a sua geografia e gostaria de obter 
um diploma de geógrafo; aquele tem grandes dificuldades 
em matemática e vai, portanto, trabalhar especialmente 
essa matéria... Em seguida, os chefes de conselho de cada 
classe reúnem-se, anotam as sugestões e organizam com 
os educadores a vida da nossa escola. Vida esta que não 
termina logo que a criança tenha terminado as aulas, mas 
antes se prolonga por todo o dia em jogos, trabalhos sociais, 
escutismo, círculos de interesses, etc. Uma criança que 
queira ser geógrafo inscreve-se no gabinete de geogra­
fia; enquanto outra, inscrita no de biologia, irá tratar dos 
animais ou fazer criação (de animais domésticos). A criança 
atribui-se a si própria uma nota de acordo com os seus 
camaradas que verificam o justo valor dessas notas. Quando 
o semestre se aproxima do fim, eles reúnem-se de novo 
para analisarem o trabalho desenvolvido; os educadores 
exprimem-lhes o seu ponto de vista e distribuem as notas. 
Explicam-lhes o porquê das notas:
— Tu tens ainda grandes lacunas neste domínio, não 
podes, portanto, ser classificado; mas trabalhaste muito 
bem, pelo que vais receber, em vez do diploma vermelho, 
que é entregue ao aluno modelo (numa turma de vinte, dez 
podem irecebê-lo), o diploma verde, que é o da aplicação, 
e, da próxima vez, poderás obter o diploma vermelho.
Roger — Para obter este diploma vermelho, há que atin­
gir um dado nível? Por exemplo, no quarto ano, que devem 
eles fazer para o obter?
Halina — O aluno deve fazer exposições, por ele esco­
lhidas, perante a classe. Previamente, e para aquilatar do 
NUM «SANA» POLACO 47
seu nível, os professores aplicam-lhe um teste. Depois, aju­
dam-no nas suas investigações e limitam o assunto que ele 
deverá tratar. A nossa escola é muito especial, pois, uma 
vez que a criança regresse a uma escola normal, importa 
que ela se não sinta inferior às outras crianças que gozam 
de perfeita saúde, caso contrário uma recaída seria ine­
vitável.
Roger — Falemos um pouco do jornal da escola.
Halina — Entre nós, a sala de aulas serve também de 
sala de reunião dos médicos. O local não é, portanto, utili­
zado exclusivamente pelas crianças. Aliás, as crianças mos­
travam-se sensíveis a isso tanto mais que ali deixavam os 
seus três cadernos-jornais:
— o caderno «eu felicito»;
— o caderno «eu critico»;
— o caderno «eu desejo».
Estes cadernos duram todo o ano. Quando o organi­
zador verifica que o material se torna interessante, que 
pode servir para qualquer coisa,organiza uma reunião. 
Estas reuniões, por conseguinte, não obedecem a um 
esquema determinado; realizam-se tão-só quando o material 
produzido é interessante. No entanto, sempre que surge 
um problema grave, por exemplo, quando certos garotos 
começam a fumar às escondidas — são crianças doentes dos 
pulmões, e cada cigarro agrava o seu caso — reunimos um 
conselho da escola; as crianças são convocadas para este 
conselho, no qual participam os médicos, o educador res­
ponsável — cada educador tem um encargo particular: o 
escutismo, a biblioteca, o conselho das crianças... Os diplo­
mas não são distribuídos pelos professores; estes podem, 
todavia, participar nesta entrega. Por exemplo, as crianças, 
ao darem-se notas, são muito severas; é preciso, então, expli­
48 A PEDAGOGIA FREINET
car-Ihes que o mais fraco, mesmo assim, trabalhou bem. 
Mas, é o próprio mais fraco que afirma: não! ainda não 
está bem.
Roger — A recepção dos novos alunos (5)?
Halina — As crianças nunca partem todas ao mesmo 
tempo. Quatro ou cinco abandonam o grupo após três 
meses de presença, e, entretanto, chegam outras cinco novas. 
São imediatamente integradas na olasse, pois trabalhamos 
duma maneira sistemática. Deixam-se imediatamente im­
buir pelo espírito do nosso trabalho. Logo que compreen­
dem do que se trata, cessam de fazer batota, de copiar; 
não há necessidade de copiar! Acontece que alunos muito 
bons, por exemplo, em redacção, já não sabem o que é que 
hão-de escrever quando não se lhes impõe um tema; é pre­
ciso ajudá-los imenso até ao momento em que começam 
a abrir-se e a comunicar. Até lá, limitam-se a repetir o 
livro. Estas crianças pensam que devem escrever um texto 
brilhante; procuram na memória qualquer acontecimento 
da guerra, querem fazer sensação, voltar a ter o êxito que 
antes tinham. Passadas duas ou três semanas, escrevem 
textos mais difíceis, poesias — sempre para obterem êxito.
O nosso trabalho é delicado, pois trata-se sempre dum 
trabalho de realização. Os resultados só aparecem ao fim 
de alguns anos de trabalho com as mesmas crianças, e, aliás, 
os professores que nos visitam — cerca de trezentos por 
ano, sem contar com os estudantes (praticamos a «escola 
aberta» na segunda e na quarta quinta-feira de cada mês) — 
admiram-nos pela grande coragem que demonstramos ao 
recomeçarmos sempre sem que conheçamos o prazer do 
resultado final dum trabalho coroado de êxito: os pais 
que agradecem, as crianças que escrevem. Por vezes, as 
crianças daqui escrevem-nos — é o único testemunho que 
recebemos.
NUM «SANA» POLACO 49
A pedagogia Freinet porquê?
Comprovamos o grande valor das técnicas Freinet a 
três nivéis:
1. A rapidez do nosso conhecimento profundo das 
crianças (6) graças à expressão livre em todos os géneros. 
Por exemplo, o teatro livre é muito interessante, na medida 
em que a criança não gosta de falar de si, mas, por inter­
médio dos fantoches, acaba por falar.
2. A possibilidade de redução rápida das lacunas.
3. A terapêutica que faz com que a criança se abra 
e comece a passar melhor de saúde.
Em Varsóvia, procedemos a investigações científicas 
durante um ano. Aplicámos testes regulares em três classes 
que trabalhavam com as técnicas Freinet, e em três classes 
que trabalhavam segundo técnicas ordinárias. Os testes 
provaram o êxito da pedagogia Freinet, sobretudo em rela­
ção à aprendizagm da língua materna — a língua das crian­
ças é muito mais rica, a expressão mais profunda e pessoal. 
Cometem menos erros de ortografia e de gramática, e pen­
sam mais logicamente na matemática.
Roger — Podes falar-nos da equipa de mestres (7)?
Halina — O grupo Freinet, na escola, conta quinze 
mestres. A maior parte pertence ao curso elementar; os 
outros ensinam a língua materna nas classes do 5.° e do 
8.° ano. Fixaram-se três objectivos. (Planificaram seis gran­
des reuniões, às quais se acrescentam quatro ou cinco 
comissões, ao longo do ano.)
O seu primeiro obfectivo:
Aprofundar a pedagogia Freinet. Impuseram-se vários 
temas e dividiram entre si os trabalhos de leitura das obras. 
Lêem, por conseguinte, as obras que eu já traduzi, todos 
4
50 A PEDAGOGIA FREINET
os artigos publicados, pelo que a sua bibliografia já está 
elaborada. Não querem encerrar-se na pedagogia Freinet, 
para o que organizam reuniões que lhes permitem estudar 
outros métodos praticados na Polônia. O método «dos sons 
e das cores», de Cuisenaire.
O seu segundo objectivo:
O aperfeiçoamento do material e do trabalho.
O seu terceiro objectivo:
Difundir os seus trabalhos.
A propósito do primeiro objectivo, em particular, em 
vez da biblioteca de trabalho, escolhemos a maior parte 
dos livros para crianças dentre os que falam duma maneira 
um tanto científica, popular, mas não muito «fabulosa» 
— os que têm a ver com as florestas, com os animais, com 
os homens de ciência, com a física... Possuímos atlas, uma 
enciclopédia, um léxico... Tudo isso é ainda muito pouco. 
Elaboramos, portanto, dossiers com as crianças. Eles recor­
tam em todo o tipo de jornais — operação em que cada um 
de nós participa. Constituímos em primeiro lugar dossiers 
vazios com a nomenclatura, preparados para receber os 
documentos. A isso, acrescentámos uma discoteca. Possuí­
mos, também, cartas postais, agrupadas por países, cidades, 
monumentos, consoante a vontade de cada classe. Todos 
os dias, durante o almoço das crianças, nós próprios nos 
reunimos antes do almoço, por volta do meio-dia. Cada 
equipa, pois os mestres estão repartidos em função da 
doença das crianças, reúne-se e discute as dificuldades que 
lhe são específicas.
Roger — A Polônia é, de todos os países socialistas, 
o que se mostra mais aberto à nossa pedagogia; o próprio 
NUM »SANA» POLACO 51
ministro se interessa, os sindicatos de professores e os 
órgãos oficiais da investigação pedagógica encorajam os 
vossos esforços. Este êxito impressiona-nos e alegra-nos, 
ao mesmo tempo que nos perguntamos se as implicações 
políticas e sociais da nossa pedagogia são sempre com­
preendidas (8).
Halina— Os funcionários superiores verificaram que 
os homens que nós preparamos pela nossa pedagogia eram 
os futuros cidadãos duma sociedade socialista. Todavia, o 
trabalho que desenvolvemos, fiéis nisso ao pensamento 
marxista, é um trabalho realista. Importa libertar-se dum 
certo dogmatismo, mesmo dum certo fanatismo político, e 
aderir às realidades procurando aí com todo o empenho 
os recursos possíveis para agir com eficácia imediata.
Desde sempre que a escola está ao serviço da sociedade 
em que está incorporada e não pode alterar esta sociedade 
(é esta uma das primeiras leis do marxismo). Representa, 
portanto, uma perda de tempo e de forças querer mudar 
pela escola a forma política e social dum país. No entanto, 
podemos e devemos lutar pela melhoria das condições de 
trabalho na escola por todos os meios disponíveis e em 
todas as frentes. As técnicas Freinet, aplicadas dentro do 
espírito Freinet, fazendo apelo à expressão livre, ao traba­
lho motivado, ao tacteamento experimental, à autogestão 
e à autocorrecção, são possíveis e recomendam-se a qual­
quer escola sejam quais forem as condições. Ajudemos 
estas escolas e estes mestres mediante estágios de iniciação, 
mediante a criação de escolas-testemunho; elaboremos 
material utilizando os recursos locais (edições de ciências 
populares, atlas, enciclopédias, ficheiros documentais e 
autocorrectivos em correspondência com os programas do 
país); descrevamos tão claramente quanto possível as técni­
cas de confecção e de ilustração dum jornal escolar, as 
técnicas de fabrico dos utensílios mais simples.
ALGUNS ASPECTOS 
ESSENCIAIS DA 
PEDAGOGIA FREINET
Uma manhã de sábado 
num curso preparatório
Classe de Liliane Corre 
(reportagem de Xavier Nicquevert)
Um C. P. (curso preparatório) de 25 crianças num 
grupo escolar inteiramente constituído por barracas e 
situado numa Z. U. P.
Desde Setembro de 1975, 15 classes (10 primárias e 
5 maternais) que procuram funcionar emregime de peda­
gogia Freinet, em condições difíceis e num clima muitas 
vezes hostil. Estamos na classe de Liliane Corre.
Liliane — É um momento de trabalho pessoal, indi­
vidual ou por grupos; isto é, cada um escolhe o seu tra­
balho: um desenho, um texto, um livro, uma tiragem na 
imprensa ou no limógrafo, investigações com o dicionário, 
uma pintura...
56 A PEDAGOGIA FREINET
É um momento privilegiado em que cada um pode 
trabalhar segundo o seu ritmo, embora articulando o seu 
trabalho com o do grupo; com efeito, qualquer dificuldade 
com que cada um depare pode ser resolvida quer por um 
camarada, quer pelo grupo inteiro, cujo concurso eu não 
hesito então em solicitar:
— Ivan está parado; ele encontra muitas vezes a pala­
vra «os» nos seus textos. Quem lhe pode dizer o que isso 
significa?
— Laura encontra «poussin» no seu dicionário; ela quer 
escrever «pousse»; como é que o pode fazer?
— É preciso retirar «in».
— Sim! E para fazer «pousse»?
— É preciso acrescentar «e».
Myriam mostra-me o polegar:
— Polegar escreve-se assim?
Não recebe qualquer resposta. É a própria Liliane 
quem escreve no quadro.
As crianças querem escrever a frase: «O cavalo vai 
comer as flores.»
Liliane — Lydia encontrou «as flores».
É a própria Laura quem apresenta o seu trabalho à 
classe.
Liliane — Eu apenas escrevi uma palavra do seu texto; 
todo o resto, encontrou-o ela no seu dicionário (*). (Reser­
vamos sempre um momento para examinar o trabalho rea­
lizado. Insisto sempre sobre o que é novo, e não sobre 
o aspecto estético.
NUM CURSO PREPARATÓRIO 57
Hoje, Ivan fez um desenho muito particular.
Liliane — Ivan gostaria que vocês adivinhassem:
— um comboio!
— um carro com números!
— uma caravana!
— um avião!
Ivan — Não, é quase igual a isso.
Valérie — Vou-te dizer ao ouvido.
Liliane — Como é que ele fez isso?
Valérie — Ele fez os números.
Liliane — Por onde é que ele começou?
Valérie — Em primeiro lugar, os números, e, depois, 
traça as linhas.
Liliane — Ele vai fazê-lo de novo no quadro.
Algumas crianças vão lendo os números à medida que 
eles vão aparecendo. Ivan traça o algarismo 5 às avessas.
Liliane — Devias escrever o cinco ao contrário.
Valérie — Ah! É por isso que ele há pouco pedia o 8 
à Christine!
Ele foi até ao 12!
Várias crianças procuram seguir-lhe o exemplo; talvez 
se trate, para elas, duma pista nova.
Liliane — Reservo frequentemente uma pequena parte 
da manhã de sábado para «limpar» um pouco; isto é, põe-se 
ordem nos textos, nas etiquetas; procede-se a uma nova 
leitura; termina-se o trabalho começado e revêem-se certas 
palavras da semana.
Liliane — Agora, cada um vai escrever palavras na sua 
ardósia. Vamos começar por escrever «as flores».
58 A PEDAGOGIA FREINET
Onde é que se pode encontrar «as flores» nos textos 
que estão afixados na parede? Que cada um se esforce por 
procurar um pouco.
A uma criança que ainda não encontrou:
— Podemos dizer-te em que texto é.
Uma criança vai indicar o texto.
Depois de terem escrito todos aqueles que o podiam 
fazer, mostra-se a palavra.
Liliane — Agora, posso escrevê-la no quadro.
Christine, a mais nova, é uma das mais rápidas. Joa­
quim, que acaba de completar sete anos, tarda em fazer 
progresso. Espera que lhe mostrem o modelo. Na reali­
dade, nem consegue sequer reconhecê-lo.
Liliane — Joaquim só consegue reconhecer o J de Joa­
quim; só se interessa pela sua pessoa.
(Distribuo agora os cadernos azuis, e todos prestam 
a maior atenção.)
Trata-se do caderno de balanço («o caderno de pro­
gressos», como eles dizem), da referência ao tradicional em 
intenção dos pais.
Eles escrevem ali praticamente uma vez de 15 em 15 
dias; ali colam os seus diplomas (*), as boas notas em 
matemática.
Além disso, possuem «o seu livro» onde colam os seus 
textos e escrevem todos os dias, e que lhes serve de livro 
de leitura.
— Tinha-se dito, ontem, que talvez alguns pudessem 
receber o diploma de boa caligrafia.
Depois da reabertura das aulas em Janeiro, as crianças 
querem escrever e ler; chegam à classe e metem-se ao tra­
balho; nem sequer se mostram aborrecidos; deixou-se até 
NUM CURSO PREPARATÓRIO 59
de falar ao magnetofone (outro dia, Ivan fez uma obser­
vação nesse sentido, mas os outros não lhe deram atenção).
Liliane — Há quem julgue que para receber o diploma 
de boa caligrafia é preciso escrever com letra miudinha; 
ora isso está errado!
Xavier Nicquevert — Quem decide da entrega ou não 
dos diplomas?
Liliane — Em relação a certos «progressos de leitura», 
são eles que decidem; em relação a outros, sou eu. É a 
primeira vez que se atribui o diploma de escrita; creio 
que sou eu quem irá decidir.
Observe o caderno de Lydia: o que ela fazia ao prin­
cípio do ano, e o que ela faz agora. Ela escreveu bem em 
cima das linhas; nem uma letra a mais ou a menos — é 
bonito; acho que ela merece o diploma.
Para aqueles que o obtiveram:
— Vocês vão colorir para cima do planning, e eu vou 
dar-vos o diploma para que o colem no caderno azul.
Aqueles que o obtiveram:
Existem critérios de rigor e, também, de estética na 
escrita.
Lydia tem dificuldade em encontrar o sítio onde colo­
rir em cima do planning:
— o seu nome;
— a coluna do diploma de escrita.
Liliane — Pede a um outro que te ajude.
— Martine diz-me: «Se eu escrever tudo, terei o meu 
diploma?» Eu acho que isso não basta; tendo escrito tudo, 
ou não, importa que esteja bem escrito.
Xavier Nicquevert — Fabienne está amuada. Porquê?
60 A PEDAGOGIA FREINET
Liliane — Tive a pouca sorte de lhe dizer que ela 
escrevia com uma letra muito pequena e sugeri-lhe um 
modelo. Ela não o aceita. Ela terá também que dominar 
isso.
Xavier Nicqüevert— O que levanta o problema da 
exigência a ter em relação às crianças (9).
 Liliane — Sim, certamente: a natureza da exigência e 
o momento dessa exigência; no caso de Fabienne, porém, a 
coisa é bastante pessoal: o pai morreu recentemente quei­
mado num avião, ao que se deverá acrescentar a posição 
da mãe, que é franca oposição à óptica da classe. Por 
exemplo, a mãe acha que ir à Mareschale é perder tempo.
A Mareschale é uma propriedade que fica .paredes 
meias com a escola, tendo sido comprada pela cidade e 
posta à disposição do bairro; existe nela um casarão, um 
prado e um pequeno jardim. É um local extraordinário 
para as crianças da Z. U. P. fazerem experiências, uma vez 
que ali podem correr, trepar às árvores, fazer cabanas, 
balouços, atear fogueiras, fazer rolar barris e pneus... 
Vamos para lá todas as tardes sem outro objectivo que 
não seja o de permitir todos estes tacteamentos, e foi pre­
ciso explicar aos pais, muitas vezes reticentes, o porquê 
das nossas saídas quotidianas.
Xavier Nicqüevert — Tenho a impressão de que aca­
bas de conceder o diploma a um garoto a quem os seus 
camaradas não reconhecem mérito suficiente para isso.
Liliane — Oh, sim! Mas eu não tenho escrúpulos em 
desempenhar o meu papel; é preciso que as crianças com­
preendam que o mérito é julgado em relação a si próprio. 
Olha como ele escrevia antes; eles chegam mesmo a dizer: 
«Ah, sim! para ele, está bem!» Para alguns, é importante 
obter um diploma para que se produza um efeito de bola 
de neve e esse êxito se repercuta nos outros sectores da 
actividade.
NUM CURSO PREPARATÓRIO 61
Liliane — Eu disse que iríamos ver os dispositivos, 
quando o pequeno ponteiro estivesse na mesma posição e 
o grande por cima do 12; que horas serão?
—11 horas...
Liliane — Vou escrever 11 horas no quadro.
Eric — A mãezinha disse: «Quando fizeres um ditado, é 
preciso que recebas um diploma.»
Liliane — Oh, sim, mas repara como escrevias no prin­
cípio do ano; agora estás a escrever pior. Falas demasiado, 
divertes-te. Para Stéphane: — Vai depressa colorir.
Stéphane— O meu paizinho vai ficar contente!
O texto livre 
é muito mais que o texto livre
por Nicole e Camille Delvallée 
(reportagem de R. U.)
Sartrouville, mais de 50 000 habitantes, uma escola urbana entre 
outras do arrabalde parisiense, com, todavia, um recanto de jardimonde as crianças de Nicole e Camile Delvallée manipulam a pá e o 
ancinho como engenhos incômodos mas mágicos...
Entre os seus cursos médios (eles acompanhavam os alunos 
durante dois anos) uma sala vazia foi transformada em oficina. 
Ela recebe, em certos momentos, o excedente das classes; evita ter 
de arrumar todos os acessórios incômodos. Indispensável e rarís- 
simo privilégio. Na realidade, os alunos das duas classes dispõem 
de três salas para viver: a de Nicole, a de Camille e a oficina, 
o que evita muitas tensões. Neill dizia aos seus alunos: «Vai ver 
se eu estou lá fora», quando estes o importunavam. Aqui, lá fora, 
são os outros — recurso ou consolação.
Roger — Para muitos mestres, o texto livre (*), inicial­
mente, é um exercício de francês que vem substituir a 
redacção; no entanto, não tardam a aperceber-se de que o 
texto livre fornece pormenores sobre a vida íntima da 
criança, ou simbolizações da sua vida ou das suas pró­
prias preocupações. O que cria, então, uma certa surpresa, 
por vezes um certo embaraço e um grande receio de pene­
trar na vida da criança e na vida familiar. No teu caso, 
64 A PEDAGOGIA FREINET
o que te interessa é precisamente o facto do texto livre 
funcionar como uma espécie de termômetro da vida duma 
criança, como um indicador, um indicador que te permite 
saber em que estádio se encontra uma criança num dado 
momento. Nem sequer é, propriamente, um exercício de 
francês.
Nicole — É evidente que eu procuro conseguir que os 
textos sejam textos verdadeiramente íntimos, que venham 
do mais fundo deles próprios. Procuro acima de tudo a 
sinceridade. Reli os meus jornais escolares destes últimos 
anos e encontrei uma garota que elaborara um texto. Dizia 
ela: Não quero escrever mais. Estou farta de escrever car­
tas, textos; com Nicole, tudo tem de ser sempre exacto, 
íntimo (não foi esta a palavra que ela empregou), pessoal 
e original, e é preciso que não haja erros de ortografia; 
então, não quero escrever mais, não mais voltarei a escre­
ver; sim, escreverei ainda uma vez. E ela escreve: «aa bb 
cc ...». Para além disto, na série de textos, houve várias 
crianças que fizeram o meu retrato, e todas elas sublinham 
a minha exigência (10) no que diz respeito aos textos e 
a todas as produções. Eu quero que elas desçam ao mais 
profundo de si mesmo, que atinjam verdadeiramente uma 
certa intimidade, uma certa sinceridade, que me parece ser 
a única desejável. O que diz respeito, ao mesmo tempo, à 
qualidade do que eles produzem, e à necessidade de se 
exprimirem a si próprios. Eles têm a impressão que é no 
plano da qualidade que eu insisto; na realidade, faço-o, 
essencialmente, no plano do conteúdo, da autenticidade. 
Então, eles sentem-se verdadeiramente tocados por aquilo 
que vem do coração, pelo que é verdadeiramente sincero, 
e condenam muitas vezes um texto narrativo, descritivo, 
dizendo: É bonito, tu encontraste belas imagens, mas onde 
estás tu, lá dentro? Que pensas tu disso? Não te reconhe­
O TEXTO LIVRE 65
cemos, é uma coisa anônima. Eu, precisamente, procuro 
lutar contra este anonimato — tanto ao nível das crianças 
como dos pais. Trata-se dum problema próprio das grandes 
cidades, dum problema de relações humanas. Na classe, 
temos problemas de relações entre as crianças. A coisa 
torna-se de ano para ano mais difícil. Procura-se, então, 
pôr as crianças em relação umas com as outras, em rela­
ção com os pais, e estes entre si. Actua-se, nesse caso, em 
diferentes planos; e, no entanto, é importante que a auten­
ticidade e a sinceridade estejam directamente ligadas; o 
que resulta, essencialmente, duma comunicação que se deve 
estabelecer. Ora, para que haja comunicação, é preciso 
que se saiba ouvir. É toda uma educação que está em 
causa.
Quando o texto livre conquista os pais
Camille — A este respeito, vivemos nestes dois últimos 
anos qualquer coisa de interessante. Partimos, Nicole em 
72, eu em 73, para um mês de aulas na neve. O que era, 
então, um problema para os pais (11), que, pelo menos 
numa percentagem de 50%, nunca se tinham separado dos 
filhos. Confiavam-nos a criança durante um mês, e ficavam 
inquietos. Procurámos recriar relações com eles, o que 
foi muito interessante. Partimos para as aulas da neve 
levando o nosso aparelho fotográfico e o magnetofone, e 
depois decidimos que lhes enviaríamos notícias com diapo- 
sitivos a preto e branco e fitas magnéticas. Vivemos uma 
experiência de correspondência (12), mas uma correspon­
dência fortemente motivada no caso dos pais, desejosos de 
ter notícias dos seus garotos. Dissemos-lhes que, todas as 
semanas, na sexta-feira à tarde, se faria uma reunião com 
os pais. Eu organizava a reunião em Sartrouville, enquanto 
s
66 A PEDAGOGIA FREINET
Nicole se encontrava na classe da neve, e, depois, trocáva- 
mos os papéis.
A princípio, deslocar-se à escola era para eles uma pro­
vação. Eles sempre tiveram um certo medo da escola — a 
coisa não lhes interessava muito. Reuniram-se umas vinte 
famílias, vinte e cinco, trinta; da segunda vez, estiveram 
presentes muitas mais e, da última vez, reuniram-se umas 
cem a cento e vinte pessoas. Vinham os tios, as tias, os 
avós, vizinhos. Vinham, porque os divertia verem e ouvi­
rem os seus filhos a contar coisas. Demos então início à 
expressão livre com os pais. Depois de terem escutado a 
fita magnética dos seus filhos, os pais disseram entre si: 
Mas poderiamos responder-lhes! Encontrei-me perante uns 
trinta a quarenta pais que mais me pareciam gaiatos, 
embora alguns fossem mais velhos do que eu. Disse-lhes: 
— Sim, poderiamos responder-lhes. Mas, como o fazer? 
Exactamente como as crianças no primeiro dia, excepto 
que estamos seis horas por dia com as crianças, enquanto 
que com os pais era apenas uma hora por semana. É, então, 
que nos apercebemos que tudo está ligado: a expressão 
livre, a correspondência, a cooperação, a vida em comum, 
as relações. O que me leva a dizer que o problema dos 
efectivos é menos importante que o das relações...
Tinha o microfone na mão e recordo-me de momentos 
verdadeiramente comoventes: mamãs que falavam ao meu 
rapazinho — o microfone tornava-se no rapazinho, elas 
pegavam-me na mão e apertavam-na. Todos eles quiseram 
falar cada um por sua vez, uma vez que, neste caso, não 
havia cooperação possível entre eles. Cada um falava ao 
seu garoto. As mensagens dos pais eram do género: Meu 
filho, espero que estejas bem, que comas bem, que te portes 
bem e, sobretudo, sê educado, ajuizado... diverte-te e não 
te esqueças de me escrever. A coisa ficava por aqui. Então, 
evidentemente, quando as crianças ouviam as fitas, tendo 
O TEXTO LIVRE 67
de ouvir trinta vezes a mesma coisa, tinha-se dificuldade em 
fazer com que eles escutassem a fita magnética até ao fim. 
Eles fizeram a crítica dos pais e enviaram-na dizendo que 
eles faziam muito barulho à volta do magnetofone, que não 
se devia ouvir ruídos de cadeiras, de dedos sobre o micro­
fone. Por outro lado, censuravam-nos por fazerem per­
guntas a que eles (os filhos) já tinham respondido na gra­
vação. Um dos pais pegou no microfone (importa precisar 
que se trata do médico do bairro, portanto, uma pessoa 
que todos conhecem), e disse muito a sério:—Bom-dia, 
meus rapazes. Vocês mandaram-nos fotografias em que nos 
mostram que há alguma neve em Lamoura; devo, no 
entanto, dizer-vos que isso não nos causou surpresa, pois, 
aqui, temos uma altura de neve de 1,20 m, fazemos esqui 
na rua. Instalámos um cabo especialmente para o efeito. 
Vocês parecem estar muito satisfeitos por estarem a viver 
juntos, entre vocês, mas, nós, os pais, queremos fazer tam­
bém a mesma experiência. Decidimos encontrarmo-nos 
todos os fins de tarde na escola. Instalámos um dormitório 
no segundo andar. Nicole vem despedir-se de nós todas as 
noites, e a directora também. Vocês cantaram uma canção 
para nós; pois bem, é o que iremos fazer também. E ele 
fez com que todas as famílias entoassem uma canção. Era 
muito cómodo e divertido. As conversas dos paiscom os 
filhos adquiriram então, subitamente, um novo tom. 
Criou-se como que uma ligação, uma ponte. Os pais come­
çaram a dizer graças e a falar num tom muito mais descon­
traído. E as gravações que você recebeu eram nitidamente 
melhores.
Nicole — Deste modo, os pais descobriram a expressão 
livre e a correspondência, porque as viveram. Havia, então, 
por um lado, o grupo de crianças que realizava uma expe­
riência de vida colectiva; por outro lado, graças a este 
68 A PEDAGOGIA FREINET
médico, havia o grupo dos pais que começaram a dizer 
bom-dia uns aos outros. A princípio, quando chegavam, 
não se conheciam entre si, pois cada um vive no seu H. L. M. 
ou no seu pavilhão. Agora, eles diziam entre si: Bom-dia, 
ah!, você está cá, é o pai de... etc. As crianças, depois de 
viverem um mês juntas durante as aulas da neve, convi­
dam-se à volta para as casas umas das outras. Os pais 
começaram a visitar-se uns aos outros, e, depois, passaram 
a apresentar-se muito mais vezes voluntariamente na escola. 
No fim do ano, disseram-nos: A cerejeira está carregada 
de cerejas; venham colhê-las! Eram coisas que nunca nos 
tinham acontecido, e é o que se passa nas aldeias.
Camille — Eu, pela minha parte, lembro-me de ter ido 
ao correio de Sartrouville. É, mesmo assim, um correio 
importante, pois serve 50 000 habitantes. Subitamente, oiço: 
— Ora vejam lá, Camille! Era a mãe de um aluno que 
trabalhava nos correios, e como os garotos me tratam por 
Camille, os pais seguiram-lhes o exemplo, o que é engra­
çado. Assim, mesmo numa grande cidade, pode talvez 
recriar-se um espírito de aldeia. As pessoas conhecem-se, 
e é importante que possam entrar de novo na escola. 
Há pais que vêm frequentemente à escola, e são os garotos 
quem se ocupa deles. Levam-nos às quatro e meia a visitar 
as belas realizações. Os pais regressam muito confiantes e 
as crianças voltam para junto de nós com um estado de 
espírito idêntico ao dos pais.
Graças ao texto livre, todo um tecido de relações afec- 
tivas fazem com que a expressão íntima se possa verda­
deiramente exteriorizar.
Roger — Até agora, o texto livre foi concebido quer 
como uma técnica de francês, por parte de alguns, quer 
como um instrumento visando o conhecimento psicológico 
O TEXTO LIVRE 69
da criança. Você conseguiu transformá-lo num instrumento 
de comunicação social (22), em última análise, num ins­
trumento de transformação de relações no interior dum 
bairro.
Nicole — Eu gostaria, também, de insistir noutro 
aspecto: se, ao nível do texto livre, se consegue trabalhar 
duma maneira aprofundada, é porque conservamos as 
crianças junto de nós o máximo de tempo. A coisa prolon­
ga-se por dois, três anos; então, é formidável. O primeiro 
ano é necessário para desbloqueá-las, e, depois, obtém-se 
verdadeiramente a qualidade ao fim do segundo ano. 
Obtêm-se textos que não nos deixam indiferentes, que nos 
sensibilizam.
Um grito do coração, e o texto «arranca»...
Roger — Como procedes para que as crianças tomem 
consciência do que é simples tagarelice superficial e daquilo 
que verdadeiramente as implica? Diz-se muitas vezes que 
as crianças vivem muito pouco de acontecimentos; nada 
têm para dizer porque, mesmo na cidade, as crianças, se 
exceptuarmos a televisão, não vêem grande coisa.
Nicole — Sim, é verdade; na cidade, a vida deles é 
absolutamente banal, mas na classe passam-se coisas! Se a 
vida entra na classe, eles vão ser obrigados a discutir, a 
debater, a encontrar pessoas, a fazer perguntas — porque é 
que elas não são como as outras pessoas... Então, a 
expressão escrita nasce e organiza-se. Basta mostrar-se 
receptivo a todas estas coisas, basta estar vigilante. Eu, pelo 
que me toca, confesso que, quando entro em contacto com 
novas crianças (13), dou a maior atenção a tudo o que 
elas possam dizer. Há dois anos, o primeiro texto livre, 
que era um verdadeiro grito de alma, foi uma curta frase 
escrita num fragmento de papel. As crianças vinham de 
70 A PEDAGOGIA FREINET
classes tradicionais, e enviavam umas às outras curtas mis­
sivas. No género de:—Não gosto de patetas e de idiotas 
como tu. Quando me apercebi do caso, disse para mim 
própria: cá está, a expressão livre «arranca»! Então, não 
ralhei com a rapariguinha que tinha escrito aquilo, o que 
todos esperavam que eu fizesse. Peguei no papel e disse: 
Que se passa contigo, Véronique?
Ao que ela me respondeu: — Acabo de receber um 
bilhete de Hervé. Ele escreve-me palavras feias.
— O que é Hervé te escreveu?
— Ele diz que gosta de mim. Mas, isso não me agrada; 
foi por essa razão que lhe respondi.
— Tu escreves a Véronique a dizer que gos\tas dela, mas 
com palavras grosseiras; uma coisa não está a dizer com 
a outra, explica-te lá — disse eu para Hervé.
Fez-se um silêncio de morte, e, depois, os outros puse­
ram-se a falar; perguntavam-se porque é que eu fizera esta 
pergunta, e debateram o assunto durante um hora e meia. 
Forneceram-me incontáveis pormenores sobre o amor, sobre 
o nascimento. Não sabiam como tinham vindo ao mundo, 
e levantaram muitas questões. Programámos, então, as 
investigações, o que foi formidável. À tarde, disse-lhes que 
não eram poucas as pessoas que tinham escrito bilhetes 
de amor durante a sua vida, e que os mais belos encontra­
vam-se nos livros. Livros estes que se encontravam no 
fundo da classe; eles só tinham que se servir deles. Mas 
nenhum dos garotos se levantou para os ir buscar. Então, 
que fazer? No dia seguinte, peguei em todos os livros de 
poesia e distribuí-os. A coisa foi, então, extraordinária. 
Gostarias de ter visto os garotos a folhear! Fizeram a 
descoberta de Queneau, que dizia palavrões «proibidos na 
escola». Descobriram Éluard, que se tornou o seu livro 
de cabeceira não sei por quanto tempo. Descobriram Ara- 
gon, Lorca, Desnos. Era divertido vê-los voltar as páginas 
O TEXTO LIVRE 71
e, subitamente, estacar diante duma palavra ou duma 
imagem. Copiaram textos, e decoraram os que mais lhes 
agradavam. Foi pouco depois que escreveram no livro de 
vida (14): Nós gostamos de ler os poemas, não gostamos 
das recitações (*).
Roger — O teu «arranque» consistiu em facilitar a 
comunicação entre crianças, sem mesmo ter em mente que 
eles iam fazer textos.
Nicole — Consistiu, também, em acolher aquele grito 
de alma. Para mim, aquilo era a expressão livre no estado 
puro. Inicialmente, os meus textos eram: A Pequena Tar­
taruga Doente; Em Férias; Os Meus Hamsters; O Meu Gato; 
e, dum momento para o outro, surgem-nos poemas à maneira 
de Éluard, que foi o seu deus durante dois anos. Quando 
se pegava no caderno de Ismael, toda a gente ficava espan­
tada ao ver que a quatro textos perfeitamente desenxabidos 
se seguia uma explosão; todos eles se perguntavam porquê. 
Eu dizia-lhes:—Consultem o livro de vida na página refe­
rente ao dia 21 de Setembro.
Roger — O teu livro de vida é o teu diário de bordo?
Nicole — Sim, trata-se de um grande álbum em que 
eu escrevo muita coisa no princípio do ano, depois do que 
incito as crianças a escreverem nele. Ali anotamos tudo 
o que fazemos, tudo o que se diz, o que se traz, o que se 
realizou. Sim, é um diário de bordo. Freinet salientou a 
importância do livro de vida. Eu, porém, não conseguia 
dar vida a um livro de vida na minha classe. Foi então que 
reli os artigos de Freinet, que investiguei verdadeiramente, 
e que consegui «arrancar» com o meu primeiro livro de 
vida; a coisa correu da melhor maneira.
Porque é que anteriormente as coisas não corriam da 
melhor forma? Porque eu o reservava exclusivamente para 
72 A PEDAGOGIA FREINET
mim. Quando o confiei aos garotos, tudo começou a fun­
cionar por si mesmo e da melhor forma. Mostramo-nos 
sempre reticentes e falhos de confiança nos garotos. No ano 
seguinte, desloquei-me à escola Freinet e pedi para ver 
livros de vida, tendo ficado muito contente por ver que os 
seus conteúdos se pareciam bastante com o meu. O livro 
de vida é uma coisa importante; as crianças folheiam-no, 
voltam a consultá-lo — sabem que podemencontrar ali 
tudo o que se não quer esquecer; procura-se e encontra-se 
sempre qualquer assunto que tenha sido discutido. Eu, pela 
minha parte, tomo muitas notas em folhas móveis, presas 
por uma pinça de desenho, e que colo no livro de vida.
BOLA DE NEVE ... 15 de Outubro
STOP...
Parem, parem, operários.
Parem de fabricar automóveis, 
comboios, aviões e outros engenhos do mesmo género que 
poluíram tudo.
Parem e vão destruir esses grandes prédios. Tornem a 
plantar todas as árvores que arrancaram pela raiz. E não 
se esqueçam de incendiar todas as fábricas que produ­
ziram tanto gás e tanto fumo...
Retirem-se depressa para o campo, onde poderão final­
mente repousar.
Vocês agora são livres.
Vocês já «nadaram» de mais no meio do fumo-
Cathou.
EU NÃO ESTOU DE ACORDO
Eu não estou de acordo com Cathou.,
Se não existissem fábricas, não teríamos vestuário correcto, 
nem tijolos para construir casas, nem automóveis para nos deslo­
carmos, nem aviões para viajarmos até aos outros países, nem 
medicamentos para nos tratarmos.
Se ela prefere viver como há 100 anos, ela não teria nem auto­
móvel, nem electricidade, nem aquecimento central. Ela teria de 
ir buscar água com uma bomba (de tirar água).
Critica-se o betão, mas eu gosto do betão. Gosto também das 
auto-estradas.
Sim, eu gosto do mundo moderno. Pierre
0 TEXTO LIVRE 73
No princípio do ano escolar, tudo é larvar, as coisas 
não resultam, não se vai longe, a coisa verdadeiramente 
não «arranca». É preciso que um disparador seja accio- 
nado para que o processo «arranque», e é por isso que 
importa estar verdadeiramente vigilante; talvez eu não tenha 
sabido aproveitar algumas ocasiões. Se quiseres estar 
atento a tudo o que se passa, sobretudo no início do ano, 
terás de suportar uma tensão terrível para procurar des­
cortinar o que se esconde por detrás de cada rosto.
Camille — Recordo-me de, no ano passado, quando 
Nicole passou por aquela fase sobre o problema do amor, 
ter reagido, dizendo-lhe: — Tu manipula-os com o amor, etc. 
Comigo, nessa época, eles entregavam-se aos retratos. Livrá- 
mo-nos de dificuldades fazendo um álbum para os corres­
pondentes (15). Fizemos os nossos trinta e três retratos. 
Este ano, os meus alunos, as raparigas sobretudo, cresce­
ram. Este tema preocupa-as por sua vez. Escrevem abun­
dantemente. Paralelamente, devido ao martelamento da 
televisão, o tema da poluição e da morte monopolizou tam­
bém as atenções gerais. Registaram-se grandes discussões 
sobre a poluição e, o que muito me agradou, apareceu 
também uma oposição muito clara. Um rapaz respondeu 
a uma rapariguinha que apresentara um texto sobre a 
poluição: — O que tu propões, é o regresso aos homens 
pré-históricos; eu esforço-me então por imaginar um pouco 
como seriam as coisas. Gera-se, então, uma discussão. Um 
pequeno Argelino que mora num bairro de lata fez-nos a 
descrição da sua casa; não dispõem nem de água corrente 
nem de electricidade, as paredes são de tijolo, mas, sobre­
tudo, de madeira e papelão alcatroado, e eles vivem lá den­
tro; o telhado é constituído por uma espécie de chapa ondu­
lada, e instalam bidões para recolher a água. Este garoto 
tinha então explicado o que era a vida não moderna 
74 A PEDAGOGIA FREINET
sem conforto dos nossos H. L. M.( pois os nossos H. L. M. 
(casas de renda limitada) são muito criticados na aula. 
Um miúdo que tenho acompanhado desde o C. P. redigiu 
um texto: Eu gosto da vida moderna, gosto das auto-estra- 
das, gosto do betão. Diz-se mal do betão, mas eu gosto do 
betão. E ele acrescentava: — A vida é uma coisa compli­
cada; eu preferiría que a minha vida fosse uma auto-estrada, 
porque uma auto-estrada é uma coisa recta, simples e clara. 
Há então um que lhe diz: Acontecem acidentes e mortes 
nas auto-estradas, ao que ele respondeu: — Nas minhas auto- 
-estradas não acontecem acidentes nem mortes, pois não 
circulam automóveis; são apenas autojestradas, são rectas.
Nicole — O meu problema são os bons alunos, os que 
ingressam na classe (16), que fazem o seu trabalho com 
perfeição, que apresentam um caderno em ordem, que se 
sentem à vontade em coisas bem estruturadas, que resol­
vem com êxito todos os exercícios. Essas crianças, quando 
se trata de tomar uma iniciativa ou de emitir uma ideia 
pessoal, apagam-se e sentem-se infelizes porque as crianças 
que sofreram, num primeiro período, não vão dizer nada, 
mas desde que vão ser libertadas, desde que vão ser des­
bloqueados, são elas que se tornam os primeiros da classe, 
trazendo para dentro desta toda uma vida e correntes de 
pensamento, ao passo que os bons alunos não saberão rea­
gir. Trata-se de crianças que adquiriram o hábito de obe­
decer e de trabalhar quando solicitadas, e quando nada se 
exige delas sentem-se abandonadas e mostram-se incapazes 
de conquistar a sua própria liberdade.
Roger— Eu tinha a impressão que você utilizava a 
palavra manipulação para caracterizar uma atitude de 
intervenção da sua parte. Creio que a palavra tem um 
sentido ainda mais pejorativo: trata-se duma intervenção 
O TEXTO LIVRE 75
que visa conduzir crianças ou adultos para onde eles não 
querem ir, um pouco contra vontade e quase em seu prejuízo, 
pois o manipulador deve tirar benefício da coisa. Quando 
você fala de manipulação, pretende antes referir-se à sua 
intervenção pessoal (17) num sentido que é o da liber­
tação da criança.
Nicole — Tu compreendes, se nos servíamos desta 
palavra, é porque no-la tinham lançado em rosto; pela nossa 
parte, nunca parámos de reflectir sobre o papel do pro­
fessor (*), de reler Freinet, que se opõe inteiramente ao 
abandono, à anarquia, ao deixar correr. O professor é um 
adulto, um adulto responsável. Aquilo a que alguns cha­
mam manipulação, chamamos nós o papel do professor. 
Temos empenho em ser adultos e em ser responsáveis.
Camille — Eu penso que se trata dum aspecto muito 
importante da pedagogia Freinet, e sentimo-lo profunda­
mente com as normalistas que temos em estágio. Uma 
delas quis fazer o que viu nas nossas classes, mas imediata­
mente (18). Conhecendo as crianças há dois ou três dias 
apenas, ela propôs-lhes que a tratassem por tu e que esta­
belecessem relações de camaradagem, sem suspeitar um 
instante que fosse que a simplicidade com as crianças não 
se impõe dum dia para o outro, que é preciso também obter 
o concurso dos pais (19). Quando os pais ficam surpreen­
didos, vêm procurar-me. Ainda recentemente uma mamã 
perguntou-me se eu achava que era interessante discutir 
com as crianças os acontecimentos do Chile (20). Era 
exacto. Falara-se do Chile e, do ponto de vista da neutra­
lidade, é indefensável abordar problemas políticos nas 
aulas. Foi muito simplesmente porque os correspondentes 
nos tinham escrito: Vocês fizeram greve por causa do Chile? 
Discutimos o assunto e apurou-se que não eram as crianças 
76 A PEDAGOGIA FREINET
que faziam a greve, mas sim os professores — e nós, preci­
samente, não a tínhamos feito porque não tínhamos 
recebido a circular em que era convocada essa greve. 
O rapazinho, cuja mãe me viera procurar, disse: — Óptimo!, 
teriamos jogado futebol. Eu não me pude impedir de dizer 
ao garoto: — Se entramos em greve, não é para que garotos 
como tu joguem futebol, é porque existem no Chile rapa­
zinhos como tu que neste momento choram a prisão ou o 
fuzilamento do seu pai ou da sua mãe no estádio de San­
tiago. O rapazinho e a mãe ficaram muito chocados. Estes 
contactos com os pais são frequentes nos domínios mais 
diversos.
QUEM SOU EU?
Nicole — Eu gostaria de voltar ao tema do «arranque» 
com o texto (21). Eu disse-te que esperava este ano a 
«faísca» com os meus novos alunos. Surpreendí outro dia 
algo de interessante. Tínhamos organizado uma viagem 
escolar para irmos visitar os nossos correspondentes e, 
antes da partida, há uma rapariguinha que diz: — Taivez 
fosse preciso que nos apresentássemos aos nossos corres­
pondentes para, quando chegarmos, eles já nos conhecerem 
um pouco. Houve então um outro que lhe cortou a palavra:
—Oh, sim, vamos tirar fotografias. Ao que ela respondeu:
— Como se fosse com a fotografia da cara de alguém que 
se pudesse saber quem se tem diante de si! Reagiu outro 
então dizendo:—Mas, com certeza, uma fotografia não 
mostra coisa nenhuma; seria preciso dizer qual é o nosso 
carácter, do que é que gostamos, quais os nossos gostos. 
