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Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Rodrigo Medina Zagni Como estudar as relações inter-étnicas a partir das mudanças operadas nas dinâmicas de ocupação do espaço nas grandes cidades? É possível utilizar o exemplo de grandes capitais, como São Paulo, durante a primeira metade do século XX, para compreender realidades nas quais estão presentes os componentes das transformações operadas no cotidiano, na penetração da modernidade, na diversidade em termos étnicos e num ambiente de disputa, bem como o fenômeno decorrente da exclusão social? Em busca das respostas às perguntas aqui elaboradas, embrenhe-se pelo conteúdo teórico, apresentação narrada e demais materiais dessa unidade, a fim de entendermos mais sobre a dimensão cultural da condição humana. Contextualização Cotidiano, Modernidade, Etnicidade e Exclusão Social nas Grandes Cidades Nesta unidade vamos tratar de mudanças significativas nas dinâmicas de ocupação do espaço nas grandes cidades, utilizando como exemplo a cidade de São Paulo durante a primeira metade do século XX, uma vez que nessa realidade estão presentes os componentes das transformações operadas no cotidiano, na penetração da modernidade, a diversidade em termos étnicos e num ambiente de disputa, bem como o fenômeno decorrente da exclusão social. Atenção Para um bom aproveitamento do curso, leia o material teórico atentamente antes de realizar as atividades. É importante também respeitar os prazos estabelecidos no cronograma. Como estudar as relações inter-étnicas a partir das mudanças operadas nas dinâmicas de ocupação do espaço nas grandes cidades? É possível utilizar o exemplo de grandes capitais, como São Paulo, durante a primeira metade do século XX, para compreender realidades nas quais estão presentes os componentes das transformações operadas no cotidiano, na penetração da modernidade, na diversidade em termos étnicos e num ambiente de disputa, bem como o fenômeno decorrente da exclusão social? Em busca das respostas às perguntas aqui elaboradas, embrenhe-se pelo conteúdo teórico, apresentação narrada e demais materiais dessa unidade, a fim de entendermos mais sobre a dimensão cultural da condição humana. Contextualização Os processos de ocupação do espaço nas grandes cidades Nesta unidade vamos tratar de mudanças significativas nas dinâmicas de ocupação do espaço nas grandes cidades, utilizando como exemplo a cidade de São Paulo durante a primeira metade do século XX, uma vez que nessa realidade estão presentes os componentes das transformações operadas no cotidiano, na penetração da modernidade, a diversidade em termos étnicos e num ambiente de disputa, bem como o fenômeno decorrente da exclusão social. A modernidade e as grandes cidades Não há como tratar da modernidade em São Paulo, cuja gênese encontramos já nas décadas de 1920 e 1930, consolidando-se a partir de 1940 e 1950, sem empreender um recuo histórico que nos leve pelo menos ao início do século XX, período de gestação de estruturas modernizadoras que nos servirá de baliza comparativa para melhor delinearmos o rápido crescimento desenhado pela cidade, de uma simples e gélida paisagem rural à megalópole tentacular; encontrando resistências por parte de uma mentalidade arcaica localizada tanto nas classes dominantes como no seio popular. A cidade de São Paulo de 1900 tinha acabado de receber a rede de abastecimento de energia elétrica e, até 1902, as regiões mais abastadas receberam os postes e fios que a conduziram para dentro das casas, se ricas fossem, construídas de tijolos, via de regra importados da Inglaterra (como algumas das mansões da Av. Paulista que, por sinal, recebia sua primeira camada asfáltica importada da Alemanha); se de classe média, feitas de taipa de pilão socado (mistura de argila, crina e sangue de animais, socados com um pilão em uma caixa de madeira, compondo blocos largos; porém, não muito resistentes à chuva); se pobres, Material Teórico 1950 - Alice Brill – Acervo IMS feitas de pau-a-pique (uma espécie de gradil feito com madeira, amarrados com cipó e revestidos com argila). Os “cachorros” (não se trata do animal, mas das calhas para escoamento de águas pluviais, amparadas por precários suportes de madeiras nas casas paulistas do XIX) deram lugar aos elegantes beirais, denunciando como pobre aquele que não