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84 - Bairro do Bexiga - a Sobrevivência Cultural - Célia Toledo Lucena

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ÍNDICE 
 
Introdução 
A contextualização do Bexiga no cenário paulistano 
O panorama dos campos do Bexiga 
A ocupação efetiva do bairro: final do século 
XIX 
O imigrante italiano e o seu aculturamento 
Século XX: urbanização, habitação e contrastes 
Um bairro com resquícios de profissões artesa- 
nais 
Festejos populares como forma de expressão cultural 
Bexiga, uma conquista de espaço no cotidiano 
paulistano 
Indicações para leitura 
 
 
Aos meus companheiros de trabalho — propugnadores de uma vida 
verdadeira com esperanças. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
A valorização de uma História viva, combativa, verdadeira e 
globalizadora, aberta ao debate, abrangendo o Homem na sua totalidade, 
justifica a preocupação no sentido de propiciar um trabalho de resgate da 
memória cultural, abraçando todos os segmentos, apropriando-se de temas 
do universo do cotidiano e delineando um caleidoscópio fascinante da 
História Popular. 
O povo brasileiro sofre desta particularidade de ser um depositário de 
uma “história obscura”, sem reflexão e crítica; séculos de dominação política 
e econômica justificam a ausência, na formação do brasileiro, de uma 
consciência histórica. 
Um dos processo aliénantes mais antigos, largamente usado nos dias 
atuais pelos países desenvolvidos em relação aos seus dependentes, é 
exatamente desestruturá-los em suas raízes, substituir suas tradições, 
costumes e impor-lhes sua língua e ideias. O comum é ocorrer o drama de 
“amnésia histórica”, para que lutas sociais, sofrimentos e reivindicações 
populares sofram um esquecimento sistemático imposto a seus personagens. 
Exemplos desta amnésia são frequentes em nossa história que enfatiza 
unicamente a posição do mais forte e omite o pensamento dos manifestantes 
populares e dos grupos minoritários. 
A preservação da documentação, arquitetura e objetos artísticos do 
patrimônio histórico no Brasil é preocupação de poucas pessoas, e com isso 
muito se deteriora e agrava ainda mais o papel do historiador. A falta de 
incentivos e a inadequação na distribuição de verbas para a pesquisa fazem 
com que o pesquisador brasileiro assista ao estrangeiro realizar seus 
trabalhos em nosso país e conseguir excelente êxito. 
Essa dificuldade de registros de dados que documentam a realidade 
histórica inibe a conscientização dos jovens, sonega a História e impede a 
participação popular em iniciativas coletivas, que mobilizem os elementos 
solicitando alternativas de interesse da comunidade. 
Chegou o momento da recuperação da presença popular na nossa 
História e de exigirmos medidas que impeçam a destruição sistemática da 
nossa arquitetura. 
O povo que não preza as suas raízes desenraízase no tempo e no espaço 
e é presa fácil de sistemas de poder aliénantes e de exploradores. 
Nos últimos anos, no entanto, começam a se generalizar estudos da 
realidade social com objetivos agora mais precisos e utilizáveis. Na 
historiografia multiplicam-se pesquisas sobre o cotidiano atendendo às 
vertentes da Micro-História, e é nesta tarefa que se encaixa este trabalho. 
Este livro identifica a relação da autora com o bairro de múltiplo 
espectro e a esperança da coleta da memória histórica em nosso contexto. É 
impossível pensar o Bexiga sem mensurarmos a relevância de continuidade 
do tempo e da preservação de nosso patrimônio. O historiador muitas vezes 
faz investigações em áreas distantes do seu convívio diário, tendo 
dificuldades de acesso ao local da pesquisa. Aqui entretanto a proposta foi 
de propiciar a fusão de um estudo científico com minha vivência diária. 
Num ensaio publicado em 1983, “Bixiga, Amore Mio”, investiguei o 
cotidiano do bairro, pois minha preocupação primordial foi o levantamento 
de fontes históricas da área. Acredito que algumas das conclusões gerais a 
que cheguei aplicam-se neste texto, tendo nas entrelinhas um enfoque 
diferente, uma vez que tentei aqui fazer reflexões da vivência de alguns 
segmentos e do complexo cultural do bairro, abrangendo o modo e as 
condições com que os habitantes se relacionam e criam fatos sociais. 
O Bexiga, pela sua riqueza, nos convida a prosseguir a pesquisa e a 
publicar novos textos, pois a temática é complexa, com uma diversidade de 
histórias e infinitos casos. 
É importante enfatizar a origem deste bairro, fazendo-se referências ao 
histórico da cidade de São Paulo, que, uma vez instalada numa área 
favorecida e escolhida para o povoamento devido à sua “paisagem natural”, 
espalhou-se posteriormente por regiões contidas nos arredores, criando um 
“cenário cultural” em novas áreas. 
O Bexiga é um bairro de contrastes, com largas avenidas, de tráfego 
intenso, espaço urbano composto de blocos de arranha-céus, emoldurados de 
simpáticos casarões, como também de ruelas tranquilas, que fazem lembrar 
os cenários do passado. 
Neste contexto onde paisagens naturais foram-se transformando em fatos 
culturais, novos bairros nasceram, tendo o Bexiga, nesta estrutura urbana, 
um papel de destaque pela sua proximidade ao “epigão central”, embrionário 
da capital paulista. 
 