Eles discutiram o assunto durante algum tempo, depois 
do que um rapazinho se levantou e interrogou em voz alta: 
Mas, quem sou eu? Eu aproveitei então a ocasião para 
dizer: — Quem sabe responder a esta pergunta? Alguns 
0 TEXTO LIVRE 77
ficaram estupefactos, outros ficaram pálidos ao darem-se 
conta de que não sabiam quem eram. Eram incapazes de 
responder a esta pergunta. Protesto duma rapariguinha: 
Ah bom, se é assim, eu recuso-me a fazer o meu texto; 
não me apresentarei porque tenho mau caracter, porque 
sou colérica, e se digo isso aos correspondentes ninguém 
gostará de mim. Eles tinham já antes efectuado comigo 
textos de «desbloqueio», mas neles não se ouvira ainda a 
voz do coração. Para que tal aconteça, é preciso que haja 
verdadeiramente uma provocação ou então que o clima 
mude.
Espontaneidade e exigência
Roger — Não haverá aqui dois aspectos que parecem 
paradoxais? Por um lado, procura-se libertar a voz do cora­
ção, portanto, o máximo de espontaneidade e de autenti­
cidade; por outro lado, procura-se obter o máximo de exi­
gência em relação a eles próprios mediante uma espécie 
de interiorização da nossa própria exigência.
NICOLE — Posso dizer-te que, por exemplo, quando uma 
pequenita me traz um desenho, neste período do ano, eu 
fico muito contente e tento depois propor-lhe uma valori­
zação do seu desenho (23). Aceito tudo, mas em relação 
a certas crianças que frequentaram a classe em vias de 
modernização, quando me trazem qualquer coisa de ver­
dadeiramente medíocre, recuso-me a aceitar:
— Régine, eu julgava que tu fazias coisas bonitas; é 
tudo o que tens para me trazer? É isto a exigência; havias 
de vê-los então a afastar-se! Observei mesmo crianças 
que se dirigem para mim, mas que a meio caminho voltam 
para trás. Ao fim dum certo tempo eles sabem que não 
vale a pena virem mostrar o que fizeram, e põem-se de 
novo ao trabalho.
78 A PEDAGOGIA FREINET
Camille — Uma vez que Nicole tem a seu cargo as 
salas de pintura a tinta da China e a tapeçaria, alunos 
meus vêm muitas vezes mostrar-me coisas e dizem-me: 
— Que pensas disto? Muitas vezes sinto-me um tanto 
embaraçada e digo-lhes: — Vai mostrá-lo à Nicole.
— Ah, não, pois da dirá que não está suficientemente 
bom.
Eles sabem já adiantadamente qual a crítica que ela 
vai fazer.
Nicole — É uma verdadeira desordem. É difícil, cor­
re-se o risco de ser traída pelas palavras, pois há toda uma 
questão de intuição e de relação com a criança. Aceitarei 
seja o que for dum pobre rapazinho que faça a sua pri­
meira oferta, mas já não aceitarei qualquer coisa de alguém 
que sendo capaz de dar o melhor de si próprio o não tenha 
feito. Houve uma garota que fez um lindo bordado, que 
ela iniciou durante as classes de Inverno do ano passado; 
insisto absolutamente em que ela o termine. No entanto, 
há zaragata todos os dias, pelo que eu ultimamente pro­
curei resolver a dificuldade de uma forma indirecta; as 
minhas raparigas querem costurar, e eu não tenho tempo 
para me ocupar de tudo, pois as crianças querem desen­
volver toda a espécie de actividades; chamei então Fátima, 
e disse-lhe: — Escuta, tu costuras verdadeiramente muito 
bem; se isso te agradar, podes ajudar-me ocupando-te do 
atelier de tapeçaria, impulsionando todos os trabalhos que 
das começaram. Desgraça! Havia uma Beatriz que tinha 
começado um belo ponto de cadeia duma maneira um 
tanto desajeitada. Fátima pegou na tesoura e desfez tudo, 
pois em seu entender não havia nada que se aproveitasse. 
Era uma coisa que eu nunca me teria permitido fazer. 
A outra garota não disse nada, Fátima recomeçou o tra­
balho e deu conselhos, pelo que se não recusou a participar.
O TEXTO LIVRE 79
Em contrapartida, esta mesma Fátima, quando lhe peço 
para acabar o seu trabalho, tem uma birra! Mas ela há-de 
lá chegar. Sinto que ela já está suficientemente preparada 
para retomar o seu bordado. É nisto que consiste ser exi­
gente: levar a cabo, concluir os trabalhos.
Camille — Em relação aos circuitos eléctricos, uma das 
minhas garotas não conseguia passar dum circuito com 
uma única lâmpada eléctrica. Eu disse-lhe:—Gostaria que 
me fizesses um circuito com duas lâmpadas e que elas se 
acendessem alter nadamente. Por agora, ela apenas conse­
gue acender as duas ao mesmo tempo. Ser exigente é 
esforçar-se por que uma criança se ultrapasse. Eles repe­
tem (24); sempre que se registou um êxito, permanece-se 
durante algum tempo (nisso consiste o tacteamento expe­
rimental (*)) no mesmo «patamar». Há garotos que trans­
põem rapidamente as etapas, e outros que sobem os 
«degraus» muito lentamente. Então, ser exigente é, tam­
bém, ajudar um garoto a ultrapassar a fase da repetição 
e a atingir o «degrau» superior.
O encontro com os criadores adultos
Nicole — Falou-se do «arranque» com o texto livre, 
mas, depois, o texto livre evolui em ligação com o texto 
de autor (25). É uma crítica que nos têm feito: vocês não 
lêem, limitam-se a repisar as mesmas coisas, infantilizam 
as crianças. Ora, na sala de aulas, encontram-se todos os 
livros de poesias que estavam em nossas casas, onde não 
tinham qualquer espécie de utilidade. E os discos? As crian­
ças são muito sensíveis à canção, e é importante que os 
discos estejam na classe à sua disposição. O que é muito 
curioso, é vermos as crianças, elas próprias criadoras no 
domínio da expressão literária, procurarem adultos cria­
80 A PEDAGOGIA FREINET
dores no mesmo domínio. Dá-se um verdadeiro encontro, 
eles aprendem espontaneamente os textos. Deixa de haver 
necessidade de proceder à leitura. Eles próprios lêem uma 
enorme quantidade de textos. A comunicação de textos 
à classe constitui um momento privilegiado que se pro­
longa por quatro ou cinco textos. Procura-se ir ao fundo 
das coisas, cada um esforça-se por precisar o seu próprio 
pensamento, por ver se todos compreenderam a mesma 
coisa, o que permite aos outros aprenderem a escutar, a 
responder e a dar outra orientação ao debate. É muito 
frequente a referência a textos de autores. É indispensável, 
e, tal como no domínio da pintura, a arte infantil não está 
isolada. Quando se leva crianças a visitar uma exposição, 
dá-se um encontro. Isto, para mim, é muito claro no domí­
nio da música. Com efeito, foram as crianças que me abri­
ram à música contemporânea que se faz neste momento, 
pois orientam-se nela com à-vontade. Quando eu aprendí 
piano, em casa, Debussy, Ravel, nem sequer se podia falar 
nisso. A minha cultura musical não ia além de Debussy e 
Ravel. Eu não podia ouvir a música contemporânea, e não 
havia nada que se pudesse fazer contra isso. Foi por inter­
médio das crianças que consegui perceber essa música e 
ter prazer na sua audição. Foram eles que me ajudaram 
a entrar nesse mundo.
Os seus alunos 
têm medo de si?
por Jacky Chassanne
É uma pergunta que me sinto tentado a reformular 
sob a forma de hipótese, recorrendo para tanto à minha 
experiência e a esta aventura:
— Têm medo de si.
Era dito por meias palavras, mas, mesmo assim, era 
dito.
Se havia uma confidência .para que eu não estava pre­
parado, era decerto essa! E o choque que isso provocou 
em mim!...
Já não sei muito bem como é que a coisa começou. 
Na realidade, terá sido já há muito tempo, pois alguns 
dos meus garotos passaram quatro anos comigo. Quatro 
anos que vivemos juntos, o que pressupõe numerosas tro­
cas, sobretudo de ordem afectiva. Então, passados quatro 
anos, ouve-se dizer...
Julgamos, primeiro, que se trata duma brincadeira, 
sobretudo quando o humor é de regra na classe, pelo menos 
entre alguns. Todavia, a expressão de certos rostos não 
engana: há alguma verdade no caso. Foi por ocasião dum 
conselho de cooperativa,e eu ficara na berlinda já não 
6
82 A PEDAGOGIA FREINET
sei por que razão; a verdade é que me fizeram sentir que 
eu era uma personagem intimidadora: Têm medo de si. 
Daí a pensar que eu estava a mais no grupo... Esse conse­
lho teve lugar num Sábado de manhã.
Ao meio-dia, depois de os garotos terem partido, desco­
bri em cima da minha mesa, dentro dum sobrescrito, o 
seguinte bilhete:
Sr. Chassanne
quando estamos diante de si sentimo-nos intimidados 
(Huguette e Maxime) quando o senhor passa diante de 
nós temos medo de si (Patrice e Maryse)
Temos menos medo da Sr.a Chassanne pois ela é mais 
carinhosa. Há também mais qualquer coisa mas não 
sabemos como explicar-lhe. (Patrice Maxime Huguette 
Maryse.)
Huguette
Uma rapariga grande, em tudo uma falsa débil, sen­
sível, particularmente teimosa. Em geral, fica melhor 
dizer-se «temperamental». Será que ela o foi? Já não o 
posso dizer com certeza. «Ajustámo-nos» logo um ao outro, 
o que tinha toda a aparência duma estima recíproca. Éra­
mos coniventes. Eu sentira que era preciso considerá-la 
como uma rapariga crescida e evitar qualquer choque, dei­
xá-la assumir as maiores responsabilidades, oferecer-lhe a 
livre escolha total das suas actividades. Consequência: 
adaptada ao meio classe que é o nosso, disortografia em 
regressão constante, sem nenhuma aprendizagem sistemá­
tica de ortografia. Quanto à estima... é o que poderão ver 
mais adiante!
Finalmente, eis um só exemplo escolhido dentre toda 
uma produção, o que esta «inadaptada» é capaz de nos ler, 
uma bela manhã, dum jacto:
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI?
A SENHORA FADA
Oh! senhora FADA
A senhora é tão BELA,, tão BELA!
Oh! senhora FADA
A senhora é tão LINDA, tão LINDA! 
Oh! senhora FADA
HÁ QUEM 
diga que a senhora não existe,
MAS ENTÃO 
que vi eu esta noite 
em sonhos
Via-a a si caminhando 
pelo céu estrelado;
Podem perguntá-lo 
à lua
que foi TESTEMUNHA.
Vivo, aberto, este texto pode parecer convencional, 
ainda afastado duma expressão autêntica aonde não aflo­
rem clichês. Talvez. Denota, porém, um equilíbrio, uma 
certa alegria de viver.
Maxime
Franzino, mas sólido, activo, hábil, cooperativo, enge­
nhoso. Cheio de qualidades, em suma. Passados quatro 
anos, sinto-o ainda dependente do adulto; essa necessidade 
de aprovação é sem dúvida alimentada pela atmosfera 
familiar onde Maxime não recebe todos os carinhos que o 
deviam rodear. É verdade que, já há alguns meses, ele 
vem mostrando má cara aos pais — é pelo menos o que 
estes dizem — e eu próprio me dou conta dum fenómeno 
84 A PEDAGOGIA FREINET
semelhante na escola. Uma libertação sempre mais evidente 
que me leva a levantar uma questão: o rapazinho Maxime 
está a tornar-se um rapaz crescido depois de quatro anos 
passados na nossa companhia? Ele é, todavia, muito autô­
nomo, dispõe de numerosas aptidões, é um líder da classe 
(não monopoliza a palavra, mas utiliza-a largamente, mas 
nem por isso se limita a falar: trabalha em numerosos 
ateliers, domina numerosas técnicas e contribui eficaz­
mente para o êxito dos seus camaradas graças aos seus 
conselhos judiciosos e eficientes). Ele, tão àvontade em 
palavras e em actos, não manifesta uma real autonomia. 
Mas, então, que se poderá esperar dos outros?
Maryse
É o seu segundo ano connosco. Intensa procura da 
aprovação ao princípio, atitude muito obsequiosa, difícil 
de aceitar, e que era preciso aceitar. Alguns meses basta­
ram para fazer de Maryse uma rapariguinha aberta, volun­
tariosa, aparentemente independente do adulto. Recor­
do-me dum depoimento dos pais que na altura me levara 
a encolher os ombros:
— O certo é que ela tem medo de si!
— Como? Vocês estão a brincar!
— Oh! sim, ela tem medo de si!
O que é, sem dúvida, digno de meditação... Terei eu 
nessa altura meditado o suficiente no caso? Não, muito 
provavelmente, pensando que a verdade era outra... Pois, 
finalmente, todo o comportamento de Maryse se transfor­
mava: ela gracejava, afirmava-se na escolha das suas acti- 
vidades e nem sempre reagia favoravelmente às minhas 
raras propostas de trabalho. Os pais comunicavam-me, 
OS SEUS ALUNOS TEM MEDO DE SI? 85
decerto, o estado de espírito aparente da sua filha, mas 
este deixara-se porventura impregnar pela percepção tradi­
cional do mestre-escola num meio rural, tal como a impõem 
os pais: Oh! tu vais-te encontrar com o teu professor, ele 
é que te vai ensinar! Era Maryse ou eram os pais que 
temiam o mestre-escola?
Patrice
Está na minha classe apenas há três meses. Acha-se 
ainda muito marcado pela sua passagem por outras classes: 
fugidio, sem iniciativa, falho de imaginação. A hipocrisia 
terá de passar, como aconteceu com os outros, mas só 
passará se eu deixar de ser visto como o detentor da auto­
ridade. Aos olhos das crianças, nós recebemos delegação 
da autoridade parental, e somos ainda outra coisa mais; 
como o analisa R. Cousinet: «Não só o professor considera 
desprezíveis as ocupações ordinárias dos alunos, não só 
o seu pensamento permanece ininteligível aos alunos, como 
ainda aquele se opõe à satisfação dos desejos infantis, des- 
trói como um castelo de cartas aquele mundo romanesco 
em que a criança se deleita, esforça-se por lhe impor moti­
vos de interesse que julga superiores. Acha-se, portanto, 
permanente e necessariamente ocupado em contrariar os 
desejos e os prazeres dos seus alunos, bem mais ainda do 
que os pais na educação familiar, uma vez que exige das 
crianças, para além das virtudes domésticas, virtudes esco­
lares (obediência, trabalho) que elas desconhecem por 
completo. À violência da educação acrescenta-se a da disci­
plina... O professor manda pelo prazer de mandar, é o 
mestre, ou seja, o inimigo... No espírito dos alunos, a 
escola é um conjunto de convenções pelas quais eles devem 
passar com uma atitude igualmente convencional, contra- 
feita, hipócrita, para se verem livres dela o mais depressa 
86 A PEDAGOGIA FREINET
possível; depois, o professor é para eles aquele que manda, 
e eles são os que obedecem, não podendo haver entre o 
primeiro e os segundos qualquer laço comum, qualquer 
aproximação possível.»
Eis uma análise que põe bem em evidência o fosso que 
a escola criou entre o adulto docente e a criança. Ê a 
detenção desta autoridade, e não apenas a dum pretenso 
«saber», que afasta o professor dos alunos. E é disso que 
se ressente o meu Patrice. Cabe-me a mim aproximar-me 
dele, subverter pela minha maneira de ser as convenções 
escolares que o levam a ter este comportamento. Será 
isso possível? Vou ficar-me por esta descrição sumária de 
cada criança. A classe, no entanto, não é apenas estas quatro 
individualidades, mas ainda Bernard, o ex-casmurro, Daniel- 
-o-bom-rapaz, Alain, o ex-«emparedado», etc. São, porém, 
aqueles quatro que trocam comigo, de sua livre vontade, as 
suas impressões sobre o «mestre-escola» que lhes coube 
em sorte.
O debate
Na segunda-feira, segundo uma proposta minha, o 
grupo dos quatro tenta aclarar a questão (isolando-se na 
cantina), mas não consegue desfazer o nó do problema. 
Ao fim duma hora, pedem a minha comparência: é preciso 
que eu participe no debate. Sinto, a partir desse momento, 
que devo ajudar as crianças a exprimirem-se; eles devem 
ter a percepção confusa de que chegamos a um momento 
muito importante da nossa vida comunitária. Vai seguir-se 
uma troca profunda, na qual terei ampla participação, pois 
sinto-me muito implicado, além de que as crianças espe­
ram de mim que eu as solicite, que as ajude a «dar à luz» 
os seus pensamentos.
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 87
Huguette— Na escola, na... eu tinha uma mestra, ela 
era má, e depois eu fiquei sempre com muito medo das 
outras professoras, porque me lembrava, porque a outra 
era de tal maneira má.
Eu — Tu tens a impressão que se passa a mesma coisa 
comigo.
Huguette — Não, não é a mesma coisa, mas eu lem­
bro-me, não o posso evitar. Isso mete-me medo. Consigo, 
tenho menos medo, mas não consigo tirar esta ideia da 
cabeça.
Eu — Portanto, você não se sente à-vontade naminha 
presença. Sente com os seus pais a mesma impressão que 
sente comigo?
Huguette — Com os meus pais é diferente, eu não 
tenho medo deles, eles não são maus. Não digo que o 
senhor seja mau, mas enfim, não é a mesma coisa! Não 
sei como é que me hei-de explicar.
Maxime — Eis o problema! Não sabemos como nos 
havemos de explicar.
Huguette fez uma breve referência a um tio de quem 
ela não gosta muito. Compara a sua reacção ao tio com 
a sua reacção perante mim — não se pode dizer que seja 
uma comparação muito lisonjeira! Depois, é a vez das 
crianças explicarem que a minha voz é «áspera». Do meu 
físico, é isso o que eles parecem considerar mais rebar- 
bativo.
Patrice — Por exemplo, quando nos encontramos aqui, 
no atelier, e que o senhor nos vem ver, ficamos sempre 
com medo de ser repreendidos, quando o vemos chegar.
88 A PEDAGOGIA FREINET
Eu — Porquê?
Patrice — Tenho medo de que o que fazer esteja mal 
feito, qualquer coisa como isso.
Eu — Tu pensas que é pelo facto de eu ser como sou 
que reages dessa maneira?
Patrice — Com o senhor X, passava-se a mesma coisa. 
Em cálculo, por exemplo, quando ele nos vinha ver, eu 
tinha medo que ele ralhasse comigo.
Eu — Tu também tens medo que eu ralhe contigo?
Patrice — Bem.. .hum, sim!
Maryse— Já com o senhor Y, quando fazíamos qual­
quer coisa que não estava bem, ele ralhava-nos muito, não 
nos explicava; por isso, quando estamos com outra pessoa, 
continuamos a ter medo.
Eu explico a Maryse que, ao longo de um ano e meio, 
não me recordo de a ter tratado com brusquidão, ou de 
me ter encolerizado por sua causa, ou de ter cometido 
uma injustiça particular.
Huguette — Patrice diz que tem medo de si porque 
escreve mal, e depois todo o resto. O meu caso é dife­
rente, eu não sinto o mesmo, mas mesmo assim tenho um 
certo medo do senhor.
Maryse — Por exemplo, começa-se na escola com 
alguém que é simpático, e depois crescemos e passamos 
a ter um professor ou uma professora mais severos, e depois 
destes um mais simpático.
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 89
Huguette — Sim, não sabemos como havemos de fazer. 
Passamos de uma pessoa bondosa para uma pessoa má.
Haxime — Temos medo, teremos medo, continuaremos 
a ter medo.
Maryse— Quando começámos, eles eram simpáticos a 
princípio, e depois, quando cometíamos erros, eles come­
çavam a tratar-nos com aspereza; começávamos, assim, a 
ter medo, e quanto mais eles nos ralhavam, mais aumen­
tava o nosso medo.
Eu — Era-te penoso vir para a escola?
■Maryse — Sim. Ralhavam connosco. À tarde, se não 
tínhamos tempo para fazer qualquer coisa, essa ideia não 
nos abandonava durante a noite e no dia seguinte tínhamos 
medo de ser repreendidos.
Huguette — É a mesma coisa, a mestra que eu tinha 
antes em... ela dizia-nos que não era isso, repreendía-nos, 
mas não nos dizia .porque é que não era isso. Éramos três 
companheiros muito unidos, andávamos sempre juntos. Por 
vezes, conversávamos durante as aulas; então, à tarde, tínha­
mos de partir uns depois dos outros, não nos podíamos ver, 
não podíamos falar uns com os outros (ao falar, nesse 
momento, Huguette chora).
Eu — Você tem a impressão de que tudo isso a mar­
cou. Tem a impresão de que eu sou o culpado da sua 
reacção.
Huguette — Um pouco menos.
Maryse — A coisa é um tanto diferente. Quando está­
vamos com M... ele era severo, mau; o senhor é menos 
severo.
90 A PEDAGOGIA FREINET
Maxime — Não é nada severo!
Eu (para Maryse) — Para ti, eu sou severo.
Maryse— Não, não é; dir-se-ia...
Patrice — Dir-se-ia que o senhor é severo, pois fala 
muito alto. Às vezes, julgamos que nos está a ralhar.
Huguette — Sobretudo quando nos fixa, perguntamo- 
-nos porquê.
Maryse — Julgamos ter feito alguma coisa de mal.
Eu — Vocês vêem no meu olhar como que um juízo. 
Podem-me dar um exemplo?
As crianças referem então um acontecimento que não 
tem aparentemente nada a ver com o que eles acabam de 
descrever; fazem alusão a tábuas de multiplicação que, de 
comum acordo, tínhamos combinado que eles aprenderiam, 
depois de se ter verificado uma lacuna. Confessam o seu 
«medo» nessa ocasião, uma vez que ninguém se sentiu 
à-vontade no assunto no dia seguinte.
Mostro-me muito surpreendido, convencido de nada ter 
imposto de maneira unilateral, o que é sem dúvida um erro. 
Uma sugestão, um olhar, uma observação adquirem muitas 
vezes um carácter obrigatório aos olhos da criança condi­
cionada à autoridade do adulto. Preciso, de passagem, que 
este tipo de «lição» a aprender é excepcional. Além disso, 
tratava-se duma decisão do grupo.
É também evocado o sacrossanto ditado da escola pri­
mária. Fazemos, também, às vezes, um pequeno exercício 
ortográfico que se parece com um ditado, por grupos de 
nivéis. Relativamente a este assunto, as crianças contam 
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 91
os maus tratos que anteriormente padeceram: cópia do 
ditado («SEIS VEZES», diz uma delas). Eu fico mais uma 
vez surpreendido: os nossos pequenos «ditados» passam-se 
de outra maneira! E, entre nós, não existe qualquer puni­
ção... E quando eu digo; —A escola, para Vocês, é o castigo, 
Maryse responde-me: — Não, nós gostamos de ir à escola, 
mas quando entramos para a camioneta, as pessoas dizem: 
«Olha os burrinhos», e outras coisas no género; ficamos 
então sem vontade de ir trabalhar, por nos dizerem isso.
Vi-me obrigado a truncar algumas intervenções, entre 
elas as minhas. Também não figuram na transição os 
numerosos silêncios e as repetições. Mas, o essencial ficou 
dito.
À saída do encontro, as crianças pediram-me que lhes 
falasse deles, já que eles tinham falado tanto de mim... 
O que eu fiz. Huguette pontuou a discussão exclamando, 
muito comovida: — Faz bem falarmos assim uns com os 
outros, faz bem...
Penso que o conteúdo deste debate é suficientemente 
eloquente para que eu não tenha necessidade de o comen­
tar demoradamente. Ao longo dele, transparece o carácter 
repressivo do aparelho escolar que tem origem em:
• o papel ideológico que a sociedade atribui à sua 
escola: «temos medo, teremos medo, continuaremos a ter 
medo»;
• o poder de coacção e violência de que se serve o 
corpo docente na sua grande maioria;
• a prova ao vivo, a prova sensível da segregação 
escolar, que a população reforça (a referência aos «bur­
rinhos»);
• a submissão dos pais — e portanto das crianças — 
à relação hierarquizada, ao saber imposto, esquemas cons­
tantemente perpetuados;
92 A PEDAGOGIA FREINET
• a prática da aprendizagem e do controle sistemá­
ticos e colectivos, dos grupos de nivéis;
• a obrigação escolar que, tal como é concebida, corta 
a escola da vida, independentemente da pedagogia prati­
cada. É possível que a expressão das crianças, «ter medo», 
reflicta um vocabulário restrito. O seu sentimento deveria 
talvez matizar-se consoante as situações. Mas não é evi­
dente.
Como, por que razão acreditar na autogestão?
As condições de vida do nosso grupo-classe derivam 
muito evidentemente das minhas opções pessoais. Depen­
dem, em seguida, da orientação colectiva, em que participo 
na medida das minhas opções pedagógicas e da minha per­
sonalidade.
Há perto de quatro anos que me oriento progressiva­
mente no sentido duma atitude não directiva. Já tive oca­
sião de tentar uma definição desta investigação pedagógica 
(L’Éducateur, II, 1972-73). Não vejo agora necessidade de 
voltar a abordar a fundo o problema. Saliento, no entanto, 
mais uma vez, quanto, em meu entender, são importantes 
as atitudes que reflectem um propósito de autenticidade, 
de empatia, de consideração positiva; quanto são essenciais, 
quer a participação do adulto na totalidade do seu ser, quer 
o respeito pela orientação de cada criança, pela démarche 
do grupo; estes dados podem afigurar-se contraditórios.
Como mostrar-se uma personagem segura de si sem 
se mostrar omnipotente ao ponto de travar a dinâmica do 
grupo de crianças? É esta uma contradição com que todos 
nos enfrentamos.
Muitos camaradas dizem não acreditar na não-directi- 
vidade. A fórmula acha-se demasiadoaviltada para que eu 
pense que cada um fala da mesma coisa. Afirmo que é 
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 93
totalmente inconsequente imaginar a auto-organização dos 
grupos — e em particular dos grupos de crianças — sem que 
se faça referência ao conceito de não-directividade.
Com efeito, não se pode imaginar um avanço em direc­
ção à auto gestão sem o estabelecimento duma relação não 
directiva. Há sempre indivíduos que dispõem do poder, 
para além mesmo da posição social que ocupam, pelo sim­
ples facto da sua personalidade, a começar por aqueles que 
sabem usar — e abusar — da palavra. Os grupos não podem 
autogerir-se sem que seja contestada esta «correlação de 
forças». É esta a situação que nós, mestres-escola, vivemos 
nas nossas classes, qualquer que seja a nossa pedagogia.
É preciso que me compreendam bem: quando me 
refiro ao conceito de não-directividade, não o faço insi­
nuando que seja preciso transpor para a classe, grupo de 
troca e de trabalho ao longo dum período extenso, a rela­
ção entre o terapeuta e o seu cliente tal como ela aparece 
na entrevista rogeriana. Esta relação específica está ligada 
a uma situação dada: o diálogo em tempo limitado. Por 
este facto, não pode aplicar-se completamente à vida dum 
grupo institucional. Podemos, no entanto, reter alguns dos 
seus aspectos, matizando-os embora.
A escuta empática conduz à compreensão do outro a 
partir do seu sistema de referência, o que introduz uma 
aceitação incondicional. O que é possível no âmbito duma 
conversação torna-se inaplicável, senão absurdo, no caso 
da orientação tacteante dum grupo-classe. Escuta empática, 
consideração positiva decerto, mas não num sentido abso­
luto: aos olhos das crianças o adulto seria assimilado a 
um fantoche. Eu também tenho as minhas opções, os meus 
desejos e limites, e faço questão de os exprimir com per­
suasão. Se eu sei escutar, aceitar, introduzo uma dinâmica 
que conduz cada um dos membros do grupo a aproximar-se 
desta atitude, mas com a condição de eu me mostrar con­
94 A PEDAGOGIA FREINET
gruente, isto é, dos meus actos, palavras, pensamentos, do 
meu comportamento inconsciente manifestarem uma uni­
dade.
Neste sentido, não-directividade não é sinônimo de dei­
xar correr, atitude que tem origem na recusa de influenciar 
as opções do grupo, na recusa de se opor a este para evitar 
qualquer diminuição do afecto (na realidade, este medo 
da agressividade provoca no adulto os seus .próprios aces­
sos de agressividade — não se pode ilimitadamente supor­
tar acções, atitudes que criam um desequilíbrio, um senti­
mento de insegurança, de negação de si. A reacção só se 
torna com isso mais violenta, o que confirma que o adulto 
só rejeitou o seu poder para beneficiar duma compensação 
afectiva).
Não, está fora de questão para mim pôr-me à inteira 
disposição das crianças, aceitar tudo o que deles provenha, 
esperar pelas suas opções e decisões em todas as circuns­
tâncias e não ser mais do que um simples instrumento para 
facilitar e auxiliar. Eu fiz as minhas opções, e se deixo 
as crianças exprimirem em primeiro lugar as suas, sei tam­
bém pesar sobre certas decisões, e eles aprendem a criticar 
as minhas propostas, a rejeitá-las, se for caso disso. Em 
contrapartida, tenho de evitar conservar uma posição pri­
vilegiada nas discussões, nas acções que o grupo empreende. 
Não se impor duma maneira unilateral. Qualquer decisão 
relativa ao grupo, por mínima que seja, deve ser por ele 
discutida. Eis como me aparece a minha maior exigência 
actual: obrigar-me a submeter-me a este poder conflitual, 
calando o meu saber adulto, sem justapor ambiguamente 
dois poderes, o das crianças e o meu, o que conduziría a 
delegar no grupo o poder de decisão e de acção que me 
agrada consoante as circunstâncias, a transgredir as deci­
sões do grupo, a antecipar-me a elas. Não existe um poder 
colectivo — que eu defino como devendo construir-se pela 
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 95
dinâmica dos conflitos e traduzir-se numa repartição pon­
derada das responsabilidades individuais — enquanto o 
adulto se substituir ao grupo e à criança em qualquer um 
dos diferentes estádios: propor, discutir, decidir, agir.
Terei eu sempre vivido assim a vida de grupo? Certa­
mente que não... Não basta ter consciência do papel repres­
sivo que desempenha o adulto responsável por um grupo 
de crianças. E é-me muito difícil perceber qual a dialéctica 
que poderia jugular e, depois, destruir esta correlação de 
forças.
Então, modestamente, procurei pôr em causa esta situa­
ção de facto. Quis deixar de ser visto como aquele que 
impunha, que decidia, por outras palavras, que dispuha 
da totalidade do poder. E vivi na ilusão deste poder aban­
donado. Na realidade, tratava-se antes dum poder alienado.
Tenho consciência de ter aplicado um modelo pedagó­
gico (as minhas técnicas, a minha organização do trabalho, 
etc.) e de ter querido, em seguida, durante alguns anos, 
com as mesmas crianças, delegar o meu poder de decisão 
no grupo, pensando assim destruir a relação de autoridade 
que preexistia à nossa vida comum. Sei agora que não fui 
suficientemente longe nesta via, pois continuo a ser visto 
como o representante do mundo dos adultos, isto é, dum 
universo de coacções e violências, de tabos, de repressão 
dos desejos.
Porquê?
Pela minha parte, fixar-me-ei numa atitude que nos é 
comum a todos e que se me afigura ser uma das explica­
ções da situação que acabo de descrever. Quero falar da 
minha implicação excessiva no processo de educação, na 
vida da minha classe.
Quer eu queira quer não, a minha classe é uma coisa 
que me pertence, e o apego que eu tenho à pedagogia que 
pratico é disso uma primeira prova. E visto que a minha 
96 A PEDAGOGIA FREINET
classe, a pedagogia, é uma parte da minha vida, um dos 
aspectos do meu engajamento político, eu implico-me enor­
memente nos meus actos de educador. Dou-me bem conta 
de que é aí que reside a dificuldade da atitude não direc- 
tiva e, consequentemente, da autogestão na escola.
Como se manifestam esta implicação, esta sobrecarga 
afectiva? Procedendo a um regresso ao meu próprio pas­
sado, proponho-vos uma enumeração de factos, mais ou 
menos cronológicos.
• Recordo-me dos primeiros textos livres nascidos na 
minha classe. Especialmente dum deles, de estilo narra­
tivo. Estava escrito com grande correcção. No entanto, 
muito imbuído dos preconceitos escolásticos, eu influen­
ciara suficientemente tanto o autor como a classe para 
que o texto aparecesse enfeitado com uma conclusão em 
que se manifestava mais o adulto do que a criança...
• Eu tinha admirado bonitas pinturas nas classes dos 
meus novos camaradas da Escola Moderna; não seriam os 
meus garotos capazes de fazer o mesmo? Demasiado apres­
sado, ávido, sem dúvida, de belas obras, eu fornecera mode­
los (adultos, se faz favor, e por vezes infantis) aos meus 
alunos. E, posso dizê-lo, não para sugerir uma técnica mas 
para propor um conteúdo, um tema que fosse bonito!
• Ah! as primeiras conferências. Como eu me mos­
trei rígido e pouco tolerante! Como eu queria que a coisa 
«andasse» imediatamente, que eles soltassem a língua! Mas 
foi por certo um esforço hesitante, tímido, e mal documen­
tado: à medida das possibilidades e da falta de hábito das 
crianças. Eu suportava-o, porém, mal.
• Atitude idêntica em relação aos nossos «presidentes 
de dia». Fora eu quem aplicara essa estrutura, e estava 
talvez imbuído dum terrível preconceito: um responsável 
de dia não seria, então, o mestre por procuração?
OS SEUS ALUNOS TÊM MEDO DE SI? 97
• Terei sem dúvida manipulado muitas vezes o grupo, 
ao mesmo tempo na escolha das formas de trabalho, dos 
assuntos, dos suportes, porque eu, o adulto, tinha um objec­
tivo a atingir: ter «bom êxito» com uma classe, e talvez, 
por vezes, o desejo de alardear um triunfo.
A nossa responsabilidade de professor não apresenta 
muitas vezes essa dimensão? Para além das técnicas e da 
expressão que elas permitem, eu tenho consciência da mes­
maimplicação na orientação institucional da classe. Como 
quero limitar o meu depoimento, farei apenas duas obser­
vações:
• Considero ser inteiramente legítimo encolerizar-se. 
Isso aconteceu-me, e há-de me acontecer mais vezes. 
É muito simplesmente um fenômeno de autenticidade. Mas 
há cólera e cólera. Há aquela que exprime uma vontade 
de poder e que visa a fazer dobrar a vontade dum indivíduo 
ou dum grupo.
Há aqueloutra que é a expressão de si, da mesma 
maneira que a outra, mas cujo interesse fica por aí; ponho- 
-me em cólera, exprimo uma impaciência, uma opção pes­
soal, mas, passada a sua manifestação, não a converto num 
«diktat». Acalmo-me e em caso algum aceito que uma deci­
são ou uma reacção intervenham a partir desta manifesta­
ção passional. Cabe ao indivíduo ou ao grupo reflectir, dis­
cutir, opor-se, aplicar-se.
• Consequência da minha evolução, desta tomada de 
consciência, «sorrio» agora de algumas das minhas atitudes 
que me levaram a contrariar a evolução do grupo e de 
certas crianças, pois não me pude impedir de fazer preva­
lecer a minha visão do desenvolvimento desta ou daquela 
actividade que se me afigurava mal organizada, pouco estru­
turada, demasiado lenta ou demasiado desajeitada. Somos 
nós que conduzimos a classe, ou são as crianças? Por isso, 
quando oiço um camarada queixar-se do funcionamento 
7
98 A PEDAGOGIA FREINET
duma actividade na sua classe (a conversação, por exem­
plo), tenho um sobressalto interior; porque, enfim, é o 
adulto ou é o grupo que deve decidir do que é bom ou mau? 
Não será uma implicação excessiva o que nos leva a emitir 
um juízo de valor sobre a natureza e a importância das 
actividades dos nossos garotos? Somos nós educadores 
conscientes, ou manipuladores?
Eis onde situo as raízes dos nossos abusos de poder, 
fazendo fé na minha experiência.
A confiança que depositamos na evolução positiva da 
criança, com base no seu tacteamento experimental, na 
expressão livre, deve desembocar no assumir da totalidade 
da vida da classe por parte do grupo. Caso contrário, não 
pomos fundamentalmente em causa a escola da sociedade 
capitalista. Pois, afinal, que visamos nós?
Em direcção à autogestão.
A memória das actividades
por Jean Le Gal
— Josiane, não devias tu apresentar-nos uma canta para 
os nossos correspondentes de Nantes, esta tarde?
— Oh! esqueci-me de reco piá-la!
— Evelyne, perguntaste à tua mãezinha qual o preço 
exacto do caderno de que falas no teu texto cifrado?
— Oh! esqueci-me! Perguntarei esta tarde.
— Teresa, começaste a preparar a tua exposição sobre 
o gato?
— Oh! esqueci-me! Vou começar amanhã.
«Esqueci-me»; «esqueci-me»; «esqueci-me!». Neste prin­
cípio do ano, é muitas vezes esta a resposta que obtenho, 
no conselho da tarde, quando recordo a cada um as suas 
decisões relativamente a actividades. Evidentemente, eu 
poderia fazê-lo de manhã e assim tudo correría da melhor 
maneira, mas isso estaria em contradição com a minha 
hipótese: a criança e o grupo devem dispensar a tutela do 
adulto.
A criança, para tanto, deve adquirir pouco a pouco 
uma autonomia que lhe permite organizar-se sozinha tendo 
em vista as suas actividades pessoais. Deve lembrar-se dos 
100 A PEDAGOGIA FREINET
seus projectos, dos trabalhos que encetou, dos seus tactea- 
mentos, das regras de funcionamento dos diferentes ateliers: 
O que é que eu previ? O que é que eu comecei? O que é 
que devo terminar? A que horas devo parar?
Deve também, para que o grupo avance em direcção à 
autogestão, ser capaz de se lembrar dos acontecimentos do 
dia e da semana, dos projectos a curto e a longo prazo.
A memória das actividades parece-me, portanto, ser um 
dos factores essenciais para uma prática pedagógica auto- 
gestionária; por isso ela veio tomar lugar entre todo um 
conjunto de hipóteses de trabalho que eu formulei, nesse 
ano, no âmbito duma experiência intitulada autogestão 
fragmentada.
Em vez de arrancar, deixando as crianças tactearem 
numa situação-problema global, démarche relatada em 
Vers l'autogestion*, preferi instruí-las na autogestão levan­
do-as a fazer as experiências que correspondem às minhas 
hipóteses de que passo a expor algumas.
Para que uma criança possa participar numa experiên­
cia de autogestão, deve ser capaz:
• de se exprimir no seio dum grupo;
• de fazer propostas claras e explicitar as suas impli­
cações;
• de participar nos debates, portanto, de seguir o fio 
do discurso, de dar a sua opinião;
• de fazer uma escolha consciente;
• de analisar uma situação global;
• de animar um conselho;
• de respeitar as decisões colectivas;
• de se recordar das actividades.
«Recordar-se das actividades». É a maneira a longo 
prazo que entra aqui em jogo, uma memória que é, diz-nos 
EM DIRECÇÃO A AUTOGESTAO 101
Michel Lobrot', provocada por desejos muito profundos 
e muito intensos do indivíduo... uma memória que depende 
exclusivamente do próprio indivíduo, isto é, da sua vontade 
de se recordar, da sua vontade de «reter» (na memória). 
E, como todas as outras, esta actividade enraíza-se na afec- 
tividade do sujeito: a dependência da memória em relação 
à afectividade do sujeito constitui um ponto central na 
nossa teoria.
A atenção e a vontade necessárias só nascerão duma 
necessidade fortemente sentida; é por isso que evito ser 
eu a memória da criança, limitando-me actualmente em 
fazer-lhe tomar consciência dos seus esquecimentos. Evito, 
também, propor-lhe meios tais como: agenda, plano de 
trabalho, se bem que eu pense que a capacidade de memo­
rização das crianças — e a minha — não é de molde a per­
mitir recordar-se das múltiplas actividades, acontecimentos, 
decisões, da nossa vida cooperativa.
As nossas actividades podem classificar-se grosseira­
mente em:
1 Lobrot M., L'intelligence et ses formes, Dunod, 1973.
102 A PEDAGOGIA FREINET
Face à carência da memória das actividades, pode 
optar-se entre duas atitudes:
A
Ajudar as crianças e o grupo-olasse propondo utensílios 
que correspondam às necessidades: plannings, quadros, plano 
de trabalho individual, etc.
Esta solução permite encontrar mais rapidamente uma 
organização funcional.
É a via da eficácia imediata, é a actividade antes de tudo, 
o êxito do projecto primeiramente decidido; mas é o educador 
que continua a ser o criador da organização.
É ele que faculta os meios para a colectividade escoilhida 
pelas crianças.
A coisa funciona!!!
As crianças são felizes... e passivas.
B
Levar as crianças a criar os utensílios que lhes são 
necessários.
Esta solução privilegia a imaginação, a invenção, a cria­
ção, levando as crianças a chamar a si a organização do 
trabalho.
É a via do longo tacteamento experimental, em que o 
educador terá de funcionar como um «estimulador» de criação.
Ele continuará a ser, numa situação de compromisso, a 
memória do grupo, enquanto este não tiver encontrado os seus 
instrumentos, relativamente às actividades de execução urgente.
Exemplo: receber os correspondentes, requisição de mate­
riais, contrato relacional com uma outra classe da escola.
Tanto no ano passado como neste ano, eu decidira levar 
as crianças a criar utensílios de memorização.
Eis um balanço não exaustivo desta experiência:
EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 103
Actividades de decisão colectiva
Tomada de consciência duma falta
No conselho de 22 de Outubro, peço a cada um para 
que procure lembrar-se das «actividades de decisão colec­
tiva» que foram iniciadas nas semanas precedentes e que 
ainda não foram dadas por concluídas. Não existe na classe 
nenhum «instrumento» que venha em auxílio da memória, 
pelo que as crianças só podem apelar para a sua capaci­
dade de retenção. A maior parte delas encontra uma ou 
duas actividades; apenas Eliane, a mais antiga, refere seis, 
enquanto duas crianças não se lembram de nenhuma.
Por outro lado, nove num total de quinze confundem 
actividades de decisão colectiva com actividades de decisão 
pessoal.
Escrevo no quadro o que se pôde apurar:
1. As contas da cooperativa:
jornais calendárioscompras compra
venda venda
geleia 
fabrico 
venda
2. As questões da caixa de questões: exposição no 
papel.
3. O jornal.
4. Os álbuns: decisão de inventar contos para os mais 
pequenos do C. P.
5. A escultura.
6. Os testes de cálculo para a repartição dos cadernos 
autocorrectivos.
7. Fazer vinho.
8. Inventário das encomendas recebidas da Pébéo.
104 A PEDAGOGIA FREINET
Pergunto: —Como poderiamos nós lembrar-nos do que 
foi decidido e do que foi iniciado relativamente às activi- 
dades de decisão coleativa, às actividades decididas por 
todos?
São apresentadas diversas propostas:
Eliane: poderia escrever-se numa grande folha que 
seria pendurada na parede.
Teresa (antiga): poderia pôr-se a folha por cima do 
quadro para que se visse melhor.
Didier: poderia escrever-se numa agenda.
Após discussão, decidimos:
As actividades decididas colectivamente serão inscritas 
numa grande folha por cima do quadro. Quando elas tive-
EM DIRECÇÃO A AUTOGESTAO 105
ram sido iniciadas, indicá-lo-emos com um +. Um vez ter­
minadas, acrescentaremos um O.
A folha é posta à experiência durante três semanas.
No conselho de segunda-feira, 19 de Novembro, eu volto 
a perguntar-lhes pelas actividades começadas, desta vez com 
o auxílio da folha e ao plano de trabalho que figuram no 
quadro.
Balanço
Balanço relativo a 17 actividades começadas:
1. Ordenação das folhas do classificador.
2. Desenho: criação e envio para uma compilação 
departamental ¹.
3. Poema: criação e envio para uma compilação 
departamental ¹.
4. Álbum para os mais pequenos.
5. Estudo dum alpendre.
6. Exposição sobre o papel entregue.
7. Textos recebidos da Bélgica; carta-resposta.
8. Estudo da hora.
9. Continuar o jornal n.º 2.
10. Cartas de Natal.
11. Pintar as pranchetas do restaurante escolar.
12. Mudar alguns ateliers da escola.
13. Escrever os artigos previstos sobre a nossa vida.
14. Calcular os custos do filme.
15. Organizar a visita do inspector.
16. Envio do «Moulin de Papier» (Moinho de Papel) 
para a biblioteca municipal.
2
1 Os grupos departamentais organizam colectas de desenhos 
ou de textos das classes Freinet do departamento para realizar 
com eles exposições.
2 A classe criou as ilustrações duma antologia de poemas de 
Maurice Carême.
106 A PEDAGOGIA FREINET
17. Encomendas para os nossos correspondentes de 
Pornic.
Plano de trabalho da semana
Paralelamente a esta «memória das actividades», nós 
ocupamo-nos da repartição das actividades durante a 
semana, repartição essa que apela para a noção de DURA- 
ÇÃO DAS ACTIVIDADES.
Durante o último conselho, dei-me conta de dois obstá­
culos que têm de ser superados:
• A incapacidade de avaliar a duração, que diminuirá 
com a experiência e o trabalho imediato.
• Incapacidade de um número considerável de crian­
ças para escutar outrem, ou, a partir do que os outros 
disseram, para fazer avançar a resolução do problema dis­
cutido. Neste caso, conto com a experiência e com os trei­
nos específicos que procuro ministrar-lhes.
Evolução
A folha mural para inscrição das actividades colectivas 
será conservada até ao fim do ano e, no fim de Fevereiro, 
utilizada de maneira satisfatória por todas as crianças.
EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 107
Actividades de decisão pessoal
Tomada de consciência da carência
A carência assinalada no que toca à «memória das 
actividades de decisão colectiva» verifica-se também em 
relação às «actividades de decisão pessoal». Por isso, no 
conselho de 22 de Outubro, eu pergunto:
— Como é que nos poderiamos lembrar daquilo que 
começámos pessoalmente?
Seguiu-se um debate:
Helena — Escrevêmo-lo numa folha e colamos a folha 
na nossa carteira.
Sônia — Penduramos a folha ao pescoço com um cordel.
Didier — Penduramos a folha na estante. (Temos um 
móvel com compartimentos para cada um.)
Eliane — Sim, mas teremos de nos deslocar para a 
irmos ver. Proponho que a colemos num cartão. Podere­
mos pôr o cartão na nossa carteira.
Evelyne — Eu proponho que colemos a folha na nossa 
canteira com fita-cola.
Gérard — Sim, mas os alunos do estudo irão rasgá-las.
Decidimos: cada um escreverá numa folha as activi­
dades que tenha começado. Organizará a sua folha como 
quiser. As folhas serão coladas num cartão.
Inter-relação instrumento-uso
A invenção dum instrumento funcional é necessária e 
está em inter-relação com o uso que dele é feito.
108 A PEDAGOGIA FREINET
As actividades têm lugar colectivamente, por equipas, 
ou, outras vezes, individualmente.
Durante as sessões de «ateliers permanentes», cada 
criança organiza ela própria o seu tempo. O animador de 
dia é responsável pelas actividades; eu, pela minha parte, 
auxilio aqueles que me pedem ajuda.
No princípio de Novembro apareceu um elemento 
novo: o ATELIER OBRIGATÓRIO, em consequência duma 
decisão colectiva.
Eis as notas tomadas por um estagiário:
Actividades individuais de terça-feira, 6 de Novembro
J. Le Gal pede a cada um para ler a sua folha, depois 
do que inscreve no quadro as actividades obrigatórias. 
Helena propõe que se represente as A. O. por um círculo.
As crianças precipitam-se logo à primeira sobre as 
fichas de cálculo (ver documento anexo).
Procura efectiva por parte de alguns, desinteresse por 
parte de outros.
O interesse pelo trabalho individual é compreensível. 
É mais fácil mover-se individualmente do que fazer reagir 
uma equipa de três (tais como as de pintura).
EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 109
Note-se que ninguém se serve dos elementos inscritos 
no quadro para se organizar.
Atitude do professor
Permissiva. Reserva-se um certo tempo (conselho) 
para fazer tomar consciência aos alunos do tempo perdido, 
do respeito dos compromissos assumidos para com a cozi­
nheira; com efeito, esta fizera um pedido a um conselho: 
a pintura, com carácter de urgência, das pranchetas desti­
nadas ao restaurante, escolar. Aceitação unânime.
Resposta quase geral:
1. Esquecêmo-nos.
2. Julgávamos que o mestre nos ia dizer quando devía­
mos começar. Faltou nesse dia um animador de dia, não 
previsto pelo conselho. Não havia, portanto, ninguém para 
recordar as decisões tomadas.
A atitude do mestre influi sobre o comportamento das 
crianças:
1. Se ele toma a iniciativa — eficácia — resultados 
imediatos (???).
2. Se deixa a iniciativa à criança — expectativa — 
tomada de consciência da necessidade de assumir a respon­
sabilidade das próprias necessidades — resultados a mais 
longo prazo (talvez um cunho mais profundo?).
Quinta-feira, 8 de Novembro, manhã
O conselho de terça-feira levantara a dificuldade expe­
rimentada para passar da fase da palavra à fase da reali­
zação. Estaríamos em direito de esperar esta manhã uma 
reacção inteiramente diferente a propósito das actividades 
obrigatórias. Só um grupo conseguiu decidir-se a efectuar 
110 A PEDAGOGIA FREINET
os trabalhos de pintura, ocupando-se os outros noutras 
actividades individuais (cartas, textos, desenhos, cálculo 
autocorreativo, oficina comercial).
— Esquecimento geral do trabalho escolhido pelas pró­
prias crianças como o «mais importante».
— Possibilidade de se assumir individualmente, mas 
não ao nível dum grupo.
Dificuldade para se referir às indicações inscritas no 
quadro (7 das 15 crianças têm ainda dificuldades de com­
preensão da leitura).
— O exemplo dum grupo não basta para desencadear 
a memória e o impulso necessário para o lançamento da 
actividade obrigatória e urgente.
Tarde
Ê necessária a intervenção do professor para lançar a 
actividade, e gera-se então toda uma precipitação. Todos 
se precipitam sobre as fichas.
Dois grupos passam rapidamente à parte manual, 
enquanto outros dois grupos não conseguem desenvenci- 
Ihar-se das fichas: dificuldades de compreensão, distracção, 
hesitação em pedir o auxílio do professor.
No conselho que teve lugar no fim da sessão, todos 
parecem ter compreendido o processo das actividades obri­
gatórias.
FICHA PARA A PINTURA DAS PRANCHETAS
1. Cada equipa decide da ordem das seis camadas:
EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 111
2. Cada equipaestabelece o seu calendário de traba­
lho, sabendo que são precisas 24 h entre cada camada e que 
uma camada seca em 8 h.
3. Pegar numa folha de lixa e cortá-la em três. Cada 
um pule uma parte da prancheta.
4. Quando a prancheta estiver bem polida, pegar na 
tinta branca e aplicar uma camada sobre um dos lados, 
tendo o cuidado de cruzar as pinceladas.
5. Cada equipa segue depois o seu calendário.
6. Os pincéis são limpos com white-spirit depois de 
cada camada.
Sexta-feira, 9 de Novembro
Todos se precipitaram sobre as pranchas, os pincéis, a 
pintura.
Esta tarde, as actividades obrigatórias são em número 
de três.
112 A PEDAGOGIA FREINET
Notamos uma dificuldade quase geral para passar 
sozinho dum trabalho a outro.
Evolução do instrumento
Depois desta semana, observo um processo inverso: 
certas crianças aguardam que eu inscreva no quadro as 
actividades que terão de fazer e avançam, portanto, para 
um condicionamento que as conduziría de novo à passivi­
dade individual, uma vez que o grupo existe para lhes dar 
directivas.
No último conselho, propus que doravante cada um 
inscrevesse no seu «plano de trabalho» (palavra não ainda 
utilizada) as actividades que pessoalmente lhe foram atri­
buídas, após as decisões colectivas.
No conjunto das actividades começadas, procurámos 
aquelas que se fariam:
• em conjunto;
• por equipa;
• individualmente,
e em consequência da tomada de consciência de que 
nos faltava tempo para realizarmos todos os nossos pro­
jectos:
• as que só se podiam fazer na escola;
• as que podiam ser feitas em casa.
Terça-feira, 20 de Novembro
Discutimos em conjunto COMO ORGANIZAR A NOSSA 
FOLHA PARA MELHOR NOS RECORDARMOS DAS NOS­
SAS ACTIVIDADES PESSOAIS?
Encontrámos actividades obrigatórias decorrentes das 
nossas decisões colectivas:
• Projecto de desenho, textos, poesias.
EM DIRECÇÃO À AUTOGESTÃO 113
• Caderno de cálculo, pulseiras para a dança destina­
das às raparigas.
• Treinar-se na leitura.
• Escrever um artigo à escolha: coscorões, castanhas, 
visita do senhor Le Coz, o novo fogão de sala, filme sobre 
os répteis.
Precisei a decisão colectiva que compromete o grupo 
inteiro e a decisão pessoal que só a mim me obriga.
Cada um procurou, então, uma organização da sua folha 
que lhe permitisse VER claramente as suas actividades e... 
eu próprio também fiz a minha folha, pois tenho de possuir 
uma visão clara dos nossos múltiplos projectos e activida­
des... o que não é coisa fácil.
Nas duas semanas que se seguem, noto uma nítida 
progressão na organização e na utilização do sumário, mas 
as duas semanas a seguir ao recomeço das aulas em Janeiro, 
apontam para um retrocesso nos dois planos.
Debate sobre o instrumento
É por essa razão que proponho um debate sobre o 
problema:
— Que pensam vocês deste cartão-sumário que expe­
rimentámos?
Helena — Eu penso que é uma coisa boa. As folhas 
fioam com os cantos todos quebrados.
Eliane — Eu penso que é uma coisa boa, mas há quem 
não consulte com frequência o cartão.
Evelyne — Seria preciso que nos servíssemos dele mais 
vezes, e, depois, que prestássemos atenção ao que lá vem.
Didier — É bom, porque quando nos esquecemos pode­
mos olhar para lá. Mas é um pouco grande, o que atra­
vanca a canteira.
Josiane — Eu não acho que seja bom, pois preferiría 
ter uma agenda, uma vez que o cartão é muito incômodo.
Proponho então que, por grupos de cinco, as crianças 
8
114 A PEDAGOGIA FREINET
procurem um instrumento mais cómodo. Após apresenta­
ção e discussão, eles escolhem cadernos cortados em dois, 
por preocupação de economia.
O plano de trabalho
No mês de Fevereiro, Eliane propõe que cada um 
possua a mesma folha, pois os mais pequenos não conse­
guem organizar sozinhos como deve ser o seu cartão-sumá-
EM DIRECÇÃO A AUTOGESTAO 115
rio. Após uma longa discussão, a sua proposta é adoptada 
e inventamos em conjunto o nosso «plano de trabalho».
Em relação a todas as actividades manuais e pictóri­
cas, decidimos utilizar um planning metálico colectivo.
Estas duas decisões serão mantidas até ao fim do ano 
e permitirão um bom funcionamento das actividades.
A única conclusão que tiro actualmente desta experiên­
cia é a necessidade de a recomeçar este ano, mas procurando 
acompanhar melhor a evolução das crianças e a evolução 
dos instrumentos.
Vou tentar anotar o máximo de observações, mas isso 
não é coisa fácil — os práticos que nós somos deixamo-nos 
envolver muito no «vivido» da classe.
É possível ser-se ao mesmo tempo actor e observador?
Paralelamente à procura de instrumentos funcionais 
de memorização, eu gostaria de descobrir meios de aumen­
tar a capacidade das crianças no plano da memória.
Penso propor-lhes uma folha onde, todas as tardes, eles 
anotariam os grandes momentos e os acontecimentos do 
dia. Juntos, faríamos periodicamente o balanço para ver 
se este meio é eficaz.
No domínio da memória, como nos outros, dois facto- 
res parecem-me essenciais: a motivação das crianças e as 
minhas capacidades para poder responder às perguntas.
Das caixas de trabalho 
ao trabalho em sala 
de trabalho (em geral)
por Albert Cuchet 
(reportagem de Claude Charbonnier)
Albert Cuchet ensina num grupo escolar de Echirolles (arra­
balde popular de Grenoble).
A classe compreende 28 alunos: 7 C.M. 2 e 21 C. M. 1, dos quais 
9 alunos, «segundo as normas oficiais», estão «atrasados» e 1 «adian­
tado».
Caixas de trabalho
Claude Charbonnier— Os teus alunos de C.M. 1- 
-C.M. 2 utilizam frequentemente as «caixas de trabalho»; 
tu próprio és um adepto fervoroso deste instrumento. Antes 
que se discuta de maneira mais precisa, gostaria que fizes­
ses de algum modo o ponto da situação, que digas quais 
são as caixas de que as crianças gostam.
Albert Cuchet — O que tem muito êxito é a «caixa 
dos imãs», a da electricidade, a caixa com que se pode 
aquecer água — andam aos encontrões por sua causa no 
princípio do ano—, a que permite soldar e, depois, a que 
permite «brincar» com a água (medida das capacidades, 
transvasamentos, sifões, vasos comunicantes, etc.). São 
estas as mais apreciadas, as que as crianças preferem...
— E as outras, quais são?
118 A PEDAGOGIA FREINET
— Temos lentes, uma caixa de «molas», uma de «espe­
lhos», uma constituída por engrenagens, e também broquéis, 
máquinas de transformar (caixa de «matemáticas»), uma 
caixa que permite uma primeira abordagem da noção de 
forças e de travessão (de balança), etc. Mas, num primeiro 
tempo, os garotos frequentam-nas menos.
— Como são constituídas estas caixas?
— Eu forneço o material em bruto. O que me parece 
muito interessante, pois permite à criança uma margem 
mais ampla de pesquisa. Além disso, permite um diálogo 
com os outros. Depois de a criança ter trabalhado durante 
algum tempo com a sua caixa, depois de ter encontrado 
qualquer coisa, ou de não saber já o que fazer a seguir, 
discute-se em conjunto. E, com as ideias de todos, conse­
gue-se organizar algo que se parece com uma aproximação 
científica.
Nada, em meu entender, pode substituir a caixa, e, aten­
dendo às condições que são as nossas, em classe urbana, 
creio que ela representa a única solução para que as crian­
ças possam experimentar.
— Sim, mas, por exemplo, a tua caixa «imanes» não 
contém apenas ímanes. Encontra-se nela toda uma varie­
dade de materiais diferentes (bronze, ferro, alumínio, 
madeira, etc.).
Sim, isso é importante. É por essa razão que, na caixa 
de lentes, creio que vou introduzir, para além da vela e do 
écran, uma régua móvel que incitará a medir, abrindo, por­
tanto, uma pista para investigações. Gostaria, também, de 
nela introduzir tubos que, encaixando-se uns nos outros, 
permitem montar as lentes, fazer lunetas...
— Havia muitos garotos no filicortador *. Muitos pas­
saram por lá, enquanto outros aguardam a sua vez. Este 
entusiasmo é assaz, impressionante.
DAS CAIXAS DE TRABALHO 119
— Sim! O filicortador conhece um enorme êxito; fazem 
bicha por sua causa, até mesmo as crianças que já estive­
ram comigo no anopassado.
Eles saem-se bem: fazem maquetas, maquetas histó­
ricas, por exemplo, coisas muito simples a princípio para 
evitar o insucesso e o consequente desânimo. Seguidamente, 
tento incitá-los a construir maquetas * (modelos) que 
funcionam (motor a dois tempos, * etc.). A partir destes 
modelos, discute-se a respectiva história, procura-se situá-la 
no tempo, procura-se conhecer a evolução das coisas. Mas, 
na realidade, o que este êxito do filicortador traduz, é essen­
cialmente, em meu entender, uma necessidade de trabalho 
manual (26) que eles nem sempre podem satisfazer em 
suas casas.
— Mas eles talvez possuam mecanos (brinquedo), não?
— Sim! Eu próprio tenho peças de mecano — roldanas, 
engrenagens. Mas o êxito destas é muito menor, talvez por­
que os garotos as possuam em suas casas, talvez porque eu 
as não tenha sabido introduzir bem na classe. O que eu 
observo, é que eles inclinam-se de preferência para aquilo 
que não têm o hábito de fazer ou de tocar: fazer ferver 
água, acender fósforos (ao princípio do ano, uma caixa das 
grandes não dura uma semana), acender o fogareiro de 
álcool, etc.
Isso dura um trimestre. É o trimestre da descoberta. 
Eu tenho uma balança, mas como existem balanças por 
todo o lado, eles só raramente lhe dão atenção. Depois do 
primeiro trimestre, as coisas evoluem e consegue ir-se mais 
longe.
— Ao observá-los, eu tive a impressão <de que o filicor­
tador apresentava um duplo aspecto apaixonanite: eles cria­
vam qualquer coisa, mas, ao mesmo tempo, davam a 
impressão de experimentar um certo «prazer proibido»; não 
havia ninguém para lhes dizer: «atenção, isso queima», «não
120 A PEDAGOGIA FREINET
faças asneira», etc., e, ao mesmo tempo, eles mostravam-se 
muito prudentes.
— Sim, esse género de prazer existe efectivamente. Pas­
sa-se a mesma coisa com a água, com a qual eles podem 
este ano fazer o que quiserem, pois têm o corredor à sua 
inteira disposição; procedem a numerosas experiências: 
transvasar, comparar volumes, brincar com os tubos, fabri­
car vasos comunicantes, sifões, estudar a flutuação dos 
corpos... Experiências* muito simples, mas que lhes pro­
porcionam um prazer intenso, talvez porque só ali as 
possam fazer.
A organização do trabalho
— Como se organiza este tipo de trabalho (27)?
— Nós funcionamos em «ateliers» (salas de trabalho) 
todas as tardes excepto à segunda-feira, em que temos pis­
cina e canto com um monitor municipal. Às vezes, das 
15 h 30 às 17 h, outras vezes ao princípio da tarde. Na sexta- 
-feira, as salas de trabalho duram toda a tarde; os garotos 
terminam o que tinham previsto fazer no seu plano de tra­
balho *; os outros podem começar uma nova tarefa. Rema­
ta-se sempre com uma reunião de cooperativa em que 
se discute sobre a classe, sobre o que se passou, e durante 
a qual se prevêem os trabalhos a realizar, os quais são ins­
critos num planning.
Por ocasião destes momentos de atelier, os garotos têm 
as caixas à sua disposição, no fundo da classe. Todas as 
tardes, eles decidem o que irão fazer no dia seguinte... 
Podem escolher trabalhar com uma caixa, desde que, evi­
dentemente, tenham dado por concluído o seu trabalho 
precedente. O que faz com que no dia seguinte, após cinco 
minutos de preparação, todos se ponham a trabalhar.
DAS CAIXAS DE TRABALHO 121
— Não tens problemas de distribuição de tarefas, de 
repartição pelos diferentes ateliers (salas ide trabalho)?
— Não, eles prevêem os trabalhos no seu plano de 
trabalho; dispomos dum planning mural onde cada um se 
inscreve. Eu próprio possuo um outro planning — trata-se 
duma tabela de dupla entrada (actividades, nomes das 
crianças) que me permite saber quem faz o quê e, ao 
mesmo tempo, onde se encontram a cada instante os garotos.
Certos garotos, por exemplo, se eu o permitisse, traba­
lhariam apenas no filicortador e nunca se interessariam 
por outra actividade. Eu sei bem que seria preciso deixá-los 
satisfazer-se tanto quanto quisessem com o filicortador, mas 
é preciso que os outros também entrem em contacto com 
ele, e também é interessante que eles desenvolvam outra 
actividade. Procuro, então, controlar as coisas de maneira 
a que as salas de trabalho mais procuradas fiquem abertas 
a cada um pouco mais ou menos da mesma maneira.
— Não haverá garotos que não mostram vontade de 
fazer o que quer que seja, que não têm qualquer ideia?
— Acontece que há crianças que não têm qualquer ideia, 
mas consegue-se sempre encontrar-lhes uma. Para tanto é 
preciso propor-lhes muitas. Há já nove anos que não me 
aparece um garoto que verdadeiramente não queira fazer 
nada. Será que eles não se atrevem a recusar todas as 
pistas que eu proponho? É possível, dado que nunca tive­
ram antes o direito de recusar!
Nunca me apareceu, porém, um garoto descontente.
Em contrapartida, admito facilmente que um garoto 
que conduz uma experiência pare num dado momento da 
sua investigação, não queira passar para um segundo está­
dio. Por exemplo, a garota que tu viste trabalhar com 
os ímanes, conduziu as suas experiências; ela poderia ter 
ido ainda mais longe; eu sugeri-lhe isso mesmo, mas ela
122 A PEDAGOGIA FREINET
ESTA TARDE OS ALUNOS TRABALHAM:
— Com a ficha 016 do F. T. C.: «Constrói um barco a reac- 
ção» (1). «Para ver se desta vez funciona, pois no ano passado 
explodiu.» Uma vez que este aluno tenha esgotado as suas 
reservas de material (tubos perfurados), dirigir-se-á para o 
estudo dos travessões (de balança);
— Na pintura (3);
— No filicortador (3);
— Na imprensa: tiragens de textos para o jornal (3);
— Numa exposição sobre «a Guerra dos Cem Anos» com a 
ajuda de B. T., de manuais e duma ficha de trabalho (2);
— Na construção dum gráfico da evolução da população de 
Echirolles de 1841 a 1973;
— Na construção de modelos (2);
— Numa balança com travessões variáveis (2);
— Na construção dum sistema de fogos (vermelho, verde; 
B.T. n.º 326);
— Em experiências com lentes;
— Com a caixa eléctrica;
— Com a caixa de «ímanes»;
— Com um mapa de França para nele situar os corresponden­
tes e Echirolles;
— Na reprodução do escudete de Echirolles (para os correspon­
dentes);
— Na acção de pôr a descoberto um corte geológico (em conse­
quência duma investigação);
— Na ilustração do jornal (linogravura) (2);
— Com uma pilha (desmontagem para saber como é feita);
— Numa classificação dos artigos de Amis Coop (2).
N. B.: Alguns participaram em dois trabalhos.
estava farta... Então, ela parou, o que é normal. Porquê 
forçá-la?
— Eles prevêem com muita antecedência a sua passa­
gem para as salas de trabalho, ou determinam-se em fun­
ção do interesse do momento?
— Isso depende; existem as duas atitudes. Aquele que 
queria pôr o seu barco a flutuar¹, pretende realizar diapo- 
sitivos; há muito tempo já que ele mo vem dizendo. Mas 
ele quer, primeiramente, conseguir pôr a flutuar o seu barco.
1 Ele realizava a experiência proposta pela ficha 016 do Ficheiro 
de Trabalho Cooperativo (F. T. C.).
DAS CAIXAS DE TRABALHO 123
Hoje, como ele esgotou o material de que dispunha 
sem que tivesse êxito na sua experiência, interessou-se pelos 
travessões; portanto, durante algum tempo, ele irá estar 
mobilizado nesta direcção. Mas eu sei que ele recomeçará 
a experiência do barco2 e que fará os seus diapositivos, pois 
é essa a sua firme intenção.
2 Ele recomeçou-a e teve êxito logo dois dias depois da nossa 
discussão.
A orientação das crianças
— Quais são as orientações (démarches) que condu- 
zem os garotos às investigações com as caixas de trabalho, 
com as fichas, com as experiências?...
— Como é que isso acontece? Pois bem, de várias 
maneiras. Temos, em primeiro lugar, as perguntas dos garo­
tos: por exemplo, porque é que um pedacinho de ferro 
vai logo para o fundo ao cair na água, enquanto que um 
grande barco de ferro flutua? Eis um problema que foi 
ontem discutido; alguns pensam que é a forma, e não o 
peso, que é importante. Imaginam-se, então, ideias de expe­
riências, e aqueles que as quiserem realizar fá-lo-ão, man- 
tendo-nos ao correntedas suas observações...
Às vezes, o procedimento não é rectilíneo: por exemplo, 
nós tivemos uma discussão sobre o serviço militar, durante 
a qual se falou, entre outras coisas, dos riscos de guerra 
evocados pelo Papa no seu discurso de Natal... Foi então 
que um garoto fez a seguinte pergunta: «É verdade que 
houve uma guerra que durou cem anos?» O que te explica 
que, hoje, duas raparigas tivessem preparado uma expo­
sição sobre este tema.
Certos trabalhos são também motivados pela corres­
pondência. Tínhamos investigado em conjunto o que se 
podería fazer para dar a conhecer Echirolles aos correspon­
124 A PEDAGOGIA FREINET
dentes. Por isso, hoje, um aluno trabalhou com o gráfico 
da população, outro com a carta do Isère, sobre o brasão 
da nossa cidade.
Há, também, as caixas de trabalho de que falei e que 
proponho sem ficha; em si próprias, elas são iniciadoras. 
O garoto tacteia, e eu intervenho; discutimos em conjunto, 
e ele recomeça. Às vezes, é toda a classe que pára durante 
cinco minutos para procurar ajudar algum que esteja 
«.parado», para lhe sugerir ideias.
— Se voltarmos ao que tu dizias sobre a flutuação, 
houve, depois das perguntas, uma fase de formulação de 
hipóteses, por exemplo: «Não é uma questão de peso, é uma 
questão de forma.» Portanto, vocês vão fazer experiências 
com corpos do mesmo peso e de formas diferentes.
— Sim, e veremos os resultados que isso possa dar. 
Em função dos resultados das experiências, surgirão por 
certo outras hipóteses que procuraremos verificar. Ao fim 
dum certo tempo, chegar-se-á a qualquer resultado con­
creto... E eu, pela minha parte, penso ser essa a atitude 
científica ideal (28): há uma reflexão, depois uma experi­
mentação a partir da qual se estabelece uma nova hipótese, 
uma nova experimentação, etc. Modificam-se as condições 
da experiência. Os garotos adoram fazer isso! Quando se 
obtém um resultado, ou quando surge um problema, há 
sempre alguém que propõe uma ideia ou uma explicação 
que se procura pôr em prática com os meios disponíveis. 
Houve um ano em que eles pensaram que a flutuação depen­
dia da massa de água no recipiente. O que levantou pro­
blemas, embora nos saíssemos bem na experiência rolhando 
os lavatórios!
— Depois destas experiências, há sempre um «regresso» 
à classe (29). Hoje, por exemplo, tu tiveste uma hora de 
trabalho em cheio, pois preparação e ordenação proces­
sam-se muito rapidamente. E a última meia hora foi con­
DAS CAIXAS DE TRABALHO 125
sagrada ao balanço: quem terminou as sitas investigações? 
que conclusões se tiraram delas?
— Sim, eu procuro sempre conseguir que aquele que 
descobriu qualquer coisa o comunique a todos.
Depois, examinamos as conclusões, os problemas que 
se levantam.
Por exemplo, hoje, aquele que trabalhava com as len­
tes tinha necessidade dum «empurrãozinho» para ir mais 
longe, pois, abandonado a si próprio, tendia a marcar passo. 
É também nesse momento que aqueles que acabaram pre- 
vêem o seu próximo trabalho.
— Acontece, nesse momento de comunicação das expe­
riências, que um aluno diga: «Eu fiz esta experiência, obtive 
tal resultado», e que outros proponham então continuações, 
pistas novas?
— Sim. Isso acontece mesmo com muita frequência. 
Eles dizem-lhe por exemplo: «Se tivesses modificado certo 
elemento, talvez que o resultado tivesse sido diferente?»
Aconteceu-nos fazer electrólises. Houve um que disse: 
«E se tivesses posto chumbo como eléctrodo?...»
É um género de questões que surge com frequência por 
ocasião de experiências com as lentes, os espelhos, água 
ou com as experiências de química.
— E então?
— Então, verifica-se, fazem-se novas experiências, par­
te-se de novo. Este momento de comunicação das expe­
riências afigura-se-me essencial; certos dias, é um pouco 
difícil, pois eles estão fartos, e a hora é já tardia. Mas 
é muito importante, pois permite muitas vezes ir mais longe.
— Deve acontecer, em certos casos, que os garotos 
tenham chegado a um ponto em que não avançam mais, 
enquanto tu sabes que eles podem ir mais longe, que exis­
tem prolongamentos possíveis desta investigação? Que 
fazes tu, então (30)?
126 A PEDAGOGIA FREINET
— Se tenho ideias, tento sugerir-lhes uma modificação 
da experiência que conduzem, propor-lhes uma ideia suple­
mentar, fazer com que lhes ocorram analogias. Com as len­
tes, esta tarde, eu sugeri àquele que procedia à experiência: 
«Se tu não moves a fonte luminosa (a vela), e se deslocas 
o écran sobre o qual recebes a imagem, a partir de que 
momento é a imagem nítida, e até quando? Tu podes 
tomar medidas.» Disse-lhe ainda: «As tuas lentes são dife­
rentes. Tenta substituir uma grande por uma pequena a 
ver o que se passa.»
— Antes da tua intervenção, ele não se sentia muito 
à-vontade. Foi talvez por isso que a tua parte foi maior?
— Sim, trata-se duma criança que tem necessidade de 
estar acompanhada. Contrariava-me que ele estivesse sozi­
nho, mas mais ninguém tinha desejado trabalhar com as 
lentes.
— Ao princípio, ele parecia sobretudo preocupado em 
fazer aparecer a vela. Os que trabalhavam ao lado, diziam: 
«não está nítido» ou: «a tua vela está ao contrário». Mas 
isso não lhe punha problemas.
— Aliás, ele não me disse que recebia a imagem da 
vela invertida sobre o écran.
— Como é que isso se explica?
— Talvez ele não tenha tido tempo suficiente para se 
imbuir da sua experiência, talvez o fenômeno não lhe apa­
reça ainda com grande nitidez...
— Como é que eles formam os circuitos eléctricos?
— A caixa «electricidade» contém fios, pinças croco­
dilo com fio soldado, lâmpadas eléctricas, pilhas. Sem 
ajuda, a criança procura ligar os fios e as lâmpadas. Tacteia 
durante muito tempo antes que a lâmpada se acenda. 
Quando o conseguiu com várias lâmpadas, faz outras expe­
riências interessantes que são relatadas no fim da sessão.
—As crianças chegam a seguir ao esquema?
DAS CAIXAS DE TRABALHO 127
— Quando montam circuitos mais complicados com 
comutadores, diversos fios, a coisa fica emaranhada. Para 
o representar, procura-se esquematizar em comum os dese­
nhos para os esclarecer.
— Passam eles sem custo do trabalho concreto para 
a esquematização?
— Sim. Eles vêem às vezes em suas casas esquemas 
nos seus aparelhos eléctricos e isso interessa-os.
Uma caixa de trabalho que ainda não lancei, é a caixa 
«electrónica». Eu tenho o material, mas penso que eles 
têm necessidade de saber em primeiro lugar manipular 
bem e de se terem tornado suficientemente hábeis para 
que o trabalho seja válido.
— Eles conseguem descobrir as leis?
— Em electricidade, não penso que elas possam ser 
descobertas mediante os circuitos. As caixas são feitas para 
a esquematização dum circuito lógico, enquanto se chega 
de outra maneira à descoberta da electricidade. É antes 
utilizando fichas mais guiadas que se descobrirá, por exem­
plo, os efeitos magnéticos e calóricos da corrente eléctrica.
Em contrapartida, com a pilha, as crianças formula­
ram a seguinte interrogação: «O que é que existe dentro 
da pilha? Como é que isso funciona?» Então, poderá talvez 
passar-se à descoberta da electricidade. Eles não descobri­
rão por si próprios que fazendo passar um íman pelo inte­
rior duma espira se produz uma corrente eléctrica. Vamos 
tentar construir um detector de corrente utilizando a ficha 
que existe. E veremos...
— O esquema permite-lhes um recuo? Ou o seu objec- 
tivo é, simplesmente, a comunicação da experiência?
— Creio que o esquema serve unicamente .para a sim­
plificação. Permite enviar para os correspondentes uma 
espécie de adivinhas (31). É uma troca interessante e 
importante.
128 A PEDAGOGIA FREINET
A propósito das fichas
— Gostaria que tu precisasses um pouco o teu ponto 
de vista sobre as fichas... Tu dizias que preferes dar a 
caixa sem ficha; pensas que isso é preferível?
— Sim, pois só a caixa permite a verdadeira experiên­
cia (por tentativas). Com a ficha (32), em meu entender, 
recai-se um pouco no mesmo inconveniente que com as 
caixas docentes — o garoto éde tal maneira guiado que 
não formula a si próprio interrogações, ou formula 
menos. Dizem-lhe «faz isto», e ele fá-lo sem procurar modi­
ficar seja o que for, sem tentar imaginar. Eu falo pela 
minha classe urbana; eles estão tão pouco habituados a 
experimentar, mas antes a serem dirigidos, que, automati­
camente, se lhes entrego uma ficha, eles limitam-se a obe­
decer.
— Na realidade, o que tu deploras é que o trabalho 
seja uma espécie de papinha antecipadamente feita, e que 
a ficha não deixe lugar suficiente à descoberta (33).
— Sim, mas é também verdade que as fichas podem 
contribuir para aliviar o professor, quando há muitas ques­
tões, muitas pistas exploradas; ou então, ao contrário, elas 
podem abrir horizontes, quando há falta de ideias.
— Talvez elas sejam também interessantes, pois per­
mitem o êxito, portanto, a valorização?
— Nem sempre; prova-o o garoto que falhou a sua 
experiência com o barco a vapor.
— Sim, mas era uma questão de instrumento, de mate­
rial insuficiente ou pouco resistente.
— De acordo! mas, de qualquer maneira, se a coisa 
não funciona, o garoto não se sente numa situação de 
êxito... Então, é preciso que a coisa funcione bem.
DAS CAIXAS DE TRABALHO 129
— Quer isso dizer que vocês não utilizam as fichas? No 
entanto, tu possuis o conjunto do F. T. C. (Ficheiro de Tra­
balho Cooperativo) na tua classe...
— Sim, utilizamo-las! Quando esgotámos as nossas 
idéias, voltamo-nos para o ficheiro; vemos se podemos ir 
mais longe.
— Elas servem, portanto, para que vocês se ultrapassem.
— É isso. Verifica-se no ficheiro se se descobriu tudo 
o que havia a descobrir, se há outras experiências a fazer. 
Muitas vezes são abertas pistas suplementares.
O papel do professor (34)
— Poderiamos já, a partir do que tu acabas de dizer, 
circunscrever aquilo a que se chama o papel do professor: 
fornecer instrumentos, elementos que permitirão experi­
mentar... Dar o «lempurrãozinho» que permitirá ir mais 
longe, quer forneças um elemento novo ao nível dos ins­
trumentos, quer sugiras um procedimento (quando dizes 
àqueles que trabalham com as forças e os travessões: que
9
130 A PEDAGOGIA FREINET
se passa, se se suspender um dos pesos em direcção ao 
centro?).
Numa palavra, tu tens um papel «provocador»: tu fazes 
com que eles se interroguem, com que eles formulem per­
guntas a si próprios. Tens por vezes, também, um papel 
«técnico»: como fazer que o modelo se aguente de pé? 
Neste caso, és tu a revelar o truque... Mas existem segura­
mente outros aspectos ainda. Como encaras tu o teu papel 
neste tipo de investigação?
— Trata-se dum papel importante de preparação e de 
animação.
— Mas também duma exigência. Tu incita-los constan­
temente a ultrapassar-se. Por exemplo, o modelo não 
estava pintado dos dois lados, ou estava-o de uma maneira 
um tanto atamancada. Ora, tu acentuaste que o trabalho 
poderia ter sido feito com maior perfeição.
Creio que seria necessário ser claro a este respeito; 
com efeito, ouve-se às vezes dizer. «Esta pedagogia é o 
reino do deixar correr, os alunos fazem tudo o que querem, 
é uma barafunda», etc. (35).
Ora, esta tarde, por três ou quatro vezes, vi-te intervir 
para incitares as crianças a ir mais longe, a superar-se. 
Foi o que aconteceu com aquele que trabalhava na desmon- 
tagem da pilha, e a quem tu disseste: «Bom, tu retiraste 
o cartão, viste o que havia lá dentro? E depois?... O que 
é que se encontra por baixo «daquilo que é preto»? O mes­
mo aconteceu ainda com os pesos e as alavancas, com a 
vela e as lentes, etc.
— Sim, eu creio ser essa a função do professor. Existe 
um material sobre o qual eu reflecti um pouco, sei o que 
se pode fazer com ele, aonde isso nos pode levar, aonde 
isso pode levar as crianças. E deixando-os tactear à-von- 
DAS CAIXAS DE TRABALHO 131
tade, e respeitando este tacteamento experimental, sei final­
mente que, num dado momento, a minha opinião permitirá 
que eles vão mais longe. Então, emito-a. É essa a minha 
função de professor. É essa a minha preparação da 
classe (36): imaginar o que eu poderia empregar para per­
mitir um aprofundamento das démarches. A minha função 
de professor pode ser, por exemplo, em electricidade, for­
necer um fio suplementar dizendo: «Se o acrescentares, o 
que é que se passa?»
— Ao nível da formulação dos resultados das experiên­
cias, como é que a coisa se passa? Em relação aos ímanes, 
a formulação das conclusões tinha relativamente pouca 
importância. A propósito do travessão (de balança), a 
coisa vai ser mais difícil. Presentemente, eles estão muito 
perto de descobrir a formulação (tipo F X 1 F' X 1')... mas 
como o conseguirão eles?
— Creio que devo deixá-los tactear, desenvencilhar-se 
sozinhos mais algum tempo ainda. Por agora, eles não 
parecem estar desanimados. Talvez amanhã um deles, 
durante a apreciação crítica, diga «Porque é que eles não 
medem as distâncias para saber se não há uma relação 
massa-distância?» Se ninguém o disser, serei eu a sugerir 
mais uma vez que façam um novo esforço de análise.
— Para o controle (37) dos registos escritos deste tipo 
de investigações, qual a fórmula que tu adoptaste?
— Não faço um controle tipo caderno mensal. Exijo, 
apenas alguns esboços no fim da experiência, os quais são 
inseridos no caderno dito de «despertar». De tempos a tem­
pos, organizamos também sessões colectivas (estudo e natu­
ralização dos animais que eles mencionarem) de que resulta 
a redacção duma acta elaborada em comum e, às vezes, 
duma página do jornal.
132 A PEDAGOGIA FREINET
Conservar os alunos por dois anos...
— Em geral, tu só conservas os teus alunos por um 
ano. Isso não te levanta problemas ao nivel da aquisição 
desta técnica de trabalho por parte dos alunos?
— Eu gostaria de poder conservar os alunos por dois 
anos, mas isso não é possível. Este ano, havia um C. M. 1 - 
- C. M. 2, e eu conservei no C. M. 2 alunos do ano passado 
que sentiam dificuldades.
— Notaste uma mudança na sua atitude relativamente 
ao ano passado?
— Estou pasmado! Este ano, eles são autônomos, posso 
confiar neles 100%. Eles desenvolvem um trabalho cuida­
doso, preciso, impecável.
— Eles ajudam os outros na organização do seu tra­
balho?
— Sim! e isso é estupendo! Alguns deles tornaram-se 
«especialistas» em certas matérias.
Os outros sabem que se podem dirigir a eles em caso 
de necessidade; Paul, por exemplo, é o especialista do lino, 
mas há outros em ortografia, em matemática, em «pre- 
gagem»...
Eu aliás, em vez de ser eu próprio a ajudar, remeto 
para eles os que têm necessidade de auxílio. O que diminui, 
assim, a tensão, a agressividade na classe.
Da necessidade da investigação em ciências na 
escola elementar
— Tu organizas, na tua classe, tempos para investiga­
ção em ciências. Ora, eu tenho a impressão, ao ouvir o 
que dizem colegas ou pais de alunos, que se pratica cada 
vez menos as ciências na escola primária (se exceptuarmos, 
DAS CAIXAS DE TRABALHO 133
certamente, as actividades habituais do tipo «a vindima», 
«a noz», etc.) e, sem dúvida, muito pouco de investigação.
— Sim, também o creio.
— Como explicas tu este fenômeno? E como te desen- 
vencilhas para te reciclares (38), pois ouve-se muitas vezes 
dizer: «Em ciências, faltam-me bases para ajudar as crian­
ças a investigar, a ir mais longe»?
— Não sei explicar esta falta de interesse de muitos 
professores primários pelas ciências, tanto mais que estas 
matérias interessam aos garotos, que existe uma motiva­
ção muito forte... Eu tive a sorte de assistir ao trabalho 
de camaradas neste domínio, de poder discutir com eles. 
Para me reciclar, utilizo livros, livros de física do segundo 
ciclo, por exemplo; na semana passada, comprei um livro 
de experiências de electrónica. O que lamento, é que no 
seio do grupo departamental não nos possamos reunir mais 
vezes para trocarmos mais ideias neste domínio. Seria pre­
ciso, também, ter a possibilidade de ir ver os outros «fun­
cionar» com os seus alunos. Porque, isolado, não nos 
ocorrem todas as ideias;e depois nem sempre sabemos 
explorar uma pista aberta pelos garotos — o tempo de fazer 
o ponto, de encarar o problema, e a ocasião passou, a moti­
vação enfraqueceu.
Se pudéssemos trabalhar em grupo relativamente a 
este ponto, cada um iria muito mais longe na classe. 
E depois, haveria uma espécie de reciclagem permanente, 
cada um facultando aos outros as suas competências neste 
ou naquele domínio.
Poderia também organizar-se uma série de fichas para 
uso dos professores indicando, a propósito dum problema 
determinado ou dum certo tipo de material, elementos de 
base que lhes permitiríam deixar as crianças experimentar 
e ajudá-los nos seus tacteamentos.
134 A PEDAGOGIA FREINET
Entrada
DAS CAIXAS DE TRABALHO 135
Dou-me bem conta do perigo destas «fichas de recicla­
gem»: quando se conhece bem todos os pontos duma ques­
tão, corre-se o risco de não deixar mais que as crianças 
tenteiem livremente. Ora, este tenteio é fundamental, a 
meu ver, nas ciências... Simplesmente, é ainda mais grave 
não fazer coisa alguma!
Dos tabos aos instrumentos
por Maryse e Jacky Varenne 
(reportagem de R. U.)
Na nossa gíria «escola moderna», utilizamos geralmente a pala­
vra «instrumentos» num sentido muito geral: tudo o que permite 
à criança criar um produto. Neste sentido, os ficheiros autocorrecti- 
vos ocupam um lugar idêntico ao do filicortador.
Entre estes utensílios, alguns existem que são cópias dos que 
já existiam no comércio. Outros correspondem a uma criação 
colectiva, em todo o caso a uma afinação colectiva. Muitos foram 
imaginados para corresponder a exigências escolares: a aprendiza­
gem das matemáticas, das ciências, da ortografia. Mais raros são 
os que devem o seu aparecimento a uma observação das actividades 
livres, espontâneas das crianças, como é o caso aqui em que expo­
mos a génese da série «100 experiências fundamentais do F. T. C. *»
Maryse Varenne — Há três anos, durante um estágio 
de matemática, discutimos as actividades «selvagens» das 
das crianças, isto é, aqueles trabalhos que se faziam fora 
do nosso controle, que não tomávamos em conta, que não 
eram nem socializados nem explorados.
Contei então que, na minha classe, nesse ano, os garo­
tos tinham fabricado com uma velha pauta um plano incli­
nado, e durante meses brincaram com ele. Faziam rolar 
toda a espécie de objectos: canetas de tinta permanente, 
caixas, e observavam. Não diziam nada. Eu tinha a impres­
são de que eles não estavam a perder o seu tempo, e, no 
entanto, não me sentia à-vontade. Tinha uma reacção de 
insegurança; não estava à altura de avaliar o proveito real 
138 A PEDAGOGIA PREINET
desta experiência. No fundo, eu teria preferido que eles 
se dedicassem ao ritmo, ao desenho, a qualquer coisa que 
se aproximasse duma actividade escolar que eu estaria apta 
a guiar e avaliar.
E foi então a vez de todos os camaradas exclamarem: 
«Ah! a coisa passa-se também contigo!» Isto porque, evi­
dentemente, também os garotos deles «brincavam», tinham 
distracções «parasitas»; gostavam, com efeito, de se divertir 
com o reflexo do sol num espelho, com a água da torneira, 
variando as experiências. E demo-nos conta de que gosta­
ríamos de encontrar uma justificação para estas «fantasias» 
tantas vezes mal vistas pelos adultos: balouçar-se numa 
cadeira, acender fósforos, empilhar louça...
Foi então que interveio Jean-Paul Blanc:
— Imaginam vocês a riqueza de todos estes tenteios 
servagens?... Por exemplo, a história que contaste duma 
pauta utilizada como plano inclinado; acontece que os teus 
garotos tenteiam, desse modo, no domínio dos móveis, do 
equilíbrio, das trajectórias, dos pesos, das forças, do centro 
de gravidade, do polígono de sustentação...
Apenas isso? Jean-Paul está a fazer humor... mas 
mesmo assim!
Não tardámos a instalar um plano inclinado, e eu repeti 
os gestos que via fazer aos meus garotos, e de cada vez 
Jean-Paul particularizava aquilo que eu experimentava empi- 
ricamente... A coisa pareceu-nos duma riqueza extrema!
Recensear o que proibíamos
Começámos depois a recensear as experiências que 
tínhamos tendência a proibir às crianças, porque as consi- 
derávamos demasiado pueris ou consumidoras de tempo. 
Uma verdadeira lista de tabos! Tudo o que nós lhes proi­
DOS TABOS AOS INSTRUMENTOS 139
bíamos porque «isso molha, isso faz barulho, isso inco­
moda os outros, isso pode ferir, pode ser perigoso». Ela­
borámos uma segunda lista, a do material utilizado... Res­
tava apenas descrever e interpretar as experiências.
Tínhamos cerca de trinta ideias para fichas, e o nosso 
trabalho de todo o estágio, de nós cinco, mestras dos «mais 
pequenos», consistiu em redigi-las, com a ajuda dos cama­
radas de matemática que nos explicavam as noções mate­
máticas ou físicas abordadas.
Jacky Varenne — Logo que as fichas foram redigidas, 
oomunicámo-las aos nossos camaradas. Idêntica surpresa 
e idêntico entusiasmo:
— É verdade que há um monte de coisas que temos 
medo de deixar fazer aos nossos garotos, pois temos a 
impressão de que eles perdem o seu tempo. Se eles fazem 
vibrar um duplo decímetro apoiando-se no bordo da mesa, 
oonsidera-se que seria preferível que eles façam outra coisa, 
uma actividade que nós teríamos preparado e de que vería­
mos o objectivo. Levámos este ficheiro a todas as nossas 
reuniões para o enriquecermos. Um único remorso: hesi- 
távamos em propor a crianças da escola maternal que fizes­
sem fogo para o dominar e observar, e, no entanto, 
trata-se duma descoberta e duma actividade fundamental 
dos homens...
Maryse— Dispúnhamos de umas trinta fichas, mas 
tínhamos consciência de não ter ainda recenseado todas 
as pistas interessantes. Podia-se muito bem encontrar umas 
cem! E depois, 100 fichas sempre ficava bem numa edição. 
Impunha-se, então, alargar a pequena equipa inicial e apelar 
para colaborações dispersas no plano nacional. Foi então 
que a ajuda da C. E. L. foi capital: as trinta primeiras fichas 
foram fotocopiadas numa tiragem de cinquenta exemplares 
e comunicadas a colegas de diferentes departamentos.
140 A PEDAGOGIA FREINET
A troca de correspondência que se seguiu a esta distribui­
ção podería encher agora muitas malas — um verdadeiro 
monumento cooperativo! 