tivesse eira (a propriedade) nem beira (o beiral). Não escapou nem a influência moçarábica (os descendentes de árabes vindos de Espanha e Portugual): os “muxarabins”, que protegiam as “moças de família” em seus quartos do olhar indiscreto e libidinoso dos rapazes da Faculdade de Direito, enquanto elas sim podiam observá-los sem serem vistas, foi proibido pela municipalidade, em nome da modernidade. Até mesmo a burca (que era comumente utilizada pelas moças de família para irem às missas), foi proibida sob alegação de que os larápios que fugiam à lei, via de regra, se ocultavam sob tal vestimenta e, é óbvio, não eram abordados pelos guardas que temiam uma possível gafe. Casarões na Avenida Paulista - 1902 1827 – William Burchell – Acervo IMS Os lampiões da região central, que inicialmente funcionavam com óleo de mamona ou de peixe, primeiro foram substituídos por querosene e depois gás, passando neste novo momento a funcionar então com luz elétrica. Os bondes de tração animal da Companhia Viação Paulista, a CVP - ironicamente chamada de “cada vez pior”, por seus usuários -, deu lugar ao bonde elétrico, deixando descansar os burros, gloriosos animais que venceram os imponentes cavalos europeus na chegada ao Planalto de Piratininga. Isso porque os cavalos não conseguiam fazer a subida, aclives acentuadíssimos que aproveitavam as antigas trilhas abertas por índios; os burros sim, faziam não somente toda a travessia, como traziam invariavelmente pesadíssima carga. Na nova paisagem, não havia mais animais puxando o bonde, uma força invisível movia o carro. Nas décadas seguintes, até mesmo o bonde perderia a briga para os bus cars norte- americanos, que literalmente “jogavam baixo”, trazendo ao longo dos ônibus a ofensiva frase: “o bonde atrapalha o trânsito”. Ganhou a briga pelos passageiros apressados que com cada vez mais rapidez precisavam chegar aos seus locais de trabalho: o número de relógios vistos nas paisagens fotografadas no centro da cidade denuncia isso. No final dos anos 40, a desorganização dos transportes coletivos era grande. Muitas linhas de jardineiras eram sobrepostas e o poder público, assumindo o patrimônio da Light, decide monopolizar os transportes coletivos no perímetro urbano de São Paulo. É criada a CMTC, que além de racionalizar as linhas de ônibus e operar o sistema de bondes herdado da Light que desistiu das operações, traz inovações para os transportes em São Paulo, como a implementação dos trolebus. Tantas outras mudanças ocorriam em tão curto espaço de tempo. As carroças quase não eram mais vistas solitárias, e depois nem mais os tílburis (espécie de carruagens que levavam passageiros, que contratavam seus serviços, ao seu destino): dividiam a paisagem com o bonde e os primeiros carros, os “Ford bigodinhos”, já na década de 1920. A imigração europeia e a questão da diversidade étnica Imigrantes não paravam de chegar, incorporando a mão de obra nas fazendas de onde os negros perderam seu lugar após a abolição da escravidão, em 1888. Vinham italianos, árabes (sírios e libaneses); mas não vinha “todo o mundo”, ou melhor, numa perspectiva eugênica (vigenteno período), toda a raça. Chineses foram impedidos de imigrar, bem como outros grupos étnicos. Privilegiava-se a vinda de trabalhadores brancos, enquanto os negros eram postos para fora da vida economicamente ativa, ou seja, as fazendas de café. Carros estacionados na "praça do Colégio", como o local é designado em regulamento municipal de 1868 entre os primeiros pontos de estacionamento para veículos de aluguel. In: Album Comparativo da Cidade de São Paulo (série). São Paulo: [s.e.], 1916-1919 Acervo: BMMA/SMC Imigrantes Italianos nos portos de embarque em 1886 Tentava-se branquear a população e, no processo, os recém-libertos estavam fora do mercado regular de trabalho, sendo obrigados a compor o mercado informal como amoladores de faca, vendedores de vassouras, verdureiros, lavadeiras às margens do Tamanduateí (até que os brancos resolvessem canalizá-lo também e empurrá-las, as lavadeiras, cada vez mais para longe da vida econômica no mercado regular de trabalho). Tratava-se de um processo articulado à tentativa política de branqueamento populacional no Brasil (como, por pouco, não se consolidou na Argentina, onde cerca de 80% da população afro-descendente e indígena foi exterminada no mesmo período) e que para