 
A CONTEXTUALIZAÇÀO DO 
BEXIGA NO CENÃRIO 
PAULISTANO 
 
Inicialmente farei algumas explanações sobre a capital paulista: do seu 
papel mediador para contatos comerciais, das transformações do cenário 
provinciano a uma cidade metropolitana e do loteamento das lindas chácaras 
que rodeavam o “espigão central”. 
Os “Campos de Piratininga” foram escolhidos para ostentar a Vila de 
São Paulo, devido ao estreitamento da faixa litorânea na Serra do Mar, na 
altura da Cidade de Santos, propiciando um acesso entre o litoral e o 
planalto. Esse trecho foi explorado pelos indígenas, que, através de trilhas, 
faziam o percurso da região do planalto até a baixada litorânea. Mais tarde 
estas pequenas vias viabilizaram uma comunicação mais intensa entre as 
duas áreas. 
Esta descampada região foi convidativa ao povoamento, espaço habitado 
por indígenas, demonstrando uma rala arborização, provocando uma clareira 
natural na floresta numa superfície plana de solo pobre. 
A migração europeia para São Paulo era escassa, pois aqui não se 
ofereciam oportunidades agrícolas comparáveis à cana-de-açúcar do 
Nordeste. O viajante deveria enfrentar, na Serra do Mar, as dificuldades 
oferecidas por abismos e o frequente ataque dos índios. 
O sistema hidrográfico é um fator concernente à preeminência e à 
expansão da Vila de São Paulo. Os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros 
tiveram uma função histórica: foram utilizados como vias de comunicação, e 
as estradas aparecendo como canais de acesso. 
A vila teve sua gênese no alto da colina, com a várzea do Tamanduateí 
de um lado e o vale do Anhangabaú do outro. Destacaram-se na estrutura da 
cidade dois riachos, que são o Anhangabaú (com seus afluentes, o Saracura e 
o Bexiga) e o Pacaembu, o Anhangabaú afluente do Tamanduateí e o 
Pacaembu afluente do Tietê. Esses pequenos rios desapareceram com a 
modernização e foram canalizados, sob ruas e avenidas. 
O núcleo urbano localiza-se na “colina central” onde se fixou o centro da 
cidade, reproduzido pelo triângulo das três ruas principais: Quinze de 
Novembro, São Bento e Direita. No final do século XVI, a Vila de São Paulo 
era constituída de um aglomerado de umas cem casas no topo da colina. 
No decorrer do século XVIII, os caminhos e estradas já se 
apresentavam bem definidos, em todas as direções, oferecendo a São Paulo a 
comunicação com o interior e o litoral. Essas vias de acesso harmonizavam o 
abastecimento de mercadorias. A carne e a farinha de mandioca vinham do 
interior e a cana-de-açúcar do litoral. Da colina central, três caminhos 
principais se dirigiam às aldeias e povoações nas proximidades de São 
Paulo. Um deles é hoje representado pela Rua da Liberdade, outro é, nos 
dias atuais, a Rua Santa Amaro, prolongadapela Brigadeiro Luís Antônio. A 
última, que segue para o sul, é hoje reproduzida pela Rua da Consolação. A 
avenida Brigadeiro Luís Antônio foi aberta em terras da chácara do Barão de 
Limeira, formada ao sul dos antigos campos do Bexiga. A nova via pública 
passou a ser ligação entre o centro e a região do Ibirapuera e Santo Amaro, 
facilitando o translado entre elas. 
A corrida do ouro levou os paulistas mais arrojados a estabelecerem-se 
nas zonas de mineração, e é comum falar-se da decadência de São Paulo e do 
raleamento da população, no século XVIII. Em 1711, São Paulo foi 
impropriamente elevada à categoria de cidade, porque, na verdade, ainda não 
merecia essa denominação, pois nessa época a cidade estava despovoada, 
devido à evasão dos bandeirantes paulistas em busca de riquezas e pela 
conquista das terras do sul, onde se realizavam prósperas criações de gado. 
“Em 1783, São Paulo contava com 12 ruas principais e respectivas 
transversais, muito estreitas, mal calçadas, desembocando algumas nos 
terreiros, praças ou pátios. Eram razoavelmente limpas, apesar dos esgotos 
abertos, e não tinham iluminação.” (Er. ”ii Silva Bruno, História e Tradições 
da Cidade de São Paulo). 
O comércio, feito pelas tropas de muares, limitava-se à Rua da 
Quitanda, onde vendiam legumes e frutas, e à Rua das Casinhas, atual Rua 
do Tesouro, onde vendiam farinha, toucinho, arroz e carne seca. São Paulo, 
no período colonial, economicamente representava um modesto entreposto 
comercial. A cidade apresentava um visual bucólico, onde era comum 
encontrar galinhas e carneiros soltos pela cidade. O gado era criado nas 
chácaras ao redor. O uso do leite de cabra era generalizado. As ruas eram 
suficientemente largas para acomodarem os carros de boi, as mulas e os 
escravos que transitavam com seus jarros em busca de água nos chafarizes 
públicos. O calçamento era irregular, em alguns lugares limitava-se apenas à 
frente das casas; as pedras eram tão mal colocadas que o andar das pessoas, 
durante a noite, acordava a população. 
Um viajante que se aproximasse da cidade, por volta de 1820, por uma 
das estradas, observaria sua aparência agradável, suas igrejas modestas, sua 
arquitetura sem esplendor; e, ao redor, na área suburbana, uma planície 
embelezada por trechos de matos e campos, belíssimos pomares e jardins 
que enriqueciam os terrenos. Nessa época São Paulo possuía 24000 habitantes, 
dos quais metade gente branca. 
Nas décadas posteriores à metade do século XIX o desenvolvimento da 
economia cafeeira produz um impulso na capital da Província, 
transformando a economia paulista, que, no início do século, se 
caracterizava por baixa produtividade. A partir desse momento, a cidade 
passa a ser um considerável núcleo urbano, em decorrência da expansão e 
importância da lavoura cafeeira e aparecimento das ferrovias. 
Depois de 1880, sem qualquer planejamento, novos bairros foram-se 
incorporando ao perímetro urbano, através do loteamento de Chácaras e 
novos arruamentos. Os jornais anunciavam a venda de belas chácaras e lotes 
a preços convidativos. 
Através dos trilhos, São Paulo converte-se num importante centro 
comercial, deixando de ser o simples entreposto de outrora. A comunicação 
da cidade com o interior passa a ser mais fácil, e a camada abastada da 
população, a aristocracia cafeeira, passa a construir casarões e a residir na 
capital. 
A planta da cidade de São Paulo, em 1880, mostra que sua população 
era de 35.000 habitantes e rodeada por chácaras: Sertório, Bexiga, Barão de 
Limeira, Palmeiras, Mauá e Perdizes. 
Em 1886, a população já crescia para 45.000 habitantes e em 1896 
atinge 150.000. Destes, mais da metade era constituída de europeus. 
O término do sistema escravocrata exigiu um número mais elevado de 
braços para a lavoura, o que justifica a grande avalanche imigratória que 
vem oferecer-se à colonização da cidade de São Paulo. 
A caracterização industrial da capital paulista se delineou, nitidamente, 
somente na última década do século XIX. Em 1889, a cidade não tinha mais 
do que 32 fábricas, ao iniciar-se o século atual o número atingia cem. 
Observa-se, desde logo, o predomínio da pequena indústria e, para tal, a 
colaboração da mão-de-obra do imigrante foi notória. Aparecem nessa época 
fábricas de calçados, alfaiatarias, ateliers de costura, padarias, cervejarias, 
fábricas de macarrão, fundições, oficinas mecânicas, fábricas de carroças e 
carruagens, que fazem presente a mão-de-obra europeia. 
Os paulista, para atrair imigrantes, fundam a Sociedade Promotora de 
Imigração, a cuja frente se coloca o sr. Martinho Prado Júnior. Não se 
limitam à simples propaganda no estrangeiro, funda-se uma Hospedaria de 
Imigração com capacidade para 4.000 pessoas, destinada a receber os 
imigrantes recém-chegados, alimentando-os durante oito dias e auxiliando-os. 
A imigração trouxe para São Paulo não somente a salvação da lavoura de 
café, engrandecendo a cidade, dando-lhe um cunho europeu e propiciandolhe 
um rico processo de aculturação, como também a cidade foi dominada por 
uma aragem de vida renovadora e benéfica. Artistas hábeis, trabalhadores, 
operários, homens robustos, com nova ambição pelo trabalho, repletos de 
esperanças, chegavam à nossa cidade. Os descendentes da Ligúria, da 
Lombardia, da Venêcia, da Toscana e da Calábria trouxeram seu braço e sua 
constância no trabalho, transformando rapidamente a Pauliceia. 
Dentro desse processo de urbanização, definem-se bairros da 
aristocracia do café que se localizaram sobretudo nos Campos Elíseos, onde 
foram abertas ruas largas e construíram-se luxuosas mansões. 
Posteriormente, este espaço foi substituído por Higienópolis. Próximo aos 
trilhos das ferrovias e das estações instalaram-se os bairros populares, onde 
se fixaram as primeiras indústrias. Assim se desenvolveram os bairros do 
Brás, da Luz e Bom Retiro. A partir de 1872, a cidade contava com serviço 
de bonde de tração animal. Como resultado desse desenvolvimento acelerado 
o espigão da Paulista foi escolhido pela burguesia para construir seus casarões, 
enquanto nas baixadas, nas proximidades do Riacho da Saracura, foram-se 
fixando os negros libertos e, nas demais áreas do Bexiga, os lotes foram sendo 
vendidos a preços convidativos aos calabreses que imigravam. 
No último quartel do século XIX, percebe-se nitidamente a distinção 
entre o velho núcleo da cidade e “cidade nova”. Na parte antiga, as ruas são 
estreitas e tortuosas; na parte nova, notam-se quarteirões bem desenhados, 
ruas mais largas com aspecto mais moderno. O calçamento com 
paralelepípedos era usado somente nas ruas principais, sendo outras 
pavimentadas com pedras irregulares; entretanto, existiam outras cobertas de 
capim e terra. 
Em pouco tempo, a cidade perdeu o aspecto colonial e passou a ser a 
capital da aristocracia cafeeira. Novas edificações foram construídas, sendo 
notória a contribuição da arquitetura italiana, estabelecendo vivos contrastes 
com a arquitetura luso-brasileira até então dominante. Este final do século 
XIX será o alicerce para a explosão urbana da Metrópole, no século XX. O 
crescimento urbano faz parte de uma série de relações que se dâ no espaço e 
no tempo e que constitui a estrutura em que a cidade se integra. No caso de 
São Paulo esta relação se deu em consequência da expansão capitalista 
associada à crescente industrialização. 
 