Jacky — Apercebemo-nos em primeiro lugar, graças a 
esta correspondência, de que aquilo que nós propúnhamos 
como que «andava no ar»; que o nosso projecto corres­
pondia a reflexões e a tacteamentos experimentais no seio 
do nosso movimento. 
Em seguida, as críticas recebidas levaram-nos a elimi­
nar um certo número de fichas de aspecto demasiado esco­
lar, em particular aquelas em que as crianças se serviam 
unicamente de lápis e de papel para traçados, por exemplo. —
Finalmente, a apresentação das fichas tornou-se mais 
clara, mais rigorosa. Na primeira página, a fotografia que 
mostra a situação e que constitui para a criança da mater- 
nal a leitura-incitação ao seu nivel. Foi preciso modificar 
muitas delas a pedido dos próprios miúdos, que declaravam 
não ver o que se lhes queria mostrar. No verso da folha, 
as mestras desejavam poder encontrar indicações pedagó- 
gicas precisas: outras actividades possíveis como prolonga- 
mento do tacteamento experimental, os materiais de subs- 
tituição susceptíveis de despertar de novo o interesse, os 
perigos e as precauções a tomar, os domínios abordados, as 
remissões para fichas de outros ficheiros...
Uma nova tiragem das fichas foi comunicada aos múl- 
tiplos autores, mas também a psicólogos e a matemáticos. 
Os primeiros explicavam, por exemplo, porque era impor- 
tante que algumas crianças construíssem cabanas, mesmo 
que na cidade se tivessem de contentar para o efeito com 
uma grande caixa de cartão. A utilização de caracteres 
maiúsculos para titular as fichas, a escolha das palavras- 
-chave tinham também a sua importância para crianças no — 
limiar da leitura. _
DOS TABOS AOS INSTRUMENTOS 141
Testado pelas crianças
Roger — Fez a soma total das pessoas que contribuiram 
desse modo para este trabalho cooperativo?JACKY — Houve pelo menos umas 60 a 70 pessoas que 
lhe consagraram entre dez e vinte horas, e uma vintena 
que lhe dedicaram entre duzentas e trezentas horas!
Roger — E o papel das crianças?
Jacky— Pode dizer-se que foi primordial, no sentido 
«primeiro» do termo, pois eram as suas experiências que 
formavam a matéria das fichas. Mas, além disso, os nossos 
alunos ajudaram-nos, por um lado, na correcção do texto 
de cada ficha, que devia ser revisto para se tomar bem 
compreensível; por outro lado, ajudaram-nos nas fotogra­
fias. Em relação a um determinado tema — uma criança 
tentando fazer flutuar um vidro numa selha com água, por 
exemplo —, foram tiradas diversas fotografias. Estas eram 
mostradas às crianças, e pedia-se-lhes que comentassem o 
que viam. Todas as fotografias que não permitiam uma 
interpretação sem equívocos foram postas de parte.
Roger — E quando vocês notavam com destino aos 
professores referências como «estrutura granular»?...
Jacky — Nem sempre era possível explicitar tudo, mas 
podia-se remeter os leitores para brochuras já editadas na 
colecção «Livres Investigações Matemáticas *». Quando isso 
não era possível, suprimiram-se as referências.
Maryse — Deveria também mencionar-se que aquele 
que fabrica um instrumento se enriquece a si próprio tanto 
como à colectividade a que o destina. Aprendemos muitas 
coisas em matemática e física! Fomos obrigados a regres­
sar às fontes. A nossa observação das crianças tornou-se 
mais exacta e profunda, pois era nossa intenção conhecer 
as suas reacções e obter a sua participação.
DEVERÁ 
RENUNCIAR-SE À 
PEDAGOGIA FREINET 
NA ESCOLA URBANA?
Na região parisiense
por Emilienne e Lucien Reuge 
(reportagem de R. U.)
A presença do movimento Freinet na região parisiense é insigni­
ficante, se nos ficarmos pelos números: aproximadamente cinquenta 
classes Freinet nos seis departamentos que, só por si, totalizam um 
quinto da população do país.
Os nossos camaradas Lucien e Emilienne Reuge, directores de 
dois grupos geminados em Choisy-le-Roi, no Val-de-Marne, tentaram 
durante toda a sua vida dar corpo a uma escola Freinet urbana 
que emparelharia com as da província. Gastaram-se nesta tarefa, 
mas não se deixaram desanimar, pois cada criança, cada professor, 
cada pai conquistado para uma educação libertadora contribui com 
a sua quota-parte de alegrias e esperanças para a torre de Babel 
que é toda e qualquer escola duma grande cidade.
Roger — Quando um camarada do I. C. E. M. se torna 
director, mostra vontade de realizar na sua escola um 
pouco do que fez na sua classe, sabendo embora antecipa­
damente que nem todos os colegas desta escola se mostram 
favoráveis à pedagogia Freinet, nem mesmo preparados 
psicologicamente para mudar de pedagogia. Tens portanto 
de desenvolver na tua escola, durante anos, todo um tra­
balho de formação (40) e de animação, antes mesmo que 
se fale de formação interna e de animação. Poderás falar- 
-nos da tua experiência neste campo?
Lucien — De início, só nos podemos basear no volun­
tariado. Alguns colegas desejavam experimentar determi­
nadas técnicas que me viam praticar na minha classe. Isso, 
10
146 A PEDAGOGIA FREINET
porém, nunca ia muito longe, e pude constatar, por exem­
plo, que quando eu deixava uma escola, tudo isso termi­
nava. Depois da minha partida, eles regressavam ao ensino 
geral tradicional.
68 e a formação contínua improvisada
Conhecemos um período verdadeiramente privilegiado; 
foi o período de 68. Em 68, sentiu-se como que uma neces­
sidade de renovação, de pôr em causa todas as rotinas — foi 
um pouco como o que Freinet dizia do período que se seguiu 
à guerra de 14-18. Havia como que uma «efervescência». 
Por altura das greves, nós, que tínhamos feito numerosos 
estágios, pensámos que nos poderíamos organizar como 
para um estágio. No seio da escola, dispúnhamos de três 
salas: uma sala de reunião, de trabalho; uma sala que nos 
servia de refeitório; uma outra que nos servia de cozinha. 
O que permitia que, independentemente das reuniões sin­
dicais da subsecção, nos reuníssemos para falar de pedago­
gia. Nessa altura, realizámos progressos, tanto mais que, 
logo a seguir à greve, nos obrigámos a libertar as crianças 
de que os pais podiam tomar conta no sábado à tarde. 
Como os professores não tinham a tarde de sábado livre, 
estavam na obrigação de ficar na escola; organizámos um 
infantário para as restantes crianças, o que fez com que, 
das 27 classes, ficássemos com um efectivo de aproximada- 
damente três classes de que tomávamos conta por turnos, 
ao mesmo tempo que o meio-dia de trabalho dos outros 
mestres era organizado da seguinte maneira: em primeiro 
lugar, deslocávamo-nos com crianças a uma classe para 
assistir à prática duma técnica: exposição, texto livre, inves­
tigação, etc. Depois, discutíamos, na própria classe, até 
à hora habitual do recreio. Seguidamente, deslocávamo-nos 
NA REGIÃO PARISIENSE 147
à sala dos professores para a pausa do café e discutíamos 
qualquer problema de pedagogia levantado por uns ou por 
outros. O que fez com que, até ao fim desse ano, tivésse­
mos a impressão de realizar progressos, porque os profes­
sores tinham debaixo dos olhos exemplos vividos sobre 
os quais reflectíamos.
Roger — O que na época me impressionou, quando me 
desloquei à escola, foi o facto de quase se 'ter formado 
uma comunidade de vida. Durante os acontecimentos de 68, 
um certo número de colegas não tinham dinheiro, outros 
não sabiam onde ir comer; e vocês organizaram uma vida 
comunitária.
Lucien — Sim, alguns de nós chegaram mesmo a afas­
tar-se muito de Paris para arranjar vegetais frescos e 
batatas, enquanto um dos nossos colegas se encarregava 
da cozinha; foi sobre nós que ele realizou o seu tactea- 
mento experimental — foi assim que comemos macarronete 
durante três dias, pois a princípio ele não soube avaliar 
a quantidade em função dos racioneiros. Todavia, esta vida 
comunitária criou um clima que aproximava bastante direc- 
tores e adjuntos. Foi verdadeiramente aí que ocorreu uma 
mudança de clima na escola entre o pessoal. O que repre­
sentou um trabalho preliminar muito eficaz no sentido da 
renovação pedagógica; a tal ponto que, a seguir, eu escrevi 
dois artigos em L'Éducateur, ficando-se também a saber 
que mais de 50% dos colegas praticaram mais ou menos 
a pedagogia Freinet durante esse período. Dos 27 mestres 
de que então dispúnhamos, restam apenas quatro em con­
sequência de todas as mutações ocorridas, e, destes qua­
tro, uma única trabalha em ligação com o grupo departa­
mental I. C. E. M., enquanto dois nunca praticaram a peda­
gogia Freinet.
Roger — Não significa isso que, numa escola, antes de 
148 A PEDAGOGIA FREINET
falar de pedagogia, importa criar um certo clima de rela­
ções? Como procede de maneira a poder instaurá-lo?
Lucien — Procurámos, muito antes de 68, criá-lo desde 
o princípio instalando uma sala de professores relativa­
mente confortável; nela existe um meio de aquecimento 
suplementar, um fogareiro eléctrico para fazer café ou chá 
e, durante os recreios ou as reuniões da tarde, arranja-se 
sempre tempo para uma pausa do café ou discutir um 
pouco. O tempo é, no entanto, relativamente escasso, e 
nem sempre podemos participar nisso, pois temos que asse­
gurar a fiscalização geral. O que faz com que não mais 
se tenham repetido as condições de 68. Ora, essas eram 
as condições ideais!
Depois da desmobilização
Actualmente, temos a impressão, em relação a certos 
docentes, que eles chegam às 8 h 30, partem às 16 h 30, e 
que não há que lhes exigir mais coisa nenhuma. É preciso 
dizer que imperam na região parisiense condições muito 
difíceis; temos jovens mestres que são chefes de família, 
que fazem todas as cantinas, todos os estudos, que se encon­
tram portanto, aqui, desde as 8h30 às 18 h da tarde; são 
eles quem assegura, às quartas-feiras, o funcionamento do 
cento de aeração, e têm, ainda, de dar lições particulares 
para conseguirem equilibrar o orçamento caseiro. Pedira 
essas pessoas que sacrifiquem o seu dia feriado, que se 
deixem ficar até à noite para se aperfeiçoar, é muito 
difícil!
Mimi — No entanto, para aqueles que o desejem, nós 
organizamos ainda encontros de trabalho. Em 1969, con­
tinuámos a fazer reuniões nas tardes de sábado, se bem 
que este dia já seja um feriado regular. Pouco a pouco, 
demo-nos conta que este procedimento se revelava contra­
NA REGIÃO PARISIENSE 149
producente. Então, solicitámos a opinião dos mestres e 
marcámos as nossas reuniões para o fim da tarde, duas 
vezes por semana, de modo a perfazer as três horas. Ao fim 
de dois anos, houve alguns que disseram: «Duas vezes por 
semana é demasiado.» Por isso, actualmente, temos a ses­
são das segundas-feiras, a qual tem lugar entre as 16h30 
e as 18 h, excepto para os colegas que se encarregam do 
estudo: só vêm aquelas pessoas que o quiserem, e outras 
que fazem parte do grupo departamental podem vir tra­
balhar connosco, de tal forma que somos no total umas 
vinte pessoas.
Lucien — Pouco mais ou menos metade da escola e 
metade do exterior.
Mimi — Praticamente quase sempre os mesmos. Faze­
mos também reuniões nas classes com as crianças, e nós 
próprios trabalhamos. Estabelecemos um planning de tra­
balho a pedido dos mestres.
Os visitantes e a vida da escola
Roger — As visitas de colegas durante as horas de olasse 
conseguem dar-lhes a impressão de que eles formam um 
grupo? De que se acham «soldados»?
Lucien — Muitas vezes as professoras ficam aborreci­
das com estas visitas que as perturbam, pela sua frequência, 
no seu trabalho. Constituem também um elemento pertur­
bador, sobretudo nas classes dos mais miúdos.
Roger — Aconteceu-vos que estas visitas sejam activas, 
isto é, que estas pessoas trabalhem com as crianças?
Lucien — Isso depende; nas grandes classes, nós tra­
balhamos por quarto de dia, isto é, até ao recreio; limi­
tamos os grupos a 6 ou 7 pessoas.
Mimi — Alguns vieram como observadores ao longo do 
ano; fizeram, portanto, um trabalho seguido. Estou a pen­
150 A PEDAGOGIA FREINET
sar nos Dias, de Portugal, que acompanharam uma classe 
de C. P., e em Ismael, um estudante das Comores, que tra­
balhou muito com os C. M. 2.
Lucien — É preciso distinguir: temos aqueles que vêm 
uma vez passar um meio dia. Segue-se uma discussão. Não 
é em metade dum dia que alguém se pode inteirar do que 
se faz numa classe. Por outro lado, há pessoas que vêm 
passar junto de nós um período muito mais longo. Temos 
actualmente um professor de matemática dum liceu de 
Paris que prepara um mestrado em psicopedagogia. Ele 
vem acompanhando uma classe. Desloca-se até cá uma vez 
por semana, e, futuramente, passará a vir duas vezes. Estas 
pessoas adquirem uma visão inteiramente diferente da 
daqueles que apenas estão de passagem.
Mimi — Há pessoas que passam por cá e que depois 
pedem para vir trabalhar connosco.
Com os pais
Roger — Em que medida ajudam os pais (42) a escola 
a formar um grupo, uma equipa pedagógica (43)?
Mimi — Temos reuniões de pais que organizamos de 
acordo com os professores. Na sua grande maioria, eles 
mostram-se satisfeitos; mas há sempre pais que não com­
preendem, e chegamos então ao que outros pais lhes res­
pondem. Na última reunião, apresentámos a gramática tal 
como a praticamos actualmente; os pais mostraram-se satis­
feitos. Pediram-nos para lhes falarmos das actividades de 
despertar e das matemáticas modernas na próxima vez. 
Queremos mostrar-lhes o que se pode fazer nestes domínios 
a partir da vida das crianças.
Lucien — Estas reuniões de pais ganharam maior am­
plitude a partir de 68. Tínhamos em primeiro lugar uma 
NA REGIÃO PARISIENSE 151
parte comum, e depois os pais deslocavam-se até às classes 
para falar mais particularmente do trabalho dos seus 
filhos. Procuramos fazer com que esta parte comum apro­
veite aos professores que não vêm às nossas reuniões de 
trabalho, o que os leva a assistir aos esforços que desen­
volvemos no sentido de transformar a pedagogia. Alguns 
adoptavam uma atitude em que se tornava notória uma 
reticência da sua parte. Aconteceu mesmo que alguns só 
aparecessem cerca duma hora depois do início da reunião, 
de modo a chegar apenas no momento em que acolhiam 
os pais nas suas classes. Todavia, tinha-se a impressão de 
que a coisa interessava aos pais.
Já, desde 1958, Emilienne organizava reuniões de pais 
na sua classe. Os outros colegas da escola onde ela era 
minha auxiliar nessa altura tinham também aceitado rece­
ber os pais. Quando ela se tornou directora, instaurou por 
sua vez as reuniões de pais na sua escola.
Devido ao facto de eu passar à reforma no fim do cor­
rente ano escolar, estabeleceu-se uma certa divagem entre 
as nossas duas escolas. Na escola de Emilienne, está-se de 
acordo para continuar da mesma maneira. Na minha, pre­
tende-se limitar as reuniões a uma por trimestre. Sente-se 
a vontade de diminuir as conversações de pedagogia com 
os pais. Creio que se verifica, entre outras coisas, uma valo­
rização de certos professores aos olhos dos pais. É preciso 
vir estimular certos professores sem ferir os outros.
Roger — Pude também verificar que se operou nos pais 
uma maturação pedagógica muito importante, mas eles não 
se dão conta das dificuldades de mutação do professor. 
Com efeito, pensam que a partir do momento em que uma 
técnica é dum interesse evidente, o professor a deveria 
aplicar; não se apercebem das inibições que o professor 
experimenta a mudar de métodos de pedagogia, de com­
portamento. Os pais não devem ditar a lei a um professor
152 A PEDAGOGIA FREINET
pensando no seu próprio filho e imaginando ser fácil essa 
mudança!
Mimi — Nós, aqui, estamos num bairro onde há pais 
que sentem eles próprios muitos problemas.
A pedagogia Freinet não é espontaneísta
Roger— O que mete medo aos pais na pedagogia Frei­
net, é que eles pensam que a pedagogia Freinet é uma peda­
gogia sem progressão nem controle. Tu, pelo que te diz 
respeito, conseguiste elaborar uma escala de progressão e 
inculcar nas crianças hábitos: um plano de trabalho (44) 
ao mesmo tempo ao nivel dos alunos e dos professores. 
Como é que tu próprio organizaste a \tua classe?
Lucien — No ano passado, soube, na véspera do reco­
meço das aulas, que a minha dispensa de dar aulas fora 
suprimida e que logo no dia seguinte devia tomar a meu 
cargo uma classe. Cheguei, portanto, no dia seguinte sem 
ter podido preparar o que quer que fosse (45). Fiz falar 
as crianças sobre o que tinham feito durante as férias, e 
depois disse-lhes:—São nove horas, vamos passar a outro 
assunto, que querem vocês fazer? E eles responderam-me:
— Queremos fazer ditados, conjugação, problemas, ciências, 
geografia, história... Nada que pertença propriamente à 
pedagogia Freinet! Eles queriam começar com um ditado. 
Disse-lhes eu: —Está bem, fazemos um ditado. Disse a uma 
criança que conseguira prender a nossa atenção para ditar 
a história que acabava de nos contar. Ela respondeu-me:
— Eu não a escrevi. — Tu vais reflectir e irás ditando ao 
mesmo tempo as frases aos teus camaradas. Foi este o 
primeiro ditado. Depois disso, fez-se um exercício de gra­
mática, a que se seguiram exercícios de cálculo, etc. Foi 
assim que «arrancámos». Depois, pouco a pouco, conse­
NA REGIÃO PARISIENSE 153
guiu-se introduzir algumas técnicas novas, e a partir do 
dia em que eles tiveram correspondentes foi isso que pas­
sou a orientar o seu trabalho. Eu queria chegar a que 
eles organizem eles próprios o seu trabalho. A coisa não 
foi fácil, e levou tempo. Todos os sábados de manhã, uma 
criança trazia o plano de trabalho da semana seguinte: 
simplesmente, um quadro antecipadamente traçado numa 
folha de grande formato, sobre a qual ela marcara os pon­
tos fixos, ou seja, a educação física e a sessão na piscina. 
Depois do que, pegávamos no planning das exposições. 
O responsável do dia perguntava se as exposições estariam 
prontas na data prevista. Estando estes pontos fixos assi­
nalados, elaborávamos todas as manhãs o planode traba­
lho quotidiano. Eles tiveram depois a ideia de elaborar 
um quadro recapitulativo que foi afixado sob o plano de 
trabalho, o que permitia, quando se discutia aos sábados, 
dizer: Não fazemos conjugação há 15 dias ou 3 semanas; 
temos de a praticar. A pouco e pouco eles foram-se encar­
regando da organização do seu trabalho. O que, ao fim e 
ao cabo, faz com que eu intervenha muito pouco. Uma 
rapariguinha disse-me:—Aqui, nunca fazemos deveres; na 
classe do lado, que é também um CM2, eles fazem deveres 
todos os dias. Respondi-lhe que o regulamento proibia que 
se fizessem deveres desde 1956, mas que havia ficheiros 
autocorrectivos tanto em francês como em matemática e 
que, palavra de honra, esta criança não tinha feito muitos, 
apesar de ter a possibilidade de levar esse material para 
sua casa, como o faziam muitos dos seus camaradas. Depois 
duma discussão durante uma reunião, acharam-se 3 ou 4 
que queriam regressar à pedagogia tradicional. Disse-lhes 
que a única solução era transferir-se para uma outra 
classe. E eles responderam: — Não, aqui temos companhei­
ros, entendemo-nos bem com eles, e mesmo que se trate da 
pedagogia Freinet preferimos praticá-la com os nossos com­
154 A PEDAGOGIA FREINET
panheiros de preferência à pedagogia tradicional noutro 
lado.
Roger — Há aí uma projecção familiar. Eles retrans­
mitem os desejos da família. Tu dispões dum planning 
geral onde as crianças podem verificar se houve lições de 
matemática, de gramática, ditados e, também, trabalhos 
individuais. Que fazem as crianças? Como se articulam os 
trabalhos individuais? e as sessões de explicações colec- 
tivas (46)?
Lucien — Se, em relação a um exercício dado ao con­
junto da classe, uma criança se mostra mais rápida do que 
as outras, pode terminar um trabalho individual em que 
pegará livremente quando quiser. E certos momentos do 
dia são consagrados aos trabalhos ditos individuais — que, 
na realidade, o não são. Pois se, pana alguns, se trata ver­
dadeiramente dum trabalho individual, para outros, trata-se 
dum trabalho de grupo. Está previsto no quadro do plano 
de trabalho diário. Além disso, existe um painel com fichas 
móveis, e cada criança assinala o trabalho individual que 
conta fazer durante o dia e nos dois dias seguintes.
Roger — Fazem eles uma ideia do que se chama um 
programa? Podem eles situar o seu nivel de aquisição rela­
tivamente a uma escala possível?
Lucien — Não conseguimos ainda fazer qualquer coisa 
de completo, de perfeito. Durante uma reunião de pais, 
fomos muito vivamente atacados pelos adeptos duma asso­
ciação de pais de alunos. Tínhamos enviado um pequeno 
questionário aos pais: «Temos duas reuniões de pais por 
trimestre. Que ponto gostariam de ver debatido, ou que 
técnica gostariam que fosse apresentada?» Um dos pais de 
alunos respondera-nos que a pedagogia Freinet era uma 
pedagogia sem finalidade, que ela não levava à aquisição 
de qualquer conhecimento, que instalava uma disciplina 
deficiente na escola, etc. Eu tornara a atacar essa questão, 
NA REGIÃO PARISIENSE 155
mas fui colhido de surpresa pela agitação que a seguir se 
gerou. Tive a impressão muito nítida de que se tratava 
duma coisa preparada; com efeito, eles respondiam uns aos 
outros dum canto ao outro da sala. Felizmente, alguns pais 
tomaram o nosso partido. A seguir, dissemo-nos que, na 
sua crítica, sempre havia alguma coisa de válido: é o facto 
de que eles não se podem aperceber dos progressos reali­
zados pelas crianças (47). Ora, para nós, não se trata de 
progressos do ponto de vista do conhecimento, mas de pro­
gressos do ponto de vista do desenvolvimento da persona­
lidade da criança, da sua expansão, etc. Isso, porém, é 
coisa muito difícil de medir. Dissemo-nos num primeiro 
tempo: vamos procurar, em relação a certas disciplinas, 
estabelecer uma espécie de escala. Sentimo-nos pouco 
à-vontade, pois achamo-nos em equilíbrio instável entre 
estes problemas de aquisição de conhecimentos e de desen­
volvimento da personalidade, e não sabemos muito bem 
como estabelecer e afinar uma escala. O que faz com que, 
à excepção das nossas escalas de leitura, não tenhamos 
feito grande coisa. Pôde-se comprovar em diversas classes 
que os progressos de facto não eram os que tinham sido 
previstos.
Roger — Toda a gente tem as mesmas dificuldades em 
estabelecer escalas, isto é, escalas que não levem o pro­
fessor a fazer adquirir um cento número de conhecimentos 
duma maneira artificial, quando o nosso desejo seria que 
através de actividades globais se pudesse, posteriarmente, 
constatar a existência de aquisições pontuais.
Mimi — A criança constrói-se progressivamente. Penso 
nas actividades de «despertar» e nas exposições. Pude veri­
ficar que as crianças apresentam exposições um tanto seme­
lhantes. Se existisse um verdadeiro trabalho de equipa no 
interior da escola, seria possível comunicar ao professor 
seguinte o balanço das aquisições realizadas com o mestre 
156 A PEDAGOGIA FREINET
precedente. Eu veria esta comunicação não só do ponto 
de vista colectivo, mas também do ponto de vista indivi­
dual. Seria necessário poder situar a criança com os seus 
progressos, e situá-la também relativamente ao que uma 
criança dessa idade deveria saber.
Lucien — Não se trata duma questão de saber ou de 
conhecimento, mas duma questão de habilidade.
Mimi — No que diz respeito à preparação duma expo­
sição, por exemplo, seria necessário avaliar aptidões tais 
como:
— a criança soube procurar documentos sozinha;
— soube seleccionar esta documentação;
— soube expor oralmente, sem ler o seu texto;
— soube fazer um esboço...
Seria necessário dispor duma escala de habilidade 
(saber-fazer). Se a criança, inicialmente, tem necessidade 
do livro, poderá consultá-lo.
Uma criança que soubesse verdadeiramente escolher, 
seria já um progresso! Mas como o conseguir!
Depois deste ataque por parte de certos pais, com­
preendemos que era efectivamente preciso conseguir fazer 
alguma coisa. A escala foi um trabalho colectivo. Depois, 
alguns aplicaram-na, outros não.
Roger — Como se manifesta, por exemplo, a colabo­
ração entre os professores dum mesmo nivel? Que fazem 
eles em conjunto?
Mimi — Verifiquei que eles se agrupavam, em geral, 
por idades. Acontece que as idades e o nivel se corres­
pondem pouco mais ou menos. Eles mostram uns aos 
outros os seus êxitos. Às vezes, tenho tempo para me des­
locar a um local; aproveitam então a minha presença e 
convidam-me para ir ver o que experimentaram.
NA REGIÃO PARISIENSE 157
Lucien — No conjunto, no plano da escola, não se 
pode dizer que haja verdadeiramente colaboração entre os 
professores. Não há, efectivamente, uma verdadeira equipa, 
com tudo o que isso pressupõe de confrontação e de busca 
em comum, fora das horas de classe.
Mimi — Na medida em que nos ocupamos de certas 
classes, há colaboração entre os professores dessas classes. 
Mas em relação aos outros, não. No início do ano, nós bem 
dissemos que estamos à disposição de seja que pro­
fessor (tradicional) for da nossa própria escola para o 
auxiliarmos no seu trabalho. No que toca à pedagogia 
Freinet, eles podem recorrer a um de nós dois no plano 
das duas escolas, consoante as técnicas e os nivéis. Muito 
poucos, dentre os professores tradicionais, recorrem a nós.
A abertura sobre uma biblioteca municipal
Na cidade, certamente, conhecemos dificuldades, mas 
também dispomos de possibilidades que não estão ao alcance 
dos nossos camaradas do meio rural.
Podemos, assim:
— em história, graças à proximidade de Paris, estudar 
monumentos e vestígios de épocas passadas;
— do ponto de vista artístico, visitar exposições de 
obras conhecidas ou contemporâneas;
— do ponto de vista expressão corporal e ritmo, a 
municipalidade põe desde há vários anos à nossa disposi­
ção animadores;
— levar as nossas crianças à biblioteca infantil onde 
os mais crescidos aprendem a efectuar investigações e a 
escolher livros, e os mais pequenos adquirem o gosto pela 
leitura.
No ano passado,os nossos 4 C. P. «Freinet» foram frag­
mentados em grupos de nivel. Num quadro diferente do 
158 A PEDAGOGIA FREINET
quadro escolar, eles souberam vencer as dificuldades da 
decifração. Achavam-se repartidos por grupos (forte, mé- 
dio-forte, médio e crianças com dificuldades). Cada um 
por sua vez, um grupo partia para a biblioteca acompa­
nhado por uma professora e por mim própria. As profes­
soras ocuparam-se de todos os grupos alternadamente e 
fizeram ciclos completos. Adaptávamo-nos às possibilidades 
das crianças. O grupo forte, muito pouco numeroso a prin­
cípio, foi crescendo, ao mesmo tempo que ia diminuindo 
o dos que sentiam dificuldades. Jovens bibliotecárias 
encontravam-se à nossa disposição. Repartíamos as crian­
ças por duas salas (pequenas mesas para 4 e bancos), 12 a 
15 aproximadamente em cada sala, comigo ou juntamente 
com uma professora, auxiliada por uma bibliotecária. Após 
uma liberdade completa de 5 minutos para a escolha dos 
livros, as crianças decifravam silenciosamente. Passávamos 
junto delas para as obrigar a ler. No fim da sessão, eles 
liam em voz alta a sua página preferida e contavam a his­
tória aos camaradas. Ao deixarem a biblioteca, estavam 
autorizados a levar consigo o livro da sua escolha. As crian­
ças com dificuldades liam-nos as palavras que conheciam. 
No fim da sessão, uma jovem bibliotecária apresentava-lhes 
ao episcópio uma história ilustrada. Entretanto, os outros 
grupos trabalhavam na escola consoante o seu nivel com 
textos infantis ou, no caso dos mais fortes, com os livros 
da biblioteca da classe.
Pudemos comprovar a realização de muitos progressos 
entre os mais novos, bem como uma grande alegria sem­
pre que eles «descobriam» a possibilidade de decifrar uma 
história. Vamos recomeçar esta experiência este ano.
Lucien — Após vinte e cinco anos de direcção escolar 
e de esforços para promover a pedagogia Freinet, aconte­
NA REGIÃO PARISIENSE 159
ce-me, às vezes, pôr-me a pensar num balanço; o meu 
objectivo era constituir pelo menos uma equipa praticando 
a pedagogia Freinet por forma a permitir a algumas crian­
ças a realização duma escolaridade completa de acordo com 
a pedagogia Freinet.
Era não contar com as mudanças contínuas de pessoal 
na região parisiense, com o afastamento involuntário de 
substitutos nomeados estagiários noutro lado, com o aban­
dono de alguns que regressaram a uma pedagogia tradi­
cional. Não consegui formar esta equipa durável ideal.
Teremos, então, falhado? Em relação a este ponto 
preciso, sim. Todavia, sabemos às vezes que este ou aquele 
colega que trabalhou vários anos connosco prossegue os 
mesmos métodos noutros lugares, e se torna mesmo, por 
sua vez, animador. Deste modo, se falhámos a nossa 
colheita, aqui, em Choisy, nem por isso todas as sementes 
se perderam...
Em Portugal, no ponto 
mais alto da esperança
no Externato da Torre 
(uma reportagem de R.U.)
Uma visita ao Externato da Torre (Lisboa), onde Ana Maria 
e Lígia praticam as técnicas Freinet.
Maio de 1974. Duas semanas após o golpe de Estado libertador 
e a dissolução da P. I. D. E., a polícia política, Lisboa continua a 
viver num clima febril. Na rua. as pessoas disputam os jornais, 
em especial o primeiro número do Avante, órgão do P. C. Desfiles, 
reuniões, proliferação de panfletos e de cartazes atestam a vivência 
duma liberdade recuperada. Inscrições feitas à pistola convidam 
todos a celebrar o Primeiro de Maio Vermelho ou a darem caça 
aos agentes da P. I. D. E. emboscados. Paira no ar uma embriaguez 
de férias. No ar e nas escolas, pois nenhum estabelecimento ficou 
indiferente ao grande «chinfrim» e os alunos, mais depressa do que 
os adultos, têm idéias precisas sobre as mudanças a promover: 
suprimir o espartilho de exames numerosos, minuciosos, enciclo­
pédicos (revisões que abarcam vários anos), criar conselhos de 
alunos nos estabelecimentos de ensino, limitar a selecção, adoptar 
a semana de cinco dias...
Nos arredores de Lisboa, vou visitar Ana Maria e Ligia que 
fizeram funcionar durante quatro anos numa espécie de semiclan- 
destinidade uma escola Freinet. Semiclandestinidade, pois por oca­
sião das inspecções era preciso esconder os jornais escolares e 
fechar à chave o compartimento onde se encontravam as imprensas 
escolares.
Trata-se duma escola privada. No sector do ensino público, 
os professores são catalogados em fichas. Ana Maria está em boa 
posição para o saber: bastou-lhe assistir a um festival de juventude 
no estrangeiro para ser expulsa do ensino oficial. Além disso, a 
rigidez das tradições escolares nas escolas urbanas interdita ai 
qualquer inovação; tudo se resume a uma corrida contra-relógio 
para «engolir» o programa e apresentar alunos para um ingresso 
11
162 A PEDAGOGIA FREINET
no secundário que se faz mediante um exame muito selectivo, pró­
ximo do concurso.
Trata-se duma escola privada para filhos de gente rica. Alunos 
tão infortunados quanto felizes, já que, entre eles, os brinquedos 
e os gadgets são distribuídos em superabundância e mascaram 
carências afectivas ou nevroses possessivas. E os pais? Não indi­
ferentes, pelo contrário. Prestáveis, sensíveis, mas profundamente 
desamparados, angustiados numa sociedade de fachada. Clientela 
privilegiada? Ah, não!, protesta Ana Maria. A pedagogia Freinet 
com crianças das classes populares, crianças novas, ávidas, é um 
sonho! Aqui, o que se oferece já não desencadeia motivação numa 
infância saciada e mimada. Nostalgia da ilha deserta que a todos 
permitiría reconstruir a partir das verdadeiras necessidades...
Ana Maria — Há vários anos já que Lígia e eu falámos 
em fazer qualquer coisa em colaboração, e chegámos a 
acordo para fazermos uma pequena escola. Foi há cinco 
anos, em 1969. Começámos por um pequeno grupo de 
trinta alunos, na maternal. Concordámos em aumentar a 
escola todos os anos de uma classe por ano. Instalámo-nos 
na casa que meu pai me deixara. Como vês, é uma grande 
casa de três andares; a maior parte dos meus irmãos tinham 
partido para a guerra, e a casa estava, portanto, livre. 
A escola aumentou de uma classe por ano; ao mesmo tempo, 
procedíamos aos arranjos necessários para pôr estas clas­
ses a funcionar. A escola foi crescendo juntamente com o 
número de crianças. Presentemente, temos uma centena 
de crianças distribuídas por três anos de escola maternal 
e três anos de escola primária. No próximo ano, inaugura­
mos o quarto ano de escolaridade, e passamos assim a 
cobrir todo o ciclo elementar.
Roger — Isso dá, portanto, aproximadamente, uma 
média de quinze par classe. Tu começaste com amigos; 
como recrutaste as tuas auxiliares?
ANA Maria — Foram amigos que reuniram o dinheiro. 
Fomos cinco a inaugurar a escola.
Roger — Já tinhas antes ensinado?
EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 163
Ana Maria — Sim, eu já tinha dado aulas, mas durante 
dez anos estive proibida de ensinar por razões políticas. 
Antes disso, ensinava no liceu, mas isso não era verdadeira­
mente o que eu desejava fazer — preferia ocupar-me de 
crianças.
Roger — E os dez anos durante os quais não pudeste 
ensinar, foram de 1960 a 1970?
Ana Maria — Sim, logo a seguir aos meus estudos 
universitários; dei aulas durante dois anos, mas fui afas­
tada do ensino por ter participado no festival mundial da 
juventude na União Soviética. Começámos a escola com 
trinta alunos e duas educadoras. Foi muito agradável, nesse 
ano, ver tantas crianças nesta casa.
Apresentar as técnicas Freinet aos pais
Roger — Procuraste introduzir métodos novos, e che­
gaste, assim, às técnicas Freinet. Como é que isso aconte­
ceu? Como levaram vocês os pais e os professores a aceitar 
estes métodos? (51)
Ana Maria — Em relação aos pais, nós fizemos nume­
rosas reuniões no princípio do ano. As primeiras crianças 
que para aqui vieram eram filhos de pais que nós já conhe­
cíamos. Eles tinham ouvido falar do nosso projecto de 
fazer uma escola dum género diferente. Eram quase pes­
soas amigas. Diziam-nos eles: «Ah! com vocês eles estarãobem.» Realizámos, quase durante dois meses, reuniões 
muito frequentes com os pais. Explicámos-lhes o que íamos 
fazer e o que pensávamos da escola em geral. Seguida­
mente, durante três anos, discutimos com os pais de maneira 
muito regular problemas de pedagogia, de psicologia e de 
aprendizagem, ao mesmo tempo que as atitudes a adoptar 
em relação às crianças. Era sobretudo Lígia que falava, pois 
164 A PEDAGOGIA FREINET
ela conhece muito bem todos estes problemas. Este ano, 
não tivemos praticamente alunos novos, e alterámos um 
pouco o espírito da nossa escola. Em vez de fazer reuniões 
plenárias, convidamo-los cada um por sua vez, se assim o 
desejarem, a assistir aos nossos conselhos de professores, 
como viste há pouco (tinham aparecido três pais). Quinta- 
-feira, Lígia receberá os mesmos pais na qualidade de psica­
nalista. Geralmente, ou são os pais que pedem para entrar 
em contacto connosco, ou somos nós mesmos que deseja­
mos ver os pais por ter surgido uma situação qualquer 
com os seus filhos. Suspendemos as reuniões sistemáticas, 
e dissemos aos pais: vocês agora já sabem muitas coisas; 
podem também ler—aqui estão algumas obras — e se, indi­
vidualmente, ainda tiverem problemas, venham-nos ver 
individualmente. Em vez das reuniões de informação, con­
vidámos os pais a assistir ao trabalho dos filhos na pró­
pria classe.
Roger — Vocês fixaram um dia da semana para isso? 
Ana Maria — Não, eles marcam, simplesmente, uma 
entrevista. Certos dias, eles acorrem em grande número. 
Repartem-se pelas classes com a professora, depois do que 
os reunimos num salão e discutimos com a totalidade dos 
pais.
Roger — Retiraram vocês benefícios dessas reuniões?
Ana Maria— Sim, elas permitiram falar a todos os que 
aqui trabalham, e não apenas a Lígia e a mim. As profes­
soras ganharam mais segurança e desembaraço, e estas reu­
niões constituem agora uma espécie de motivação para o 
seu trabalho. Actualmente, estamos a preparar uma reu­
nião durante a qual iremos projectar uma montagem que 
permitirá compreender melhor o trabalho das crianças. 
Montagem essa que eles fazem inteiramente sozinhos.
EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 165
Roger — Quanto ao pessoal, vocês já não sentem actual- 
mente dificuldades?
Lígia — Temos muita dificuldade em recrutar profes­
sores. Quando se apresentam voluntários, damos prioridade 
aos que manifestam antes de tudo uma boa relação com 
as crianças.
Ana Maria — Geralmente, Lígia e eu falamos com a 
pessoa que se apresenta. Depois, a formação é feita aqui; 
trabalhamos juntos em classes. Pois tanto Lígia como eu 
encarregamo-nos muito facilmente duma classe e trabalha­
mos com as crianças, o que tranquiliza bastante as pessoas 
que chegam.
Roger — Os professores ficam geralmente quantos anos 
nesta escola?
Ana Maria — Todos os mestres que cá temos, estão cá 
desde a inauguração da escola. Há apenas uma professora 
que nos vai deixar no próximo ano, pois está à espera dum 
segundo filho.
Freinet em Portugal
Roger — Como travaste conhecimento com a pedago­
gia Freinet?
Ana Maria — Há quinze anos que estou familiarizada 
com as idéias de Freinet, pois conheci a introdutora de 
Freinet em Portugal, a Sr.a Borges. Conheci Maria Borges 
no ano em que fui obrigada a abandonar o ensino. Segui 
um dos cursos que ela tinha organizado. Durante os anos 
que estive afastada do ensino, ocupei-me dos meus próprios 
filhos e li todos os escritos de Maria Borges, todos os livros 
que ela recomendava.
166 A PEDAGOGIA FREINET
Roger — Tu também frequentaste um cento número de 
estágios e de congressos Freinet?
Ana Maria — Sim, frequentei um estágio nos Pirenéus 
em 1970.
Roger — Tinhas visto funcionar classes em França?
Ana Maria — Não, porque os estágios tinham geral­
mente lugar durante as férias. Aquele estágio realizou-se 
em Aragnouet. Foi um grande êxito, e quando regressámos, 
tínhamos desejo de fazer muitas coisas com o pequeno 
grupo que se constituíra à minha volta. No ano seguinte, 
convidámos alguns amigos franceses presentes no estágio 
de Aragnouet a virem a Portugal, e organizámos um pequeno 
estágio.
Roger — Vocês, nessa altura, tinham de fazer tudo isso 
de maneira clandestina, não?
Ana Maria — Não, nós evitávamos fazer publicidade 
nos jornais, mas reuniões pedagógicas era uma coisa que 
tínhamos, mesmo assim, a possibilidade de fazer. A coisa 
teve lugar numa casa particular, de modo que não houve 
qualquer manifestação exterior que pudesse chamar a aten­
ção para os participantes.
Liberdade ou negligência? (52)
Roger — Quando se vive na vossa escola, tem-se a 
impressão de estar verdadeiramente numa escola Freinet: 
as relações são sensíveis, afectuosas, as crianças estão liber­
tadas. Todavia, a crítica que duma maneira geral se faz à 
nossa pedagogia é a de não ser suficientemente exigente e 
eficaz. Vocês deparam com o mesmo tipo de crítica por 
parte dos pais?
Ana Maria — É essa a questão que estamos precisa­
mente a estudar neste momento, pois agora a relação é 
EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 167
muito boa entre os professores e as crianças, mas temos 
algumas dificuldades em conseguir que, relativamente a 
certos pontos, as mestras apresentem uma certa exigência; 
o temperamento português inclina um pouco a deixar cor­
rer, a tolerar demasiadas coisas. Elas puseram de lado o 
tradicional e têm agora a impressão de que, quando siste­
matizam um pouco os conhecimentos, regressam ao tradi­
cional.
Lígia— Pelo que me toca, creio que isso deriva essen­
cialmente de elas serem muito novas; se tu lhes falas de 
liberdade, elas não compreendem que se não trata sim­
plesmente duma tolerância, mas também duma exigência 
para consigo próprio. Para elas, ,a liberdade é um pouco 
a anarquia. Esta noção de liberdade é mesmo difícil para 
mim própria, e compreendo muito bem que elas se sintam 
tentadas pela anarquia.
Roger — Vocês falaram deste problema com os profes­
sores?
Ana Maria — Sim, é também um pouco por culpa 
minha, pois eu não me sei impor. Creio também que me 
devo comportar para com elas tal como desejo que elas se 
comportem para com as crianças, e evito, portanto uma rigi­
dez excessiva. E ao ter para com elas esta atitude de aceita­
ção, não dou a impressão de ter um projecto; portanto, não 
obtenho da sua parte uma resposta a este projecto.
Lígia — A única solução parece-me ser a de deixar uma 
grande liberdade às crianças e aos professores nos seus 
projectos, mas mostrar-se depois exigente no que respeita 
à realização, à apresentação deste projecto. De maneira 
que é através da forma que vamos talvez fazer sentir às 
crianças as necessidades do esforço, da superação de si 
próprio. É aqui que deparamos com a maior dificuldade: 
as crianças, um pouco como os adultos, não compreendem 
168 A PEDAGOGIA FREINET
a necessidade de se interessar por um projecto, de o 
terminar; passam dum projecto a outro e não se con­
vencem da necessidade de certas sistematizações. Sim, ao 
princípio do ano, tudo «arranca» muito bem, fazem-se pla­
nos de trabalho e cumprem-se os planos de trabalho. 
Ao fim de dois ou três meses, o interesse diminui.
Roger — Acaso não se podería chegar a acordo com os 
pais relativamente a um certo número de exigências que 
encontrariam também correspondências na vida familiar?
Lígia — Aqui, é muito difícil, porque os pais dão tudo 
às crianças; são crianças muito protegidas.
Quando a riqueza esteriliza
Ana Maria — Devido a terem sido estragados com 
mimos, as crianças e os pais não têm em consideração os 
esforços da vida escolar; por exemplo, um jornal escolar, 
para eles, não significa grande coisa, pois eles dispõem de 
revistas, de magazines, de álbuns. Estou certa de que com 
crianças de meios populares se obteriam resultados bem 
melhores neste plano.
Roger — Então a cooperativa escolar não faz muito 
sentido na tua escola?
Ana Maria—Podemos muito facilmente obter dinheiro; 
as crianças têm todo o dinheiro que quiserem, mas não 
vêem a utilidade de consagrar estedinheiro a uma acti­
vidade escolar. Por exemplo, este ano, dissemos às crian­
ças: vocês não trazem nada de vossas casas, e vamos instalar 
uma espécie de cooperativa na escola destinada à aquisição 
dos objectos de que temos necessidade. A coisa funcionou 
bem durante um certo tempo, mas devido ao facto dos 
recursos em dinheiro provirem da família e não das suas 
EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 169
próprias actividades, a motivação não era a que se teria 
conhecido num meio popular.
Roger — Vocês nunca procuraram encontrar motiva­
ções na correspondência escolar?
Ana Maria — Tentámos introduzir a correspondência 
escolar na nossa escola, mas é muito difícil. Temos duas 
classes que trocam correspondência, mas enquanto em 
França o correio é muito rápido, aqui, é muito mais lento 
e os hábitos familiares são quase exclusivamente os do tele­
fone, muito mais que os da correspondência. É por isso 
que, na classe, a motivação para a correspondência é muito 
reduzida.
Roger — Quais foram as repercussões na vossa escola 
dos acontecimentos do 25 de Abril?
Ana Maria — Todas as crianças estavam sobreexcita- 
das, e agora temos ainda muita dificuldade em conseguir 
uma concentração de espírito normal. As crianças são for­
temente afectadas pelo que se passa na rua, pelas discussões 
familiares, pelos jornais, e não tardou que as crianças nos 
apresentassem os seus primeiros poemas.
Roger — Poderías ‘tu .traduzir-nos alguns dos poemas?
ALEGRIA E TRISTEZA
Estou contente com tudo o que aconteceu, mas não com 
uma coisa: o meu tio estava na guerra e morreu.
Os presos podem sair da prisão 
mas os que estão mortos não podem sair da morte. 
A guerra acabou 
estou contente, mas o mais belo 
seria que o meu tio ainda estivesse vivo.
Catarina, 6 anos
170 A PEDAGOGIA FREINET
O PESADELO
Eu tive um pesadelo
As pessoas deviam partir para a guerra por sete anos 
deram-me 
um uniforme, 
uma espingarda, 
e botas que faziam doer os pés.