o bem de nossa cultura fracassou, apesar de deixar estragos irreparáveis no tecido econômico, social e cultural brasileiro, constituindo raízes de grande parte de problemas e intolerâncias recentes. Esse paradigma recebeu respaldo do movimento desencadeado na década de 1920 e denominado bélle-epoque, que elegia como pólo cultural atrator, em praticamente todos os níveis, a França. Réplicas de jardins parisienses no Trianon, jardins construídos defronte ao Museu Paulista que imitavam jardins do Palácio de Versalhes, além de outros lugares da cidade que faziam menção ao estilo arquitetônico localizado na “cidade das luzes”, demonstram claramente o que a São Paulo do início do século queria ser. A demolição de casas pobres, sob o discurso da higienação, que nesse período se relacionava com a presença 1952 - Henri Ballot - ambulante 2 – Acervo IMS Fotografia de Thomas Farkas - Acervo do Instituto Moreira Salles de negros, era empreendida por todo o centro da cidade e adjacências. Basta verificar a origem do nome do bairro “Higienópolis”, designando a condição de higiene exatamente por estar longe de negros. Pertencimento étnico-cultural e conflitos sociais A alta-cultura era definida pelo status social e este, por sua vez, pela cor da pele e pela origem. Em 1911, a região central contava com pelo menos três grandes teatros para as elites brancas, que recebiam companhias internacionais: o Municipal, o São José e o Biju, no Vale do Anhangabaú, próximo do Viaduto do Chá, que ligava o centro de São Paulo ao morro do Aroche. Tratava-se de viaduto particular naquele período, cuja travessia custava 3 contos de réis durante o dia, sendo à noite interditado; era de propriedade de um rico francês cuja propriedade no morro do Aroche era destinada também para o plantio de erva cidreira, hortelã, camomila e outras ervas com as quais podia-se fazer chá, motivo pelo qual o viaduto recebeu a designação que carrega ainda hoje. A história comumente contada de que sob o viaduto é que se plantavam tais ervas ,trata-se de mito, na visão de Sergio Burghi. O problema era exatamente a coexistência desses prédios, freqüentados pela elite paulista, com as casas pobres, fundamentalmente pela existência, ali, das três mansões de propriedade do Conde Prates. Demoliram-se então as casas e construiu-se um belo jardim, nos moldes parisienses: e a população desalojada não foi sequer indenizada. Foi empurrada para as regiões periféricas, onde já haviam se estabelecidos os negros libertos dos grilhões da escravidão legal e jogados à própria sorte, acorrentados à miséria, compondo bolsões de pobreza que abraçaram rapidamente a cidade na formação do fenômeno habitacional conhecido como periferia. Teatro Municipal - 1920 Deslocamentos internos e os bolsões de pobreza A essa massa de miseráveis, desesperados, desempregados, marginalizados e excluídos, seriam somados os caipiras, vindos do interior do Estado, onde a mecanização das lavouras fez com que gigantescos latifúndios agro-exportadores engolissem as pequenas fazendas onde se praticava a economia de subsistência, reduzindo pequenos fazendeiros à condição de bóias-frias. Juntaram-se, nas décadas de 1940 e 1950, os migrantes vindos das regiões norte e nordeste, em sua grande maioria fugindo da seca, fome, miséria, morte e exploração política dos planos de socorro à seca que foram parar em engenhocas que levavam água para fazendas de coronéis, para irrigar lavouras particulares e encher piscinas dos donos legais de extensas faixas de terra improdutiva, cujos donos de fato (não de direito) eram aqueles que agora se mudavam para São Paulo, com o sonho de “ganhar a vida”. Ilusão! Foram sugados, torcidos e exprimidos pela especulação imobiliária que se encarregou de incorporá-los, como mão-de-obra barata, para a construção de prédios inicialmente na região central onde os ricos trabalhavam e, posteriormente, expandido a solução arquitetônica para o problema da falta de espaço: a verticalização nos moldes do modelo norte-americano (elegendo-se os Estados Unidos como novo pólo atrator cultural no pós-Segunda Guerra Mundial, em 1945), aliando-se aos interesses da especulação imobiliária, para os bairros próximos, construindo prédios onde os ricos morariam. E para onde iriam os migrantes após construírem os prédios onde ricos trabalhariam e morariam? Para a periferia, onde já estavam todos os outros aqui elencados, e faltava espaço para todos eles. Estavam bem longe do sono dos aristocratas. Durante o dia, trabalhavam na construção civil, no centro e bairros próximos; depois, regressavam à periferia, para no dia seguinte voltar. O trem, que no século anterior levava a riqueza do café para o porto de Santos de onde ganharia o mundo, agora servia para levar pobres para bem longe. 