O PANORAMA DOS CAMPOS DO 
BEXIGA 
 
Os campos do Bexiga tinham como limites a baixada do Piques, da 
atual Rua Santo Amaro, estendendo-se até as proximidades da Consolação, 
de um lado, e à Brigadeiro Luís Antônio, do outro, prolongando-se até o 
espigão da atual avenida Paulista. 
A área do atual bairro do Bexiga, que compreende a região próxima à 
Avenida Paulista, tem remotas origens. Em 1559 estas terras pertenceram ao 
Sítio do “Capão”, de Antônio Pinto, que recebiaeste nome devido à 
imponente floresta multissecular que coroava o espigão. Este espaço verde 
era povoado por abundante fauna de pêlo e pena que habitava os matagais, 
podendo-se caçar nela veados, pacas e grande variedade de aves. Mais tarde, 
foi denominada “chácara das jabuticabeiras”, pela quantidade enorme de frutas 
aí existente. 
Entretanto, a existência do nome Bexiga relacionado a um espaço 
geográfico é do período entre 1789 e1792. 
Em 1819, a chácara pertencia a Antônio Bexiga, nela Saint-Hilaire, o 
viajante francês, se hospedou por duas noites, em viagem a São Paulo. 
Posteriormente foi propriedade de Tomás Luís Álvares (Tomás Cruz), e por 
volta de 1850 foi vendida à firma Antônio José Leite Braga & Cia. Imbuído 
pela febre de urbanização, que contagiava a Metrópole no último quartel do 
século XIX, Antônio J. L. Braga promoveu a demarcação, a abertura de ruas 
e iniciou a venda de terrenos da chácara. 
A chácara do Bexiga possuía extensas plantações de jabuticabeiras, 
laranjeiras e capinzais, onde se caçavam veados, perdizes e até escravos 
fugitivos. A residência de Antônio Bexiga localizava-se nas imediações do 
início das Ruas Santo Amaro e Santo Antônio, local em que existiam 
pequenos quartos, que eram alugados aos viajantes, e um rancho para os que 
vinham das bandas de Sorocaba, a fim de vender aqui seus animais, para isso 
expondo-os no Largo do Piques, onde se realizava, em dias certos, uma feira 
livre. A Ponte de Lorena, sobre o Anhangabaú, era um acesso de 
comunicação aos caminhos que se dirigiam a Sorocaba e Jundiaí. Diante da 
pousada havia uma área limpa, na qual se prendiam em estacas os animais, 
cujos donos ali apeavam para vender ou comprar coisas. 
“Entrei na cidade, a 20 de outubro de 1819, por uma rua larga”, afirma 
Saint-Hilaire. De relance viu o chafariz ou Memória do Piques, que achou 
“bastante bonito”. Atravessada a ponte de Lorena e o Riacho do Anhangabaú, 
chegou afinal à casa do “honrado Bexiga”. 
“Entraram os meus burros num pátio lamacento valado de um lado, 
cercado de outro por umas casinholas cujas portas abriam para este terreno, 
tantas quantas destinadas aos hóspedes. Bexiga alugava o pasto mediante o 
pagamento de um vintém (12 cêntimos) por noite e cabeça de animal, 
ficando o viajante dispensado de qualquer pagamento pela sua hospedagem”. 
(Saint-Hilaire, Viagem à Província de São Paulo) 
A moléstia da varíola, denominada “bexiga”, amedrontava há longos 
anos a população da cidade de São Paulo. E é certo que na reigão dos 
Campos do Bexiga se localizavam doentes atacados de varíola, como ocorria 
em todos os arrabaldes de São Paulo. O que parece é que se pretendia isolar 
os doentes, sendo retirados do centro da cidade e permanecendo em casas 
separadas. 
Se a denominação de Bexiga para designar local geográfico surge no 
final do século XVIII, foi em decorrência do nome da própria chácara e, 
possivelmente, o proprietário recebeu esta alcunha por ter sido vitima da 
varíola. Tratando-se de uma área territorial, é comum que ela se tome 
conhecida pelo nome de seu proprietário. Efetivamente, ao pensar-se no 
nome de um local, rua ou bairro, antes de mais nada deve-se pensar em 
algum santo ou morador das cercanias, como o sitiante José Brás, o 
estalajadeiro Bexiga, o ferreiro Piques e outros, que marcam a tradição de 
seus bairros. 
Quanto a Piques, origina-se efetivamente dos Piques, que foram uma 
família bem distribuída em São Paulo. Antônio Ferreira Piques era um 
negociante que desde 1775 residiu próximo da Ponte de Lorena. 
O Largo do Piques teve função histórica: o casario ali existente (feira de 
animais, casas comerciais, leilão de escravos) proporcionou o arruamento 
nas proximidades, sendo então este espaço a gênese do bairro. 
A área em frente à Pousada do Bexiga, que denominavam de “Pátio dos 
Animais”, onde faziam as barganhas semanais, passou a ser chamada de 
“Terreiro” e posteriormente “Largo do Bexiga”. Os largos do Bexiga e do 
Piques ficavam juntos, em continuidade um ao outro. 
A baixada do Piques, que hoje constitui a Praça das Bandeiras, sempre 
constou de duas partes distintas: o Largo do Bexiga (mais tarde Riachuelo) e 
o Largo do Piques, que ostentava o obelisco da Memória, construído em 
1814. Desse obelisco emergia uma fonte, que na realidade era um reservatório 
do chafariz que ficava em nível inferior. Essa água provinha do tanque do 
Reúno e ia alimentar o lago central do Jardim Botânico, hoje Luz. Nessa praça 
ocorria uma vez por semana o leilão de escravos. Nenhum outro lugar mais 
propício. Logo que o sol se aprumava, chegavam ao largo os senhores de 
calças de brim branco engomadas, sobrecasaca, chapéu alto preto, ou um 
legitimo “panamá” branco, acompanhados das sinhazinhas de rostos pálidos, 
risonhas, mantilha de seda e vestidos repolhudos. Chocavam-se com uma 
fileira de “mercadoria negra”, representada pelos “Pais-Joões” e pelas “Mães-
Bentas” com seus assustadiços rebentos negros, que ficavam em destaque 
numa vitrine melancólica, à exposição da cobiça dos compradores. 
O leilão começava ao meio-dia, quando tocava o sino de bronze da 
Igreja de São Francisco; a partir desse momento senhores e senhoras 
circulavam. Crianças existiam em abundância e eram muito procuradas para 
o trabalho doméstico e para os recados urgentes. Os mais moços eram 
sempre mais procurados, enquanto os mais velhos eram aceitos apenas em 
liquidação, ou serviam para ser enviados de presente a amigos, no último dia 
do ano. 
Os lances iam aumentando à medida das simpatias, aptidões, saúde e 
habilidades. Havia um edital, citando as cotações das “peças” a serem 
leiloadas. 
Negro bem feito 420.000 
Molecão 350.000 
Moleque 168.000 
Crioulo bem oficial 700.000 
Mulata de partes ou oficial 750.000 
Trombeteiro 705.000 
Mulata de partes boas 840.000 
Negra cozinheira 350.000 
Negro sem dentes e meio cansado 200.000 
Peças sem recomendação 150.000 
Molequinhos, desde 80.000 
(Gabriel Marques, Ruas e Tradições de São Paulo). 
 
A saída após a arrematação era um desespero. Pais se separavam dos 
filhos, maridos das mulheres, crianças dos braços maternos, todos seguiam 
cabisbaixos os respectivos senhores que os compravam. O escravo era 
negociável, como qualquer outra mercadoria. 
A baixada do Piques, muitas vezes, se via coberta de água, devido às 
fortes chuvas; o Rio Anhangabaú e os Córregos Saracura e Bexiga 
transbordavam, provocando um lamaçal. 
A chuva de 1 de janeiro de 1850 causou uma grande inundação, 
provocando o transbordamento dos tanques do Bexiga e do Reúno. O 
problema só foi solucionado com a canalização do Anhangabaú, no começo 
do século XX. 
As capoeiras e capinzais que havia em tomo do Tanque Reúno, no 
Bexiga, como em outros pontos da baixada em que corriam o Anhangabaú e o 
Riacho da Saracura, serviram de esconderijo onde se aquilombavam negros 
rebelados. Esses matos eram convidativos para esconderijos. Em 1831 foi 
feito um documento com a tentativa de fechar o acesso do Anhangabaú ao 
Bexiga, cujo objetivo era impedir o trânsito de escravos fugitivos para o 
Bexiga. 
A Baixada do Piques propiciava a passagem de pessoas que chegavam 
das bandas de Itu e Sorocaba. Sobre a ponte do Piques transitavam as 
mercadorias que vinham do interior e os animais que chegavam de Sorocaba 
para serem expostos na feira. Foi estimulado um mercado local, passando o 
largo a ser um ponto comercial, onde funcionavam casas em que se vendiam 
arreios, picaretas, enxadas, arroz, feijão e charque. 
A região do Bexiga por muito tempo foi considerada um arrabalde da 
Pauliceia, por isso foi escolhida para se localizarem as feiras de ovos e 
madeira. Na cidade de São Paulo, por volta de 1800, a área urbana era 
composta apenas de uma dúzia de ruas, sem qualquer ordenação, as casas 
eram construídas a uma certadistância uma da outra, ao longo de quintais 
murados. 
A cidade era pequena, porém impressionava pela sua limpeza, calçadas 
de pedras, casas de um só pavimento, algumas eram sobrados, um comércio 
composto de negociantes e artífices, muita barateza nos gêneros alimentícios 
e muito zelo nos jardins. Era muito comum o visitante ser rodeado de 
crianças, que muitas vezes o acompanhavam em visitas a igrejas e 
conventos. Alguns costumes a diferiam de outras cidades brasileiras: nas 
ruas não transitavam, como no Rio, negros carregando mercadorias à cabeça 
para serem vendidas. 
Em São Paulo, cada mercadoria tinha ponto certo para ser 
comercializada.'Legumes e miudezas eram vendidos pelas negras instaladas 
na Rua da Quitanda. Os comestíveis encontravam-se na Rua das Casinhas, 
onde existiam numerosas quitandas e feiras diárias. Nessas quitandas os 
produtos de maior durabilidade eram conservados. Alguns gêneros, como 
peixe e ovos, só podiam ser expostos em local determinado pelas 
autoridades. No começo do oitocentismo, legislação proibia que se vendesse 
peixe fora dos locais designados, que eram o Carmo e São Bento. Estabelecia-
se ainda que ninguém vendesse ovos pelas estradas, nem em locais de ingresso 
à cidade; era preciso negociar com eles no canto do Bexiga. 
As vias de comunicação e o comércio tinham sua própria identidade 
dentro da cidade. A área urbana, por volta de 1850, já era empiricamente 
definida e o comércio situado em locais específicos. 
Do Anhangabaú partia em direção a Santo Amaro uma estrada que 
surgiu em substituição ao antigo “Caminho do carro que vai para Santo 
Amaro”. Através dessa via os caipiras de Santo Amaro vinham à cidade fazer 
seu comércio, suas barganhas de animais, compra de mercadorias tais como: 
carne seca, farinha e ferramentas. Essa estrada justifica o nome que foi 
atribuído à Rua Santo Amaro, local onde se definiu um significativo comércio 
de madeiras. 
Os caboclos de Santo Amaro e de Itapecerica, a partir de 1850, faziam 
suas feiras semanais de madeira no Bexiga, onde se alinhavam dezenas de 
carros de boi. Em 1877, as feiras de madeira provocavam um movimento 
tremendo às sextas-feiras e aos sábados. Logo de manhã, se ouvia o barulho de 
carretas sobrecarregadas de lenha e tábuas. 
Um ambiente poético e romântico era o panorama da cidade de São 
Paulo no século XIX, com a presença de bicas, chafarizes públicos, 
simpáticas pontes, belíssimos lampiões a gás, e assim a vida acontecia sob a 
peculiar garoa paulistana. 
Tudo isso fazia parte do romantismo do século XIX, e, dentro desse 
cenário, a Academia de Direito (criada em 11 de agosto de 1827), foi 
precursora do ambiente cultural do bairro. Sua presença transforma a 
fisionomia da Pauliceia, atraindo-lhe uma vida nova e promovendo, na 
segunda metade do século XIX, um alvoroço de notável importância social. 
Estudantes da Faculdade de Direito faziam passeios freqãentes pela 
região do Bexiga, onde caçavam veados e perdizes. Raul Pompeia, Vicente 
de Carvalho e Raimundo Correia faziam parte desses grupos, que muitas 
vezes pernoitavam nessas chácaras para, na manhã seguinte, realizarem o 
“concurso bezerril”, do qual sairia vencedor aquele que bebesse maior 
quantidade de leite quente num só trago. 
Sobre o Anhangabaú existiam três belas pontes: a Lorena, conhecida 
por Ponte do Piques, que ficava no Anhangabaú, no Largo do Riachuelo, 
antigo caminho de Pinheiros, logo abaixo da foz do Ribeirão Saracura e do 
Córrego Bexiga: a Ponte do Àcu, na Ladeira de São João, e na socida da 
Ladeira de Santo Amaro, a Ponte do Bexiga, que deve seu nome ao hoteleiro 
que viveu na região. 
O Matadouro Municipal também fez parte do cenário do Bexiga, sendo 
instalado inicialmente na Rua Santo Amaro, nas imediações da Capela de 
Santa Cruz e Rua Jacareí e também nas proximidades da chácara do Antônio 
Bexiga. As reses eram registradas no livro do Curral do Conselho e cada 
registro ficava na importância de um vintém. 
O matadouro provocava uma imundície nas imediações, pois não havia 
nenhuma preocupação com higiene. O antigo jornal O Paulista noticiava, em 
26 de junho de 1832 que o cólera morbo grassava principalmente naquelas 
praças onde havia menos limpeza e que o matadouro, próximo da cidade, na 
Estrada de Santo Amaro, empesteava os ares com insuportável mau cheiro. 
As vizinhanças do matadouro estavam sempre cobertas de caveiras, 
chifres e outros detritos, e por aí passava o Anhangabaú em direção ao 
pequeno reservatório que abastecia os três principais chafarizes da cidade. 
Um desses era sempre muito procurado, e durante as secas ocorriam brigas 
pelo único fio de água cujas consequências eram jarros partidos nas cabeças. 
A impureza dos chafarizes provoca o aparecimento da venda de água potável 
em toneis. 
A higiene pública em São Paulo, na época, era muito deficiente, os lixos 
eram despejados nos rios pelas pontes ou se espalhavam pelos quintais. Havia, 
desde 1821, uma postura da Câmara que estabelecia multas de um a quatro 
mil reis para quem não fizesse uso dos depósitos de lixos existentes na cidade. 
Em 1830, a Câmara se posicionou contrariamente à preservação do matadouro 
e do curral na Rua Santo Amaro, pois, pela sua proximidade do centro da 
cidade e também das águas do Anhangabaú, os restos e impurezas eram 
distribuídos através dos ventos para toda a população. 
Diante dessa problemática transferiram o matadouro para a baixada 
entre as Ruas Pitangui e Humaitá, em virtude do contrato de 30 de abril de 
1851, entre a Câmara Municipal e Achilles Martins d’Estadens. 
Rapidamente o problema voltou à tona. Os detritos espalharam-se pelas 
proximidades e pelo ar. A higiene parecia estar em estágio de primeira 
infância, pois o Anhangabaú enfrentava um problema de contaminação pela 
sua proximidade das baixadas do Humaitá. Os moradores do Piques e do 
Acu assistiam diariamente, das duas da tarde em diante, a esse riacho de 
sangue. 
O funcionamento do matadouro foi transferido deste sítio para a Vila 
Mariana em 1887. 
 