Um rapaz de dez anos
era o comandante
ele obrigou-me a dar corridas
pelos campos,
eu parti para a guerra
Puseram-me num comboio 
e disseram-me:
Senhor Pedro
a espingarda serve para defender e para atacar, 
eu tive medo 
e acordei.
Pedro, 7 anos
Volto a encontrar Ana Maria e Lígia, algumas horas 
mais tarde, por ocasião da reunião do grupo português de 
escola moderna que terá lugar na sua escola às 22 horas 
e se prolongará pela noite dentro. Entretanto, José leva-me 
a apanhar fresco até Cascais. A estrada passa nas proxi­
midades da sinistra prisão da P. I. D. E. onde a Gestapo 
portuguesa internava os seus suspeitos. José e sua mulher 
conheceram-na cada um por sua vez, por motivos fúteis, 
como seja a criação duma cooperativa cultural legal que 
editava obras literárias de autores jovens. O que se reve­
lava mais duro? Preparar o seu filho de oito anos para a 
ideia de se ver bruscamente privado dos pais, habituando-se 
EM PORTUGAL, NO PONTO MAIS ALTO DA ESPERANÇA 171 
a viver com esta obsessão. Mas, entre suspeitos, internados 
e ex-internados, reinam a ajuda mútua, a astúcia e a fra­
ternidade, mesmo nos limites da provocação: um piqueni­
que gigante organizado no arvoredo que rodeia a prisão, 
um desfile de automóveis a buzinar.
Estas coisas são ditas com simplicidade, sem vaidade, 
sem fanfarronice. Ana Maria conclui:—Se queres saber, 
prefeririamos não ser citados num jornal ou numa revista. 
Tantos outros fizeram mais do que nós pagando-o com a 
vida. Não somos mártires. Simplesmente, sobreviventes da 
esperança.
Uma certa alegria de viver
por Roger Montpied e Mado Merle 
(reportagem de Janou Lémery)
— Eu gosto dos professores... gosto das matemáticas... gosto 
das salas de trabalho... Trabalho no atelier todas as noites em 
minha casa.
Algumas frases do painel «Criticas e Sugestões», algumas pala­
vras ouvidas de passagem... reveladoras duma ambiência familiar, 
calorosa, animada.
Algumas crianças trabalham com fichas de gramática, outras 
retomam textos livres, outras preparam-se para uma leitura sonora 
individual, outras ainda trabalham colectivamente na descoberta 
do número 14, verificam com a máquina de calcular as dádivas 
destinadas à cooperativa durante o mês de Janeiro. Outros dois 
redigem cheques para encomendas. O livro de poemas acompanha 
nas compras os cestos do catálogo de La Redoute... É a vida que 
está ali presente, tanto nos seus aspectos materiais realistas como 
nos seus aspectos mais secretos e íntimos. Passo dum grupo a outro. 
Observo, escuto — as crianças são directas, cheias de bom-senso, 
abertas. Informam-se reciprocamente, criticam-se sem complacên­
cia. Mais uma vez, a vida com as suas asperezas, a sua diversidade, 
os seus constrangimentos; uma vida que se pode agarrar com as 
mãos, a matemática, a poesia, o lado a lado com o companheiro 
de trabalho, a leitura solitária, a palavra e o olhar do professor 
amigo.
São estas as primeiras impressões que colhemos junto 
de Mado Merle, de Roger Montpied e dos seus alunos do 
C. P.-C. E.
E depois, quando você decide interiormente ganhar um 
certo recuo, distanciar-se para ser objectivo e transmitir 
uma mensagem, apercebe-se, então, do que torna possível 
este fervilhar de vida.
174 A PEDAGOGIA FREINET
• Uma organização racional do mínimo espaço: uma 
distribuição equilibrada dos cantos para atelier, do centro- 
-fórum e dos cantos pessoais — unicamente objectos úteis 
e desde logo utilizáveis pelas crianças; engenho no porme­
nor do instrumento (um pára-brisas de automóvel no atelier 
de estampilhas (lâmina com letras, desenhos, etc., recor­
tados para pintar) o que elimina os acidentes com o cilin­
dro, os dedos...), uma incitação à ordem fecunda (guarda- 
-fato de plástico para os trajes de teatro...); corredores 
aproveitados para o trabalho de investigação em ciências 
e em música.
• Uma multiplicidade de técnicas de trabalho aliando 
a investigação livre à investigação guiada, o esforço soli­
tário e o esforço colectivo, a provisão de exercícios tradi­
cionais e a maior liberdade possível na descoberta — audá­
cia, mas também uma certa ponderação própria na 
Auvérnhia.
• A imagem duma mulher e dum homem verdadeiros, 
com os seus impulsos, os seus entusiasmos, as suas hesita­
ções. Têm certezas, mas também dúvidas; paciência, muita 
disponibilidade interior, mas os seus minutos de enerva- 
mento, de irritação.
Mado e Roger existem nas suas classes e completam-se.
Como souberam eles tirar proveito da sua complemen­
taridade?
Ouçamo-los:
— Materialmente, reorganizámos as nossas classes me­
diante economia de espaço e uma melhor utilização: mate­
rial de francês dum lado, de matemática do outro; material 
de composição do jornal juntamente com o francês, im­
prensa e decoração do outro; divisão dos ateliers de ante 
UMA CERTA ALEGRIA DE VIVER 175
infantil (pintura, pirogravura, costura, trabalhos ma­
nuais...).
Esta repartição do material fixa o professor na sua 
classe, sendo os alunos que mudam: segunda-feira de manhã 
numa classe, segunda-feira à tarde e terça-feira de manhã 
noutra, terça-feira à tarde na primeira, etc., de maneira a 
permitir às crianças alternarem e não terem francês ou 
matemática todas as manhãs.
Consultamo-nos para equilibrar o trabalho individual 
fornecido por cada professor, para explorar um assunto 
abordado durante uma conversação em francês...
Em suma, embora repartindo entre nós as matérias a 
ensinar, evitamos especializar-nos e consideramos que a 
continuidade do trabalho da criança (tem prioridade sobre 
a compartimentação escolhida e imposta pelos professores. 
É importante que a criança sinta que não existe descon- 
tinuidade de que tanto ela podería beneficiar como... ser 
prejudicada.
Os momentos de intercâmbio entre os professores tendo 
em vista a coordenação processam-se durante os recreios 
ou rapidamente antes ou após as aulas.
Um outro aspecto do nosso trabalho de equipa: a pos­
sibilidade de recuperação de atrasos escolares em peque­
nos grupos. Por exemplo, durante a última hora de segunda--feira, Mado ocupa-se da recuperação dos que se atrasaram 
em francês durante a semana (10 a 15 em três cursos), ao 
mesmo tempo que Roger se ocupa dos restantes em inten­
ção dos quais passa documentos audiovisuais muitas vezes 
recebidos do C. R. D. P. e relacionados com os temas abor­
dados na disciplina de «despertar».
Para que estas recuperações sejam eficazes e consigam 
«preencher os fossos» que se aprofundam incessantemente 
ao longo da escolaridade, seria preciso chegar a um número 
176 A PEDAGOGIA FREINET
de três professores para o efectivo de duas classes actuais. 
Assim, podería fazer-se um bom trabalho!
Razões de queixa avançadas pelas crianças: algumas 
gostariam de ficar com o mesmo professor (preferência 
afectiva); outros acham que isso obriga a arrumar muitas 
vezes a «tralha» escolar, o que é verdade, mas representaria 
antes uma vantagem para a escolaridade futura na medida 
em que, desse modo, a criança aprende a seleccionar o que 
lhe é necessário.
— Foi preciso, a princípio, explicar muito bem aos pais.
— Vantagem: a criança fica menos tempo bloqueada 
num insucesso, e ao mudar de lugar, tem a possibilidade 
de se resgatar mais facilmente, pois não permanece durante 
o dia inteiro com o mesmo professor.
— Com o acordo do nosso novo inspector, estamos deci­
didos a continuar e a ir mais longe, se possível, mas a falta 
de espaço e os efectivos impedem-nos de trabalhar em 
atsliers permanentes.
— Cada um ganha uma consciência mais clara do seu 
trabalho, e as noções novas decantam-se mais facilmente.
— Corrigimo-nos e enriquecemo-nos mutuamente, gra­
ças à necessidade das consultas, das discussões e dos inter­
câmbios para harmonizar o trabalho.
— Para «julgar» a criança, dispõe-se de duas opiniões 
em vez duma, corre-se o risco de cometer menos erros 
e acompanha-se a evolução ao longo de três anos.
Se se quiser entrar um pouco mais profundamente na 
intimidade das crianças, basta observar algumas produções 
gráficas que enfeitam as paredes, ler um ou dois textos 
livres do dia, que nada têm de anódino, uma pesquisa 
matemática... os documentos não faltam. Os professores 
são modestos, as obras raramente são publicadas, a menos 
que os obriguem a isso... a socialização, são os correspon­
UMA CERTA ALEGRIA DE VIVER 177
dentes de Saint-Babel, de Artonne, no Puy-de-Dôme, o seu 
jornal é Nos Monts, difundido pelos pais associados à vida 
do grupo.
HISTÓRIA DE DEUS
Um dia, Deus veio até à feira, 
depara com um velho muito curvado 
e outro muito divertido.
AH! COMO ERA DIVERTIDO!
Deus ri às gargalhadas, 
que ecoam por toda a feira. 
Todos olham para ele 
verdadeiramente embasbacados. 
Deus ri ainda mais alto 
e depois afasta-se sempre a rir. 
Tropeça numa pedra,
E CESSA DE RIR,
faz uma careta muito cómica, 
e então todos se põem a rir. 
Deus ri por sua vez.
Outras pessoas, atraídas pelo barulho, aproximam-se e riem 
também.
DEU-SE 0 CASO DE QUE TODA A FRANÇA SE PÔS A RIR!
E no entanto, Mado Merle e Roger Montpied têm pro­
blemas, como vocês e eu. Cada um tem a sua família, preo­
cupações, trabalha aqui ou ali até ao limite das suas possi­
bilidades físicas muitas vezes, da sua disponibilidade.
12
178 A PEDAGOGIA FREINET
Eles sabem, como você e eu, que gostariam de fazer 
sempre mais pelo grupo departamental em que nos senti­
mos tão bem, fazer sempre mais ao nivel sindical, polí­
tico, etc.... mas vinte e quatro horas é pouco tempo.
A vida é feita de opções... cabe a eles fazerem as suas.
O arquitecto também educa
por Raymond e Jacqueline Massicot 
com Jean-Claude Dubois 
(reportagem de R. U.)
Um arquitecto (53) ao serviço das crianças, e não do prestígio 
municipal. Uma arquitectura que prova que, se a escola é cara às 
crianças, sai menos custosa à comuna que um edifício clássico. 
Uma arquitectura na qual a pedagogia Freinet deixa de ser a qua- 
dratura do círculo. Essa arquitectura existe agora, e é em Magny 
-Cours que a vamos encontrar. Podemos dizer que ela assinala o 
aparecimento dos arquitectos-educadores.
Jacqueline e Raymond Massicot, os seus colegas e ainda menos 
as crianças não conhecem o Sr. Arquitecto. Jean-Claude é o nome 
por que conhecem aquele que desde há três anos os vem visitando 
regularmente. Dezenas de conversas tiveram lugar entre ele e os 
alunos, fora de qualquer espécie de publicidade. Nada de «mesas 
redondas» transmitidas pela televisão, como se vê noutros lados 
sempre que excepcional e artificialmente se improvisa uma con­
frontação entre criadores e utentes. Aqui, o diálogo tornou-se numa 
rotina. Jean-Claude Dubois (do atelier «Volume») passa por ali e 
a sua presença não é mais notada que a do carteiro. Ele sabe, 
porém, ouvir as crianças, e nenhuma interrogação se lhe afigura 
fútil ou impertinente.
Hoje, são Thierry, Stéphane, Nadine e Monique, alunos dos 
cursos médios, que desejam saber mais coisas sobre a decoração 
da estacada.
Uma vigilância precoce
Stéphane — Eu gostaria de saber quando é que você 
traz de novo as tintas para continuar as personagens. Pois 
eu vi, quando da inauguração, que isso era uma coisa que 
agradava.
180 A PEDAGOGIA FREINET
Jean-Claude — Há ainda tinta. É preciso que ela 
acabe, e depois há que pedir à câmara municipal um 
pequeno orçamento para continuar.
Stéphane — As cores serão sempre as mesmas?
Jean-Claude — Não! É preciso mudar, com certeza. 
É preciso que haja a maior liberdade possível.
Stéphane — Você escolheu, mas vai escolher outras, 
quando as tintas acabarem. Houve outros que fizeram 
modelos, será você ainda quem os irá escolher?
Jean-Claude — Outras cores ou outros desenhos?
Stéphane — Não! Outros desenhos?
Jean-Claude — Não, eu escolhí quando da inauguração, 
mas agora é a vossa vez de escolher, de descobrir.
Nadine — O que eu não acho bonito, são os coisos 
brancos, sobretudo agora que estão sujos, enegrecidos; seria 
preciso pintá-los.
Jean-Claude — Sim, está previsto pintar um certo 
número muito simplesmente para indicar as classes, certas 
passagens e fazer uma espécie de policromia exterior; mas 
isso só será por altura da próxima reabertura das aulas. 
Antes de o fazer, pensou-se que era preferível que a relva 
crescesse um pouco e que os acessos estivessem um pouco 
melhor .preparados para se não correr o risco de sujar os 
painéis.
Nadine — Tratar-se-á de desenhos de crianças, como 
sejam bonecos, ou então de desenhos unidos?
Jean-Claude — Isso depende dos painéis.
Nadine — Os túneis, por exemplo, se forem unidos, 
será essa a cor das classes?
Jean-Claude — Não, as cores poderão ser outras. 
É preciso descobrir cores que se adaptem bem exterior­
mente e que não choquem demasiado em relação às cores 
interiores.
O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 1«1
Monique — Agora, estou longe disso, mas suponhamos, 
por exemplo, que dentro de seis anos, o grupo começa a 
estragar-se; você mandará repará-lo?
Jean-Claude — Sim, mas não há razão para isso, pois 
a coisa foi construída duma maneira muito sólida e muito 
pesada para que precisamente não surjam problemas de 
envelhecimento. Mas, se por acaso isso vier a acontecer, 
a reparação far-se-á imediatamente.
Monique— Na realidade, chovia lá dentro, mas eles 
vão repará-lo?
Jean-Claude — Sim, com certeza, eles estão neste 
momento a reparar todas as fendas.
Thierry — Em relação ao problema do futebol, num 
certo sentido, é bom ter um pátio como este, alcatroado, 
enquanto que no outro havia poeira. Noutro sentido, já 
não é tão bom, pois não se pode jogar futebol; mas, quando 
a relva tiver crescido, poderá jogar-se sobre ela?
Jean-Claude — Sim, sim! está fora de questão não se 
poder pisar a relva.
Stéphane — Eu gosto mais desta escola, deste pátio, 
porque no outro podíamo-nos magoar; mas não se deveria 
jogar futebol, pois podemo-nos magoar e, sobretudo, as 
bolas podem partir os vidros...
Thierry — Eu gostava muito do pátio da antiga escola. 
Aqui, o que há é alcatrão, e as calças ficam muitas vezes 
rasgadas, o que acontecia com menos frequência na antiga 
escola.
Jean-Claude — Sim, masquando puderes pisar as par­
tes relvadas, irás para onde não corras o risco de rasgar 
as calças. Poderás escolher. Na antiga escola, tinhas um 
pátio de terra batida, e quando chovia o que havia era lama. 
Também corrias o risco de cair.
Monique — Nas actividades da escola, do que eu mais 
gosto é da possibilidade de se fazer reuniões. Na outra, 
182 A PEDAGOGIA FREINET
não o podíamos fazer. Tínhamos menos actividades artís­
ticas, etc., e havia falta de espaço. Outra coisa de que gosto 
muito é da claridade das salas de aula devido às grandes 
janelas, enquanto que a outra escola era escura. Gosto 
também muito do atelier, que agora é uma sala inteira, 
enquanto antes os ateliers apenas ocupavam um canto da 
classe, o que não me agradava. Enquanto, agora, gosto!
Nadine — Eu também; na outra, estávamos bem, mas 
não era a mesma coisa. Gosto mais desta escola. E do 
mobiliário também, pois antes as mesas estavam ligadas 
às cadeiras, enquanto agora podemos deslocar as cadeiras.
Monique— Além disso, também gosto muito, aqui, das 
casas de banho, porque antes, quando lá queríamos ir, não 
o podíamos fazer, e tínhamos de esperar. Agora, podemos 
ir sempre que nos apetecer.
Roger — E a instalação das casas de banho é melhor, 
e mais asseada?
Monique — Sim! É muito melhor e mais higiénica.
Roger — Tratam-vos como adultos, e não como 
crianças.
Monique — Nas outras latrinas, quando chovia, havia 
lama, e quando fazia sol, cheirava mal.
Nadine — Cheirava mal, até não se poder mais.
Monique — Além disso, as latrinas dos rapazes e das 
raparigas estão separadas, o que é melhor.
Stéphane — No próximo ano, a relva terá crescido, 
pisá-la-emos constantemente, o que acabará por estragá-la, 
não?
Jean-Claude — Não, porque no campo de futebol cal­
ca-se a relva com uma intensidade muito maior; e ali onde 
vocês vão poder andar, como a superfície é muito grande, 
não é forçosamente no mesmo sítio.
Stéphane — Mas vamos poder andar lá em qualquer 
altura?
O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 183
Thierry — Do que eu não gosto são das torres de 
cimento das platéias do pátio.
Monique — Sim, e eu, pela minha parte, gosto dos 
ateliers, pois não existiam na outra escola, pelo que está­
vamos sempre encerrados na nossa sala de aulas. Não 
podíamos ir ver os companheiros e as companheiras, 
enquanto que, agora, podemos.
Stéphane — Os ateliers ficavam dentro das salas de 
aula, o que dava cabo dos ouvidos aos que trabalhavam 
nos planos, impedindo-os de prosseguir os seus esforços, 
ao contrário do que agora se passa, havendo salas especial­
mente destinadas para o efeito.
Roger — A que chamas tu «planos»?
Stéphane — Fazer planos de trabalho, fazer fichas. 
Mas penso que você está ao corrente do que se trata. Tra- 
ta-se dum plano de trabalho que se completa todos os quinze 
dias com fichas.
Roger — Do ponto de vista da camaradagem, permite 
esta escola ter mais camaradas ou menos? Porquê?
Stéphane — No atelier, podem estar duas classes; 
assim, podemo-nos ver uns aos outros, ao passo que na 
outra escola era diferente, pois estávamos todos na mesma 
sala de aulas. Por isso eu gosto mais desta escola do ponto 
de vista da camaradagem, pois vemo-nos com maior fre­
quência.
O arquitecto escolar... um arquitecto como os 
outros?
Roger — Quando se constrói uma casa, temos pela 
frente um cliente com as suas necessidades definidas, com 
desejos precisos; mas, no caso duma escola, conhecemos 
nós quem são os clientes? As crianças e os professores 
serão recrutados quando a caserna estiver construída!
184 A PEDAGOGIA FREINET
Jean-Claude— O cliente não dispõe de meios para 
definir rigorosamente a sua necessidade. Fornece as gran­
des linhas, mas é ao arquitecto que cabe fazer compreender 
ao seu cliente as vantagens de certas soluções ou abrir-lhe 
os olhos. Intervém também uma certa pedagogia: o papel 
do arquitecto, inicialmente, consiste em informar o seu 
cliente dos meios disponíveis para que se abram novos hori­
zontes a esse mesmo cliente. Mas como pode o cliente 
compreender o problema da arquitectura? Ao folhear as 
revistas, ele limita-se a ver imagens acabadas, sem saber 
o que se passou antes, como se chegou àquele resultado, 
e não se pode partir dum resultado para edificar novas cons­
truções; pode-se utilizá-lo como experiência, mas em última 
análise seria necessário conhecer todos os processos que 
conduziram a esse resultado, e não vejo como poderia ser 
de outra maneira.
Roger — Em relação a esta escola, qual foi o processo 
utilizado?
Jean-Claude — Ela foi feita duma maneira muito sim­
ples, muito directa. Praticamente, no primeiro dia em que 
tiveram lugar as reuniões em casa do presidente da câmara 
Bernigaud, e em que participaram o inspector Chassery, 
os directores de escola Raymond e Jacqueline Massicot e 
nós próprios. Apresentámos as primeiras propostas, que 
não passavam de grafismos. Inicialmente, procurámos 
saber o que se poderia saber, informámo-nos; fizemos como 
toda a gente, lemos livros, observámos o que foi feito na 
Finlândia, na Suécia, na Inglaterra, nos Estados Unidos, 
depois do que traçámos um pequeno esboço topográfico 
geral muito rápido. A partir daí, elaborámos um vago ante- 
projecto, que era pelo menos um desenho gráfico, e na 
melhor das hipóteses um organigrama que foi submetido 
à sua apreciação e sobre o qual começámos as discussões. 
Foi essa uma das bases.
0 ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 185
Roger — Você fê-lo com que espírito? Imaginava você, 
já, a actividade escolar que ali iria ser desenvolvida?
Jean-Claude — Não, nada disso, não conhecíamos nada 
do assunto, éramos absolutamente nulos e incapazes. Faz-se 
como qualquer arquitecto a quem confiam a construção 
dum grupo escolar, e que não construiu nenhum antes 
— era esse o nosso caso. Depois do que, este organigrama 
serviu de base de partida, e começámos a trabalhar. Come­
çámos, apesar de tudo, a ir até à antiga escola para ver 
o que ali se passava; discutimos com os professores, com 
as crianças, fizemos perguntas. 
De que género, por exemplo?
Jean-Claude — Como é que eles viviam no interior? 
0 que era isso da pedagogia Freinet? Pois para nós a 
pedagogia Freinet não passava dum grande «buraco»! Esti­
vemos em alguns congressos para ver o que lá se passava, 
para tentar compreender e afazermo-nos ao «clima», e a 
partir de então tentámos elaborar um projecto adaptado 
realmente às suas necessidades e capaz de corresponder ao 
que se pensava pelo menos como a melhor solução arqui- 
tectural. Oferecemos ao mesmo tempo aos docentes possi­
bilidades técnicas que permitiam tentar adaptar as suas 
idéias a qualquer coisa de concreto, de sólido, e chegou-se, 
assim, ao sistema de construção actual. Sistema de cons­
trução que se define muito rapidamente: os sistemas por­
tadores de base são túneis. Quando existem quatro túneis, 
ou se procede à instalação dum casco, ou não. Partimos, 
portanto, de volumes primários portadores e de muito fra­
cas dimensões, nos quais podíamos instalar serviços sani­
tários, passagens, arrumações, cantos-classe, etc., diferentes 
tipos de actividades que nos foram definidos por profes­
sores como correspondendo a coisas muito precisas. 
O segundo volume, que é um volume muito mais alto e 
com tecto, corresponde a actividades de classes, de ateliers 
186 A PEDAGOGIA FREINET
e de salas polivalentes; é a combinação deste todo segundo 
certos princípios que faz com que se obtenha a escola.
Roger— Representou para si alguma coisa construir 
uma escola, em vez de fazer uma casa para habitação?
Jean-Claude — É cem mil vezes mais interessante.
Roger — Porquê?
Jean-Claude — Do ponto de vista do contacto com as 
pessoas, com as crianças, com uma multidão de pessoas 
afectadas por este problema. No caso duma casa individual, 
temos negócios a tratar com um cliente, um homenzinho e 
uma mulherzinha, e temos toda a espécie de chatices possí­
veis com estas pessoas. Enquanto que no caso duma escola, 
fazêmo-la em primeiro lugar para uma comunidade rela­
tivamente importanteonde tudo se pode passar e, consoante 
as propostas que se façam, pois bem, tanto se pode falhar 
como não. Quero com isto dizer que isso tem uma influên­
cia ao mesmo tempo sobre o ensino (não directamente sobre 
o ensino, mas sobre as facilidades para proceder a este 
ensino). Portanto, é relativamente grave; se se não tem 
consciência deste tipo de problema, será indiferente aquilo 
que se fizer—quero eu dizer, tanto fará instalar barracas 
pré-fabricadas para funcionar como salas de aula; em 
relação a uma escola tradicional, uma barraca pré-fabricada 
tem o mesmo interesse num espaço verde. Não é um ins­
trumento pedagógico definido. No nosso caso, considerou-se 
a escola como um instrumento pedagógico, como um espaço 
de arrumação, como uma cadeira, uma mesa, um quadro; 
trata-se dum instrumento pedagógico como qualquer outro, 
simplesmente a uma escala um pouco maior.
A contribuição das crianças
Roger — Você definiu este instrumento pedagógico refe­
rindo um certo número de funções, um certo número de 
O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 187
atitudes, de possibilidades de trabalho por parte das crian­
ças. ..
Jean-Claude — ...Que nos foram definidas pelas crian­
ças e pelos professores imediatamente; foi desse modo que 
chegámos a este sistema de construção.
Roger — Terá isso levado você a descobrir um outro 
tipo de ensino, isto é, uma outra forma de relação com 
as crianças, uma outra forma de aprendizagem?
Jean-Claude — Certamente, isso leva-nos a descobrir 
o que se não conhecia; e que não conhecíamos, uma vez 
que nos encontravamos em salas de aula que em nada se 
pareciam com aquilo e que eram salas de aulas tradicio­
nais, como as que se podem ver em qualquer liceu de 
província; não imaginávamos que aquilo pudesse existir.
Roger — Foram as suas viagens ao estrangeiro que lhe 
permitiram observar de algum modo uma outra maneira 
de ser, de viver em conjunto no caso de crianças e de 
adultos?
Jean-Claude — Sim, mas não essencialmente, pois 
existem boas experiências em França, por exemplo na 
região parisiense ou em Grenoble. Você encontra-as um 
pouco por toda a parte; simplesmente, elas não são conhe­
cidas, não são divulgadas, o que me leva a criticar os peda­
gogos, pelo menos os que se reclamam de Freinet, pois 
existe uma falta de informação verdadeiramente horrível. 
A partir do momento em que nos começamos a ocupar deste 
problema da arquitectura escolar, repetimos todos os anos 
a mesma coisa: não dispomos de informação; antes de que­
rer propor soluções novas ou construir grupos modelo, etc., 
importa saber, em primeiro luar, o que se fez no estran­
geiro e mais particularmente em França, onde existem deze­
nas e dezenas de experiências que ninguém conhece. Ora, 
com o pretexto de se deleitar com soluções modernas, fica-se 
satisfeito quando alguém descobre uma pequena solução 
188 A PEDAGOGIA FREINET
que represente um avanço em relação à escola tradicional; 
na realidade, em certos casos, essa solução está dez anos 
atrasada em relação a outras experiências; por conseguinte, 
antes de chegar a este estádio de discussão, é preciso em 
primeiro lugar informar-se, e eu lamento profundamente 
que os grupos Freinet não se informem. No estrangeiro, 
existem evidentemente numerosas experiências; pela minha 
parte, não me desloquei nem à Finlândia nem à Suécia, 
mas um outro arquitecto do atelier «Volume» foi à Holanda, 
onde existem experiências interessantes deste tipo; ele foi 
também à Suécia, e pôde, portanto, ver o que ali se passava; 
eu próprio fui à Suíça e aos Estados Unidos, onde, desde há 
vinte anos se vêm ocupando deste problema do grupo 
escolar.
Deverá visar se a felicidade das crianças?
Roger — Você sentiu por certo que as crianças podiam 
ser mais autênticas no meio que você criou. Você criou 
para elas um quadro de vida, mas não irá você ser objecto 
de críticas, nomeadamente a de que procurou tomar as 
crianças felizes, plenamente realizadas? Ora, pela sua arqui- 
tectura, você preparou-as muito mal para a .tortura dos 
C. E. S. pré-fabricados ou dos liceus-cidades-escolares.
Jean-Claude — Sim, mas se não se começa muito cedo, 
quando se poderá começar? E se, de certa maneira, isso 
pode levar as crianças, que mais tarde serão adultos, a 
conceber outros tipos de habitat e a querem exigir 
outros quadros de vida, tipos de equipamento, de escritó­
rio, etc., pois bem, trata-se de um real progresso. É preciso 
pensar no que se passa depois, e é preciso mostrar-lhes que 
pode existir outra coisa, que cabe a eles exigi-la, reclamá-la. 
Creio que se trata duma coisa bastante positiva. É verdade 
que certos pais de alunos pretenderam que as crianças não 
O ARQUITECTO TAMBÉM EDVCA 189
podiam trabalhar num ambiente tão claro, tão colorido e 
tão agradável. Trata-se, no entanto, do mínimo vital, 
pode-se fazer muito melhor, mas apenas no tocante à forma, 
não ao fundo; o fundo é o que verdadeiramente conta, e 
aqueles pais não compreenderam que com este tipo de 
instrumento pelagógico os seus filhos podiam progredir 
muito mais rapidamente e libertar-se muito mais depressa, 
ao mesmo tempo que os contactos com os seus camaradas 
se fariam duma maneira menos formal. Penso que isso 
pode fazer evoluir as crianças.
Roger — Não acha você que, em última análise, é o espaço 
que tvocê lhes concedeu que constitui um dos elementos 
primordiais do seu desenvolvimento? Se você se encon­
trasse numa situação urbana, limitado a espaços medidos, 
disputados, poderia você fazer alguma coisa?
Jean-Claude — Certamente; aqui, o terreno é muito 
grande e partimos duma base horizontal de um só nivel, 
mas podem perfeitamente encarar-se soluções de duplo 
nivel, com meios-nivéis, espécie de «duplex» para crianças, 
etc. Trata-se dum outro princípio, mas que visa o mesmo 
objectivo. É um problema de arquitectura que não levanta 
dificuldades de maior, e é o que se deveria fazer num meio 
urbano. No caso presente, demos resposta a um problema 
preciso e concreto: deram-nos um grande campo, espaço 
verde, possibilidades e espaço; é evidente que, num meio 
urbano, teríamos de pensar noutra solução.
Roger — E se você tivesse de construir agora uma outra 
escola, que tipo de escola lhe interessaria?
Jean-Claude — Gostaria de reconstruir a mesma escola, 
mas para me poder servir do que há de positivo e esquecer 
o que há de negativo; para evoluir. Pois, a partir desta 
base, é evidente que vejo agora as coisas com outros olhos 
e que uma segunda proposta se parecería vagamente com 
a primeira, excluindo embora os aspectos negativos.
190 A PEDAGOGIA FREINET
Roger — A que chama você «aspectos negativos»?
Jean-Claude— Muito simplesmente, problemas de 
organização interior. Não falo dos pequenos problemas 
arquitecturais ou técnicos, esses não são muito graves. 
Problemas de organização interna: quanto a mim, o orga- 
nigrama inicial foi falseado pelo facto de se ter dividido 
o grupo escolar em duas vezes quatro classes para as pri­
márias e uma vez duas classes para a maternal. Na reali­
dade, deveria-se ter reagrupado as oito classes primárias, 
centrando-as à volta das oficinas (ateliers) e em torno duma 
mesma e enorme sala polivalente, em vez de duas salas 
polivalentes divididas em dois, duas vezes, o que represen­
taria uma solução de todo em todo preferível; trata-se dum 
problema de escolha inicial, que se previu ao longo de dis­
cussões, no .papel; mais tarde, quando da utilização, aper- 
cebemo-nos de que existe um pequeno problema daquele 
lado e que seria preciso reagrupar muito mais ao nivel das 
salas polivalentes. Quem se dê conta do que ali se passa, 
vê que se trata de um grande defeito.
Uma outra formação para os arquitectos escolares
Roger — Não pensa você que a formação dos arqui­
tectos escolares não é suficiente e que se podería conceber 
uma espécie de formação em que eles estariam em situa­
ção durante um certo tempo antes de executar o trabalho 
proposto?
Jean-Claude — Não existem trinta e seis soluções para 
fazer coisas desse tipo. No caso de gruposescolares como 
no de outros equipamentos, seria preciso, em última análise, 
exercer funções docentes durante dois ou três anos seguidos 
para bem compreender ao mesmo tempo o arquitecto e o 
utilizador-docente.
0 ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 191
Roger — Não poderia a formação encarar semelhante 
hipótese de trabalho?
Jean-Claude — Não, pois nesse momento você tem de 
ser arquitecto com todos os problemas técnicos da constru­
ção; além disso, docente...
Roger — Mas você quer fazer tudo. Não há possibili­
dade de especialização?
Jean-Claude — Não, de maneira nenhuma; um arqui­
tecto deve ser um homem completo que deve poder res­
ponder a todas as soluções...
Roger — Mal.
Jean-Claude — Talvez mal, mas deve mesmo assim 
tentar encontrar resposta para elas, e todo o problema con­
siste em procurar ter uma abertura de espírito suficiente­
mente vasta para tentar responder a todas as questões. 
É evidente que, quando se é responsável por um grupo 
escolar, ao fim de dois anos, quando se construiu esse 
grupo, começa-se a ser um pouco entendido em pedagogia, 
nos problemas de ensino. O mesmo acontece quando se faz 
uma clínica. É isso que explica o facto de os arquitectos só 
começarem a ser válidos a partir dos 50 anos. A partir do 
momento em que saem da escola, são-lhe precisos 20 a 
25 anos de aprendizagem no próprio local de trabalho. 
No caso dum grupo escolar, deve-se confiar nos utiliza­
dores, tentar corresponder ao que eles exigem. De resto, 
teria sido preciso que eu, dois anos antes, solicitasse uma 
colocação docente aqui; não sei se a teria obtido, uma vez 
que não possuo as habilitações suficientes.
Roger — Sem ir tão longe, não podia você frequentar 
durante um mês uma escola?
Jean-Claude — Um mês não basta; limitamo-nos a 
«sobreviver», a «patinhar».
192 A PEDAGOGIA FREINET
Como associar as crianças a uma investigação em 
arquitectura
Roger — Os arquitectos discutiram com os garotos, 
mas, nesse momento, podiam as crianças ter ideias técnicas 
sobre a arquitectura?
Raymond — Pusemos os garotos a procurar por si pró­
prios!
Roger — Vocês fizeram alguma vez esta pergunta aos 
alunos: o que é que vos apetece fazer e, para fazerem isso, 
de que espaço ou de que volume necessitam?
Jacqueline — Solicitámos muito a sua imaginação; 
dissemos aos garotos: vamos ter um grupo escolar intei­
ramente novo, procurem desenhá-lo como quiserem. Eles 
fizeram coisas muito tradicionais; como querias tu que estas 
crianças, que vivem num habitat tradicional, pudessem 
exercer a sua fantasia de outra maneira? Então, depois, 
dissemos-lhes: procurem imaginar à vossa vontade. 
No fundo, talvez tivéssemos necessidade da ajuda dum psi­
cólogo para nos auxiliar a interpretar os desenhos, mas 
sentimos que eles tinham necessidade umas vezes dum 
pequeno recanto, enquantos outras vezes a coisa ia da 
sala de leitura ao salão de baile, passando pelas salas de 
cinema, de televisão, do ordenador, que poderia distribuir 
as fichas, passando pelos canapés para poderem beber ao 
mesmo tempo que faziam a leitura... Sonhos impossíveis. 
Conseguiu-se determinar com os arquitectos, apesar de tudo, 
o que as crianças queriam; os arquitectos discutiam muitas 
vezes com elas. Aqueles não faziam a mínima ideia do que 
fosse a pedagogia e ficaram verdadeiramente surpreendidos 
e encantados com os garotos. Foi absolutamente sensacio­
nal — uma descoberta recíproca — e então os garotos deram 
livre curso à sua imaginação, começaram a formular toda 
a espécie de perguntas.
O ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 193
Raymond — Através das pesquisas muito anárquicas 
dos garotos, consegue-se, mesmo assim, isolar algumas gran­
des ideias, e creio que J.-C. Dubois conseguiu realizá-las em 
Magny-Cours. O cantinho, a sala maior e a sala ainda 
maior... Falta uma sala de grandes dimensões; uma sala 
polivalente corre o risco de não ser suficiente, tanto mais 
que os alunos dos colegas que não praticam a pedagogia 
Freinet gostariam muito de participar nas nossas reuniões 
comuns. O que levanta um problema, mas creio, mesmo 
assim, que através de todas as pesquisas dos garotos se 
consegue isolar as seguintes ideias: o cantinho, o grupo 
classe dispensador de segurança, e, depois, a violenta irrup­
ção no todo. Todavia, o que se deve evitar a todo o transe, 
é tomar ao pé da letra o que a criança diz. Com efeito, 
é preciso que existam os recantos fechados, mas há neces­
sidade de outras coisas para além disso.
Jacqueline — Para evitar cometer erros, não se quis 
estruturar demasiado a arquitectura; deram-nos volumes 
para que os utilizássemos como melhor nos parecesse. Este 
ano, utilizámo-los duma maneira; no próximo ano, pode­
mos utilizá-los doutra maneira. É uma coisa muito rica 
de possibilidades. Quisemos uma arquitectura que nos 
possa dar todas estas possibilidades.
Roger — Como decorreram as reuniões entre os arqui- 
tectos e vocês? Eles submetiam planos à vossa apreciação, 
projectavam diapositivos?
Raymond — Jean-Claude projectou-nos diapositivos; ele 
dá grande importância a certas arquitecturas de Grenoble. 
Ele projectou-nos diapositivos por ocasião do congresso de 
Nevers, e, além disso, sugeria ideias. Eram discussões sem 
sequência. As conclusões foram-se tirando com o andar do 
tempo.
Roger — Eles participaram muito, também, na vida das 
vossas classes, estiveram nas vossas classes?
13
194 A PEDAGOGIA FREINET
Raymond — Sim, os garotos conhecem-nos bem, consi­
deram-nos autênticos camaradas.
Jacqueline— Isso, porém, não se fazia de maneira 
organizada; eram encontros muito anárquicos.
Roger — Quantos encontros, pouco mais ou menos, 
quantas deslocações até aqui fizeram eles?
Raymond — Durante três anos, Jean-Claude apareceu 
uma vez por semana.
Quando os locais modificam as atitudes
Roger — Como reagiram as crianças durante os pri­
meiros dias de escola nessa nova estrutura?
Jacqueline — Recomeçámos a funcionar no mês de 
Setembro com quatro classes. Quisemos responder a todos 
os desafios, pois tratava-se verdadeiramente do edifício em 
construção. Os pré-fabricados que tínhamos já não se 
encontravam lá, pelo que tínhamos efectivamente de encon­
trar uma solução. No meu caso, porém, os meus garotos 
(estou encarregada dum C. M. 2) estavam muito motivados, 
pois tinham sido eles a escolher o seu mobiliário. Jean- 
-Claude Dubois tinha-o experimentado no ano anterior, mas 
a coisa não funcionou — excessiva rigidez. Quando eles 
regressaram, eu tomei a temperatura todos os meses. Mas 
embora eles estivessem motivados, o que nos punha fora 
de nós era o facto deles permanecerem no seu grupo, de 
caminharem ao lado uns dos outros, vivendo como na sua 
antiga escola. Quando o mobiliário escolar chegou, eles 
precipitaram-se sobre os camiões para irem buscar as mesas, 
montaram as suas próprias mesas. Entregaram-se, então, 
a todas as espécies de tacteamentos: dispondo, primeiro, as 
mesas à maneira duma réstea de cebolas, agrupando-as 
depois em pequenos grupos, e, finalmente, dando ao con­
junto uma forma algo parecida com um friso grego. 
0 ARQUITECTO TAMBÉM EDUCA 195
Ao nivel das oficinas, eles caminhavam uns ao lado dos 
outros, discutiam uns com os outros, incomodando o fun­
cionamento das classes uns dos outros. Foi preciso esperar 
por Dezembro para eles tomarem perfeito conhecimento da 
sua classe e do seu túnel, para se sentirem bem na respectiva 
oficina, e depois ao nivel da sala polivalente. A seguir, o 
facto determinante foi a circunstância dos mais miúdos esta­
rem a fazer nesse momento uma casa de cartão, enquanto 
os meus alunos procediam a montagens eléctricas. Então, 
eles olharam uns para os outros, observaram-se, e disseram: 
mas, afinal de contas, nós podemos instalar a luz eléctrica 
na vossa casa. E recordo-me da reunião de cooperativa na 
classe em que Olivier disse: — É apesar de tudo extraordi­
nário que funcionem lá dentro quatro classes, que se tenha 
correspondentes, que se façam montes de coisas, sem que 
se esteja a par do que acontece. Quanto às regras de vida 
no estabelecimento,queria-se que ele estivesse limpo, que 
as latrinas se conservassem em perfeito estado de limpeza, 
que não houvesse papéis pelo chão. Dissemos a nós pró­
prios: precisamos de proceder a reuniões de cooperativa 
com as quatro classes. A coisa foi proposta e aceite com 
muita alegria. Foi assim que todas as sextas-feiras, à tarde, 
durante meia hora, mostramos uns aos outros o que esta­
mos a fazer, lavamos em família a nossa «roupa suja»; 
igualmente tomamos iniciativas em comum de cada vez 
que há qualquer coisa a fazer. O arquitecto, por exemplo, 
propôs-nos que decorássemos a paliçada, o que fizemos 
em comum. Vivemos verdadeiramente bem em comuni­
dade.
Raymond — A minha primeira reacção foi esta: ao fim 
de quatro ou cinco dias de classe, eu disse:—Meu velho, 
tu estás a ponto de falhar, simplesmente porque tens uma 
arquitectura formidável mas não te serves dela. Falei então 
no assunto a Michèle, a Jacqueline e também a Odile. Pro­
196 A PEDAGOGIA FREINET
curámos depois ver o que se podia fazer. Deveria dizer-se 
aos garotos:—Atenção, vocês dispõem duma arquitectura 
singular, é preciso tirar partido dela, utilizem os locais ao 
máximo? Eu estava na disposição de o fazer: finalmente, 
elas responderam-me negativamente dizendo-me que era 
preferível esperar. 0 que se verificou ser correcto. Quando 
organizamos a nossa semana em relação a todas as acti­
vidades de «despertar», procuramos agora que os garotos 
estabeleçam uma tabela de dupla entrada na sala poliva- 
lente. Sabe-se, assim, que na segunda-feira, às catorze horas, 
na classe de Jacqueline, há uma exposição, etc., e todos 
aqueles que estiverem interessados poderão dirigir-se para lá.
Roger — Isso não perturba o horário das outras classes?
Raymond — A coisa levanta problemas, quando há uma 
exposição na classe de Jacqueline e os meus alunos têm 
qualquer trabalho entre mãos. Mas, apesar de tudo, eles 
sabem-no antecipadamente. Enfim, espero que se venham 
também a obter bons resultados em matemática e em 
francês.
Jacqueline — No plano da criatividade, é muito inte­
ressante. Os pequenos deram uma grande contribuição aos 
grandes e vice-versa. Trata-se de algo que anteriormente 
se desconhecia. Só uma arquitectura diferente nos podia 
proporcionar semelhante experiência.
33 pessoas num F3, 
por que motivo se não fala 
no assunto?
por Jeannette Le Bohec
Tem-me parecido até à data que o I. C. E. M. era um 
movimento cooperativo — cada um facultando aos outros 
o fruto do seu trabalho, cada um procurando apoiar o 
camarada em dificuldades.
No entanto, tenho sempre a impressão de esbarrar numa 
parede quando falo das más condições materiais da minha 
classe. Indiferença... Impotência... não sei.
Cada um, no Movimento, dá a impressão de vir haurir 
no tesouro comum idéias novas para as trazer de volta para 
a sua classe e transformá-la num local paradisíaco onde as 
crianças se desenvolvem na harmonia total.
Há muito tempo já não ouço falar nem dos efectivos, 
nem dos locais.
Deverei eu acreditar que se tenham eliminado do Movi­
mento todos aqueles que compreenderam que procurar 
aplicar a nossa pedagogia era, sem determinadas condições 
de trabalho, pura loucura, pura utopia? Estes professores 
revelam-se muito judiciosos. Eles têm toda a razão em não 
198 A PEDAGOGIA FREINET
quer ouvir falar destes paraísos inacessíveis e de não se 
culpabilizar.
Eu, pela minha parte, deixo-me ficar ainda — apesar 
de tudo. Adoptei esta pedagogia há tanto tempo já que 
não saberia aplicar outra.
Não posso dispensar os textos livres, que a pouco e 
pouco me permitem conhecer os meus alunos, e sobretudo 
a arte infantil que não cessa de me maravilhar. Mas por 
que preço!
No ano passado, eu tinha 31 alunos, nos CE1, CE2, CM1; 
este ano, tenho 33 em CE1 e CE2 num local demasiado 
exíguo para nele poder instalar oficinas (ateliers) perma­
nentes.
Então, o que sucede? Tento, apesar de tudo, fazer 
alguma coisa: texto livre, arte infantil, exploração do meio...
Mas as crianças trabalham no meio dum tumulto de 
tal ordem que eu grito, descomponho, empurro, e digo: 
— Cala-te àquele que tem ainda alguma coisa para dizer, 
reconduzo energicamente para o seu lugar aquele que orgu­
lhosamente me vem mostrar o seu trabalho acabado, ao 
mesmo tempo que lhe digo: — Se os outros se pusessem 
a passear como tu!
Ontem, ao fim da tarde, tal como costumamos fazer 
duas vezes por semana, desempacotámos laboriosamente 
todo o material necessário para o funcionamento dos diver­
sos ateliers de pintura, modelagem, electricidade, etc., e 
repartimos o trabalho antes da saída para o recreio. Aba- 
lancei-me a esperar que, encontrando cada um o trabalho 
que lhe cabia à sua frente, tudo pudesse correr da melhor 
maneira e que cada um pudesse entregar-se às alegrias da 
criatividade numa calma relativa.
Nunca o tumulto foi tão grande; eles empurravam-se 
uns aos outros nos corredores demasiado estreitos, as míni­
mas descobertas eram comentadas alto e bom som por 33 
33 PESSOAS NUM F3 199
vozes, vinham-me procurar para eu ir a quatro sítios ao 
mesmo tempo, tudo isto à força de gritos, de queixas contra 
aquele que tinha dado um pontapé; outro, por sua vez, 
pegara na lata de «vermelho», outro ainda tinha surripiado 
um instrumento, etc. Era impossível ver claro no meio 
daquela tempestade. Saí quase a rebentar em lágrimas, 
apesar de estar de longa data habituada a este género de 
sessões.