1952 - Henri Ballot - Migrantes 1 – Acervo IMS 1952 - Henri Ballot - Migrantes 2 – Acervo IMS A verticalização das cidades e a ênfase aos prédios, em detrimento das pessoas O fenômeno do crescimento vertical teve início exatamente naquele lugar onde as casas pobres haviam sido demolidas para a execução do primeiro projeto paisagístico do Vale do Anhangabaú, entre os viadutos do Chá e da Santa Efigênia. Lá já estavam as três mansões do Conde Prates, da esquerda para a direita, como se estivéssemos de costas para o Teatro Municipal, em pleno viaduto do Chá: a sede, naquele tempo, da Prefeitura da cidade; a sede do automóvel clube; e a residência do conde (nenhuma está de pé nos dias de hoje; a última, reconstruída, é sede da atual Prefeitura da cidade, no prédio chamado vulgarmente por “Banespinha”). Em 1927, já havia ali também a loja de departamentos Mappin Stores, defronte à Praça do Patriarca e ao lado da residência de Prates (não, nós não nos confundimos: o Mappin que todos estavam habituados a ver ficava do outro lado do viaduto, pois mudou-se pouco tempo depois e, hoje, é sede das Casas Bahia). No mesmo ano, bem no meio das mansões Prates, já podia ser visto o edifício Sampaio Moreira, o maior prédio da cidade com 11 andares e também equipado com o primeiro elevador de São Paulo. O fenômeno foi de tamanho sucesso que pessoas dos bairros mais distantes vinham ao edifício somente para ter o prazer de “andar de elevador”, e como Sampaio Moreira era um bom capitalista, tratou de ganhar dinheiro com isso. O elevador possuía duas marchas, havendo portanto duas possibilidades de viagem: “com emoção”, esta era a mais cara pois era mais rápida; ou “sem emoção”, um passeio mais monótonoe lento, portanto mais barato, destinado àqueles com problemas cardíacos que não podiam com as fortes emoções de um elevador a 8 km/h. Estranhar isso é ser anacrônico, e não sejamos! Mappin Stores: centro de consumo de importados para a elite do café Sampaio Moreira Mas, mesmo em 1911, um grande colosso surgia no lugar onde antes só existia a Av. São João, perto de uma ponte que não existe mais sobre um córrego já canalizado, o Anhangabaú (visível apenas em uma aquarela de Charles Landseer, de 1827); no exato lugar onde depois foi construído o Hotel Itália-Brasil, para receber os imigrantes que não paravam de chegar, fugindo dos efeitos tardios das guerras intestinas italiana e atraídos pelas fotos de propaganda onde se viam imensidões de faixas de terra cultiváveis (mal sabiam que seriam reduzidos à condição de escravos por dívida!): era o edifício Martinelli, que se propunha o maior prédio do Brasil, concorrendo com um rival carioca no mesmo período. Já em 1927, reinava absoluto e solitário nos céus de São Paulo como o maior prédio da América Latina, no ano em que foi inaugurado por problemas financeiros de Martinelli (pois as obras de acabamento terminaram apenas em 1932) que, pode-se dizer, gastou o que tinha na construção do edifício, esperando vender apartamentos em curto espaço de tempo. Mas não foi o que ocorreu, os moradores da cidade que se transformava demonstravam verdadeiro terror pelo prédio, bem como a convicção de que literalmente viria a baixo, pois quando cavava-se para construção de suas fundações, atingiam-se lençóis freáticos e, para terror da população, vertia-se água por todos os lados. Foi o suficiente para criar uma idéia geral de que o prédio desabaria: uma verdadeira Torre de Babel paulista, nas mentalidades partilhadas àquele tempo. Conclusão: Martinelli perdeu o prédio para bancos credores italianos. O Governo brasileiro o retomaria somente durante a Segunda Guerra Mundial (1939 1 1945), quando Itália e Brasil se tornaram, de início, inimigos. 