 
A OCUPAÇÃO EFETIVA DO 
BAIRRO: FINAL DO SÉCULO XIX 
 
A partir de 1870, registrou-se uma grande transformação na cidade de 
São Paulo. Aquela monótona, carrancuda e taciturna cidade cedeu lugar a 
outra mais movimentada e impulsionada por uma febre que explodia em 
loteamentos e arruamentos. Instalaram- se fábricas, construíram-se prédios, 
ruas semidesertas passaram a ser servidas por linhas de bondes a tração animal 
e, dentro dessa epidêmica urbanização, a população crescia. A região 
considerada “parte nova”, onde fluíram os bairros nascentes, se caracterizou 
por quarteirões bem desenhados, ruas largas e um aspecto bem mais moderno 
do que aquele do espigão central. 
Na década de 1880, renasce a cidade de São Paulo. A Pauliceia tristonha 
de aspecto colonial passou a ser a metrópole do café, o mais populoso centro 
do planalto brasileiro. 
Embora São Paulo não oferecesse mais aquele aspecto fragmentário do 
início do século, ainda possuía um número elevado de “espaços vazios” 
dentro da área urbana. Um desses compreendia os Campos do Bexiga, num 
trecho de topografia movimentada e irregular, onde se situavam os Ribeirões 
Saracura e Bexiga, que agora, com o arruamento e a venda dos lotes, passam 
a integrar o urbanismo da cidade. 
Assim, A Província de São Paulo, em 23 de junho de 1878, anunciava: 
“Vendem-se por propostas todas as mattas dos terrenos do Bexiga, 
pertencentes a A. J. L. Braga & Companhia — os pretendentes podem 
examinar deste já. A. J. L. Braga & Comp.”. 
A firma Antônio José Leite adquiriu os terrenos de Tomás Luís Alvares, 
em meados do século XIX, e a partir de 8 de maio de 1878, A Província de 
São Paulo publicava anúncios do loteamento dos Pastos do Bexiga. Braga 
deixou seu nome marcado no processo de urbanização da área. Foi um 
homem de grande bravura, ligado a várias entidades daépoca, presidente da 
Sociedade Portuguesa de Beneficência em São Paulo, professor, proprietário 
da área do Bexiga e da oficina situada à Rua Santo Antônio. 
Nessa febre de urbanização, os anúncios se repetiam: “Terrenos para 
todas as bolsas! Terrenos muito bem situados nos campos do Bexiga, 
vendemos às braças ou mesmo em lotes, com matas ou campos, à vontade 
do freguês e por preço sem concorrência. Tem várias fontes de água pura, 
lindos panoramas e ar saudável. Ruas de 60 palmos de largura. Preços 
baratíssimos. Desde 20 até 50 mil reis a braça, todos com 30 braças de fundo 
ou mais. A planta se acha nas oficinas de móveis Santo Antônio, no Bexiga. 
Tratar com os proprietários, na mesma oficina, Sr. José Leite Braga. 
Aproveitem o preço!” C4 Província de São Paulo, 27.6.1878). 
E os italianos, em sua maioria calabreses, aproveitavam os preços 
baixos, as ruas de 60 palmos de largura, íngremes, para recriar ambientes 
italianos na cidadezinha inóspita. 
A ocupação efetiva do bairro está intimamente ligada à explosão urbana 
da Pauliceia, consequente ao desenvolvimento do ciclo econômico cafeeiro e 
também pela chegada do imigrante italiano à procura de trabalho, em 
substituição à mão-de-obra escrava. 
Alguns italianos vieram com a intenção de trabalhar na lavoura de café 
e percebiam condições interessantes de trabalho na capital, onde poderiam 
optar pelo desempenho de eficientes artesãos. Daí a origem de algumas 
oficinas, sapatarias, alfaiatarias, cantinas e padarias no cenário paulistano. 
O surto da economia cafeeira, a abolição da escravatura no Brasil e, na 
Itália, o superpovoamento e a grave crise da agricultura nos fins do século 
XIX, são algumas das circunstâncias que proporcionaram a vinda do 
imigrante italiano para cá. 
A partir de 1890 intensificou-se a chegada dos italianos e também 
espanhois e portugueses, que se juntavam aos negros e portugueses já 
existentes no bairro, promovendo a mescla cultural. 
“Meu pai veio para o Brasil pra trabalhar nas fazendas de café em 1890. 
Tinha acabado a escravidão e os italianos iam substituindo os negros 
libertos. Quando ele desembarcou resolveu não ir para o interior e ficou em 
São Paulo. Fez uma gruta num morro, perto do Rio Saracura, plantou alguma 
coisa e foi vivendo. Depois de alguns anos de trabalho ele conseguiu comprar 
um terreninho, é este lugar onde moro — Rua 13 de Maio, 591.” (Depoimento 
de dona Luísa Benzedeira, Folha de S. Paulo, 20.4.1969) 
No início do século atual, os italianos chegaram a constituir mais de 
50% da população paulista. Essa porcentagem foi diminuindo devido ao 
enfraquecimento da corrente migratória e à explosão demográfica da cidade 
de São Paulo. 
 