Aos poucos visitantes que, na minha classe, observam 
os trabalhos dos alunos, replico agora sempre que tudo 
isso se não fez no meio da facilidade e da alegria.
Mediante as nossas belas exposições de arte infantil, 
mediante os nossos relatos exaltantes de experiências, 
damos a todo o momento a impressão de que a nossa 
pedagogia pode solucionar as situações mais difíceis e, o 
que é mais grave, contribuímos para dar má consciência 
àqueles que falham.
Recuso doravante qualquer participação numa exposi­
ção se esta não for acompanhada de queixas e de reivin­
dicações.
Recuso qualquer reunião pedagógica em que não figu­
rem os leit motiv: efectivos, locais, material.
Recuso-me a ser cúmplice dum governo e dum minis­
tro que ousam falar-nos de renovação pedagógica na nossa 
miséria actual e que arrastam para o desespero aqueles 
que os incriminam pelos insucessos.
A minha amargura é tanto maior quanto pude observar 
este Verão, na Dinamarca, condições de trabalho ideais: 
salas de aula com imensas comunicações (entre aposentos) 
inteiramente alcatifadas e perfeitamente insonorizadas onde 
200 A PEDAGOGIA FREINET
as crianças corriam em peúgas, sendo qualquer ruído ou 
estridência de vozes amortecidos em cerca de três quartos.
Estas salas mais se parecem com um pequeno aparta­
mento com divisórias reservadas para os diferentes ateliers. 
Existe mesmo, a meia altura do tecto, num ângulo, uma 
espécie de cubículo suspenso, ao qual se ascende por uma 
escada e donde as crianças, sentadas sobre colchões ou 
almofadas, acompanham a lição de leitura.
Trabalham na escola efectivos de 15 alunos por classe, 
2h 1/2 por dia, até aos 9 anos. Professores descontraídos, 
que recebem sucessivamente duas equipas de 15 alunos, 
uma das 8 h às 10 1/2, a outra das 11 h 1/2 às 14 h.
A pausa das 10h 1/2 — 11h 1/2 é consagrada à ligeira 
refeição nórdica que os professores desembrulham ou aque­
cem numa agradável sala, ultramoderna, provida de foga- 
reiros, de mesas e de profundos sofás. Trata-se de profes­
sores do ensino primário, sublinho-o. Professores sem pro­
blemas que não fazem ideia da pressão social a que está 
submetido o ensino francês.
Ali, a aprendizagem da leitura começa aos 7 anos e 
pode prolongar-se até aos 9 ou 10 anos... sem que a criança 
tenha de repetir qualquer ano. Não existem classes de aper­
feiçoamento, passando todas as crianças para a classe supe­
rior. Uma abundância incrível de material escolar.
Em suma, crianças e professores reunidos em condi­
ções humanas, e isso em relação a todo o país. Tudo isto 
se passa a 1.300 km de nós, enão se trata dum conto, mas 
da pura verdade.
Em França, encontramo-nos, nesta óptica, em plena 
Idade Média... Mesmo uma das nossas escolas novas faria 
miserável figura na Dinamarca. Quanto às dos nossos cam­
pos, mais se pareceríam com estábulos onde se amontoam 
crianças juntamente com um pobre imbecil — o professor — 
que continua a tudo suportar porque as coisas sempre se 
33 PESSOAS NUM F3 201
passaram assim, até que a depressão nervosa ou o deses­
pero o vençam por completo.
Já é tempo de se fazer seriamente alguma coisa.
P. S. — Este artigo foi redigido em 1972. Não se des­
tinava à publicação. Trata-se dum texto que eu redigira 
tendo em vista um encontro regional I. C. E. M. porque eu 
já não me podia calar mais, o que explica o seu carácter 
um tanto excessivo.
De então para cá, muitas coisas mudaram no seio do 
I.C.E.M.
Posso hoje acrescentar que, se as condições materiais 
(efectivos, locais, etc....) são absolutamente necessárias, 
nem por isso são suficientes.
Observa-se, cada vez mais, o crescimento da angústia 
escolar dos pais. Pergunto-me o que seria preciso fazer 
para que cesse neles esta necessidade de se realizarem nos 
filhos com base em critérios que já não se revelam conve­
nientes e que paralizam professores e crianças. E se os pais 
descobrissem outros campos de realização?...
J. Le B.
16 de Julho de 1975
AS DESVANTAGENS 
SOCIOCULTURAIS
Quando os pequenos 
se calam
por Mimi e Fernand Emult 
(reportagem de J. e R.U.)
A beira duma estrada normanda, a pequena escola de duas 
classes de Saint-Ouen-les-Champs (Eure-et-Loir) parece mais assente 
do que construída no arvoredo. Posto duplo de Mimi e Fernand 
Emult, que uma gravação sobre a educação sexual * deu a conhecer 
aos camaradas e a muitos trabalhadores sociais.
Fernand orientou-se para a psicologia escolar, enquanto Mimi 
lhe sucedia na sua classe (C.E.l— C.E.2); no sábado de manhã, 
porém, as aulas são dadas em família. Surpreendêmo-los nesse dia.
Roger — Actualmente, quais são, para ti, as dificulda­
des mais importantes no que respeita à organização da tua 
classe, que é quase uma classe única?
Mimi — A integração dos mais pequenos na classe; 
sinto que eles estão verdadeiramente perdidos no momento 
da entrevista, nos momentos colectivos — conferência, 
debate. Acompanho-os unicamente em trabalhos escolares: 
leitura, matemática, ortografia. Ao nivel da expressão, eles 
sentem-se completamente perdidos. É este um dos meus 
grandes problemas.
Por outro lado, tenho alguns objectivos de aquisição, o 
que me provoca dificuldades, pois descubro que os meus 
206 A PEDAGOGIA FREINET
miúdos não estão de maneira nenhuma preparados para 
isso. Em matemática, quando se trabalha com a noção de 
400 metros, verificamos que isso não diz nada às crianças. 
Eles não têm nenhuma noção real da medida, do peso. Não 
sabem avaliar (coisas que se me afiguram verdadeiramente 
muito simples); o mesmo se passa com o mecanismo das 
operações.
Roger — Seria preciso fazer-se uma ideia das dificul­
dades de qualquer um numa classe que vai do C. E. 1. ao 
C. M. 2; a organização do plano do dia, por exemplo.
Josette — Consegues mostrar-te suficientemente 
disponível para todos os grupos? Por exemplo, esta manhã, 
Myriam podia fazer as suas manipulações sozinha, com 
certeza, mas precisava da ajuda dum adulto, pois no ponto 
em que se encontrava não se conseguia desenvencilhar sem 
uma ajuda exterior. Em toda a tua classe, é preciso ajudar 
os pequenos a ler, e os grandes a contar; como organizas 
tu isso?
Mimi — Sinto-me muitas vezes atrapalhada. Quando 
estou com os mais pequenos, aparece muitas vezes um 
grande que me pergunta: — Madame Ernult, o que é que 
isto quer dizer? Mas os meus problemas não são apenas 
esses.
Roger — Qual o ritmo que imprimes ao dia de traba­
lho (54)?
Mimi — Procedemos a uma conversação colectiva de 
manhã (55). Vou procurar mudar, pois dei-me conta de 
que os mais pequenos se sentiam vexados.
Roger — Em que consiste essa conversação?
Mimi — Neste momento, procedemos à leitura de tex­
tos de jornais escolares. Textos que lhes tenham agradado. 
Ou textos orais, ou então episódios, acontecimentos vividos 
por eles.
Roger — E qual é a tua contribuição?
QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 207
Mimi— Leio-lhes, também, textos. Apercebi-me desde o 
princípio do ano que os textos deles eram bastante pobres. 
Procedo à escolha de textos nos jornais escolares, depois 
do que lhes leio alguns. Os outros fazem perguntas sobre 
o que eles dizem c discute-se. Isto serve-nos muitas vezes 
de lição de vocabulário: enriquecimento da expressão.
Fernand — A partir destas discussões matinais, há toda 
uma profusão de pistas que se abrem para a pesquisa em 
muitos domínios.
Mimi — Por exemplo, se se falou da raposa, e se se 
desconhece o que ela come ou como vive, isso vai orien­
tar-nos para a preparação duma conferência, para a confec­
ção de álbuns, tanto para nós com destinados aos corres­
pondentes. A partir disso, elaboram-se também textos 
escritos. Tudo isto toma-nos aproximadamente uma meia 
hora. Não se trata, porém, duma actividade sistemática; 
às vezes, a conversação é muito breve. A seguir, eles dedi­
cam-se geralmente ao trabalho individual (56). Então, há 
toda uma série de trabalhos de investigação que se podem 
fazer em regime de trabalho individual, como sejam: cartas 
aos correspondentes, pesquisa de francês, de matemática, 
fichas (já que eles começam a fazê-las), autoditados, inves­
tigação de poesia, leitura, preparação de álbuns, de confe­
rências. Nesse momento, os C. M. 1 trabalham, enquanto 
eu vou ler juntamente com os C. E.
Roger — Eles trazem livrinhos nos quais podem ler 
individualmente (57) ?
Mimi — Sim, eles têm livrinhos que podem ler indivi­
dualmente. Temos uma espécie de escala de circulação: 
eles passam a dois e dois, todos os dias, diante dos outros.
Roger — E à tarde?
Mimi — Há um trabalho importante no que toca à cor­
respondência (58). A redacção do que se descobriu em 
matemática ou do que se inventou em ginástica. Pois parti­
208 A PEDAGOGIA FREINET
mos de ideias de crianças para fazer a ginástica. Represen­
tamos isso em intenção dos correspondentes. E depois, 
muitas vezes, praticamos nos ateliers (oficinas): teatro, 
madeira; os rapazes dedicam-se a trabalhos em madeira, 
recortes, pintura, entretens, enquanto os mais pequenos 
fazem colagens (às vezes os mais pequenos escrevem tam­
bém textos, pois acontece que eu esteja mais disponível para 
eles da parte da tarde, devido ao facto de os maiores se 
encontrarem na oficina). Alguns dedicam-se a escolher o 
desporto que se poderá praticar depois, inventando per­
cursos, deslocamentos, movimentos, danças. As raparigas 
trabalham neste momento numa dança. Isto processa-se 
ao nivel dos ateliers.
Roger — Vocês têm fantoches?
Mimi — Sim, mas as crianças preferem nitidamente o 
teatro (59) aos fantoches. Os mais pequenos prefeririam 
os fantoches, mas os mais crescidos desejam verdadeira­
mente inventar peças de teatro, e representá-las diante 
dos outros. Representá-las é algo de muito importante. 
Para tanto, eles isolam-se na cantina, pois temos a sorte 
de ter uma cantineira amável que lhes faculta a utilização 
da cantina às 14 h 30, dispondo eles, assim, dum local. Ali, 
eles fazem o que querem, pegam na loiça, é formidável. 
Não deverão ser mais de 4 crianças a fazê-lo; com efeito, 
dei-me conta de que para além de 4 se gerava uma grande 
perturbação. Aliás, esse número é muitas vezes de três.
Josette — Porque um grupo de três funciona muito 
bem, enquanto num grupo de quatro há sempre um que 
não sabe o que há-de fazer.
Mimi — Sim, mas eles são muito espertalhões, e quando 
têm necessidade de ser quatro, dizem: Ela não fala, é a 
criança! O que é revelador da atitude dos pais em casa: 
— Não, não, «Madame» Ernult, ela não fará barulho, ela é 
a criança!
QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 209
Roger — Nas suas peças de teatro, quais são as perso­
nagens que eles põem em cena?
Mimi — É quasesempre a família, infelizmente!
Roger — E no entanto, parece que o meio familiar 
pouco lhes proporciona, quando não os proíbe mesmo às 
vezes de falar. Também te apercebes disso, aqui?
Mimi — Quando fiquei com os mais crescidos, este ano, 
em Setembro, foi essa a coisa que mais me chocou: preci­
samente, a pobreza da sua linguagem (60), do seu vocabu­
lário, da sua expressão, não só oral como escrita. Eles 
não sentem absolutamente qualquer necessidade de se 
exprimir bem. Não se pode estar constantemente a apon­
tar-lhes os erros. Procuro neste momentos as técnicas que 
permitam melhorar a sua expressão.
Roger — Não é exactamente o que eu queria dizer. 
Os mais pequenos (tu acompanhados desde o C. E. 1 até 
ao C.M.2), quando se procede à reunião de cooperativa 
e mesmo durante toda a manhã, falam muito pouco. Não 
é uma coisa exclusiva da tua classe, pois tem sido consta­
tada na maior parte das classes.
Mimi — Isso deve-se ao facto de não falarem em casa. 
Trocam-se palavras simplesmente para satisfazer necessi­
dades imediatas, materiais, nunca tendo em vista estabele­
cer um diálogo. Não saem do sítio onde vivem, não têm 
acesso a outros meios, portanto, não há matéria para dis­
cussões, matéria para diálogos.
Roger — Não existe também, entre outras, uma velha 
tradição que proíbe as crianças de falar à mesa? Não se 
lhes pede, sobretudo, que estejam caladas?
Nítmi — Isso vai-se tornando mais raro, embora se veri­
fique em certas famílias. Há já alguns anos, porém, passa­
ram-se algumas coisas interessantes; crianças houve que 
contestaram precisamente o facto de se não poder falar à 
mesa, organizando para tanto um sistema em que cada um 
14
210 A PEDAGOGIA FREINET
falava alternadamente, tal com se fazia na escola... Um 
membro da família, quando estivessem todos à mesa, dava 
a palavra aos outros para que todos se pudessem exprimir. 
Creio, apesar de tudo, que essas coisas evoluem e que as 
crianças acabam por conseguir falar à mesa. No entanto, 
em relação a certas famílias, não posso dizer que essa 
proibição tenha sido levantada.
Fernand — Tenho a impressão que, em certas famílias, 
não existe uma vontade deliberada de proibir falar à mesa, 
mas que isso faz parte dos hábitos — o mundo da palavra 
pertence aos adultos da família; e quando a criança se 
exprime, não se dá muita atenção a isso. Só comunicam 
com ele quando há uma necessidade imediata: para lhe 
dar ordens, para responder às suas necessidades. Não existe 
no seio da família a preocupação de comunicar com as crian­
ças. Poderia existir, em certos meios, uma tendência 
deplorável para exigir que as crianças apresentem logo à 
primeira uma linguagem elaborada, para procurar desen­
volver nelas uma linguagem muito construída — o que tam­
bém pode ser catastrófico. Aqui, porém, não é esse o caso; 
não existe sequer esta preocupação da comunicação neces­
sária com uma criança. A linguagem é toda uma aprendi­
zagem; ajuda-se uma criança quando ela dá os primeiros 
passos, mas já não se ajuda uma criança que dá os seus 
primeiros passos na linguagem—espera-se que ela fale. 
Não existe a mesma preocupação. Irão ensiná-lo a segurar 
uma colher, uma faca, um garfo, etc., mas não o ajudarão 
a dominar a linguagem.
Roger — Acaso se admite que a criança tenha uma 
opinião?
Mimi — Penso, antes de tudo, que os próprios pais não 
têm opiniões bem definidas, e não discutem verdadeira­
mente com profundidade, quer seja, aliás, no domínio polí­
tico ou no domínio cultural. Estão convencidos de que as 
QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 211
opiniões das crianças não têm interesse, e mesmo de que 
estas não têm ou não podem ter qualquer opinião, já que 
para eles próprios (pais) se trata duma preocupação ver­
dadeiramente secundária.
Fernand— Parece-me, mesmo assim, que se existem 
tabus, é no domínio da linguagem, da comunicação oral 
que eles mais se manifestam; é aí que eles são mais eviden­
tes, mais perceptíveis, mais sensíveis. Quando uma criança 
se exprime na escola, em todos os outros domínios, tu aper­
cebes-te, através da sua expressão, de qual é a sua situação 
afectiva do momento; quais são os problemas da criança 
ao nivel familiar, etc. São coisas bastante evidentes. Digo 
isto, pois disponho dum testemunho recente. Outro dia, 
pedi a Bruno que desenhasse a sua família (trata-se duma 
família bastante traumatizada pela situação dos pais sepa­
rados). O garoto, à tarde, ao regressar a casa, diz:—Ah!, 
tanto pior, se o fiz. Ele pediu-me, e eu fiz: não desenhei 
o meu pai. Portanto, ele tinha apesar de tudo a impressão 
de que havia qualquer coisa que não estava bem no facto 
de desenhar ou não o pai. Era um problema de que ele 
nunca tinha falado. Eis que no momento em que ele se 
vê confrontado pelo problema por intermédio do desenho, 
se apercebe de que vai revelar o que se passa ao nivel da 
sua família, de que vai violar um tabu. E revolta-se, o que 
faz aparecer a permanência desta espécie de tabu, ao nivel 
da linguagem oral. Não se fala dessas coisas e não há neces­
sidade de as dizer. Nos hábitos da vida familiar, acontece 
que muitos sectores da informação nunca são abordados 
— aspectos da vida política e quotidiana, crenças, problemas 
de sexualidade, as relações familiares.
Roger — Isso determina uma certa pobreza cultural. 
Comparando essas crianças com as das cidades, poderiamos 
dizer que as crianças das cidades não possuem qualquer 
experiência quotidiana da natureza, nenhum contacto com 
212 A PEDAGOGIA FREINET
os animais, as plantas, os ofícios, o trabalho dos artesãos. 
Têm um contacto cultural muitas vezes muito superficial, 
mas que apesar de tudo existe. Isto porque se discute mais 
facilmente, porque existe a televisão, os títulos em paran- 
gona dos jornais e os próprios jornais. É mais fácil a pala­
vra entre as crianças, os adolescentes e os adultos. Mas, 
inversamente, não existe qualquer experiência sensível ao 
nivel da acção, das sensações primitivas, do contacto com 
a terra, a natureza. Consegues tu vencer este défice cultural 
na escola, ou, pelo contrário, vês-te impedida de praticar 
as técnicas Freinet correctamente em consequência deste 
défice cultural?
Mimi — Não me sinto impedida de praticar as técnicas 
Freinet por causa deste défice cultural. Se há um certo 
número de aquisições escolares que não são feitas, não me 
culpo por isso e dou toda a prioridade à expressão. Eles 
têm montes de coisas a exprimir. Exprimem-nas mal, mas 
exprimem-nas. Por exemplo, Laurent falava esta manhã 
do morcego que vira. Eles falam do nascimento dos ani­
mais, do esquilo que encontraram no caminho para a escola, 
das flores, de coisas muito sensíveis de exprimir, mas que 
eles exprimem. O grande problema não é o de descobrir 
técnicas de desbloqueamento, pois eles não estão bloquea­
dos, mas o de ajudá-los a aperfeiçoar a sua expressão.
Fernand — Quando dizes «não bloqueados», não estou 
inteiramente de acordo contigo. Existe, apesar de tudo, um 
bloqueio. Por exemplo, Martine, esta manhã, na sua con­
ferência, não se atreveu a empregar a sua linguagem. Ela 
não se atreveu a recorrer à sua linguagem habitual para 
comunicar o que sabia, ou então ela não soube transpor 
o que tinha lido.
Mimi — Eu disse-lhe ontem: tu vais tentar, pois leste 
juntamente com Myriam... Ela, porém, não conseguiu trans­
por o que tinha lido.
QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 213
Josette — A miudinha que estava sentada ao lado do 
electrofone, que falou a certa altura da escrita chinesa, mas 
que falava muito baixinho, embora tivesse coisas para dizer, 
não se encontra bloqueada?
Mimi — Sim. Mas esta garota chegou-me este ano vinda 
duma escola tradicional; tem 11 anos. Creio que ela já fez 
alguns progressos. Ela mostrava-se passiva, não participava, 
não travalhava — esperava que lhe dessem trabalho. Ela 
passou a tomar a iniciativa e sempre fala um pouco mais, 
pois esta manhã conseguiu falar. Creio que tem medo 
pois está desabituada de falar desde há muito tempo. 
Existem também, certamente, no caso de Dominique,pro­
blemas familiares. A mãe considera-a como uma pessoa 
crescida, uma pessoa responsável. Ela ocupa-se de duas 
crianças de tenra idade em casa, faz os trabalhos da casa 
quando a mãe está ausente. A mãe acha isso perfeitamente 
normal. Ausenta-se muitas vezes, e, então, a rapariguinha 
substitui-se à mãe. Tenho a impressão de que a mãe quer 
que ela amadureça muito depressa, enquanto que ela é ainda 
muito criança. Acrescente-se ainda o facto de que, em casa, 
nada tem para dizer: — Dominique, é indiferente que 
estejas contente ou não. Serás uma mulher, preparo-te para 
os trabalhos da casa. Ela não tem que contestar, não tem 
que se exprimir. Dominique não ingressou na minha classe 
suficientemente cedo...
Fernand — Eu queria voltar a referir-me a este pro­
blema da linguagem. No que diz respeito à família, eu não 
penso que a linguagem oral tenha um lugar importante, 
independentemente do que se pense acerca disso. A comu­
nicação processa-se através de muitas outras coisas. Algu­
mas palavras, atitudes, um tom. Os registos de comunica­
ção são, até, reduzidos. Seria talvez interessante ver em 
que domínios se comunica num meio familiar como o que 
agora consideramos. As palavras, em si mesmas, não têm 
214 A PEDAGOGIA FREINET
uma importância por aí além. Seria preciso contar as pala­
vras proferidas durante uma conversação de um dia; creio 
que o seu número seria relativamente reduzido. Acontece 
que, quando os garotos chegam à escola, não têm consciên­
cia de que a linguagem é um meio de comunicação verda­
deiramente importante. Foi isso que me impressionou 
quando utilizei o magnetofone na escola (67). A partir do 
momento em que a linguagem sai da escola, damo-nos conta 
de que se pode dizer uma quantidade enorme de coisas 
por aquele meio. Eu pensava, até então, que era sobretudo 
a coisa escrita, o desenho, o texto impresso que tinham uma 
importância considerável. É um outro aspecto da lingua­
gem. Quando os garotos tomam consciência de que através 
da linguagem oral comunicaram uns aos outros coisas 
importantes, profundas, quando se apercebem, após a mon­
tagem de tudo aquilo, que procuraram refazer o mundo 
no espaço duma meia hora, por exemplo, tomam pouco a 
pouco consciência de que falar é importante, de que é 
importante comunicar com os outros. Na realidade, é possí­
vel fazer aceitar muitas coisas a este nivel.
Roger — Como se portam os teus alunos no secundário?
Mimi — Encontrei um aluno que entrou para a sexta 
classe (correspondente à primeira do liceu português). Per­
guntei-lhe:— Então, isso vai bem? Ao que ele me res­
pondeu:— Tenho dificuldades em redacção. Perguntei-lhe 
que tipo de exercícios ele vinha fazendo desde o princípio 
do ano: —Tenho um livro com imagens, e eu devo escrever 
o que penso das imagens. Portanto, nada que se relacione 
com a personalidade da criança. No primeiro ano, não foi 
proposto um tema de redacção desde o princípio do ano. 
Eles limitam-se a fazer comentários de imagens.
Fernand — Houve também qualquer coisa que desapa­
receu; antigamente, os serões passavam-se a contar histó­
rias, contos, etc. Havia uma personagem que tinha um papel 
QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 215
importante: o avô ou a avó. Mais frequentemente, era a 
avó que desempenhava esse papel, era ela a contadora de 
histórias da família, histórias essas que faziam o encanto 
das crianças. Ora isso desapareceu. Já não existe tradição 
oral. As pessoas vêem a televisão; é uma coisa dramática!
Mimi — Como explicar, então, que as crianças rurais 
sejam ainda mais pobres, no plano da expressão, que as 
outras?
Fernand — Elas são mais pobres, mas há um outro 
aspecto a considerar. Actualmente, cada vez se abandona 
mais os campos, e as famílias que ficam são as que não têm 
possibilidades financeiras de ir morar para a cidade. 
Se observares as famílias que aqui vivem, compreenderás 
que se fica no campo porque se tem de pagar uma renda 
mensal de 100 francos, enquanto que o grande problema 
que se põe para ir viver para a cidade é o de pagar 300 
ou 400 francos por mês; hipótese desde logo excluída, pelo 
que essas famílias têm de continuar no campo. Todas as 
aldeias situadas na proximidade duma zona industrial conhe­
cem essa sorte. É o subproletariado que aqui fica, enquanto 
que os mais ricos dispõem doutro recurso: matricular 
os seus garotos num colégio. O que fazem com muita 
frequência.
Roger — Podemos voltar ao assunto da vossa maneira 
de utilizar o audiovisual (61)? No que respeita ao magne- 
tofone, à projecção, à utilização de diapositivos desenhados 
ou de diapositivos e ao intercâmbio escolar, quais as acti­
vidades bem ou menos bem sucedidas?
Mimi — Com os mais pequenos, comecei por registar 
os seus cantos livres. A coisa despertou neles um grande 
interesse, mostrando-se eles permeáveis a uma gravação de 
textos livres ou de conversações. Fizeram-se coisas muito 
bonitas, mesmo ao nivel dos grandes.
216 A PEDAGOGIA FREINET
Fernand — Tivemos toda a série dos textos orais: os 
garotos contavam, como durante a conversação, mas gra­
vando ao mesmo tempo. Pouco a pouco, fomos conhecendo 
quais as histórias que melhor convinham ao magnetofone, 
como, por exemplo, as que iam poder ser acompanhadas 
de diapositivos desenhados *, bem como as que se reves­
tiam dum interesse especial por excederem o âmbito da 
aldeia. Realizámos uma montagem que foi depois objecto 
duma troca.
Roger — Como é que vocês se instalavam tecnicamente? 
Como funcionavam?
Fernand — As salas de aula são relativamente grandes 
em relação ao número de crianças. Temos um grande cabo, 
o que é muito prático, pois permite deslocar-se na classe, 
ter o magnetofone sempre no mesmo sítio, e mesmo quando 
nos dispomos em círculo para discutir a coisa passa-se 
muito bem. São os garotos que manipulam os aparelhos, e 
isso não levanta problemas. A técnica é rapidamente domi­
nada.
Roger — Quantas crianças, no conjunto da classe?
Fernand — Isso dependia.
Roger — Vocês faziam uma passagem do oral ao 
escrito? Exploravam às vezes de maneira escrita coisas 
orais?
Fernand — Isso aconteceu sob a forma de álbum.
Roger — Tratar-se-á dum meio para desbloquear crian­
ças que dizem: — Eu não escrevo? Diz-se a essas crianças: 
— Vamos gravar-te, e depois tu farás uma transcrição?
Mimi — Com os mais pequenos, era eu que transcrevia. 
Os seus cantos, por exemplo, ou os seus textos, nas secções 
infantis, curso preparatório.
Fernand — Eu fi-lo com Michel. Ele era formidável a 
contar histórias. Ele era forçado a comunicar com a sua 
língua oral, pois não podia fazer de outra maneira. Tinha 
QUANDO OS PEQUENOS SE CALAM 217
muita dificuldade em escrever. Em relação aos depoimen­
tos, ele conseguia descrever coisas simples, mas com muitos 
pormenores exactos. A gravação era muito boa, pois as 
crianças denotam sempre falta de pormenores, ao passo 
que ele tinha essa preocupação.
Roger — Por quanto tempo são eles capazes de escutar 
uma gravação que lhes venha de fora?
Fernand — Isso depende da natureza das gravações. 
Por exemplo, toda a gente escuta com facilidade a série 
das mensagens pessoais, excepto a partir do momento em 
que a sua própria mensagem já se fez ouvir. Mesmo assim, 
porém, o interesse é bastante constante. As gravações de 
dez minutos ouvem-se muito bem. Raramente elas ultra­
passavam esse limite de tempo. Temos, mesmo assim, uma 
boa experiência com o magnetofone na escola, pelo que a 
coisa corria bem. Nunca fomos enfadados por gravações 
de meia hora, ou coisa no género. Tínhamos chegado a um 
acordo com os nossos correspondentes.
Roger — Que conselhos darias tu para a preparação 
duma banda de intercâmbio entre duas escolas?
Fernand — Que não seja sistemática; de vez em quando, 
mensagens pessoais. Por vezes é delicado, pois a muitas 
crianças repugna-lhes exprimir-se diante do microfone; 
mesmo se eles dizem pouca coisa: —Bom dia, Pedro! Como 
passas? Adeus, Pedro!, é já interessante, pois é a primeira 
maneira de se exprimir diante dum microfone; isso permiteàs crianças constatar que, apesar de tudo, a sua men­
sagem tem importância, uma vez que o outro vai responder. 
Pode-se enviar todos estes pequenos textos orais ilustrados 
com diapositivos, o que é relativamente fácil. Pode enviar-se, 
também, um texto oral. Se a criança se engana grosseira­
mente, se se corrige, corta-se a fita; a coisa é muito rápida. 
A ilustração com diapositivos desenhados torna-se muito 
rápida com feltros. O ritmo das trocas deve ser constante: 
218 A PEDAGOGIA FREINET
pode fazer-se isso 4, 5, 6 vezes por trimestre. Porque não 
reportagens no exterior? Tudo é possível.
Roger — Tu gravavas, então, mensagens pessoais, mas 
para todos os alunos?
Fernand — Não sistematicamente. Embora isso seja 
bastante delicado, pois a criança que não recebe uma men­
sagem pessoal sente-se frustrada. Ou então, é preciso subs­
tituí-la por outra coisa. Por exemplo, o garoto que tem 
um texto oral não tem necessidade de enviar uma pequena 
mensagem pessoal. Já tem a sua voz, a sua participação, 
o que é suficiente.
Roger — A totalidade representava uma gravação duma 
meia hora?
Fernand — No máximo. Mas uma meia hora de gra­
vação não quer dizer que se vá escutar durante meia hora 
seguida. Basta enviar uma pequena nota:—De tal troço 
a tal troço, com as crianças, é tal coisa. O camarada chega 
a acordo quanto aos momentos que se vão escutar.
Mimi — Quanto aos mais pequenos, enviámos cantos 
livres, pois essa era uma das expressões que mais lhes agra­
dava. Textos livres, pequenas poesias que eles inventavam, 
além de músicas que eles tinham criado com instrumentos 
que eles próprios fabricavam ou com o Ariel * ou com 
o guia de canto (porque o guia de canto entusiasma-os). 
Acontece-lhes inventar música e canto ao mesmo tempo.
O teste dos arames farpados
por Teresa e Claude Duval 
(uma reportagem de R. U.)
Roger — O que me surpreende na tua classe única, 
Claude, é o facto de as tuas crianças estarem muito mais 
à-vontade que as duma classe parisiense, mas dominarem 
menos a linguagem (62), terem menos facilidade de palavra.
Claude — É evidente, para quem conhece bem o mundo 
do campo, que a linguagem não é o meio privilegiado, o 
que é mais empregado pelas pessoas para comunicar. 
Isso torna-se muito perceptível quando se tem a ocasião de 
passar algum tempo junto dessas famílias ou de comer 
na sua companhia, como me aconteceu. As crianças, evi­
dentemente, estão no mesmo caso. Entre irmãos e irmãs 
e mesmo entre camaradas de classe na aldeia, numerosas 
comunicações processam-se duma maneira não verbal. Este 
aspecto das coisas não interessa à escola em geral, e mesmo 
quando ela se intitula «pedagogia Freinet», ou quando inves­
tiga no sentido da pedagogia Freinet. Estamos muito defor­
mados pela nossa própria cultura; o que nos interessa é 
o verbal, ou talvez mesmo, mais especificamente ainda, o 
escrito acadêmico.
Teresa — O problema é o seguinte: impõe-se às crian­
ças uma cultura que não é a deles, pelo que, então, a sua 
resistência se afigura bastante normal. 
222 A PEDAGOGIA FREINET
à natureza e compreendem muito bem a nocividade de 
certos actos, mesmo quando os praticam por interesse, por 
cupidez, ao passo que o industrial chega a poluir tranquila­
mente a natureza, pois já não tem o sentimento do que 
seja um acto delituoso. É evidente que, para mim, é ainda 
muito difícil deitar balanço a esta questão e ver quais são 
os caracteres particulares duma cultura popular e duma 
cultura rural. Um estudo científico, realizado por pessoas 
mais competentes, torna-se necessário.
Uma das tarefas da escola, tal como procuramos cons- 
truí-la, seria, creio eu, a de permitir a plena expansão duma 
verdadeira cultura popular.
Roger — Supondo que se privilegie as formas de vida 
escolar que respeitam ou favorecem a cultura local, que 
se seja menos exigente nos exercícios de gramática, de orto­
grafia, no que respeita à aquisição duma língua dita «clás­
sica» ou «pura», não irá este esforço para tornar as crianças 
mais autênticas no seu meio voltar-se contra elas, quando 
tiverem de aparecer perante os seus patrões ou mesmo 
quando quiserem prosseguir estudos mais elaborados? Elas 
não serão capazes de o fazer, pois não disporão da língua 
que se lhes exigirá. Querendo desenvolvê-las no sentido 
delas próprias, está-se a ir contra os seus interesses e, tal­
vez, contra as oportunidades que lhes possam aparecer nesta 
sociedade.
Claude — Penso que o argumento merece ser discutido. 
Nas classes mais tradicionais, em que se insiste na gramá­
tica, na ortografia, no vocabulário, obtêm-se resultados 
muito limitados. Basta consultar as estatísticas nacionais 
para ver o número de crianças de operários agrícolas que 
ingressam na faculdade ¹. Para essas crianças, que, de qual-
1 Para aqueles que possam não ter presente no espírito a 
desigualdade de oportunidades em vigor no nosso sistema escolar, 
O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 223
quer modo, não terão podido seguir estudos secundários 
e superiores, e que irão ocupar postos de operários fabris 
ou de operários agrícolas, a escola terá sido uma punição 
perpétua e completamente injustificada; terá, ainda por 
cima, impedido que eles realizem investigações por sua pró­
pria iniciativa. Com as nossas técnicas, que favorecem a 
a expressão livre e o tacteamento experimental, estou con­
vencido de que não corremos o risco de desfavorecer as 
crianças das classes populares (63). Daí a acreditar que a 
pedagogia Freinet possa, só por si, lutar eficazmente contra 
a desigualdade social, vai um grande passo que eu não 
estou disposto a dar.
Algumas crianças, graças a uma preparação particular, 
conseguem aceder a postos de responsabilidade ou seguir 
carreiras para as quais se torna necessária a cultura domi­
nante. No plano psicológico, a maior parte deles, e alguns 
deles escreveram-no, sofrem dum perpétuo dilaceramento 
entre tudo o que representa os valores da sua família e
passamos a referir alguns números (em BOURDIEU e PASSERON, 
Les Héritiers; cf. também BAUDELOT e ESTABLET, L’écote pri- 
tnaire divise..., Maspero 1975):
224 A PEDAGOGIA FREINET
a sua própria ascensão social2. Pergunto-me se devemos 
tomar partido nesta questão e se temos o direito de arrastar 
para essa via crianças que o ignoram. Dum ponto de vista 
mais político, certos responsáveis dizem-nos que se tem 
a obrigação de formar as pessoas para que estas dialoguem 
com o patronato. Damo-nos conta de que são muito raros 
os que persistem nesta via; a maior parte dos que realizam 
estudos secundários ou superiores, sendo oriundos dos meios 
mais populares, encontram-se mais frequentemente ao lado 
dos ricos e dos poderosos do que ao lado dos explorados. 
O que é um terceiro aspecto das coisas que não deverá 
ser desprezado, mesmo que nos seja desagradável.
2 Citarei, para recordação, um dos pontos de conflito mais 
correntes: a atitude face ao trabalho manual.
De qualquer maneira, mesmo quando nos esforçamos 
nas nossas classes por respeitar ao máximo as crianças, 
somos forçados a compromissos; e creio que seria preciso 
distinguir dois nivéis:
1. É verdade que muitas crianças entram para a classe 
sendo incapazes de comunicar, mesmo com os seus irmãos 
e irmãs ou com os camaradas, e, evidentemente, o nosso 
dever, seja qual for a nossa definição da cultura, é de os 
ajudar.
2. Todavia, aculturá-los a qualquer coisa que lhes é 
perfeitamente estranho, é uma empresa mais difícil do que 
parece (há que consagrar a isso um tempo extremo que é 
tomado às outras actividades) e cujos resultados são sem­
pre aleatórios.
Aí, atingimos nitidamente os limites da escola, e talvez 
mesmo de qualquer formação escolar. Seja como for, creio 
que é utópico imaginar uma igualização das oportunidades 
O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 225
e uma sociedade mais democrática unicamente por este 
expediente.
A fonte profunda das desigualdades entre os homens 
pode certamente manifestar-se com frequência sob a forma 
da linguagem, pois a linguagem é um instrumento depoder 
que permite agir sobre o nosso mundo e explorar as pes­
soas; isso é, porém, apenas um aspecto. Nada impedirá, 
penso eu, que existam homens mais poderosos do que 
outros, mais fortes do que outros, e tudo está em saber 
se nos abandonamos duma maneira fatal a este processo, 
ou se procuramos, pelo contrário, mediante toda a nossa 
acção educativa, contrariá-lo e corrigi-lo.
Roger — Trata-se unicamente duma acção educativa, ou 
deverá prever-se uma acção política e social?
Claude— A esse nivel, e sem fazer jogos de palavras, 
é preciso que a acção educativa tenha uma dimensão polí­
tica e social, e é preciso que a política se queira educativa, 
porque não faz parte da natureza do homem, quando este 
é poderoso, ceder o seu lugar ao que o é menos, ou ajudar 
aqule que é menos poderoso. É, talvez, uma virtude desejá­
vel, mas não é uma virtude que se encontre naturalmente 
entre os homens.
Roger — Então, o que é que se faz na classe?
Claude — Estou a pensar numa anedota que é verda­
deira e que ilustra um pouco o nosso assunto. Um dia tínha­
mos saído a dar um passeio, desencadeara-se uma corrida 
espontânea e encontrámo-nos brutalmente com uma veda­
ção de arame farpado pela frente. Sem que eu tivesse tido 
tempo para intervir, toda a classe passou para o outro lado 
da vedação. Ora, entre os garotos havia miúdos de 4 anos 
e um mais crescido de 14 anos. Na minha experiência ante­
rior de colônias de férias, nunca tinha constatado um fenô­
meno semelhante. Habitualmente, o mais forte transpõe a 
vedação, enquanto os mais fracos aguardam a ajuda do 
15
226 A PEDAGOGIA FREINET
professor que sente que tem almas a seu cargo. Estou con­
vencido de que foi ao mesmo tempo uma longa preparação 
de ordem pedagógica e «política» na classe que provocou 
esta reacção particular. A esse nivel, o papel do professor 
continua certamente a ser preponderante, embora na maior 
parte dos casos seja um papel indirecto.
Roger — É bastante fácil de instaurar no plano da vida 
escolar. Mas poder-se-á, no plano geral da vida social e 
política, imaginar uma regulação do mesmo tipo?
Claude— Todo o problema está nisso!
Roger — Não são estas reacções visíveis em todas as 
classes únicas? Esta ajuda mútua que tu pudeste teste­
munhar neste teste do «arame farpado», se assim o pode­
mos chamar, não se deverá atribuir, simplesmente, ao facto 
de as crianças se terem encontrado numa classe única?
Claude — Não creio que isso seja o que se passa habi­
tualmente. Quando deparamos com classes únicas, encon­
tramos geralmente uma hierarquia muito forte entre os 
alunos mais velhos e os mais novos, e afora uma ajuda 
mútua copiada do exemplo da família no que toca aos 
mais pequenos, os outros defrontam-se muitas vezes em 
realidades muito violentas. Com muita frequência, consi­
dera-se a classe única como um mal menor. Penso, pelo 
contrário, que a classe única pode ser aceite como um lugar 
privilegiado de aprendizagem, com a condição de se pôr 
a tónica precisamente no grupo-classe e na cooperativa (64). 
Quando cheguei pela primeira vez à aldeia onde actualmente 
ensino — um tanto ingenuamente, mas a coisa correu, aliás, 
melhor do que poderia ter corrido — falei imediatmente 
aos alunos na cooperação. Antes mesmo de apresentar 
outros aspectos, disse-lhes: —Até ao presente, na classe, era 
cada um para si. Vamos tentar fazer a classe duma maneira 
diferente. Será cada um para os outros... (A expressão não 
é lá muito boa, mas enfim!) Expliquei-lhes o que queria 
O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 227
dizer a palavra «cooperação», que íamos criar uma «coope­
rativa», que deixaríamos de ter uma classe, para passarmos 
a ser uma cooperativa que estaria à disposição de todos 
para a realização do que se quisesse fazer...
Roger — Na vida quotidiana da classe, existem activi­
dades, por exemplo em leitura, nas matemáticas, à excep- 
ção talvez do estudo do meio, em que a mistura das dife­
rentes idades é mais fácil, em que a ajuda mútua surge 
a diferentes nivéis?
Claude — É raro que trabalhemos colectivamente; na 
maior parte dos casos, os alunos fazem trabalho individual 
ou em pequenas equipas. Em matemática, há vários anos 
já que venho reunindo equipas não homogêneas. Os gran­
des e os pequenos, a partir do C. E. 1, conseguem com faci­
lidade trabalhar juntos, pelo menos no que toca a «lançar» 
os trabalhos, as pesquisas. Alguns dos mais pequenos, muito 
vivos, têm ideias, por vezes bastante bizarras aos olhos 
dos grandes, mas que, precisamente, lhes permitem tornar 
a «arrancar» em diferentes direcções. Quando a matemati- 
zação da situação conduz a problemas mais difíceis, os 
pequenos retiram-se durante algum tempo para um desenho 
ou uma actividade deste gênero e, desde que possível, reto­
mam o trabalho conjunto com os mais crescidos.
Em leitura e em elaboração de textos livres, agrupa- 
mo-nos por equipas de três ou quatro que são, grosso modo, 
equipas de crianças do mesmo nivel. Isso não perturba a 
boa atmosfera da classe, pois estes grupos são constituídos 
duma maneira transitória, com vista a um trabalho preciso, 
e, além diso, o grupo que apronta textos livres em vinte 
minutos não é considerado moralmente superior ao que leva 
meia hora para fazer o mesmo trabalho. Em relação a 
todas as outras actividades, os grupos são não homogêneos, 
tanto no que respeita às actividades de oficina como no 
estudo do meio, em ginástica, etc.
228 A PEDAGOGIA FREINET
Por outro lado, de cada vez que isso me parece dese­
jável, é reservado um tempo em que os grandes, alterna- 
damente, funcionam com monitores junto, por exemplo, dos 
miúdos do C. P. Com muita frequência, os mais crescidos 
retiram dessa experiência tanto proveito como os mais peque­
nos, pelo que não se trata, para eles, de tempo perdido.
Roger — Nas reuniões de cooperativa, os mais peque­
nos tomam facilmente a palavra na presença dos grandes?
Claude — É preciso distinguir muito nitidamente os 
4 e 5 anos, e depois todos os outros. Quer isto dizer que, 
a partir do curso preparatório, da aprendizagem da leitura, 
não existe verdadeiramente qualquer diferença sensível, na 
reunião de conselho, entre os pequenos e os grandes. Em 
contrapartida, os 4 e 5 anos só intervêm verdadeiramente 
se forem solicitados, temos de confessá-lo. Penso, aliás, que 
isso se deve atribuir muito mais ao facto de o meio social 
ser um meio onde as crianças só falam a partir duma dife­
rença de idade. Em relação a todos os alunos da minha 
classe, qualquer que seja a sua idade, falar diante dos cama­
radas representa, de qualquer maneira, uma dificuldade...
Roger — Bonvillers é uma aldeia do Oise com 150 habi­
tantes, e há quantos anos diriges tu ali uma classe única?
Claude — Este ano é o sexto.
Roger — Equipaste-a muito ricamente, se a comparar­
mos com outras classes únicas. Poderias tu pormenorizar 
o material que foste adquirindo com o andar do tempo (65)?
Claude — Por um lado, dispomos de material bastante 
completo para a produção do jornal escolar *; temos, 
efectivamente:
— 2 prelos,
— 5 corpos de imprensa,
— 2 limógrafos,
— um certo número de materiais acessórios para as 
diferentes técnicas de ilustração.
O TESTE DOS ARAMES FARPADOS 229
Para além disto, consegui obter do município um mate­
rial audiovisual correcto:
— um magnetofone muito bom,
— um bom electrofone estereofônico.
Roger — O que se me afigura também singular, é o 
facto de a tua classe não ser simplesmente uma espécie de 
barracão... conseguiste organizar dentro dela cantos de tra­
balho!
Claude — Sim, existe de facto:
— um canto para os mais pequenos, que ganhou impor­
tância à medida que o efectivo de crianças de 4 anos foi 
aumentando e que se parece um pouco com uma classe 
maternal, incluindo um lavatório, armários para arruma­
ção, um pequeno fogão de cozinha para a preparação do 
jantarinho, etc.;
— um canto pintura e um atelier de ilustração;
— o canto audiovisual;
— o canto imprensa;
— um armário aberto que serve para classificar a docu­
mentação, todos os B. T.e todas as produções do movi­
mento;
— uma dezena de caixas com documentos diversos reco­
lhidos ao longo dos anos pelos alunos e por mim próprio...
Além disso, adaptámos determinados locais fora da pró­
pria classe:
— o celeiro foi convertido em oficina de marcenaria e 
de electricidade; existe, também, um atelier de fotografia 
que está ainda a dar os primeiros passos, mas que não 
tardará, certamente, a prestar-nos muitos serviços;
— a lavandaria existente no pátio foi transformada em 
oficina polivalente; por um lado, para ali se poder praticar 
música (sem perturbar o resto da classe), por outro lado, 
fazemos ali criação de porcos da índia. Além disso, as 
230 A PEDAGOGIA FREINET
crianças que fazem escultura ou actividades congêneres 
dirigem-se para lá para poder trabalhar tranquilamente.
É preciso dizer, também, que existe um jardim culti­
vado cooperativamente.