1928 - Construção do Martinelli – Acervo IMS Centro Velho Mas, na década de 1950, os prédios não seriam mais novidade. A mesma paisagem (aquela onde as casas pobres haviam sido demolidas) já era disputada pelo edifício do Banco do Brasil, um “caixote” no meio da cidade, e pelo imponente edifício Banespa, réplica do Empire States Building de Nova York, denunciando o paradigma arquitetônico estadunidense adotado como solução arquitetônica em São Paulo. São mudanças muito rápidas para o tempo de apenas cinco décadas, experimentadas portanto por indivíduos no espaço de uma só vida. O mesmo teatro São José foi desativado e demolido para construção da sede da Light, companhia concessionário de energia elétrica, onde as pessoas compareciam pessoalmente para pagar suas contas de luz e que depois deu lugar ao “Shopping Light”. Não se trata do primeiro Teatro São José, que pegou fogo às vésperas de um carnaval no século XIX, num acidente com fogos de artifício provocado, provavelmente, pelos estudantes de direito que usavam o local para seus encontros regulares. Ficava onde hoje é a parte de trás da Catedral da Sé e lá promoviam balbúrdias, via de regra, saindo presos pelo colega, da mesma faculdade, e delegado da cidade, Capitão Furtado. Mudanças sociais, cultura popular e resistências E como as pessoas reagiam a essas mudanças? Evidente: com resistências, do mesmo tipo daquela que moveu a convicção de que o Martinelli iria cair. O edifício está lá até hoje! No âmbito da produção cultural paulista, ligada essencialmente ao rádio, existia uma São Paulo alheia aos circuitos elitistas e que ganhava voz a partir da irreverência e espontaneidade de artistas populares que começavam a ascender ao estrelato, instituindo a profissionalização de uma classe popular de artistas. Era a voz do samba que chegava às emissoras, reflexo do que se cantava nas ruas, nas rodas em bares, nas favelas, e que penetrava nas casas ricas e daqueles que tivessem o aparelho de rádio, cujo poder era irradiar sons, na forma de cultura e informação. Assim, se fez ouvir a voz de artistas como Adoniran Barbosa, primeiro nos programas de calouros, depois nos musicais e programas humorísticos com seus personagens debochados e que caracterizavam o mosaico cultural existente em uma cidade que recebia migrantes e imigrantes diariamente, compondo a diversidade que ainda hoje caracteriza a cultura paulista. É importante salientar que os sambas compostos por Noel Rosa, André Filho, Adoniran Barbosa e outros tantos, consistem muitas vezes em ácidas críticas à aristocracia, determinando um estilo de vida boêmio relacionado ao samba como uma nova “filosofia” que emergia do seio da camada social menos privilegiada e em ebulição no âmbito cultural: um marco das novas características que ganhavam voz e se estabeleciam exatamente por meio dos artistas populares. No caso de Adoniran Barbosa, temos uma obra que traz, em seu conjunto, as mais marcantes características da cultura popular paulista: o “falar errado” como traço cultural trazido pela multiplicidade de etnias e culturas vistas no cotidiano da metrópole, com predominância em suas composições do falar típico de imigrantes italianos que se instalaram no Brás; mas também como reflexo da migração do caipira, fugindo do interior e da condição de “bóia-fria”; e a crítica social em relação ao gravíssimo problema habitacional, resultado do mesmo movimento migratório (de todas as partes do país) e de consecutivas políticas de exclusão social na formação do processo de ocupação do espaço em São Paulo. Acervo Roberto Gambardella Nas letras dos sambas vê-se a cidade e, na cidade, se percebe a espacialidade dessa exclusão; além do papel do Estado em promovê-la no interesse de uma classe dominante já consolidada no paradigma industrial moderno, na especulação imobiliária e nos resquícios de uma belle époque que tratou de desalojar edificações pobres e precárias do centro para o embelezamento no molde estético parisiense. Todas essas características de enfrentamento entre o gravíssimo problema social decorrente da miséria no campo e em outras regiões onde resultou o êxodo rural; e a especulação imobiliária que após aliciar os migrantes e usá-los como mão de obra barata lançou-os desestruturadamente às regiões periféricas; ganharam vida nas composições como as de Adoniran Barbosa. Nesse sentido, não temos como dissociar sua história da história do rádio e da importância deste aparelho no cotidiano paulista, tanto de ricos como de pobres. Definitivamente, a característica mais importante dos programas de rádio em São Paulo, principalmente dos chamados