 
O bairro, onde as ruas determinam seus nomes e sua numeração, vai 
sendo habitado por italianos, que foram comprando seus lotes, chácaras, 
construindo suas casas e plantando alguma coisa nos terrenos. Os italianos 
foram-se instalando nas quintas e os negros livres do cativeiro nos morros e 
baixadas da Saracura. 
E assim os Campos do Bexiga, compreendidos na atual área entre as 
Avenidas Brigadeiro Luís Antônio e Paulista e o Anhangabaú, foram 
arruados e loteados. O bairro cresceu, sempre com muita poesia, com suas 
pequenas vilas e casarões, ruas estreitas e tortuosas, com características 
humildes que até hoje se conservam. 
O Largo do Piques, considerado a “boca do bairro” que era esboçado por 
um grupo de casas, agora é integrado ao arruamento que se estende a toda a 
região da Saracura. Os primeiros arruamentos compreendiam a zona entre o 
Ribeirão Saracura e Ribeirão do Bexiga. 
Do velho Piques saiam dois caminhos antigos que deram origem a duas 
ruas históricas: Santo Amaro e Santo Antônio, ambas com notável 
importância para a comunicação da área central da cidade com regiões 
suburbanas. 
Um deles era o “Caminho do Carro que vai para Santo Amaro”, que 
saía do Piques e rumava para o Caaguaçu e seguia até a Vila de Santo 
Amaro. Esse caminho deu origem à antiga Rua do Curral, que mais tarde 
recebeu o nome de Santo Amaro. 
O outro caminho era “o de Santo Antônio”, que funcionava quase em 
ângulo reto ao Caminho de Santo Amaro e também saía do Velho Piques, 
ligando a Caaguaçu (espigão da Avenida Paulista) e Estrada do Vergueiro. 
Este caminho, antes de 1785, já fora transformado em rua. No começo 
chamavam-na de Rua Vale do Andorra, mais tarde foi denominada Dr. 
Falcão Filho e finalmente o povo passou a denominá-la Rua Santo Antônio. 
Também passa a fazer parte do panorama a Avenida Brigadeiro Luís 
Antônio, inaugurada em 1894. 
Na baixada, às margens do Riacho Saracura, predominavam os negros, 
personagens que ali se encontram, alegrando o bairro com o som, música e 
ritmo das escolas de samba, mantendo viva a cultura popular brasileira. 
Dentro desse afluxo de raças e de uma rica miscigenação, houve um 
processo de aculturação oriundo da Península Itálica e da Ãfrica, 
provocando as características de um bairro ítalo-africano. 
O morro dos Ingleses foi arruado em 1912 e passou a ser a elite do 
bairro, onde a aristocracia construiu seus casarões, tais como: Andraus, 
Ramenzoni, Parente, Lunardelli e Maluf. 
Para facilitar o acesso das famílias que erguiam seus palacetes no 
morro, o prefeito Pires do Rio inaugurou, em 1929, a escadaria ligando a 
Rua dos Ingleses à 13 de Maio. O Morro dos Ingleses era o reflexo da 
Avenida Paulista, ganhou ares aristocráticos, habitado pelos reis do café. A 
colônia italiana nele se imiscuiu, sorrateiramente. 
Condes e condessas foram ali jeitosamente erguendo seus exuberantes 
solares. 
A crescente urbanização viabilizou em 1910 a oficialização do bairro 
pela Câmara Municipal, com o nome de Bela Vista. 
Bela Vista tornou-se uma realidade, os italianos não gostavam do nome 
“Bexiga”, e, em dezembro desse ano, quando houve a mudança do nome, os 
bondes que subiam a Conselheiro Ramalho com o letreiro antigo foram 
apedrejados. 
Hoje a imagem mudou, o Bexiga renasce dentro de um espírito de 
tradições, preservação e memória. É um bairro histórico, portador de um 
cenário antigo e popular, com uma arquitetura humilde, porém com alguma 
autenticidade italiana, com casarões, sobrados de vários andares, sacadas com 
ricas floreiras, casas construídas direto para a rua, com portões de ferro e 
portas de madeira, com uma fala cantada e com festejos religiosos, que 
podemos intitulá-lo de “enclave italiano” da cidade de São Paulo. 
 