Roger — Assim, é toda esta instalação e este material 
que, no fundo, permitem à tua classe funcionar como um 
lugar onde as crianças podem praticar uma espécie de fra­
ternidade por intermédio das técnicas, por intermédio duma 
actividade real, e não através da audição dum curso ma­
gistral.
Partir do 0 
com 74 alunos
por Abdel-Kader Bakhti 
(reportagem de R. U.)
Em Sidi-Bel Abbès, uma escola construída no estilo colonial 
francês: classes distribuídas por edifícios rectilíneos em volta dum 
pátio central. Por sorte, a de Abdel-Kader Bakhti está situada no 
rés-do-chão, numa ala frente a um muro. Ao pé do muro, um jar- 
dinzinho cultivado pelos alunos é como que a antecâmara duma 
pedagogia arrancada à monotonia da repetição e à obsessão da 
disciplina.
Roger — Após quinze anos de luta, conquistaste o 
direito de ter um local bem teu, com mesas juntas para 
o trabalho em equipa e não para a escuta dócil entre dois 
exercícios de aplicação...
Kader — Sim, comecei a minha carreira de professor 
em 1959. Exerci num meio deserdado, situado ao sul de 
Oranie. O facto de trabalhar entre crianças muito pobres 
veio apenas reforçar em mim o gosto pelo trabalho. Nunca 
tinha ouvido falar da pedagogia Freinet. Isso só aconte­
ceria em 1963, quando cheguei aqui a Sidi-Bel-Abbès e come­
cei a trabalhar numa escola na companhia do meu colega 
Hakem. Este último participara num congresso da Escola 
Moderna em Annecy e praticava algumas técnicas na sua 
classe. Fiquei impressionado pela sua maneira de trabalhar 
e quis imitá-lo. Realizámos ambos, em Dezembro de 1964, 
um estágio em Mazagran (Mostaganem). 0 animador desse 
232 A PEDAGOGIA FREINET
estágio era René Linarès. Regressados do estágio, lançá­
mos de novo o trabalho e sensibilizámos outros colegas, e 
foi verdadeiramente a partir deste período que arrancámos.
Roger — Como puderam vocês inicialmente introduzir 
esta pedagogia? Quais foram as primeiras tentativas? Em 
que domínios?
Kader — As primeiras tentativas foram, antes de tudo, 
a nossa atitude em relação às crianças. Compreendê-las 
mais, estimá-las, deixá-las exprimir-se espontânea e livre­
mente, ensinar-lhes o sentido da responsabilidade, eis por 
onde começámos. Prosseguimos depois com a introdução 
do texto livre. Pessoalmente, incitei as crianças a fazer 
investigações, a ir recolher informações onde desejassem. 
Compreendi que todo o resultado deste trabalho devia ser 
comunicado, e foi isso o que me levou a redigir o nosso 
jornal de classe, que foi feito com a participação dos alunos 
de Hakem. Como ele era bilingue, o nosso jornal compor­
tava duas partes: uma em árabe, e outra em francês. O seu 
título era L'Ere nouvelle (A Nova Era). Como Hakem e 
eu nos encarregávamos dos mais miúdos (curso prepara­
tório de iniciação), um camarada, que se interessava pelo 
nosso trabalho e que desejava trabalhar no mesmo sentido 
que nós, enviáva-nos alunos mais crescidos para se poder 
tirar cópias dos textos no limógrafo. Precisamente no está­
gio de Mazagran, cada estagiário confeccionava o seu pró­
prio limógrafo *, que lhe ficara por uns 5 francos.
Roger — Depois, vocês tentaram a correspondência 
escolar...
Kader — Não imediatamente, mas um pouco mais tarde, 
tentei a correspondência escolar. Hakem correspondia-se 
já com alguém.
Roger — Com que escolas?
Kader — Em primeiro lugar, com escolas da Argélia, 
pois em 1966, por ocasião dum estágio muito importante 
PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 233
realizar em Alger, e em que participaram uma centena de 
camaradas, fui designado responsável nacional pela Corres­
pondência Escolar nacional e internacional. O movimento 
argelino era muito importante nesse período, correspon­
dendo-se uma centena de classes. Da correspondência nacio­
nal, passámos à correspondência internacional. Um grande 
número de classes argelinas correspondiam-se com classes 
francesas, tunisinas, marroquinas, belgas, polacas.
Roger — E que te proporcionou esta correspondência, 
para além do que tu já então fazias?
Kader — A correspondência escolar é uma coisa for­
midável (66)! É uma abertura para o mundo. Antes de 
tudo, o facto de comunicar ou de receber qualquer coisa 
dá prazer. Basta observar a alegria das crianças quando 
recebem, por exemplo, uma carta ou uma encomenda dos 
seus amiguinhos. Dão saltos de alegria! Além desta alegria, 
há a considerar o aspecto descoberta: crianças e professo­
res descobrem uma outra vida, que é talvez diferente da 
nossa, e procuram desvendar o seu mistério mediante um 
questionário. Coisa mais maravilhosa ainda, a correspon­
dência cria laços amistosos e fraternos.
Roger — Então, tu foste equipando progressivamente 
a tua classe, e quando eu lá entrei vi os bancos dispostos 
duma maneira muito diferente da das outras classes, as 
paredes decoradas.
Kader — Sim, certamente, com os anos, o material foi 
melhorando e também a maneira de trabalhar. Para alcan­
çar estes resultados, era preciso não só dispor de material, 
mas também procurar melhorá-lo. O texto livre «chama» 
a imprensa, esta última, por sua vez, outra coisa... o material 
de cálculo, etc.
Parti do zero para conseguir todo o material que tenho. 
As despesas com a compra dum certo material, que não 
pude fabricar com os meus alunos, vieram onerar o meu 
234 A PEDAGOGIA FREINET
modesto orçamento, pois eu pagava tudo do meu próprio 
bolso.
O primeiro instrumento foi o limógrafo que eu fiz 
durante o estágio. A seguir, criei uma «oficina de pintura». 
Era preciso comprar as tintas (que fazer? utilizei corantes 
em pó, goma arábica), pincéis, papel. Eu não podia pedir 
aos garotos que me ajudassem a pagar tudo aquilo, pois a 
maior parte destas crianças eram filhos de jornaleiros. Criá­
mos, depois, uma oficina de «trabalhos manuais». Fabricá­
mos a partir de zero filicortadores * — dois transforma­
dores recuperados de emissores de rádio que nos davam 
6 volts, mas depois fomos obrigados a comprar um trans­
formador maior para termos uma corrente de 12 V e de 
18 V para podermos cortar as tábuas mais grossas. Comprá­
mos, também, um pirogravador.
Em cálculo, eu queria pôr os meus alunos a trabalhar 
com bandas e caixas docentes *.
A amizade que liga entre si os docentes Freinet é uma 
amizade actuante. Recebi de Yvette Boland, da Bélgica, 
5 caixas docentes. Eu próprio fiz algumas caixas docentes, 
o que me permitiu criar uma «oficina de cálculo». Fabrica­
ram-se balanças para as pesagens, etc. Todo este material 
foi sendo melhorado de ano para ano.
Roger— Tu deste um novo salto em frente depois de 
teres passado três anos numa escola de animação peda­
gógica?
Kader— Sim, nos anos de 69-70-71. Trabalhei como 
professor de aplicação numa escola de animação pedagó­
gica em Sidi-Bel-Abbès.
Roger — Em que consistia essa escola?
Kader — O ministério criara em certos departamentos 
da Argélia escolas-piloto chamadas «escolas de animação 
pedagógica». Professores recrutados logo a seguir à inde­
pendência e que não tinham obtido os diplomas necessários 
PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 235
após sete anos de exrcícios foram chamados a frequentar 
um estágio dum ano. Da parte da manhã,assistiam aos 
cursos nas classes regidas por professores devidamente qua­
lificados (tradicionais ou modernos) e, da parte da tarde, 
recebiam uma formação cultural geral ministrada por pro­
fessores. Fui escolhido nesta escola para familiarizar os 
estagiários com as modernas técnicas de ensino. Fizemos 
um bom trabalho juntos (estagiários, alunos, director, ins- 
pectores, peritos da U. N. E. S. C. O. e professores). Fiquei 
satisfeito e penso ter cumprido com êxito a minha missão, 
pois muitos estagiários apreciaram os métodos modernos 
e empregam-nos actualmente nas suas classes. A minha 
classe correspondia-se com outra do Canadá. Tínhamos 
recebido uma fita magnética, diapositivos e um álbum. 
Os meus alunos, muito satisfeitos com esta encomenda, 
quiseram retribuir o gesto. Eu tinha possibilidades de satis­
fazer esse desejo, na medida em que esta escola estava 
dotada dum material muito rico e variado (material audio­
visual, de ensino doméstico, de jardinagem, etc.).
Roger — E foi aí que sentiste a necessidade de experi­
mentar as técnicas audiovisuais?
Kader — Antes de ir para esta escola, eu tinha feito 
a minha primeira montagem sonora a que dei o nome de 
Classe n.° 5. Esta montagem, que descrevia uma classe arge­
lina vivendo a pedagogia Freinet, foi apresentada em diver­
sos liceus de Oranie, na Itália, em França e na Espanha. 
Tive dificuldades em realizá-la, pois carecia de meios mate­
riais. Consegui que me emprestassem o magnetofone 
durante meio dia e procedi sozinho à montagem. Mas, na 
escola de animação pedagógica, podia realizar muitas coi­
sas e dedicar-me ao audiovisual; podia utilizar a meu bel- 
-prazer o magnetofone, o écran, o projector de diapositivos, 
etc., e foi este material importante que me permitiu rea­
lizar muitas coisas.
236 A PEDAGOGIA FREINET
Roger — E deixaram-te ficar com esse material, com 
esses aparelhos?
Kader — Não, eles pertencem à administração, e foi em 
1971 que me lancei na compra de aparelhos. Comprei um 
magnetofone para os meus garotos, um aparelho de pro- 
jecção de diapositivos, um aparelho fotográfico e um elec- 
trofone. A partir de zero, fizemos altifalantes, um écran, 
e montámos uma «oficina audiovisual». As crianças uti­
lizam o magnetofone e o aparelho fotográfico. Procede-se 
a manipulações, à iniciação nos diversos aparelhos, grava-se, 
desgrava-se, etc. Sinto-me muito feliz, pois todos os alunos 
não tiveram dificuldade em compreender o funcionamento 
do magnetofone e venceram o medo dos aparelhos. 
Os objectos fotografados pelos alunos são recolhidos num 
álbum.
Roger — E tu trabalhas com 74 alunos?
Kader — Sim, mas não com os 74 ao mesmo tempo. 
Tenho duas classes: um C. M. 1 com 34 alunos, e um C. M. 2 
com 40.
De manhã, estou com o C. M. 1 das 8 às 11 h. Da parte 
da tarde, tenho o C. E. 2 das 13 h 30 às 15h30.
O que perfaz um total de 14 h semanais ao C. M. 1 e de 
10 h ao C. E. 2
Roger — Que podes tu fazer durante três horas da 
parte da manhã com o C. M. 1?
Kader — Bastantes coisas, com uma certa flexibilidade. 
Faz-se um trabalho colectivo (conversação, lição importante, 
exploração dum inquérito), ao que se segue a dispersão 
pelas oficinas. Reunimo-nos depois para proceder a um 
pequeno balanço do trabalho realizado.
Roger — E tudo isso é feito de acordo com um plano 
de trabalho?
Kader —Um plano de trabalho estabelecido todos os 
sábados.
PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 237
Roger — Como se desenrola essa sessão? Qual a tua 
contribuição, e qual a deles?
Kader— Para estabelecer o plano de trabalho semanal, 
é necessário tanto a participação dos alunos como a do pro­
fessor. Organizamo-lo tendo em conta as necessidades de 
cada um. Há crianças que não compreenderam certas lições, 
que não adquiriram ainda certos conhecimentos, e que que­
rem rever certos pontos antes de abordar uma nova lição. 
Outras, pelo contrário, querem avançar. Fazemos estudos 
monográficos. Fixamos as visitas da semana. Mediante o 
plano de trabalho, prevê-se tudo: os contactos, o material, 
numa palavra, os preparativos. O que permite às crianças 
tomar consciência do trabalho.
Roger — Existe comunicação com os pais (67)?
Kader — Sim, com certeza! Na classe, tu deves ter 
visto um planning «visita dos pais» afixado na parede. 
Logo no princípio do ano, convido os pais para uma reunião 
de trabalho. Trata-se apenas dum contacto amigável, mas 
nem por isso deixam de ser tomadas em comum numerosas 
decisões. Explico-lhes que a classe está aberta para eles 
e que podem vir aos sábados observar o trabalho das crian­
ças. São postos ao corrente de todas as nossas actividades: 
inquéritos, acções em relação à natureza, iniciação no código 
da estrada, correspondência escolar. Isso leva os pais a 
tomar consciência de que os seus filhos não vêm unica­
mente adquirir conhecimentos, mas também PREPARAR-SE 
PARA A VIDA.
Roger — E os professores de árabe, trabalham em 
ligação contigo?
Kader — No início do ano escolar, «detecto», se assim 
me posso exprimir, o colega que vai trabalhar paralela­
mente comigo. Por vezes, é fácil; o professor, experimen­
tando a necessidade de repensar o seu ensino, tendo neces­
sidade de se modernizar, convencido da eficácia destas 
238 A PEDAGOGIA FREINET
técnicas, toma a iniciativa de se oferecer. Não irá trabalhar 
em profundidade, mas pode fornecer uma ajuda. As crian­
ças elaboram textos livres em árabe. Saímos juntos para 
os inquéritos, os quais são explorados em árabe e em 
francês.
Roger — Aprendeste muitas coisas a partir de zero?
Kader — Sim, isso permitiu-me aprender muitas coi­
sas, especialmente sobre a investigação pedagógica (68).
Considero que a investigação em pedagogia deverá 
desenvolver-se paralelamente a uma procura de instrumen­
tos. Este último aspecto há muitos anos já que me vem 
preocupando, pois verifiquei que muitos colegas, que tinham 
feito estágios de iniciação, manifestavam boa vontade e 
desejavam praticar a pedagogia Freinet, viram o seu entu­
siasmo contrariado pela falta de material ou pelo preço ele­
vado da sua aquisição. Isso impressionou-me e esforcei-me, 
a partir de zero, por obter material a fim de os ajudar a 
vencer estas dificuldades. Fizemos investigações em mate­
mática e em pedagogia. Todavia, este aspecto: «Como obter 
o seu material a partir de zero» foi descurado, importa reco­
nhecê-lo, e foi só nestes últimos anos que se começou a falar 
nele. Além disso, não representará uma satisfação total 
para as crianças, para os professores, criar os seus pró­
prios instrumentos? Há que dar aos alunos a possibilidade 
de criar, há que ter confiança -neles. Dir-te-ei que o 
nosso jornal é bem impresso pelo nosso limógrafo. Para 
quê, então, procurar adquirir um por 200 francos? Uma 
criança propõe-se trazer uma tábua que servirá de base, 
outra encarrega-se de trazer duas dobradiças que irá bus­
car não sei onde, um outro traz pregos, outro ainda um 
pedaço de tecido que pedirá à mãe, e está montado o limó­
grafo. A classe sente-se feliz por ter participado na fabri­
cação deste instrumento.
PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 239
Roger — Haverá outros domínios em que tenhas par­
tido de zero e em que as próprias crianças, também partindo 
de zero, te tenham proporcionado algo de novo? Por exem­
plo, na organização da classe?
Kader — Há quatro anos, eu possuía na classe um 
grande pedaço de contraplacado. Os alunos propuseram-me 
transformá-lo num planning anual. Eles recortaram tiras de 
papel, utilizaram grampos e fabricaram eles próprios o 
planning que tu viste afixado numa das paredes da classe. 
Este planning convém-nos mais do que um planning com­
prado por 150 dinars.
Em matemática, criámos balanças para a pesagem das 
cartas destinadas aos correspondentes. Fabricámos os nos­
sos próprios pesos com a ajuda de pequenos sacos cheios 
de areia, de pedras redondas.
Utilizámos garrafas, caixas metálicas como relógios de 
água para inculcar nas crianças a noção de minuto e de 
segundo. Cada criança fabricou a sua própria medida a 
partir duma fita docente:«Como fabricar o seu metro?».
Roger — Portanto, conheceste numerosos colegas nas 
tuas escolas; conheceste-os de esquerda e de direita. Hakem 
também. Existe, portanto, um movimento de pedagogia 
moderna em Oranie que parece ser o mais importante da 
Argélia. Como nasceu este movimento e como vive? Poderá 
Hakem dizer-nos alguma coisa a esse respeito?
Hakem — Antes de 1962, as técnicas Freinet eram exclu­
sivamente praticadas por professores franceses. Logo a 
seguir à independência, alguns camaradas, como René Lina- 
rès, Cervera, Nalin e outros, agruparam-se e começaram a 
divulgar estas técnicas entre os Argelinos. Em 1963, teve 
lugar um congresso pan-africano em Oranie, o qual reuniu 
uma centena de participantes vindos da Tunísia, de Marro­
cos, de Madagáscar... Não foi um êxito total, mas não foi 
mau como ponto de partida. A partir de então, um grupo 
240 A PEDAGOGIA FREINET
de camaradas começou a reunir-se em casa de René e pros­
seguiu com o trabalho. Duas vezes por mês, reuníamo-nos 
em casa dele, em Bou Sfer, ao mesmo tempo que se efec- 
tuavam jornadas pedagógicas de informação em Oran, em 
Mostaganem, em Tlemcen, em Sidi-Bel-Abbès. Outros cama­
radas antigos na região de Argel criaram um núcleo que 
trabalhava em ligação com o grupo de Oran, o que nos per­
mitiu, em 1965, criar o Movimento Argelino da Escola 
Moderna (M. A. E. M.)
O M. A. E. M. organizou durante as férias de Inverno 
diversos estágios (11 desde 1962). Além disso, todos os 
anos, o movimento envia uma delegação ao congresso inter­
nacional anual do I. C. E. M. desde o que teve lugar em 
Annecy (1963). Devido ao problema das divisas, os está­
gios em França não conheceram um grande incremento. 
Estivemos presentes em três R. I.D. E. F. *: Itália (1969), 
Dinamarca (1972), Tunísia (1973).
Roger — O grupo promove a realização de reuniões?
Hakem — Realizaram-se assembleias gerais, jornadas de 
trabalho e de informação em várias cidades da Argélia, mas 
levanta-se-nos o problema das distâncias. De 1968 a 1970, 
decorreu um tempo morto, se assim o podemos chamar. 
Foi o período durante o qual a maior parte dos nossos 
colegas prepararam os seus exames profissionais.
Em 1971, o grupo de Oran, particularmente em Sidi-Bel- 
-Abbès, reestruturou o M. A. E. M. dotando-o de novos esta­
tutos. Pode dizer-se que a pedagogia Freinet, oficialmente 
ignorada até 1970, ganhou importância, tributando-lhe agora 
as autoridades uma grande atenção. Está presente nas 
nossas classes. Nas universidades, nos Institutos Tecnoló­
gicos de Educação (I.T.E.), colegas nossos, a quem envia­
mos uma rica documentação, fazem exposições sobre Frei­
net e a sua pedagogia. Todos os anos, por ocasião das festas 
PARTIR DE 0 COM 74 ALUNOS 241
da cidade, no fim do ano escolar, tem lugar uma muito 
grande exposição organizada pela Escola Moderna.
Roger — Qual o futuro do M. A. E. M., em teu entender? 
Esta colaboração com a administração irá servir ou pre­
judicar o movimento?
Hakem — Com toda a franqueza, o Movimento Arge­
lino da Escola Moderna foi muito importante do ponto 
de vista efectivo nos primeiros anos, ou seja, de 1963 a 1967. 
À cabeça de grupos regionais encontravam-se inspectores 
primários. Todas as quintas-feiras, tinham lugar reuniões 
de grupo, além de que existiam contactos permanentes entre 
responsáveis de grupos. Ora, a partir de 1967, houve uma 
grande mudança, tendo afrouxado o ritmo da nossa acção. 
Porquê?
Em primeiro lugar, os inspectores primários têm muito 
trabalho (pedagógico e administrativo). Apoiam-nos, mas 
não podem garantir responsabilidades no seio dos grupos.
Em segundo lugar, na quinta-feira, há aulas. Já se não 
pode animar jornadas de trabalho, pois a maior parte dos 
professores estão ocupados com as suas classes. Os pro­
fessores só dispõem das tardes de quinta-feira para tratar 
dos seus assuntos pessoais.
Um terceiro ponto: não se conseguiu o concurso dum 
animador para ir fazer exposições, falar do nosso trabalho; 
finalmente, a distância levanta grandes dificuldades. Temos 
camaradas que trabalham no Sul ou na região de Constan- 
tina. Eles não podem deslocar-se para nos vir ver trabalhar, 
e não têm outro meio de comunicação que não seja por 
carta.
Em contrapartida, o nosso trabalho melhorou bastante. 
Até agora, temos conduzido investigações pedagógicas. 
O nosso trabalho aperfeiçoa-se de ano para ano. Há cama­
radas que trabalham com teimosia e que alimentam a espe­
rança de ver um dia o nosso movimento adquirir uma 
16
242 A PEDAGOGIA FREINET
importância muito maior. Sem meios financeiros, sem 
subsídios, organizámos não poucos estágios de iniciação 
na autogestão. Centenas de colegas foram iniciados na peda­
gogia moderna e, até à data, o movimento tem vindo a 
editar uma revista: L'Éducateur algérien. Comunicámos à 
administração as nossas pesquisas, o nosso trabalho, tendo 
chegado até nós numerosas cartas de felicitações do minis­
tério da Educação Nacional.
Quanto a dizer-te se a administração vai ser útil ou 
prejudicial ao movimento, penso que, actualmente, o país 
desenvolve grandes esforços em todos os sectores. Depois 
da revolução industrial, da revolução agrária, será a vez da 
revolução cultural. No domínio do ensino, a construção 
de escolas, a formação de quadros e a renovação do ensino 
são tantos outros elementos de valorização.
No ano passado, mais particularmente em Junho, uma 
nota do ministério da Educação Nacional fazia-nos saber 
que o Instituto Pedagógico Nacional procedia ao recruta­
mento de pessoal qualificado (inspectores, professares, mo­
nitores), o qual terá a missão de renovar o nosso ensino 
para que os nossos filhos possam, num futuro muito pró­
ximo, beneficiar dum ensino moderno, pois, nesta época, 
só uma escola aberta à vida, onde o trabalho seja moti­
vado por necessidades vitais, onde a vida da escola se ela­
bore cooperativamente, onde o dogma e os preconceitos 
sejam banidos, estará à altura de formar verdadeiros revo­
lucionários. É isso o que eu desejo de todo o coração à 
escola argelina.
PERSPECTIVAS 
E SOLUÇÕES
Desaprendizagem 
e desbloqueamento 
na classe de aperfeiçoamento
por Jean-Pierre Lignon 
(reportagem de R. U.)
A rua das Escolas, com os seus edifícios sem originalidade, 
está um pouco afastada do centro, das lojas, e o seu ar austero 
lembra ao transeunte que há que procurar noutro lado a fantasia. 
Jean-Pierre Lignon ocupa o rés-do-chão dum anexo. Classe-labirinto 
num alojamento adaptado de que um professor de aperfeiçoamento 
pode tirar partido para dispersar o grupo por oficinas. Imprime-se 
o jornal num corredor, meticulosamente, e as folhas são transpor­
tadas sobre uma tábua como pãezinhos frescos. Gavetas cheias de 
caracteres de imprensa, uma pirâmide de caixas de tinta de imprensa, 
instrumentos, chapas, tudo se acha sob o signo da recuperação.
Incluindo os próprios alunos. Do que os outros já abando­
naram, Jean-Pierre procura fazer alguma coisa.
— O que é impressionante quando se visita a tua classe, 
é o facto de se não assistir a sessões de leitura ou de cál­
culo por parte das crianças, e — enfim, assistimos a uma 
sessão de cinema que não é, talvez, a fórmula permanente 
do teu trabalho — tu disseste-me que tinhas a preocupação 
de «desaprender» um certo número de coisas, um certo 
número de más aprendizagens que as crianças tinham 
246 A PEDAGOGIA FREINET
sofrido e que para além de terem sido mal assimiladas eram, 
em si mesmas, deformadas, se assim podemos dizer...
— Sim... é verdade, nós nem sempre nos encontramos 
nas oficinas... Não seria do agrado das crianças estar 
sempre nas oficinas. Eles gostam também de se reunir em 
grupo em volta dum texto que deverá ser lido ou decifrado, 
por exemplo. Vou contar-te a reacção dum colega que veio 
à minha classe num dia em que funcionávamos doutra 
maneira; havia outros centros de interesse, e ele achou que 
a classe era demasiado tradicional... Na realidade, os garo­
tos tinham um centro de interesse comum, o que fazia com 
que se parecessemcom uma classe... um pouco renovada, 
se quiserem, mas de estilo tradicional, uma classe em que 
cabe ao professor a iniciativa de todas as propostas. Pelo 
que ele encontrou motivos para criticar...
— Mas, em que consiste isso de «desaprender»?
— É o segundo ponto que eu queria desenvolver... 
Dirijo uma classe de aperfeiçoamento, e os meus garotos 
sofreram um insucesso escolar. Não é uma novidade, antes 
uma realidade bem conhecida. Trata-se, no entanto, dum 
insucesso mais ou menos repetido que os leva a sentir-se 
absolutamente incapazes, incapazes congénitos... e que, por 
conseguinte, façam eles o que fizerem, acabarão sempre 
por falhar... e isso em tudo o que possam empreender! 
Então, desenvolvemos uma actividade de desbloqueamento, 
a qual tende a regressar ao ponto zero, ou mesmo, para 
lá deste, a um ponto negativo, o que depende da escala; 
trata-se, em suma, de recuperar uma espécie de dinamismo 
fundamental — na realidade, de desaprender o que foi mal 
aprendido.
— Quer isso dizer que, ao vir para a tua escola 
frequentar a classe que diriges, eles já não têm a impressão 
de que os ritos anteriores eram indispensáveis, podendo 
agora exprimir-se quando assim o desejarem, trabalhar 
DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 247
nisto ou naquilo quando lhes apetecer, tendo a leitura com 
L maiusculo e o cálculo com C maiúsculo deixado de preen­
cher todo o emprego do tempo...
— A coisa não é tão simples, nem categórica. Há que 
ter presente que eles entram, desde logo, numa classe que 
não se parece com uma classe, que não tem qualquer seme­
lhança com a classe onde eles conheceram o insucesso (a 
«classe» acha-se instalada num apartamento com três divi­
sões...). (O que faz parte do capítulo «desbloqueamento»). 
Há também o facto de eles poderem ler constantemente e em 
qualquer momento: no momento de imprimir, quando da 
correcção dos textos, no seu caderno ou na imprensa, quando 
do contacto com os jornais que chegam, em todos aqueles 
momentos bem conhecidos numa classe Freinet, mas que 
não ocorrem duma maneira sistemática.
— Não se regista uma aversão instintiva à leitura? Não 
seria suficiente para eles falar uns com os outros ou fazer 
música juntos? A partir de que momento passam a estar 
motivados a leitura e a escrita?
— Elas são motivadas, precisamente, pela imprensa, 
pelo facto de se estimular o pensamento da criança... Pode 
parecer que se trata apenas de palavras, tenho receio de o 
dizer, mas a verdade é que se trata duma verdadeira expe­
riência vivida. 0 pensamento das crianças define-se face 
ao jornal numa situação de êxito, sentindo-se aquelas defi­
nitivamente seguras de si. É a repetição destes êxitos que 
suscita neles o desejo de se exprimir e, mesmo, de tomar 
conhecimento de outros escritos, de comunicar literal­
mente ao nivel do escrito. Inicialmente, havia insucesso, 
portanto rejeição. Eu tinha de aceitar que a criança não 
lesse, não escrevesse, em suma, não «trabalhasse»... o que, 
evidentemente, levantava problemas nas minhas relações 
com as famílias...
248 A PEDAGOGIA FREINET
— Como reage a família quando a criança lhe traz um 
jornal e quando ela vê o texto da criança?
— A primeira reacção é não acreditar que tenha sido 
a criança a fazê-lo. Tive diálogos com as famílias (69) que 
se podem resumir da seguinte maneira: — Como consegue 
que eles digam aquilo tudo?... Eles só compreendem ao 
fim de algum tempo mais ou menos longo. Tenho neste 
momento uma discussão com uma família que, finalmente, 
acabou por compreender bem, duma maneira «intuitiva», 
o que podia ser a liberdade de expressão, quando nos cen­
suram muitas vezes uma liberdade de «deixar correr o 
marfim», uma liberdade de má qualidade, uma liberdade 
que levaria as crianças a partir e estragar, relacionando-se 
tudo isto com a velha filosofia da «criança má».
— A inexistência de manuais não suscita entre as 
outras crianças, entre os pais, uma certa inquietação, ao 
pensar que, afinal de contas, nunca poderão servir-se de 
livros, de verdadeiros livros?
— Sim, conhecemos essa inquietação, mas conseguimos 
ultrapassá-la, simplesmente porque, no nosso grupo escolar, 
é cada vez maior o número de colegas que começam a imi­
tar o nosso exemplo ou que se inspiram nos nossos méto­
dos, o que faz com que nos considerem uma «vanguarda», 
que nos considerem avançados, pelo que todos se esfor­
çam por recuperar o seu atraso em relação a nós. Ainda 
há pouco tempo as coisas não se passavam assim, e éramos 
fidos por originais, por loucos; eu era tão louco como as 
crianças. De qualquer modo, íamos ao monte do lixo e 
tirávamos de lá coisas, portanto...
— E se falássemos do desbloqueamento? Como é que 
a coisa se apresenta na tua classe?
— Penso que ainda não acabámos de falar do primeiro 
aspecto, pois ainda tenho coisas para te dizer a esse res­
peito. Por exemplo, a leitura (70); «desaprendemos-lhes» 
DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 249
a ler. É uma actividade nobre a de desaprender o que foi 
mal aprendido ou o que foi percebido como um insucesso, 
ou como exterior à criança e à sua expressão íntima. Tra­
balhamos verdadeiramente nisso. O que significa que o 
garoto aprende a aceitar cometer erros. Institui-se uma 
escrita livre. Quando o garoto aprendeu a ler, sabia já 
escrever algumas palavras, mas continuava a não saber o 
seu significado. Sabe copiar muito bem, mas de maneira 
nenhuma sabe exprimir-se a si próprio dizendo: ...Os meus 
brinquedos são... o meu punhal... a minha boneca...; 
Annick foi a minha casa... Não sabem escrever isto porque 
estas coisas não vêm nos livros, não se encontram nos 
manuais. Sabem, porém, escrever: A casa de Poucet, ou 
ainda: Uma tulipa vermelha... A desaprendizagem pode 
passar-se da seguinte maneira: eu entrego o quadro às 
crianças. 0 quadro é, apesar de tudo, «pertença do pro­
fessor». Num primeiro tempo, eles tornam a escrever tudo 
o que aprenderam, libertam-se disso, depois do que defor­
mam o que escreveram, apagam, cospem em cima, mostram 
«falta de respeito» por aquilo que aprenderam. Trata-se 
duma actividade de destruição instituída, valorizada, que 
depressa atinge a fase dos «gatafunhos». Parece-me ser 
nesse momento que se chega ao fundo, ao ponto zero, isto 
é, a um plano de estabilidade sobre o qual se poderá cons­
truir. Tudo se passa como se o edifício estivesse construído 
sobre areia ou sobre lama; não se firmava bem. Num pri­
meiro tempo, é preciso demolir o que não está bem seguro 
para chegar ao mais profundo do solo, à rocha, às aqui­
sições sólidas, o que coincide na maior parte das crianças 
com a fase dos gatafunhos. É desta fase que partimos. 
Pouco a pouco, vão saindo letras destes gatafunhos. Tudo 
recomeça duma maneira verdadeiramente efectiva, pro­
funda. Em seguida, escrevem-se palavras. Mas palavras 
que correspondem a qualquer coisa de real para as crianças,
250 A PEDAGOGIA FREINET
de verdadeiramente vivido. Passa-se do quadro para o 
papel; então, muito naturalmente, eles começam a tentar 
escrever. O texto é, assim, instituído na classe. Todos os 
retrocessos são possíveis, a todo o momento se pode voltar 
atrás. Tudo se faz tacitamente, tal é a lei da classe. Passa­
mos por uma escrita individual livre, escrita para a qual 
é indiferente o tipo das letras: maiúsculas, minúsculas, 
inglesas, script, etc., qualquer mistura serve. Aceita-se tudo. 
Cada garoto define, desse modo, o seu estilo, o qual é reco­
nhecido pelo grupo. Já não se trata duma actividade de 
cópia, mas de verdadeiras pesquisas. Uma escrita livre 
implica, também, uma ortografia livre. Tem-se o direito 
de escrever «bié» em vez de «billet» (bilhete), o que é con­
siderado como bom, não se fazendo qualquer correcção. 
Entre nós, os cadernos não são corrigidos. Seja como for, 
não se trata de cadernos, mas de -dossiers. Não corrigimos 
neste primeiro tempo.
Trata-se efectivamente duma actividade de desaprendi- 
zagem que permite à criança recomeçar a partir de bases 
novas, de bases de expressão. Seguidamente, pode fazer-seuma verdadeira aprendizagem da leitura, não pela própria 
leitura, mas aprendizagem da leitura pela escrita. Apren-
DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 251
de-se a ler escrevendo, e não lendo. A aprendizagem por 
meio da escrita dá somente em resultado a cópia. Quando 
a criança tem necessidade dum som, aprende-o.
— Como é que se obtém oi, Jean-Pierre?
— Pois bem, obtém-se oi com um o e um i.
Faço muitas vezes o gesto com os dedos, pois nem sem­
pre estou disponível junto da criança — é como uma espé­
cie de morse que permite que comuniquemos à distancia —: 
o...i = oi, assim, com os dedos, como um cão que uiva1. 
O que serve, ao mesmo tempo, para fixar o som no espírito 
da criança. Os textos das crianças são muito íntimos, por 
exemplo:
1 Em francês, no texto: «...comme un chien qui abote.» (Subli­
nhado do T.)
Um sol que chora.
Um outro sol que chora.
As lágrimas que se cruzam ao chorar.
Uma rapariguinha e um rapazinho
Brincam sobre as lágrimas dos sóis.
Eles vão-se encontrar um ao outro.
Brigitte FOUQUET
Trata-se dum texto profundamente sentido pela garota, 
pois ela descreve nele a sua situação familiar, em todo o 
seu vigor e autenticidade. É uma situação sentida como 
impossível de traduzir por palavras, tal como é impossível 
vivê-la. Unicamente o símbolo permite desmistificar, per­
mite ser ouvido e aceite. Sobre esta base afectiva muito 
forte, pode-se construir. Tudo isto nos leva a falar das 
técnicas de desbloqueamento.
— O que conta, em última análise, são as actividades 
de desbloqueamento?
252 A PEDAGOGIA FREINET
— O que te acabo de descrever sumariamente, são 
actividades de desaprendizagem. O desbloqueamento é, 
para mim, outra coisa, embora esteja relacionado com 
aquela. Há necessidade de desbloqueamento quando existe 
uma impossibilidade de fazer. No que diz respeito à lei­
tura e à escrita, os garotos não se encontram impossibili­
tados de fazer — por exemplo, eles encontram-se em poten­
cialidade, em «possível» de reprodução—, mas antes em 
situação de não comunicação. Na realidade, existe um fosso 
entre eles e a coisa escrita. Então, é preciso retornar à 
base, desaprender tudo o que se relacione com esse aspecto 
e recomeçar dum ângulo diferente, o da expressão pessoal. 
Nisto consiste a desaprendizagem.
O bloqueamento é uma coisa diferente. A criança gos­
taria de comunicar, está pronta para isso, quer fazê-lo, está 
motivada, mas não o pode fazer, está bloqueada. Se qui­
seres, está a abarrotar de imagens, culturais ou não, que 
não são suas, e não pode desembaraçar-se desse acervo de 
imagens para exprimir aquilo que tem real necessidade 
de comunicar. Achasse bloqueada.
Em face do bloqueamento, há o desbloqueamento.
Está fora de questão desbloquear toda a gente em 
relação a tudo. É impensável que eles se tornem todos 
dançarinos, ou todos tipógrafos, ou todos pintores, ou 
todos... sei lá que mais. A haver desbloqueamento, que 
ele se verifique no domínio em que eles têm real neces­
sidade de se tornar eles próprios, de se revelar, pois é 
desta expressão particular que eles têm necessidade.
Pascalou era uma criança que se mostrava muito rígida, 
mas duma rigidez enorme, rara numa criança. Ora eis que 
um belo dia ela se resolve a ser dançarina, passando-se a 
interessar pela dança. Eu mostrava-me muito céptico, mas 
ela queria ser considerada como a campeã de dança da 
DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 253
classe. Nós entrámos no jogo; mas era ainda preciso que 
ela não caísse no ridículo e que, em face do grupo-classe, 
a coisa parecesse verdadeira. Então, quais as técnicas de 
desbloqueamento da dança que se deveríam empregar? 
Insisto no facto de a criança estar muito motivada para dan­
çar, devendo a operação situar-se unicamente ao nivel do 
desbloqueamento. A criança tinha conhecimento das suas 
impossibilidades, não ousava lançar-se, e todavia estava 
mais desejosa de o fazer; tinha necessidade disso, era para 
ela algo de muito importante. Fui buscar à caixa das par­
tidas, para lhos oferecer, as meias altas e os sapatinhos de 
dança. Tinha já observado que, quando íamos de passeio 
e fazia calor, ela tinha tendência para despir o vestido e a 
camisola, e a andar descalça. Mas ela também tinha neces­
sidade dum espelho. Entreguei-lhe um par de meias altas, 
sapatos de dança e uma camisola justa, e disse-lhe: — Veste 
isso para te pareceres com uma bailarina; olha, vê-te ao 
espelho! E podíamos então observá-la, ela já não era Pas- 
calou a gesticular diante de todos, era, agora, «a bailarina». 
A partir desse momento, ela começou a dançar muito, aliás, 
segundo a maneira como ela entendia a dança... Depois, 
no Natal, ela pôde encontrar sob a árvore de Natal um livro 
sobre as bailarinas. Viu raparigas que levantavam a perna 
desta ou daquela maneira, e procurou sistematicamente 
reproduzir os movimentos que observava. Além disso, trei- 
nava-se em casa. A garota pôde adquirir, assim, uma flexi­
bilidade incrível.
— Os pais permitiam tudo isso?
— Oh, sim! A coisa podia aparecerdhes como uma espé­
cie de jogo, embora, na realidade, o não fosse. Ela dan­
çou tanto que agora movimenta-se com muita graça para 
regalo dos nossos olhos. Pascalou tornou-se verdadeira­
mente «a bailarina da classe».
254 A PEDAGOGIA FREINET
— E esse desbloqueamento teve repercussões noutras 
actividades?
— Sim este desbloqueamento teve enormes repercus­
sões sobre a leitura, sobretudo a leitura-escrita. Por causa 
dos seus movimentos de todo o género, ela começa a ver 
o mundo em grafismos, em linhas. Anteriormente, ela con­
fundia tudo, misturava linhas e superfícies. O que a emba­
raçava no desenho; com efeito, os seus desenhos não eram 
legíveis, ela apagava toda uma organização de traços 
mediante linhas desastradas. Além disso, ela não diversi­
ficava as suas técnicas, o que também a embaraçava no 
plano da escrita. Tão-pouco a sua escrita era legível, pelo 
que a sua percepção motriz não lhe permitia ler, etc. Tudo 
está relacionado...
Ao mesmo tempo que dançava, ela traçava linhas. 
Foram-lhe dados pincéis para ela pintar a sua dança. A par­
tir de então, ela pôde valorizar as suas linhas. Em seguida, 
libertei-a do eterno «fundo». Quando fazíamos pintura, eu 
dizia-lhe: — Tu não precisas de fundo, pois, para ti, que 
és bailarina, o mais importante são as linhas. Tive mesmo 
a impressão de abusar do estatuto que ela tanto apreciava.
Agora que ela tem uma escrita legível, os progressos 
em leitura são rápidos, pois ela toma a ler o que escreveu.
— Registam-se desbloqueamentos em cálculo? Como 
procedes tu no caso das matemáticas?
— As matemáticas? É dizer muito! Não posso falar 
de matemáticas no que se refere àquelas crianças! Limita- 
mo-nos a contar, a classificar. As crianças não sabem ler 
os números; é preciso ensiná-las a ler os números. É neces­
sário que a leitura dos números corresponda a uma ideia 
dos números. Procedemos a muitas contagens. Mediante 
DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 255
1, 2, 3... fazemos montões. Os garotos também gostam 
muito dos «conjuntos», isto é, das «batatas», porque se 
trata dum meio fácil de separar qualquer coisa. Na reali­
dade, sinto-me muito embaraçado para te dizer que fazemos 
cálculo, pois a coisa não é assim tão clara. A posteriori, 
sabe-se se se faz cálculo ou não; de início não o sabemos.
— Vocês procedem a medições, a pesagens?...
— Sim, em grande quantidade. As crianças sentem ver­
dadeiro prazer em comparar coisas. Ora, os pesos e as 
medidas são meios de comparação, pelo que a coisa acon­
tece naturalmente.
Lembro-me dum colega me ter confessado sentir difi­
culdades no que toca às medidas de capacidade. Os seus 
garotos, em seu entender, não compreendem o que é uma 
capacidade. Nós, pelo contrário, temos acesso directo a 
este conceito, uma vez que as crianças estão constantemente 
a manipular a água. Encontrámos velhos caracóis — havia-os 
grandes, pequenos, de todos os géneros... Eles descobri­
ram que alguns continham mais água do que outros, e 
precisaram essa quantidade. Narealidade, trata-se duma 
operação muito delicada, pois há sempre gotas que se per­
dem. Tínhamos discutido com os garotos sobre o que nós, 
adultos, poderíamos chamar a relatividade da medida. Nas 
pequenas medidas, damo-nos conta disso melhor do que 
com as grandes. Nas grandes medidas, apercebemo-nos de 
que se podia, impunemente, verter alguma água por fora. 
No caso das pequenas, porém, uma gota, é já muito grave... 
Não vamos mais longe que a enumeração, mas praticamo-la 
em diferentes domínios. E os garotos fazem as suas pró­
prias pesquisas. Com efeito, eles procedem a investigações 
pessoais diferentes umas das outras. Neste momento, Edith 
procura contar por conjuntos, mas por conjuntos anteci­
padamente definidos, procurando assim, se quiseres, «faci­
litar» o seu trabalho. Por exemplo, numa grande adição, 
256 A PEDAGOGIA FREINET
ela isola todos os 20 e procura quantas vezes tem vinte 
e o que resta. Depois, faz uma outra verificação. Tu sabes 
que em pedagogia didáctica se pretende que a criança passe 
por uma fase manual antes de abstrair. Edith, procede ao 
contrário: primeiro pensa, e só depois verifica no concreto.
— Qual o estado de espírito, qual a situação dos garo­
tos que te deixam?
— Se me deixam quando é esse o meu desejo, o que, 
infelizmente, nem sempre acontece, encontram-se num 
estado perfeitamente normal da criança normal, isto é, já 
não se pode dizer que eles sejam «débeis mentais». Procuro 
fazer «saltar», no caso desses garotos, a noção de debilidade. 
Eles mostram-se vivos, cheios de curiosidade. A tradicional 
lentidão de espírito dos débeis deixa praticamente de existir. 
Não se pretende, porém, logo de início, recuperar o atraso, 
evidentemente.
—Verifica-se uma adaptação social e uma compreensão 
de si próprios que lhes permite desenvencilhar-se...
— É isso. Eles já não se sentem como os «imbecis» 
num outro grupo de crianças.
— Acaso podem eles ter presente no espírito um cento 
número de actividades que poderíam exercer mais tarde 
e que lhes permitiríam viver, pois os pais devem molestá-los 
a propósito disso?
— Sim, sim, posso dar-te o exemplo dum ancião, Mar- 
tial, que sempre disse que haveria de trabalhar na viticul- 
tura — e é, actualmente, vinhateiro. Conseguiu fazer aquilo 
que queria. Francine tornou-se dactilógrafa, como era seu 
desejo. Evidentemente, não se trata, no que se refere à 
grande maioria, de profissões «intelectuais», mas...
— Sim, com certeza... Os teus antigos alunos vêm às 
vezes visitar-te?
— Sim, sim, revejo muitos deles, que tomam direcções 
que eu nunca teria imaginado. Posso citar-te o caso duma 
DESAPRENDIZAGEM E DESBLOQUEAMENTO 257
criança que esteve comigo há já muito tempo; um garoto 
que nunca conseguiu aprender a ler e a contar (um caso 
extremo, apesar de tudo). Trabalhámos noutras bases... 
sublinhando, sobretudo, o aspecto oral, a discussão... Esse 
garoto adquiriu em muito pouco tempo uma «lábia» extraor­
dinária, uma facilidade de elocução maravilhosa. Tornei 
a vê-lo, não há muito tempo, e ele parece ostentar todos os 
sinais do êxito social... É representante comercial, possui 
um DS 21 novinho em folha. Acaba de mandar construir 
uma vivenda. Eis, pois, um representante comercial que 
não sabe ler nem escrever...
— Isso é possível?
— Sim... Ele não o sabe, segundo as normas escolares 
geralmente admitidas. Não sabe ler nem um texto nem 
um livro, mas reconhece, evidentemente, sinais, fórmulas... 
Sabe reconhecer os seus produtos num plano de vendas, 
possui uma excelente memória... Ele próprio não faz os 
cálculos, limita-se a inscrever cruzes...
— Ele terá, mesmo assim, aprendido a ler, depois, não?
— Não o creio... Ele próprio diz que continua a não 
saber ler, mas eu penso que ele toma conhecimento de 
certas coisas globalmente, fosse apenas nos painéis de sina­
lização das estradas... Mas ele tem uma «lábia» extraordi­
nária verdadeiramente sedutora, e vende tudo aquilo que 
quer.
Em meu entender, o seu triunfo não se verifica ao nivel 
do conforto social, reside antes no facto de ele ter seguido 
a profissão que desejava, no facto de ter tirado partido 
dos seus dons. Como ele se sente orgulhoso! Ele próprio 
se admira com isso!