programas de calouros, foi a possibilidade de fazerem-se ouvir as vozes das camadas sociais menos favorecidas, antes relegadas à cultura marginal e que agora se fazia ouvir perante as classes sociais mais favorecidas. Diversidade e conflitos sociais urbanos em seus significados históricos É importante salientar que o estudo desse período, no que tange às mudanças sofridas pela cidade até a década de 1950, não se trata apenas do estudo de blocos frios de concreto, de prédios que foram construídos ou demolidos no interesse da especulação imobiliária nas mãos dos ricos de um lado, segurando dinheiro, e de miseráveis do outro, segurando tijolos, pás de cimento e uma marmita. Estudar a cidade nesse período é estudar pessoas que durante décadas foram subtraídas da pesquisa histórica, das fotografias de época e dos jornais que circulavam: são os excluídos no processo de ocupação do espaço na São Paulo cosmopolita, burguesa e tentacular na primeira metade do século XX, situação que se agravaria na metade seguinte, Este rapaz na foto era um dos últimos sobreviventes da chacinada Candelária, mas acabou sendo morto também pela polícia produzindo fenômenos de criminalidade crescente, violência e as favelas abraçando ainda mais a cidade, em condições cada vez mais precárias. É assustador perceber que o comportamento de repulsa da sociedade burguesa paulista da década de 1920, que empurrou pobres para as regiões periféricas como se quisesse torná-los invisíveis, deitou raízes profundas que nos legam um processo inacabado. Chega-nos hoje, quando os miseráveis são tantos que não podem mais ser feitos invisíveis, se multiplicam e ocupam pontes, viadutos, pedem, roubam, gritam, imploram pela ajuda de uma sociedade omissa que insiste em não vê-los. Mas, como disse, são muitos, e quando incomodam demais o olhar os de cima atacam, produzindo fenômenos como a “Chacina da Candelária” no Rio de Janeiro, o assassinato covarde de mendigos no centro de São Paulo, ou mesmo o Estado que constrói rampas sob viadutos para que despossuídos não possam mais ali morar, alegando tratar-se de políticas de Segurança Pública e evidenciando uma concepção de criminalização da pobreza. É a mesma repulsa para períodos distintos, mas que estão conectados pela História dos processos de ocupação do espaço na São Paulo do século XX, chegando-nos parte de seus resultados inconclusos neste início de século XXI, conectados por uma trama de relações sociais desiguais, injustas, e de exploração, numa antagônica sociedade de classes. Ainda sobre o tema “cotidiano, modernidade, etnicidade e exclusão social nas grandes cidades”, indico os textos abaixo, disponíveis na internet, a título de leitura complementar: LIMA, Luiz Cruz; “PRODUÇÃO DO ESPAÇO, SISTEMAS TÉCNICOS E DIVISÃO TERRITORIAL DO TRABALHO” , disponível no link: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119- 63.htm. SOUZA, Angela Gordilho; “Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras”; disponível no link: http://web.observatoriodasmetropoles.net/download/cm_artigos/cm5_22.pdf . Indico ainda os filmes: Libertários; dir.: Lauro Escorel, Brasil, documentário, preto e branco, 1976. O primeiro dia; dir.: Daniela Thomas e Walter Salles, Brasil, drama, colorido, 1999. Cidade de Deus; dir.: Fernando Meirelles, Brasil, drama, colorido, 2002. Última parada 174; dir.: Bruno Barreto, Brasil, drama, colorido, 2008. Ônibus 174; dir.: José Padilha, Brasil, documentário, colorido, 2002. Jorge Furtado Curtas; dir.: Jorge Furtado, Brasil, documentário, colorido, 2004. Uso do território brasileiro: os fundamentos da desigualdade; s/dir.; Brasil, documentário, colorido, 2005. Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá; dir.: Silvio Tendler, Brasil, documentário, colorido, 2007. Material Complementar http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-63.htm http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-63.htm http://web.observatoriodasmetropoles.net/download/cm_artigos/cm5_22.pdf BLASS, Leila Maria da Silva; PAIS, José Machado (org.). Tribos urbanas: produção artística e identidades. São Paulo: Annablume, 2007. CAMARGO, Ana Maria de Almeida (coord.). São Paulo: uma longa história. Série Nossa História. São Paulo: CIEE, 2004. CÂNDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, Editora 34, 2001. 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