O IMIGRANTE ITALIANO E O SEU 
ACULTURAMENTO 
 
A imigração italiana foi efetivamente estimulada em 1885, com a 
decisão do Governo Imperial de reembolsar os recém-chegados pelas 
despesas de viagem. 
Essa oportunidade de fazer a América foi provocada por crises sócio-
econômicas internas, que resultaram em crises agrícolas, esgotamento de 
terras, péssimas relações entre trabalhadores e grandes proprietários. Dentro 
desta problemática, o povo italiano estava psicologicamente preparado para 
enfrentar a imigração, uma vez que sofriam influências de forças que o 
atraíam, da propaganda das companhias de navegação no sul e das estradas de 
ferro ao norte, das notícias sobre salários mais elevados e da abundância de 
oportunidades de trabalho na América, sobretudo no Brasil, Argentina, 
Uruguai e Estados Unidos. 
A Itália não se enriquecia sem a contribuição das remessas dos 
emigrados, a série de greves agrícolas mostram que nem todo o país 
participava igualmente do aumento da riqueza, principalmente os 
camponeses do sul, que não possuíam organização sindical como os do 
norte, e geralmente eram derrotados e decidiam emigrar, como solução 
viável. 
O emigrante, ao fazer a América, enviava nos primeiros tempos 
remessas aos parentes próximos que permaneciam na Itália, revigorando a 
economia do país, intitulados de “riachos de ouro”. 
A emigração peninsular consistiu-se num problema coletivo, que de 
nenhumponto de vista pode ser considerado normal. Nenhum outro povo 
moderno sofreu tão grande êxodo de massas humanas. No começo do século 
a saída de elementos da cidade italiana de Basilicata era considerada a 
“emigração da fome”. A constituição italiana reconhecia a todos os cidadãos 
o seu direito ao trabalho, pleno desenvolvimento da pessoa humana e a 
participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e 
social do país; previa também a liberdade de emigração e a tutela do trabalho 
italiano no exterior. “A emigração duplicava, mas não tinha mais o caráter de 
emigração por desesperada miséria e se tornava uma fonte de riquezas 
graças às economias que os emigrantes enviavam para a Itália." (Benedetto 
Croce, Storia d ltalia dal 1871 al 1915) 
A mudança voluntária não pode ser atribuída ao excesso de população, 
mas à carência de capitais relativos ao povo. A miséria, a deficiente estrutura 
político-social, o estado atrasado da tecnologia, a disponibilidade de capitais 
canalizados às classes mais abastadas fizeram com que trabalhadores 
buscassem novos caminhos para concretizar suas realizações. O problema que 
enfrentou a Itália é semelhante ao problema migratório do Nordeste brasileiro. 
O baixo nível cultural leva ao número demográfico não racional, onde a 
preocupação de uma imensa prole para aumento de braços para o sustento da 
família passa a ser uma realidade, contribuindo para o aumento populacional. 
À Península Itálica foi o ponto de partida de homens que levaram alguma 
contribuição ao desenvolvimento de outros povos. Aqueles problemas fizeram 
dos contadini eternos emigrantes. 
São Paulo, em 1822, possuía por volta de 6000 italianos moradores da 
cidade, alguns já ocupando posição de destaque na vida urbana. À capital 
paulista, no início do século atual, não era somente um mercado de produtos, 
mas também um imenso mercado de homens. São Paulo abrigava o 
imigrante recém-chegado e os distribuía pelas diversas fazendas, como 
também acolhia os que abandonavam a vida agrícola e tentavam a vida na 
capital, transformando-se em operários. 
Na última década do oitocentismo, a população de São Paulo começara a 
crescer; entretanto, os imigrantes recém-chegados ainda não possuíam uma 
vida comum, ainda era cedo para uma acomodação cultural. Segundo Glisée 
Reclus, quase metade dos habitantes de São Paulo era constituída de italianos, 
porém eles ainda se sentiam estrangeiros neste Novo Mundo. Ao iniciar o 
século XX, a cidade de São Paulo era definida como uma “cidade de 
italianos”. 
O italiano em São Paulo tornou-se “italiano” de fato, passou a ter 
consciência nacional e fazer a defesa de sua nacionalidade. Fazia 
propaganda de belezas naturais da Itália, do vinho, da Torre de Pisa e de 
Veneza. Assim, os costumes da Península passaram a ser mantidos desde a 
cozinha às canções, das bandas de música aos vinhos, das festas religiosas às 
danças típicas. A divulgação de seus costumes e intercâmbio cultural 
constitui uma louvável contribuição do elemento italiano, muito benéfica 
para o brasileiro, que a assimilou de maneira muito positiva. 
O imigrante desempenhou inúmeras tarefas: artesão, obreiro e artífice 
que faziam atividades de mestres-de-obras e eventuais arquitetos. No final 
do primeiro quartel do século XX, os italianos constituíam a classe operária, 
como também dedicavam-se a outras profissões: jornaleiros, engraxates, 
barbeiros, cocheiros, padeiros e cantineiros. 
Quem percorresse as ruas centrais e bairros como Brás, Mooca, Bom 
Retiro, Barra Funda e Bexiga notaria a presença não apenas no seu linguajar, 
como também no tipo físico e alguns costumes, tais como uso de cachimbo, 
bigodes à Humberto I, boné de pano, etc. e tinha muitas vezes a impressão 
de estar em algum bairro da própria Itália. 
É impossível negar a transferência cultural, ideias, língua, 
conhecimentos, técnicas, padrões de comportamento e atitudes, transmitidos 
pelo imigrante ao paulista; ao mesmo tempo absorveu, na medida em que se 
aculturou, elementos da cultura típica local. Assim, os pedreiros de Bari 
reproduziam nas casas de São Paulo as mesmas linhas e os mesmos motivos 
decorativos, incorporando a arquitetura italiana à do Brasil. Por isso nos 
surpreende a semelhança de algumas quadras do Bexiga com ruas italianas. 
Esse processo de aculturação se efetuou no bairro, com muitos laços de 
amizade, amor e esperanças, onde as raças se fundiram e consequentemente 
mesclaram a língua e hábitos alimentares. A criança negra da baixada da 
Saracura chama a avó carinhosamente de “nonna” e o macarrão à calabresa é 
mais consumido que a feijoada. Para conversar gesticula com as mãos. 
Falava-se italiano e português no Bexiga, no começo do século, porém 
era comum o “dialeto” que era a fusão dos dois. Juó Bananére foi o mais 
inspirado poeta do dialeto macarrônico ou luso-carcamano. Na sua obra La 
Divina Increnca e nas As Cartas d’Abax’0 Piques fazia sátiras políticas e 
paródias de grandes autores e poesias humorísticas. Na sua grafia registrava 
fielmente a linguagem do imigrante em sua primeira fase, como podemos 
observar nesta citação do jornal O Pirralho, de 30.11.1912: “Porca Miséria! 
Cheio non inxerguê ainda una robba tanto gumpligata como os talo inzamo”. 
A cozinha italiana funcionou não só como um ponto de apoio para a 
adaptação à nova terra, como também contribuiu para o estabelecimento de 
laços amistosos. Através da cozinha caseira e do empreendimento comercial, 
cantinas, pizzarias, padarias, o italiano se socializou. Na alimentação do 
paulistano de todos os níveis sociais, as massas ocupam lugar proeminente. 
No linguajar da população, os italianismos e certos modismos são 
utilizados largamente pela população paulista: o até-logo substituído pelo 
“ciao”, o húngaro pelo “hungarês”, da mesma forma que comum se tornou 
dizer-se “éramos em dois” ou “somos em quatro” no lugar de éramos dois e 
somos quatro, e assim existem muitos outros expressivos exemplos, que são 
registrados por J. R. Araújo Filho. 
O Bexiga, no começo do século, era cenário de uma paisagem poética 
de serestas e seresteiros, e muitas músicas líricas como árias do Rigoletto e 
da Aída, ambas de Verdi, eram ouvidas pelo bairro. Misturavam-se os sons 
de tarantella, choro e samba. Os velhos calabreses saíam de suas casas 
cantando Santa Lucia Lontana, Viene Sul Mar pelas ruas iluminadas com 
lampião a gás, indo se reunir nas casas dos amigos e nas cantinas 
aconchegantes. 
O gosto pelo vinho sempre tomado ao som de música, juntamente com 
pão, provolone, sardella e berinjela. O amor à banda de música e os 
costumes de festejos e de acompanhar procissões são presentes ainda hoje no 
bairro. 
Certos jogos como a bocce, o hábito de jogar cartas, o dominó, são 
heranças que se preservam no Bexiga. Tão logo o bairro foi crescendo, foi 
acentuando o caráter amistoso, requisito que se associou ao “carteado”, à 
bocce e ao futebol como formas de lazer, promovendo encontros sociais 
entre jovens e adultos que viviam na área. 
O reduzidíssimo número de indústrias e a opção pelo trabalho privado, 
com a ausência de patrões e rigidez de horários, proporcionam aos elementos 
tempo disponível para o lazer e desenvolvimento de clubes e associações 
como opção nas movimentadas tardes semanais. Jogos de dominó, bocce e 
baralho, na maioria das vezes, se prolongam pela noite afora. Num linguajar 
que relembra fortemente o Bexiga dos velhos tempos, afirma Giovanni 
Pinto, filho de calabrês, morador do bairro: “Na Itália morria-se de fome, 
veio para o Brasil primeiro o meu pai, que abriu caminho, depois veio minha 
mãe. Eu nasci em 1905 no Bexiga e aqui passei toda a minha vida. Na minha 
infância morávamos na 13 de Maio, 73, rua em que na época existiam três 
casas apenas. Todos de minha família trabalhávamos. Meu pai era vendedor 
ambulante, vendiagêneros alimentícios com uma carroça. Com doze anos 
comecei a trabalhar de torneiro mecânico, e fazia diariamente o percurso a 
pé até o Brás. Aqui no Bexiga, dificilmente havia trabalho. Para 
trabalharmos em fábricas tínhamos que nos locomover até outros bairros 
como Brás, Bom Retiro e Mooca”. 
No início do século, as cantinas tiveram além da função gastronômica a 
social, pois o local funcionava como ponto de encontro para longas partidas de 
baralho, bocce, esta última geralmente instalada no fundo de cantinas e 
restaurantes. Nos dias atuais, encontra-se com a mesma intensidade nos clubes 
e associações a presença do carteado e dos jogos amistosos. 
O sangue italiano, sadio e quente, propagou-se por todo o bairro, 
regando-o com sua pujante vitalidade. É um bairro simples, despretensioso, 
descontraído, de fala franca, cantado, com intermináveis reuniões à frente 
das casas e cantinas, com rodas de cadeiras nas calçadas, com mulheres 
alegres comentando as últimas novidades, transformando-se em gazetas 
vivas. Nas ruas 13 de Maio, Conselheiro Ramalho, Major Diogo, as suas 
calçadas transformamse em salas de visita à tardinha ou pela noite adentro, 
como também nas manhãs de domingo. 
A criançada participa das brincadeiras, numa barulheira bem grande 
brincam pelas ruas, a correr, a saltar, algumas jogam futebol pelas vilas e 
becos. 
Os imigrantes completaram o panorama italiano da Pauliceia, dedicando-
se também à arquitetura. Não só desenharam uma paisagem de cunho italiano, 
como também fizeram a atividade obreira. Os calabreses que foram 
comprando seus lotes e quintas nas baixadas do Bexiga projetaram suas 
residências, esses conhecidos capomastri, construtores italianos, que 
desenhavam o sobrado com a ponta do guarda-chuva em terra batida no 
chão. O bairro cresceu em ritmo acelerado. Surgiram as casas geminadas, a 
maioria com três a quatro andares, enriquecidas por sacadas e floreiras e a 
maioria delas com bastante amplitude. 
A arquitetura típica dos italianos foi misturada aos modismos da época. A 
partir de 1914, as ruas iam sendo calçadas e mostrando fachadas 
“compoteiras”, onde traços neoclássicos se misturavam ao barroco colonial, 
formando o decantado “estilo macarrônico”. 
Muitos fazendeiros abastados puderam, com a colaboração de arquitetos 
e empreiteiros italianos, edificar suntuosos palacetes e chalés. 
No Bexiga, dominavam simpáticas mulheres com apertados coletes de 
veludo, lenços de cores vivas na cabeça e argolas de ouro nas orelhas. Faziam-
se notórias as características de prole enorme, fraldas à mostra e panos 
alvejando nas janelas. O calabrês, com seu estilo próprio, de charutinho 
amassado entre os dentes, de correia a tiracolo levando frutas, legumes, 
queijos e peixes, irradiando alegria percorria as ruas do bairro. 
Trabalhando em obras, o italiano construiu e solidificouimóveis; nas 
pequenas fábricas, manejou teares, máquinas de costura, fundindo o aço em 
oficinas, sempre com o acúmulo de energias nas realizações cotidianas. 
Exerceu sempre uma função de mestre: nas oficinas mecânicas, sapatarias, 
chapelarias e alfaiatarias, estiveram sempre presente os meninos aprendendo 
os ofícios. 
 