17
Deveremos desconfiar 
dos psicólogos?
por Jacqueline e Jacques Caux
(reportagem de R. U.)
São vários milhares, em França, a tirar da sua mala de mão 
baterias de testes, questionários, cronômetros, em frente de crian­
ças amedrontadas, de operários perplexos e de quadros desempre­
gados e ansiosos. Amáveis, mas enigmáticos...
Inútil será dizer que Jacques e Jacqueline Caux, no seu Morvan 
de gente rude e realista, não se reconhecem neste retrato-robot...
«Perdidos para o movimento»
Roger — Quando um camarada decide deixar de ser 
professor, e tornar-se psicólogo, ou conselheiro pedagógico, 
ou inspector, ou transferir-se para o segundo grau, isso é 
sempre visto como se ele abandonasse o movimento e rene­
gasse os seus irmãos professores. Assim, vocês os dois esti­
veram encarregados de classes Freinet, e, depois, foram, de 
algum modo, desertores das classes elementares. Como sen­
tem vocês esta censura?
Jacqueline — Isso recorda-me uma frase de Hourtic ¹, 
que nos apresentou aos seus professores da escola anexa 
dizendo:
1 Director de anexo escolar em Mérignac.
260 A PEDAGOGIA FREINET
— Eis dois bons educadores em matéria de pedagogia 
Freinet, dois bons pedagogos, dois elementos sólidos, mas 
que estão perdidos para o movimento.
Jacques — Estão perdidos para o movimento. O que 
fez com que, desde o princípio, nos víssemos confrontados 
por este problema. Sim, isso não deixara de nos impres­
sionar. Dizíamos para nós próprios: «poderemos tornar a 
pegar numa classe, poderemos recomeçar», mas, finalmente, 
sabíamos bem que se tratava duma atitude irreversível; 
não mais tornaríamos a pegar numa classe. Então, que iría- 
mos fazer de todo aquele passado, ao mesmo tempo de 
pedagogo Freinet na nossa classe, e de pedagogo Freinet no 
movimento? Havia estes dois planos, e eu penso que se 
deverá distinguir sempre estes dois planos, porque se pode 
organizar uma boa classe Freinet, mas já não actuar tão 
bem no seio do movimento e vioe-versa. Ao fim e ao cabo, 
precisávamos dos dois anos de estágio para clarificar a 
questão.
Roger — Vocês tinha escolhido essa via, não por faci­
lidade, mas porque queriam ir mais longe do que aquilo 
que tinham feito até então. Não haverá uma idade em que 
dizemos a nós próprios: tudo corre da melhor maneira na 
minha classe, mas eu quero ir mais longe, pois atingi o 
ponto de saturação?
Jacqueline — Sim, era precisamente esse o meu caso. 
Eu tinha trinta anos, a minha classe funcionava muito bem, 
eu pensava não poder realizar mais progressos, e verifica­
va-o na correspondência escolar, na expressão das crianças; 
eu acumulava os dossiers, as investigações encetadas e, de 
cada vez, achava-me perante novos impasses. Recorria ao 
auxílio de camaradas: enfadava Beaugrand com as mate­
máticas; também te maçava a ti, Jacques, e não chegava 
a .coisa nenhuma. Foi então que se nos ofereceu a possi­
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 261
bilidade de fazer este estágio para psicólogo escolar, preci­
samente, para irmos mais longe. Foi exactamente isso.
Jacques— Toda a escolha tem um significado. Eu tam­
bém senti que a minha classe «patinava», que eu próprio 
estava a chegar ao extremo da paciência. Todavia, pode­
riamos ter encontrado na classe essa possibilidade de 
renovação.
Roger — Acreditas verdadeiramente nisso? Como a 
terias encarado?
Jacques — Acredito nisso, agora; naquela época, não. 
Creio que, se o movimento me tivesse podido oferecer algo 
mais no plano teórico, eu teria podido progredir.
Penso que aplicava uma pedagogia (a expressão livre, 
o tacteamento experimental, os métodos naturais em toda 
a espécie de disciplinas), mas não dominava a respectiva 
teoria, e se tivesse podido encontrar no movimento ou em 
mim mesmo estas possibilidades de teorização, teria reali­
zado um salto em frente,mesmo no interior da minha 
classe.
Um estágio: para ganhar recuo
Roger — Existem, no entanto, camaradas que lêem, que 
consultam obras, que conduzem praticamente investiga­
ções autadidácticas. O que é que o estágio vos trouxe a 
mais do que esta leitura, do que esta actualização?
Jacqueline — Dizia-te eu que o tempo como que parou 
para nós. Esses dois anos foram para nós um tempo de 
reflexão sobre a pedagogia que tínhamos praticado até 
então, uma reflexão sobre a nossa personagem de educa­
dores e, depois, sobre nós próprios enquanto mulher, 
enquanto homem, enquanto casal. Era algo de completo.
Mas isso foi também doloroso. Recordo-me de que, 
durante esses dois anos, nos procurávamos a nós próprios. 
262 A PEDAGOGIA FREINET
e havia alguns psicólogos que diziam:—Ah, sim, com­
preendo. Eles podiam avaliar muito rapidamente as etapas 
que iam vencendo. Diziam, por exemplo: — Sim, já não verei 
a criança da mesma maneira. Enquanto nós dizíamos: 
— Não, isto não nos traz nada que nos faça ver a criança 
doutra maneira. A pedagogia Freinet já nos tinha ensinado 
a ver na criança uma criança particular, não um conceito. 
Eles diziam: — Eu tinha um grupo-classe, e tinha de fazer 
com que ele atingisse, de 15 de Setembro a 30 de Junho, 
um certo nivel; era isso o que eu devia fazer, mas agora já 
não encaro a criança da mesma maneira, vejo cada criança 
individualmente. Nós, pela nossa parte, dizíamos: nós não 
aprendemos isso, logo, falando com os nossos botões: 
não aprendemos nada. Marcávamos passo, patinhávamos 
na lama, investigámos, e fomos, assim, bater a muitas por­
tas. Este estágio foi um período durante o qual conhece­
mos muitas pessoas, em que nos relacionámos com pessoas 
com as quais, antes, não nos teríamos atrevido a falar.
Jacques — Mantivemo-nos no mesmo eixo no tocante 
ao conhecimento da criança, pois existe, mesmo assim, uma 
coisa importante no movimento: precisamente esse conhe­
cimento da criança. É esta escola que nós queremos cen­
trar, e que efectivamente se acha centrada na criança, pois 
o professor Freinet conhece de algum modo pessoalmente 
cada criança, pode falar e fala efectivamente dela, como se 
diz em psicologia, singularmente. Ele sabe falar de cada 
criança na sua singularidade, pois vive com as crianças. 
Finalmente, o que é a psicologia, senão um conhecimento 
da criança? Então, foi este o motivo porque não tivemos 
de proceder a uma viragem no sentido duma centralização 
em torno da criança. Já estávamos centrados nela.
Roger — O que vos marcou não terá sido, também, o 
facto de terem sido libertados de dar aulas, o facto de terem 
estado em contacto com outras pessoas?
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 263
Jacqueline — Para fazer compreender que mudei lite­
ralmente de pele, vou tentar explicar a diferença que existe 
entre um pedagogo e um psicólogo. Assim, nas conferências 
pedagógicas com o inspector, dispõe-se dum momento para 
apresentar a psicologia escolar. Então, digo aos professo­
res: uma das diferenças essenciais que existem entre nós 
e vocês, é o facto de vocês terem um projecto pedagógico; 
eu, pelo que me toca, não tenho qualquer projecto. Em face 
duma criança, o que me interessa, é SABER QUEM FALA 
ALI, E O QUE É IMPORTANTE PARA QUEM ESTA ALI 
À MINHA FRENTE; mas não tenho qualquer projecto, não 
tenho a intenção de que ele seja bom aluno em matemá­
tica ou que tenha zero erros no ditado, isso não me interessa 
nada. Eu não estou no lugar dele, estou noutro lugar, vejo 
a criança a uma outra luz, e tenho a impressão de avançar 
muito mais profundamente na descoberta da criança do 
que no tempo em que era professora.
Roger — Trata-se duma capacidade de ser diferente, de 
não se achar empenhado na acção propriamente didáctica?
Jacques — O que é importante é o facto de termos 
podido reflectir sobre a nossa acção de educadores; o que 
não podemos fazer enquanto somos educadores, porque nos 
achamos implicados — temos o trabalho da classe, temos as 
crianças, e, sempre, o maldito projecto; a'li, já não tínha­
mos nada disso, tínhamos apenas o documento, as produ­
ções e o nosso passado. Restava-nos apenas analisar, o que 
ambos fizemos, embora em trabalhos diferentes que eram, 
depois, apresentados a um grupo para discussão. E é bem 
certo que aprendemos a «ver-nos», pois, para que nos vísse­
mos, tornava-se necessário um recuo; não nos podemos ver 
enquanto «fazemos», só nos podemos ver quando paramos 
de fazer. É também por esta razão que penso, verdadeira­
mente, que seria necessário que, na profissão de educador, 
pudéssemos dispor de momentos de reflexão como estes; 
264 A PEDAGOGIA FREINET
por exemplo, a possibilidade de dispor dum ano de reflexão 
todos os cinco ou seis anos.
Roger — Isso significaria, em primeiro lugar, um ano 
inteiro, e, depois, que esse ano se diferenciasse nitidamente 
da própria vida profissional. Não equivalerá isso a con­
denar a forma actual da reciclagem dos professores?
Jacques — Exactamente. A forma actual da reciclagem 
dos professores não é uma reciclagem, não é coisa nenhuma. 
Aliás, não se viu ainda um professor que tenha sido trans­
formado por um estágio de reciclagem de três meses.
Da preocupação de ensinar ao desejo de ajudar
Roger — Como se sentem vocês agora nas vossas novas 
funções? Uma vez que vocês se sentem algum tanto frustra­
dos em relação a uma acção educativa, encontram vocês, no 
vosso novo sector profissional, satisfações pelo menos equi­
valentes às que tinham quando eram professores?
Jacqueline— Eu, pelo que me diz respeito, não me 
sinto frustrada pelo facto de não dar aulas. Quando vejo 
uma criança, isso é de tal maneira importante, é uma expe­
riência de tal maneira completa para mim! Os momentos 
que passo com ela satisfazem-me por completo. Não, as 
aulas não me fazem falta nenhuma.
Roger — Vocês funcionam actualmente duma determi­
nada maneira, e, depois, doutra maneira, isto numa ardem 
ideal. Poderiamos falar, em primeiro lugar, do vosso modo 
de \trabalho actual com as suas vantagens e inconvenientes, 
e imaginar, depois, qual podería ser um papel de psicólogo 
noutras condições?
Jacqueline — Neste momento, estamos a aprender. 
A aprender a conhecermo-nos e a não exigir demasiado, a 
não ir demasiado longe. Começa-se, faz-se o que faz qual­
quer psicólogo: damos «caça» aos débeis. É esta a verdade. 
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 265
Estou colocada num scctor rural onde apenas existem aldeias 
muito dispersas; chegam crianças ao C. M. que é imperioso 
orientar para qualquer lado, mas cuja sorte já está anteci­
padamente traçada. Limito-me a fazer uma comprovação, 
mas como quero ir tão longe quanto possível, procedo a 
uma verificação o mais séria possível, isto é, não apenas 
ao nivel da inteligência, mas também ao nivel da persona­
lidade. Procuro também recuperar o que porventura o possa 
ser; o que às vezes é possível, quando os pais cooperam, 
mas não alimento quaisquer ilusões a esse respeito; com 
efeito, a criança, nas melhores condições possíveis, terá de 
repetir o C.M. 2. Dá-se lhe ainda uma oportunidade. Encon­
tro-me com o professor e exponho-lhe a situação da criança. 
Esta, por exemplo, é muito inteligente, mas não tem bom 
êxito por esta ou por aquela falha; se a pudéssemos ajudar 
durante um ano mais, eu e o professor... pois tenho a preo­
cupação de acompanhar as crianças. Ao cabo dum mês, 
remeto ao professor uma folha de ligação; fazemos o ponto 
da situação, e fazemos outro controle dois meses depois, ou 
então torno a passar por lá. Dificilmente o poderei, no 
entanto, fazer, tendo de percorrer circuitos incríveis para 
ver dois garotos, ou mesmo um.
Roger — Que espécie de conselhos podes tu dar nesses 
casos?
Jacqueline — Muitas vezes, o professor é tomado por 
alguém que ele julga que não é. Por exemplo, é obrigado 
pela criança a reproduzir um estatuto de pai; como o pai é, 
em casa, muito punitivo, muito autoritário, o professor, sem 
se dar conta, acaba por reproduzir a mesma atitude. O que 
me leva a queas coisas se não possam compor, uma vez 
que tanto em casa como na escola o garoto depara com a 
mesma situação. Portanto, eu vou procurar fazer ver isso 
ao professor. Seguidamente, acalento muitas esperanças ao 
nivel da pedagogia, mesmo se, às vezes, não acredito muito 
266 A PEDAGOGIA FREINET
nisso; digo sempre: — Se existe um lugar onde a criança 
pode ter ainda uma oportunidade, esse lugar é a escola. 
E, procurando tirar partido disso, acrescento, também, por 
exemplo: — Tenta-se, durante três meses, fazer qualquer 
coisa. No que toca à ortografia, por exemplo, não lhe fale 
mais no assunto; dê antes mais atenção ao que se passa 
ao nivel da afectividade, pois existe uma grande exigência 
em relação a si ou a um seu camarada. Como vês, procuro 
esclarecer os problemas desta maneira. É um trabalho pon­
tual, que não compensa, mas que não deixo de realizar, 
embora gostasse de fazer outra coisa.
Jacques — Eu encontro-me na cidade, escolhi o meu 
próprio sector. Encarreguei-me de dez grupos escolares. 
Pouco a pouco, ao fim de seis meses, começo a ser conhe­
cido nas escolas. Foi, mesmo assim, necessário que eu «cons­
truísse» essa imagem de mim próprio. E é bem certo que 
as minhas condições são melhores, pelo facto de eu me 
encontrar no mesmo sítio. O que me permite desenvolver 
uma acção talvez mais em profundidade do que Jacqueline. 
Por exemplo, uma professora chama-me a atenção para uma 
determinada criança; diz-me que esta criança é estúpida, 
que não aprende nada, que ela vem duma outra escola de 
Paris, que já foi observada por psicólogos. Finalmente, ele 
acabou por ser visto como o meteco da classe e da escola. 
O caso, então, agrava-se. Vejo a criança, e dou-me conta 
de que se trata duma criança normal no plano da inteli­
gência, apesar de ter um atraso escolar importante, mas 
que apresenta, sobretudo, um problema importante que eu 
posso circunscrever com grande precisão. Trata-se duma 
criança que repetiu por três vezes o C. P., que teve apenas 
professoras, cuja mãe se pode qualificar de abusiva, estando 
o pai ausente. Essa criança, manifestamente, já não pode 
suportar a autoridade sob uma forma feminina; além disso, 
toda a autoridade lhe aparece sob essa forma feminina, e, 
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 267
para cúmulo, ei-la transferida para uma nova escola diri­
gida pela inevitável professora. Professora que se opõe a 
ela, e já não há nada a fazer! Procuro explicar àquela que, 
se a criança não é bem sucedida, é porque encontra uma 
mulher à sua frente. É difícil dizer uma coisa destas à 
professora; é sobretudo difícil que ela o aceite, pois pode 
tomar esta observação como um ataque pessoal. Desco­
nheço o que isso possa remexer nela, não conheço a sua 
constituição afectiva, mas é preciso que lho diga. Tentei 
explicar-lhe que a criança se opunha a ela enquanto mulher 
e não necessariamente a ela própria. Na altura, não tive 
a impressão de que ela tivesse compreendido. Voltei lá 
mais tarde. Dessa vez, não falei, aguardei que ela me 
dirigisse a palavra, o que ela fez nestes termos:—Verda­
deiramente, o garoto não é tão estúpido como isso. Noutra 
ocasião que por lá passei, ela disse-me: — Ele começa a 
falar-me; ele não se atreve a falar, durante a conversação, 
na presença dos outros, mas deixa-se ficar na sala durante 
o recreio. Aceito-o como você me aconselhou a fazer, e ele 
começa a falar comigo. Estou verdadeiramente convencida 
de que ele vai começar a fazer progressos. Revejo-a de tem­
pos a tempos, simplesmente devido ao facto da minha pas­
sagem pela escola; encontro-me com ela, vejo outras crian­
ças, etc. Encontro-me também com os pais desta criança; 
estive com a mãe, e tive de lhe dizer muitas coisas e de 
organizar todo um programa de mudança, tanto no plano 
relacionai como no plano material. A criança dormia jun­
tamente com a irmã. Foi preciso acabar com isso. A mãe 
ficou abalada, modificou algumas coisas e foi procurar a 
professora. Falaram uma com a outra, tendo-se assim esta­
belecido todo um conjunto de relações. Finalmente, graças 
à minha presença — pois se eu não tivesse estado presente 
as coisas teriam ficado no mesmo estado, a criança conti­
nuaria a ser o meteco, teria sido rejeitada—, produz-se, 
268 A PEDAGOGIA FREINET
mesmo assim, um certo número de modificações. Agora, 
irei dizer à professora: — Sei que esta criança tem um 
atraso escolar; todavia, é preciso que ele passe para a 
classe superior.
Auxiliar o professor ou a criança
Roger — O vosso trabalho não se situará mais ao nivel 
do professor do que ao nivel das crianças?
Jacqueline — Tu sabes bem como alimentamos muitos 
desejos, como desenvolvemos um grande dinamismo; é uma 
profissão que nos enriquece muito. Abordamos toda uma 
profusão de domínios e mesmo, no caso de certas crianças, 
conseguimos ir muito longe. Há pouco tempo, uma profes­
sora chamou-me por causa de Albert (4 anos), na maternal, 
criança que dominava a classe pelo terror, que partia tudo. 
Ela já não o podia suportar mais, pelo que se impunha 
transferir imediatamente a criança para outro lado. Chego 
à classe, e ela diz-me: — Olhe, veja como ele parte tudo. Ela 
vai procurar a criança, e logo a criança se agarra avida­
mente a ela; fico um momento a observar como o garoto 
se lhe agarra ao pescoço, à barriga, e como ela o imita. 
Depressa me apercebo de que existe uma simbiose muito 
estreita entre esta professora de quarenta anos, solteira, 
que sente a grande exigência afectiva em relação a este 
garoto dum meio desfavorecido, que não tem mãe e que 
também sente uma grande exigência afectiva em relação 
à professora, e dou-me perfeitamente conta (como podes 
compreender, era muito ambivalente, pois ela estava dis­
posta a enviá-lo para o I. M. P. da esquina) de QUE ELA 
TEM NECESSIDADE DELE, pois era ela quem o lavava, 
quem lhe dava banho à tarde. Entro na classe e tomo o 
garoto de parte. Ele acompanha-me, não muito satisfeito, 
pois isso obrigava-o a separar-se da professora com quem 
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 269
brinca ao TU DEVORAS-ME, EU DEVORO-TE, e depois 
regresso à sala de aulas. Diz-me ela: Então, apesar de tudo, 
ele não é assim tão estúpido, pois não? Ao que eu respondo: 
— Não, mas compreendo que ele tenha NECESSIDADE DE 
MUITA CALMA. Em casa dele, ele vive já com cinco irmãos 
em dois quartos, o que não é bom, e, na escola, parece-me 
que há muito barulho, além de que a sala é pequena. Vocês 
saem da escola de tempos a tempos? Falamos algum tempo, 
e vou-me embora. Três ou quatro dias depois, desloco-me 
a uma escola vizinha, e a professora diz-me: — Ah, você 
encontrou-se com a menina X? Ela disse-nos: — Vi a psicó­
loga que me disse que era preciso que EU ME ACALMASSE 
(o que era verdade, mas não fora dito). Aguardo um pouco 
mais, e depois vou até lá. Vou até lá como me acontece 
deslocar-me a classes ou a grupos escolares — na qualidade 
de catalizador. São momentos em que se passa alguma 
coisa, sei que qualquer coisa se está a fomentar nesse 
momento, e desloco-me até lá para receber, para verda­
deiramente catalisar; receber, ou a agressividade que nesse 
dia sou capaz de suportar, ou... mas qualquer coisa que, 
em todo o caso, se vai esclarecer. Ela recebe-me um tanto 
friamente, e eu digo-lhe: — Quer saber, falei da sua classe 
ao inspector. Como ele a conhece bem a si, disse-me que 
estava disposto a propor-lhe um estágio numa classe mater­
nal muito próximo de A... que funciona muito bem (porque 
era o primeiro ano em que ela dirigia essa classe). Se você 
estivesse de acordo, ele enviaria uma substituta para a sua 
classe. Ela, então, sentindo-se lisonjeada, contente, pois 
procurava mas não conseguia encontrar uma saída, aceitou 
e foi passar oito dias numa classe onde pôde verdadeira­
mente aprender. A professora junto de quem ela estivera 
veio depois visitá-la à sua classe para ver como as coisas se 
passavam e para a ajudar, e registou-se uma cooperação 
entre ambas, colaboração essa de que não tivemos conhe­
A PEDAGOGIA FREINET270cimento, mas que, apesar de tudo, só a nossa contribuição 
tornou possível. Trata-se, penso eu, duma acção importante 
junto da professora.
JACQUES— Penso todavia que, na mesma ordem de 
acção, se tem também uma importância pedagógica. Por 
exemplo, eu desloco-me a uma classe chamada de readapta­
ção, onde se encontra uma substituta que faz o que pode. 
Há um montão de coisas relacionadas com as crianças de 
que ela não se dá conta. Eu sei, incontestavelmente, que 
ela não se pode aperceber disso. Então, como sei que não 
posso agir sobre a sua relação com a criança, procuro agir 
no plano de outros mediadores; mediadores estes que são, 
para mim, os instrumentos pedagógicos. Digo-lhe, então: 
— Você podería fazer teatro livre, pois estas crianças têm 
necessidade disso; olhe para aquele: veja como ele tem 
necessidade de se exprimir. Se ele se mexe, ou se fala, é 
porque há motivo para isso; introduza uma técnica que, 
precisamente, como que institucionalize a palavra da 
criança. E tento, então, mostrar-lhe todo o aspecto cons­
trutivo dessa técnica. Como não podia deixar de ser, as 
técnicas que aconselho o professor a introduzir na sua 
classe são técnicas da escola moderna.
Modificar a inspecção
Roger — Não surgirá, assim, uma espécie de rivalidade 
entre vocês e o inspector ou o conselheiro pedagógico?
Jacques — Se existe um problema com o inspector, é 
o que diz respeito ao nosso estatuto; importa que esteja­
mos muito atentos às diferentes formas de percepção que 
as pessoas têm do psicólogo. A coisa pode ir desde o 
médico, ou do que se ocupa de loucos, ou do que lê os 
pensamentos dos outros... até ao subalterno do inspector. 
Então, precisamos de estar muito atentos tanto no que res­
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICOLOGOS? 271
peita à criança como ao professor. Há crianças que, mani­
festamente, nos tomam por médicos; chegamos com a mala 
de mão, e há crianças que dizem: —Eu não quero ir lá, ele 
vai dar injecções. Isso é o mais difícil para nós, pois é 
imperioso que, no mais curto espaço de tempo possível, 
nós saibamos como as pessoas nos vêem. O que irá deter­
minar a nossa relação com os outros.
Jacqueline — Tenho garotos que me dizem, quando 
se encontram em fila para voltarem para a sala de aulas:
— Eu não, minha senhora, eu não sou maluco.
Jacques — Estou a pensar numa criança de que pre­
sentemente me ocupo. Vi-o uma vez; é uma criança inte­
ligente, viva, mas difícil e agressiva. Mas não havia qual­
quer problema; sabia-se que ele ia passar para a sexta classe 
(correspondente à primeira do liceu português), ele tam­
bém o sabia. Vi a criança, e, depois, no dia seguinte, a 
mãe chega à escola a chorar e diz para o professor:
— O senhor mostrou o meu filho ao psicólogo. Ora ele não 
é doido, não é anormal. Volto-me a encontrar com a criança 
três dias depois para abordar com ele os problemas do 
seu futuro:—O que é que tu vais fazer no próximo ano?
— Não sei. — Tu sabes perfeitamente o que vais fazer, pois 
estás no C.M.2 — Sim, passo para a sexta classe. — Mas 
para que sexta classe vais .tu? — Eu gostaria de ir para a 
sexta normal.
Que significa isto para a criança? A mãe dissera-lhe 
que ele fora visto e que, por conseguinte, ele era anormal 
e tinha agora de prestar atenção, pois, se continuasse a 
comportar-se da mesma maneira, iria para uma sexta classe 
para anormais. Dá-se, assim, uma enorme atenção às míni­
mas palavras, às mais pequenas coisas que se dizem.
Jacqueline — O I. D. E. N., como sabes, ajuda-me. 
Como não conheço nem o sector nem os professores, ele 
diz-me: — Dê atenção a esse professor; neste momento, há 
m A PEDAGOGIA FREINET
que não tratá-lo com muita dureza, pois ele conhece difi­
culdades de vária ordem; em seu entender, qual a situação 
em que ele se encontra? Desenvolvemos uma relação de 
auxílio recíproco em relação aos professores, embora nunca 
descurando a preocupação com a criança. Entendemo-nos 
muito bem, tendo sempre em vista proporcionar aos garo­
tos as melhores oportunidades.
Jacques — Sim, trata-se duma verdadeira relação de 
ajuda recíproca em função da criança. O inspector pode, 
por exemplo, dizer-me: — Vá ver o que se passa nesta classe 
onde há qualquer coisa que não está bem; vá observar da 
minha parte certa criança, eu próprio não vou porque sou 
inspector, e já não me é possível fazer nada. Então, eu vou 
até lá, vejo o que se passa ao nivel da criança, mas tam­
bém ao nivel relacional; examino o que se passa com a 
professora ou com o professor. Falo no caso ao inspector, 
depois do que este pode lá voltar, pois outras coisas foram 
entretanto ditas e esclarecidas.
Jacqueline — Eu entro forçosamente na pedagogia, 
vejo-me obrigada a dar conselhos pedagógicos, com o que 
ele está .perfeitamente de acordo.
Roger — Não acontecerá, nestes casos, que os profes­
sores se dêem progressivamente conta de que vocês podem 
representar um auxilio para eles, o que, em última análise, 
levará alguns deles a solicitar a vossa ajuda?
Jacques — Sim, mas há também o facto de que não 
gostaria de me limitar a «dar caça» aos débeis. Eu gosta­
ria, também, de desenvolver uma acção de ordem psicope- 
dagógica. Nos grupos escolares a que me desloquei, apli- 
quei testes a todos os C. M. 2 tendo em vista uma orienta­
ção mais séria (para que o trabalho desenvolvido fosse 
menos superficial e se pudessem fornecer elementos varia­
dos, válidos e quantificados ao nivel da orientação na sexta 
classe). Apliquei-lhes uma batería de testes bastante com­
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 273
pleta no primeiro trimestre, o que me permitiu, por volta 
do Natal, dizer a cada professor do C. M. 2 como eu via a 
sua classe e, também, como via cada uma das crianças. 
Ele punha-me, então, ao corrente de todo o aspecto escolar 
e mesmo do aspecto relacional, isto é, dizia-me como reagia 
uma determinada criança. Além disso, eu informava-o sobre 
as possibilidades dessa criança, podendo desenvolver-se, 
assim, um trabalho de aprofundamento ao nivel da criança. 
Eu tinha construído a bateria de maneira a pôr em evidên­
cia tanto as possibilidades que eram nitidamente produto 
do meio, como aquelas que eram ao mesmo tempo produto 
do meio e da influência escolar. Então, como, em geral, 
são os directores que têm a seu cargo o C. M. 2, eu podia 
abordar o problema pedagógico de toda a escola. Isso cus- 
tou-me muito trabalho, mas permitiu-me, igualmente, passar 
a ser visto de outra maneira pelos professores — como 
alguém que podia ajudá-los. E, agora, são eles próprios 
que me chamam.
Um outro olhar sobre a pedagogia Freinet
Roger — Poderiamos passar a um outro aspecto da 
nossa conversa. A sua experiência de psicólogo permite-lhe 
olhar de outro modo a pedagogia Freinet?
Jacques — Há que distinguir diversos planos. Em pri­
meiro lugar, a pedagogia Freinet acha-se, apesar de tudo, 
em vias de ser recuperada. Entramos, assim, em classes 
tradicionais, onde o professor nos diz: — Eu pratico a con­
versação; também faço o texto livre... Quando lhe per­
guntamos: — Por que razão os faz? Ele responde: —As ins­
truções a isso nos obrigam. Aborda-se, já, a percepção duma 
nova disciplina escolar, e é precisamente através desse expe­
diente que a pedagogia Freinet corre o risco de ser recupe­
18
274 A PEDAGOGIA FREINET
rada — e deformada, bem entendido. O que mostra bem 
que a pedagogia Freinet não é, em primeiro lugar, um 
problema de técnicas, mas um problema relacionai ao nivel 
da criança.
Jacques — Mas eu penso também que os pedagogos 
Freinet, hoje em dia, não se dão conta de que quando dizem: 
primazia ao instrumento, esquecem que, subjacentemente, 
existe o problema da relação com a criança. Esta relação 
é, para eles, implícita, pois o instrumento só é necessário 
enquanto terceiro pólo da relação triangular. Aliás, não 
se fornece um instrumento ou uma técnica a uma criança, 
deixa-se que seja ela a interessar-se e a escolher.
Roger— Não gostariam vocês de ajudar igualmente 
professores de classes Freinet?
Jacques — Sim, certamenteque gostaríamos de ter 
acesso às classes Freinet. Com o acordo dos professores, 
que solicitariam, porventura, o nosso auxílio no caso duma 
criança, não forçosamente para nos dizerem: — Vem ver 
como as coisas funcionam na classe. É meu desejo perma­
necer integrado no movimento, não enquanto educador, mas 
sim na qualidade de psicossociólogo ou psicopedagogo.
Roger — Vocês gostariam de frequentar essas classes, 
mas eles não pedem a vossa comparência?
Jacqueline — Tu, Jacques, interessas-te pela psicosso- 
ciologia ou pela psicopedagogia; eu, pela minha parte, se 
fosse a uma classe Freinet, não penso que a minha ajuda 
se desenvolvería ao nivel dos garotos, pois estou convencida 
que o profesor de pedagogia Freinet, com os seus instru­
mentos, com o que sabe, não precisa de mim; creio que 
poderia ajudá-lo ao nivel dele próprio, enquanto educador 
naquela classe. Se há uma coisa que eu agora tenha difi­
culdade em suportar, é que o docente desconheça em que 
termos se processa a sua relação com a criança. Depara­
mos, também, com esta situação nas nossas reuniões, e, 
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 275
para mim, é essa a razão da falta de diálogo. Fazem-se belos 
textos livres, belos desenhos, bonitas coisas, tudo corre 
da melhor maneira, mas há o DITO e o NÃO DITO.
Jacques — Podemos tomar um exemplo: quando nos 
deslocámos à classe de transição de Mény 1 para observar 
crianças, deparámos com uma rapariguinha de doze ou 
treze anos. Mény mostrou-nos todos os textos livres pro­
duzidos ao longo dum ano por esta rapariguinha (71); tex­
tos livres que, praticamente na sua totalidade, apresenta­
vam a mesma factura, contavam o mesmo tipo de situação; 
mais particularmente, tratava-se de textos não muito mal 
redigidos onde ela contava o que fazia aos domingos com 
os vizinhos; na verdade, uma família feliz, ocupações inte­
ressantes, textos livres bastante razoáveis, e o que se pode 
chamar verdadeiramente textos livres, isto é, escritos 
quando a criança tinha vontade de o fazer, lidos na classe 
quando a criança o queria fazer. Aplico um teste a esta 
criança e sobressai imediatamente outra coisa, pois a rela­
ção que um psicólogo estabelece com uma criança é intei­
ramente diferente. Pude aperceber-me imediatamente que 
existia um problema familiar que a criança revelara, quer 
directamente na conversação, quer por intermédio do ima­
ginário, através dum teste projectivo, mas do qual o pro­
fessor não tinha possibilidades de se dar conta. É a esse 
nivel que, com os modernos mestres-escola, se pode esta­
belecer um outro tipo de relação, de colaboração; tende­
mos muitas vezes, na escola moderna, a projectar, a avan­
çar as nossas idéias teóricas ou pedagógicas ou as nossas 
técnicas como se fossem panaceias. A expressão livre, sim, 
mas o que é a expressão livre? Dirá a criança verdadei­
ramente tudo pela expressão livre? Ou, pelo contrário, a 
1 Professor Freinet do departamento da Gironda.
276 A PEDAGOGIA FREINET
criança não diz tudo? E não o diz muito simplesmente 
porque se encontra em grupo, porque tem os pais atrás de 
si, porque existe toda uma rede relacional de que a criança 
se apercebe intuitivamente, enquanto que com o psicólogo 
estas barreiras caem. Ela deixe de estar inserida na rede 
social. Penso que haveria, assim, um esclarecimento com­
plementar, o do pedagogo pelo do psicólogo, podendo tam­
bém registar-se a seguir uma correcção das ideias pedagó­
gicas.
Roger — Será necessário, numa situação pedagógica, 
que uma criança diga tudo?
Jacques — Não é necessário nem possível que ela diga 
tudo, mas, se se quiser conhecer essa criança, é preciso que 
se saiba efectivamente mais coisas do que aquilo que ela 
diz em situação pedagógica. Ao nivel do movimento, na 
medida em que o psicólogo toma uma certa distância em 
relação à prática quotidiana, podería, sempre em colabo­
ração com os professores, aprofundar as idrias. Se a expres­
são livre não é uma panaceia, o que é exactamente? Qual 
é o seu perímetro? Quais os seus limites? E a partir de 
então, podería procurar ver se não seria possível promover 
uma outra forma de expressão livre, e isso com base numa 
mesma classe, fazendo o balanço TANTO da acção pedagó­
gica COMO da acção psicológica.
Roger — A expressão livre total não terá na classe, no 
plano social, o efeito dum verdadeiro explosivo? A maior 
parte dos incidentes conhecidos têm origem numa expres­
são que se libertou. Não haverá um estatuto social que 
faz com que o professor não possa permitir-se exercer um 
papel terapêutico?
Jacques — É o problema da regressão. Pois, o que é 
uma expressão libertada? É, precisamente, uma expressão 
que mergulha no mais profundo do indivíduo. Ora, não se 
conhece o ponto de regressão que cada indivíduo pode atin­
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 277
gir para, a seguir, tornar a arrancar. Ora, existem indiví­
duos para quem o ponto de regressão está tão longe que 
eles podem, mediante esta expressão livre, constituir um 
perigo para a classe. Importa que o professor conheça 
todos esses parâmetros, ou, pelo menos, que os saiba prever, 
e sobretudo prever estruturas, mediadores que neutralizem 
essa expressão relativamente ao grupo.
Roger— Não significará o que acabas de dizer que, 
quando um professor Freinet e um psicólogo colaboram, o 
professor está protegido contra o aspecto traumatizante da 
expressão libertada, devido ao facto de ser o psicólogo que 
dela se encarrega ao nivel do seu contacto individual com 
a criança? Não será a intenção de certos professores de 
libertar socialmente a expressão na classe uma inépcia com 
consequências explosivas, talvez até perigosa para o próprio 
interessado que se libertou?
Jacqueline — Sem ver as coisas duma maneira tão 
catastrófica, o perigo pode consistir, simplesmente, para a 
criança, em dizer que as suas relações com a mãe são más. 
Compreendes, o explosivo pode ser precisamente isso. Uma 
confissão semelhante poderá ser feita ao psicólogo, mas, 
às vezes não deverá ser confiada à classe inteira.
Lugar do psicólogo no movimento
Roger — Na evolução actual das ciências sociais e psi­
cológicas, o movimento deve poder integrar o que as ciên­
cias humanas apresentem de mais original, de mais inte­
ressante, fazendo apelo aos psicólogos saídos do movimento.
Jacques — Pela sua história, pela sua estrutura, a escola 
moderna opõe-se à psicologia em geral. Penso verdadeira­
mente que o movimento Freinet não ultrapassou um estádio 
anterior.
278 A PEDAGOGIA FREINET
Roger — Nesse caso, para sua própria conservação, 
deverá ele manter-se nesse estádio, ou poderá pôr-se em dia, 
e como se faria esta actualização?
Jacques — Se o movimento quiser continuar, e não 
apenas sobreviver, deve voltar-se não só para a psicologia, 
como ainda para a biologia. Não somos nós que o pode­
mos dizer, pois É PRECISO QUE HAJA, EM PRIMEIRO 
LUGAR, UMA PROCURA POR PARTE DO MOVIMENTO. 
Se esta procura não existe, não há nada que possamos 
dizer ou fazer.
Roger — Sim, mas não derivará a procura do facto 
de se não ver como ela possa ser satisfeita?
Jacqueline — Existe, talvez, uma procura confusa e 
não explicitada, que não se manifesta, pois não se vê como 
é que um professor, na sua classe, possa ir mais longe.
Jacques — Penso, porém, que, nesse caso também, isso 
é uma consequência da imagem do psicólogo veiculada pelos 
professores do E. M., quase nada diferente da imagem que 
é veiculada por qualquer outro professor. Somos vistos 
como médicos ou como gente que observa o que se passa 
na cabeça dos outros; apercebem-se de nós no plano fan- 
tasmático, não no plano da realidade. Quando formos per- 
cepcionados no plano da realidade, penso que, então, a 
procura será formulada.
Roger — Não o conduzirá necessariamente o facto de 
ser psicólogo, isto é, sobretudo disponível para ouvir os 
outros, a deixar de ter uma atitude militante e activa 
no movimento, a não mais assumir responsabilidades? Em 
última análise, será o psicólogo um tipo que pode aceitar 
responsabilidades?Jacques — Esse é, com certeza, um problema que eu 
ponho a mim próprio. É certo, mas existem camaradas, 
particularmente do comitê de animação (C. A.) que me dis­
seram: — Depois dos C. A. que vivemos, teríamos finalmente 
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 279
necessidade de gente como vocês; capazes de ver o que se 
passa e de o dizer... E de desviarem para si todos os golpes. 
Ao que eu respondo: —Não, isso seria furtar-se às respon­
sabilidades. O movimento tem actualmente necessidade de 
animadores, que podem não ser psicólogos, mas, simples­
mente, pessoas capazes de observar um grupo a trabalhar 
para depois dizerem: — Eis o que se passou, no plano duma 
síntese (de maneira nenhuma se trata de julgar as pessoas). 
Eis qual foi a vossa responsabilidade; em tal momento, 
houve um que disse isto, porque um outro tinha dito aquilo, 
e porque se passou qualquer coisa ao nivel relacional. Pro­
curar analisar uma situação para que, precisamente, não 
andemos em círculo, e para que, de cada vez, as nossas 
reuniões não sejam caldos de cultura ao nivel afectivo.
Roger — Poderia um psicólogo ser útil por ocasião de 
reuniões de grupo departamental, por exemplo no movi­
mento Freinet, ou por ocasião de estágios, e qual seria o 
seu papel nestas duas situações?
Jacques — Eu penso que não é fácil definir a nossa 
atitude ou a nossa participação no movimento. Todavia, 
vejo-a muito simplesmente numa presença do psicólogo na 
classe num dado momento, participação que deverá ser, em 
seguida, discutida com o professor num plano de total 
igualdade. Posso, portanto, trazer uma outra perspectiva 
de esclarecimento, mas sempre em relação com a vivência 
comum no seio da classe. Penso ser, então, possível ajudar 
a ver outra coisa, nas produções da criança, para além do 
que é vivido no plano pedagógico, pois é inegável que a 
criança projecta sobre o professor um certo número de 
imagens. E estes jogos de projecções que são inconscien­
tes — inclusivamente para o professor —, fazem com que 
existam lacunas na descodificação do professor. O psicó­
logo pode pôr a descoberto outra coisa, pelo facto de não 
se achar implicado.
280 A PEDAGOGIA FREINET
Jacqueline — Precisamente, no tocante à pedagogia, 
eu veria com bons olhos que se tentassem experiências nas 
classes, a diferentes nivéis de tipo longitudinal, por exem­
plo do C. P. ao C. M.
Jacques — Nesse caso, trata-se verdadeiramente duma 
pesquisa.
Jacqueline — Sim, eu penso que a pedagogia Freinet 
deve organizar a sua própria investigação de maneira 
metódica *.
Roger — E com um grupo de educadores que se reúne 
para discutir técnicas, ou simplesmente a organização, o 
funcionamento dum grupo departamental, podería, neste 
caso, ter o psicólogo um papel a desempenhar?
Jacques — Sim, mas tenho agora a impressão de que 
os grupos departamentais são, apesar de tudo, grupos bas­
tante estruturados, isto é, grupos onde a relação de auto­
ridade é importante. Há alguém que detém a autoridade; 
esse alguém não é forçosamente o delegado departamental, 
mas o que é certo é que exerce a autoridade. Existe uma 
espécie de hierarquia que se estabeleceu, talvez, ao nivel 
do trabalho, e da qual se apercebem, aliás, os recém-chega­
dos. Por outro lado, existe esta percepção, esta compreen­
são do psicólogo — se éramos camaradas do movimento, 
somos agora, na melhor das hipóteses, camaradas psicólo­
gos, o que é diferente. Tentei frequentar as reuniões... mas 
era normal que eu me pusesse ao nivel mais baixo, isto é, 
o do tipo que regressa a um grupo departamental; depois, 
aguardei, até que houve a reacção de nos darem um pedaço 
de bolo: — Bom, vocês ocupar-se-ão do conhecimento da 
criança, mas sem que houvesse verdadeira procura por parte 
dum grupo de trabalho.
Jacqueline — No que respeita à animação, creio que 
existe também um problema. Colocam-nos numa posição 
de voyeurs, o que implica forçosamente relações muito dife­
DEVEREMOS DESCONFIAR DOS PSICÓLOGOS? 281
rentes com os membros do grupo, e já não nos sentimos 
no interior deste da mesma maneira. Recuso-me a desem­
penhar este papel de voyeur, mesmo se me apercebo de 
coisas. Sei que, se me puser nessa posição, deixarei de 
pertencer ao grupo.
Roger — Existe actualmente, em cada grupo departa­
mental, um certo número de responsáveis que não são for- 
çosamente animadores, que podem ser, simplesmente, orga­
nizadores. Como passar do papel de organizador ao de 
animador? Qual seria a intervenção dum psicólogo para 
garantir esta formação?
Jacques — Penso que isso seria muito difícil de reali­
zar com um psicólogo membro do grupo. Este género de 
formação, finalmente, deveria fazer-se no exterior. O que 
eu verdadeiramente desejaria era encontrar-me de novo no 
grupo na companhia dos camaradas, em igualdade com eles, 
com o mesmo estatuto. Sei que isso não é possível pelo 
facto de eu ser psicólogo e de os camaradas me verem na 
qualidade de psicólogo. Seria preciso que conseguíssemos 
encontrar uma nova forma de relação; penso que a elabo­
ração desta nova relação não pode fazer-se no seio das 
reuniões departamentais — seria uma coisa artificial. Uni­
camente no seio da classe deste ou daquele camarada, tendo 
em vista esta ou aquela técnica, este ou aquele trabalho ou 
problema específico à classe ou à criança. Teremos, então, 
relações de trabalho entre duas pessoas que cooperam em 
plano de igualdade para solucionar um mesmo problema.
Jacqueline — Sim, eu trabalhei com Jacotte, uma cama­
rada professora, sobre as suas conversações, desde o início 
do ano. Lia o conteúdo daquelas, procurava analisar a sua 
forma, sem nunca deixar de lhe pedir esclarecimentos. Pela 
minha parte, eu esforçava-me por desenredar as coisas e 
por identificar uma linha de conduta, uma linha de interesse 
ou de comportamento de que Jacotte não suspeitava. Além
282 A PEDAGOGIA FREINET
disso, pode submeter-se este trabalho à apreciação do grupo, 
passando ele então a constituir uma experiência partilhada 
por todos.
Jacques — É pela multiplicidade destes contactos direc­
tos através da classe que se poderá forjar uma nova rela­
ção, que poderemos ser integrados no grupo. Finalmente, a 
integração dum psicólogo num grupo departamental não 
deveria ser diferente da que é tentada por outros interve- 
nientes: arquitectos, médicos, directores de museu... e não 
deveria apresentar nem mais dificuldades nem mais reti­
cências. Como vês, trata-se de algo tão simples e, ao mesmo 
tempo, tão complicado como qualquer relação humana. 
É também uma dinâmica, e temos a impressão de nos achar­
mos no dealbar duma nova forma de comunicação que 
temos ainda de construir juntos.
Uma reabertura das aulas 
numa classe segregativa
por Monique e Roland Bolmont
 (reportagem de R. U.)
Em 1963, Freinet definia-se assim: «Trata-se, em suma, da cate­
goria de crianças que actualmente se confia à escola Freinet; crian­
ças escolarmente bloqueadas, desgostadas com o trabalho escolás- 
tico e por vezes mesmo com todo e qualquer trabalho, e que nem 
por isso são menos dotadas, por vezes superiormente, mas não 
forçosamente nos ramos demasiado intelectualistas da Escola actual.» 
Que texto fará desaparecer estas crianças? Bastará prometer-lhes 
algumas horas de amparo, a elas que têm necessidade dum apoio 
constante? Bastará conceder-lhes algumas horas de recuperação 
(do atraso escolar), a elas que, afectivamente, têm toda a sua infân­
cia a recuperar? Então?
Se alguma coisa há que mudar no primeiro ciclo, serão talvez 
as mentalidades— a atitude em relação as crianças em dificuldade. 
Tarefa para os professores? Sim, mas também para os pais e para 
as crianças. A democracia, a passar dos discursos para a vida quo­
tidiana, começa precisamente por ai: pela vontade de fazer triunfar 
os mais fracos, em vez de se contentar em classificá-los, em seteccio- 
ná-los em nome duma meritocracia que não passa dum espírito de 
casta camuflado e se traduz por um racismo de facto, quando as 
classes de transição já só aceitam, na

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