 
SÉCULO XX: URBANIZAÇÃO, 
HABITAÇÃO E CONTRASTES 
 
Desde os primeiros tempos, as camadas mais abastadas e mais pobres 
coexistiram pacificamente no bairro, separadas por uma invisível fronteira. 
O Morro dos Ingleses, um cenário aristocrático, onde os ingleses em 
momentos de lazer praticavam o golfe. Famílias tradicionais paulistas 
ligadas ao plantio de café em fazendas do interior, como também imigrantes 
que em curto tempo conseguiram fazer fortunas, escolheram o local para 
construírem suas enormes residências. Na atualidade já ocorreu o 
desmoronamento da maioria delas, dando lugar a enormes arranha-céus. 
A parte mais baixa, constituída de ruelas estreitas, lotes compridos e 
terrenos para todas as bolsas :— como anunciavam os jornais de 1878 — 
abrigou as casas dos imigrantes, de gente mais pobre, que aceitavam desbravar 
aquela área, podendo morar mais barato. 
Multiplicaram-se as plantas riscadas no chão, dando origem aos 
casarões de estilo italiano. Brotaram os cortiços, nos quais o próprio 
imigrante, para obter um capital a mais no orçamento, alugava parte dos 
cômodos da casa. 
“No início do século, na baixada do Bexiga, viviam os operários 
italianos que moravam em casas sublocadas; muitos levantavam por volta de 
três, quatro horas da madrugada, para chegar às fábricas. 
Viviam também no Bexiga calabreses que se dedicavam ao comércio: 
cantinas, padarias, sapatarias e chapelarias. 
No alto do Morro dos Ingleses, viviam os fazendeiros de café, que 
acendiam charuto com notas de 500 mil reis.” (Depoimento de José 
Scaramuzza, 30.3.1982, nascido em 1890, filho de italianos e que vive ainda 
no Bexiga) 
A crise econômica de 1929, que determinou o término da monocultura 
cafeeira, provocou o aumento da população e dos bairros operários na cidade 
de São Paulo à medida que provocou o crescimento industrial. A partir de 
1930, o bairro amplia sua multiplicidade de costumes, caracterizando-se por 
uma típica vida noturna, com a presença italiana e suas cantinas, muita 
música, dança, tarantella, serestas, o futebol do bairro, o aparecimento do 
cordão “Vai-Vai”, o acentuado aumento das habitações coletivas, denotando 
miscigenações e a multiplicidade cultural. 
Nessa época, o Bexiga mantinha uma dás maiores densidades 
populacionais da cidade de São Paulo, proporcionada pelas casas de porões 
altos, fachadas bem cuidadas e interior absolutamente confuso, onde se 
instalavam diversas famílias. Os problemas sociais eram contornados pelo 
futebol, músicas, festas populares e muita conversa pelas calçadas. As vilas 
davam uma feição diferente e interessante ao bairro. 
Na década de 40, a vida noturna tomou impulso na noite paulistana, 
onde o footing e o maior interesse pelo teatro ampliou a população flutuante 
que transbordava num espaço limitado entre as Ruas Major Diogo, 
Conselheiro Carrão e 13 de Maio. O footing era feito por moças e rapazes 
que andavam em sentidos opostos, enquanto os velhos italianos, com suas 
cadeiras nas calçadas, colocavam os assuntos em dia, ao mesmo tempo que 
fiscalizavam os jovens. 
O Bexiga, nessa época, atraía artistas, músicos, boêmios, seresteiros e 
teatrólogos como cenário de seu trabalho. Em 1948, com a inauguração do 
TBC na Rua Major Diogo por Franco Zampari, teve início uma nova era na 
vida teatral brasileira, mudando os hábitos da primeira metade do nosso 
século. O teatro ganhou um novo impulso, surgindo inúmeras casas de 
espetáculos e diversas companhias cênicas. A depressão instalada na Europa, 
após a Segunda Grande Guerra, provocou o exílio voluntário de inúmeros 
intelectuais e artistas dispostos a recomeçar nova vida em outros países. 
A partir da primeira metade do nosso século, forma construídos os 
primeiros prédios de apartamentos. No início, de três andares apenas: eles 
comportavam poucas famílias. Depois multiplicaram-se os andares e melhorou 
o nível de acabamento; casas comerciais e jardins deram lugar a novos 
edifícios. O contraste continua aparente. No Morro dos Ingleses e Rua dos 
Franceses, concentraram-se imóveis de luxo, enquanto a Rua Rocha, a 
Almirante Marques Leão e toda a parte baixa, nas proximidades da Praça 14 
Bis, acolhem um casario mais pobre e um considerável número de cortiços. A 
acentuada distinção entre áreas proletárias e aristocráticas é notória na 
década de cinquenta. No Bexiga, a área média de terreno utilizado por 
edificação era de 202 metros quadrados. 
Nessa fase começaram as alterações do velho bairro, finalizando assim 
a tranquilidade de seus moradores: foi a quebra de um império de velhas 
tradições, dando lugar a uma grande especulação imobiliária. A partir de 
1950, o avanço da urbanizaçãoe o progresso da cidade de São Paulo são 
responsáveis pelas mudanças no Bexiga. O cenário foi mudando e muitos 
casarões foram destruídos. O progresso mutilou a tradição e separou amigos. 
Inicialmente foi a construção da ligação Leste/Oeste, destruindo mais de 
mil casas. Depois o Viaduto do Café e o alargamento das Ruas João 
Passalâqua e Rui Barbosa. 
Alguns casarões, que em fins do século passado serviram para abrigar 
os primeiros imigrantes italianos que vieram para São Paulo “tentar a vida” e 
também negros libertos, foram desapropriados para construir ou alargar 
avenidas. 
“A Bela Vista é o bairro mais densamente povoado do mundo. São 
dezenas de quartinhos, acomodados em lote de 4 ou 5 metros de frente e 50 
metros de fundo. Em cada um desses quartinhos moram famílias inteiras. Ê 
uma modalidade de favela, que não dá para ver da rua, e que só agora começa 
a ser denunciada.” (Benedito Lima de Toledo, Jornal da Tarde, 21.5.1969) 
Muitas vezes, os migrantes e pessoas de classes desfavorecidas vão se 
instalando nos restos de construção e nas casas semidestruídas. Os arquitetos 
indicam o bairro como um dos modelos de deterioração urbana. 
‘‘Nas casas chegavam a morar oito famílias de uma só vez para dividir 
o aluguel. A alimentação básica era o macarrão com feijão, de vez em 
quando uma carne. Comíamos o pão caseiro, feito por minha mãe. O vinho 
era importado e custava 60 mil-reis a garrafa”, como comenta Giovanni 
Pinto, nascido no Bexiga, filho de calabrês de Rossano. 
O cenário urbano é fazedor da cultura, no sentido que ele transforma 
uma paisagem natural em paisagem cultural. A mobilidade física ná sociedade 
brasileira é uma característica dominante, a partir do momento que se deslocar 
é mais fácil que lutar contra quem oprime, então a migração humana é 
conotação notória no crescimento e no caráter da vida urbana da cidade de 
São Paulo. 
A corrente migratória agrava o problema habitacional, acarreta o 
crescimento desorganizado da cidade, e a escassez de moradias obriga parte 
da população a viver em aglomerados. Escadas de mármore, floreiras, 
sacadas e imponentes portões de ferro albergam um número considerável de 
pessoas. 
Alguns bairros foram escolhidos como espaços disponíveis para acolher 
em lindos casarões de arquitetura do final do século passado, amontoado 
humano que luta pela moradia e sobrevivência. Existem um palco, uma luta 
e um conjunto de atores, neste desenrolar do cotidiano na cidade de São 
Paulo. 
A estrutura urbana do Bexiga oferece aos habitantes sucessivos 
espaços: casa onde habita, rua em que brincam seus filhos, acesso fácil ao 
trabalho. Nesta paisagem urbana, os personagens integram-se numa 
arquitetura significativa, na qual os únicos elementos vivos são as pessoas 
humanas, porque a área verde não se faz presente. Porém, pela sua 
proximidade com o centro da cidade, é dotado de infra-estrutura, como 
transporte, equipamento e empregos próximos, sendo o cortiço um local 
procurado pela população de baixa renda. 
No início do século o mecanismo do encortiçamento era o seguinte: 
empobrecimento familiar, subdivisão por herança, insuficiência de meios 
para mantê-lo, que levava o proprietário a alugar alguns andares de seu 
casarão, permitindo-lhe na maioria das vezes viver num andar menos 
favorecido e alugar por preço mais alto a parte mais nobre da casa. 
O italiano vivia em alguns cômodos da casa, porém realizava algumas 
de suas potencialidades e anseios, num convívio humano onde predominava 
muito afago, numa integração não apenas de afazeres domésticos, porém 
influenciado pelas mesmas ideias era mobilizado às mesmas esquinas, 
barbearias e cantinas, irradiando uma confraternização social. 
“Naquele tempo, o Bexiga já era o bairro dos cortiços. Num dos quartos 
dormíamos os seis irmãos, era apertado, havia ratos e baratas, mas não 
sentíamos a miséria, éramos no bairro uma grande família, onde todos se 
ajudavam. Nos cortiços havia muitas brigas entre famílias, mas no domingo 
era uma beleza. As famílias trocavam pratos de comida: uma macarronada 
por um prato de sardella, uma pizza cappomarola gopa por uma garrafa de 
vinho giró. Mastantonio era o senhor que subalugava a casa, na Rua Maria 
José, residência onde passei a minha infância. Meu pai era um calabrês, 
sapateiro, e tínhamos uma vida cheia de dificuldades. Pagávamos setenta mil 
reis por mês de aluguel, e num determinado dia, do final do mês, sr. 
Mastantonio passava cantando uma musiquinha, sempre a mesma, e todo 
mundo já sabia que era o momento da cobrança.” (Depoimento de Fioravanti 
Roberto, 19.3.1982, seresteiro do bairro, nascido em 1913). 
Hoje a situação é mais dramática e melancólica; o imóvel é 
transformado em cortiço pelo seu proprietário ou alugado para um 
empresário — na maioria — que toma a si o encargo de subalugá-lo (quarto 
por quarto, cama por cama), obtendo uma renda muito superior à da locação 
de imóvel comercial na área. Este lucro, proveniente da exploração de um 
aglomerado urbano, é tentador, dentro de um cenário terceiro-mundista. O 
cortiço é uma habitação miserável, porém legal e disfarçada. O migrante 
mora provisoriamente na casa, em busca de outro lugar para viver, e não tem 
tempo de fazer ligações afetivas com o imóvel e de cuidar do visual 
arquitetônico. 
Essa deterioração urbana, fenômeno típico de país dependente e 
colonizado, apresenta características próprias e se manifesta sob a forma de 
amontoados espontâneos por toda a América Latina. 
Cortiço, expressão já utilizada no final do século XIX por Aluísio de 
Azevedo, continua uma realidade no contexto social latino-americano, 
variando apenas as denominações — barriadas, villas miséria, calampas — 
porém sempre com o mesmo significado. 
Um dos mais conhecidos núcleos de habitação coletiva, demolido 
recentemente, o “Navio Parado”, situava-se à Rua Santo Amaro, 310, 
abrigava dezenas de casas geminadas, onde inúmeras famílias viviam 
amontoadas num ambiente comum. Entretanto esses habitantes já não eram 
mais italianos, mas sim operários, negros, migrantes e domésticas. 
Nas casas de cômodos da Almirante Marques Leão, nas décadas 
passadas, viviam italianos e seus descendentes, seguidos de mulatos, negros e 
espanhois, pertinentes à mescla étnica do espaço. Na rua impera hoje um 
panorama composto de aglomerados dentro do casario remanescente e em 
alguns dos edifícios que estão agora sendo construídos. 
Na década de 40, num estudo comparativo de bairros de diferentes 
níveis sociais, o Bexiga foi analisado por Donald Pierson, que afirmou ser o 
aluguel máximo encontrado na mostra de 370$ por mês e o mínimo de 35$ e 
a média de 127$. Até sete famílias usavam o mesmo pátio. De doze quintais 
utilizados na mostra, quatro apenas eram particulares, os outros eram 
partilhados até por nove famílias. Cozinhavam a carvão, não havia geladeira 
nas casas e, quanto a sanitários, a maioria não tinha ligação com a moradia. 
Foram encontrados na pesquisa, dormindo no mesmo cômodo com os pais, 
filho de 23 anos, de 16 e de 18, e duas filhas de 15 e 12 anos. Um cunhada 
no mesmo quarto com um casal e dois filhos; com a avó dois netos de 24 e 
25 anos. 
Os moradores, nas décadas de 30 e 40, que habitavam os cortiços do 
Bexiga, usavam o mesmo vaso sanitário, que ficava no fundo do quintal; 
quando durante à noite precisavam fazer uso dele, tanto homens como 
mulheres não circulavam em trajes noturnos, porém vestiam-se para desfilar 
pelas áreas comuns. 
A alimentação era feita nos seus próprios aposentos, alguém só tomava 
refeição no quarto alheio quando convidado, no entanto a refeição era 
idêntica, fazendo parte do cardápio: arroz, banha de porco, feijão e 
macarrão. O feijão tinha sempre o mesmo cheiro e a mesma cor, o prato era 
preparado no próprio quarto, assim como as camas substituíam cadeiras 
quando se ampliava o grupopara fazer refeição. 
A mulher é um elemento que em diversas situações contribuiu com mão-
de-obra, muitas delas trabalhavam mais do que os homens: lavavam roupas 
nos mesmos tanques. Os bairros ao redor dependiam do trabalho das 
lavadeiras do Bexiga, era uma grande profissão. 
O número de cortiços aumentou no ba»rro, num ritmo bem maior do 
que o migratório, evidenciando um empobrecimento efetivo e uma prova 
considerável do baixo padrão habitacional. Temos hoje mais de 250 casas de 
cômodos espalhadas pelo bairro. 
Está ocorrendo também o encortiçamento de alguns edifícios, onde a 
faixa de salário familiar atinge um teto máximo de três salários mínimos 
(valor atual — Cr$ 57.120,00), para a aparente busca de uma maior 
segurança e pelo status representado por viver em um apartamento. 
A migração alimenta uma grande chance para o elemento masculino, 
enquanto as mulheres muitas vezes encontram dificuldades para ingressar na 
estrutura produtiva urbana, por isso muitas delas se integram no espectro dos 
serviços domésticos. Tendo em vista a população feminina dos cortiços, fica 
claro que sua mão-de-obra se dedica com bastante frequência às atividades 
domésticas, remuneradas ou não. Ficam em casa nos seus afazeres, cuidando 
dos filhos, ou trabalham em casas de família, desempenhando serviços de 
cozinheira, faxineira e lavadeira. Muitas porém são operárias e enfrentam o 
problema da dificuldade de “com quem deixar os filhos’’, que, na maioria 
das vezes, permanecem trancados dentro das casas. 
Quando se transformam em empregadas domésticas têm de incorporar 
novos padrões, especialmente quando trabalham para famílias de classe 
média ou alta. No caso de realizar trabalhos domésticos caseiros ou para a 
própria classe trabalhadora, as necessidades de ressocialização são menores. 
Ainda é flagrante a mulher permanecer adstrita às prendas domésticas. 
Como observa Pantoja, esse crescimento atual dos aglomerados 
humanos na cidade de São Paulo é resultado não apenas do êxodo rural, mas 
também do empobrecimento progressivo das populações urbanas; situação 
consequente da incapacidade da estrutura agrária para reter os trabalhadores 
no campo e incapacidade da estrutura urbana para incorporar 
economicamente contingentes populacionais cada vez maiores. 
As camadas populacionais, denominadas populações de baixa renda, 
encontram dificuldades de inserção no processo produtivo, instalando-se em 
habitações precárias que são reflexos da sua capacidade aquisitiva. Essa 
realidade habitacional reflete as suas reais condições de sobrevivência e não 
as aspirações populacionais. A característica fundamental é a ocupação 
“desordenada” de casarões enormes, denotando a impossibilidade de 
inclusão, no orçamento, de onerosos gastos com habitação. 
A cultura popular fornece aos seres humanos um plano de vida e um 
conjunto de soluções para sua realidade, de caráter profundamente 
adaptativo. 
Os cortiços atuais do Bexiga, em contraste com os da década de 40 
citados por Pierson, deixam nítida a existência de bens industrializados 
modernos, como geladeira, televisão e vitrola. No interior da habitação a 
quantidade de pessoas que vive ali varia de acordo com a quantidade de 
cômodos da edificação, cujo aluguel oscila de vinte mil a quarenta mil 
cruzeiros, dependendo da localização do cômodo na casa. 
Pelos corredores ou pelas sacadas, percebe-se claramente, pelo volume 
grande de roupas penduradas nos varais, a quantidade de pessoas que 
residem na casa. Encontra-se no cenário objetos usados, latas, pedaços de 
madeiras, baldes de uso de tanque, móveis abandonados, etc., que se 
amontam pelos cantos e corredores dos imensos sobrados. 
Intemamente existe alguma preocupação de estética, sobretudo na sala 
principal, onde são recebidas as visitas. A área costuma ser limitada pelo 
número de moradores e tem-se a impressão de atulhamento, pois as camas, 
muitas vezes, acabam ocupando papel de destaque na sala. 
Existem casos em que habita na mesma moradia uma grande família, 
composta de cunhados, irmãos, sobrinhos e filhos. Exemplo desse estilo de 
habitação é uma edificação do bairro onde vive uma família nordestina, que 
veio “tentar a vida” em São Paulo. Inicialmente vieram os homens, com o 
objetivo de pesquisar o mercado de trabalho, moradia, e posteriormente 
chegaram as mulheres e crianças. É uma* concepção antropológica do lar 
ampliado e coletivo, uma versão urbana da coletividade indígena. A 
habitação é o meio utilizado pela família ou grupo para atingir um mesmo 
fim. 
O homem civilizado possuidor de um determinado status social tende a 
restringir o seu espaço, enquanto o homem tribal livremente se projeta para 
abarcar o universo. Tanto para o homem tribal como para o encortiçado, a 
moradia reflete sua posição no seu ambiente cósmico. 
O mais comum é viver uma família por cômodo da casa. Existem casos 
de agrupamentos específicos de homens ou de mulheres. Os mais graves 
problemas habitacionais estão localizados nas Ruas Abolição, Japurá, Com. 
Ramalho, Santo Antônio e Almirante Marques Leão. 
A cooperação e auxílios mútuos nas relações da comunidade são 
bastante irrelevantes nos contatos sociais dos grandes centros urbanos. A 
ideia de rodízios, dos mutirões, das compras coletivas de alimentos são 
iniciativas que ajudariam a amenizar os encargos diários. 
O Bexiga hoje já perde o caráter residencial para ganhar as feições de 
área central, pois está geograficamente comprimido entre o centro da cidade 
e o novo centro que é a Avenida Paulista. 
Apesar de toda esta crescente deterioração, o Bexiga resiste, consegue 
ainda ser poético, simpático e humano. Ao lado das pequenas estruturas de 
concreto sobrevivem pequenas ruas e algumas casas antigas. Geralmente vê- 
se um portão e um estreito corredor; olhando não dá para visualizar que lá 
dentro existe uma área enorme, cheia de casas: são as vilas. 
Muitos dos velhos moradores se foram, mas o vinho, a música e a 
boêmia continuam presentes, a paisagem urbana deste antigo bairro atrai 
personagens quer seja em busca de uma moradia para abrigar-se, ou à 
procura de um ambiente para lazer e terapia nas atraentes noites paulistanas. 
Ao pensarmos o problema habitacional, fica uma epígrafe de Jorge 
Wilheim: “Os espaços são povoados por gente, não apenas na condição de 
cidadãos sensíveis a uma paisagem, mas sim, na condição de atores no palco, 
de agentes socialmente vinculados e que constantemente interagem e 
transformam a cidade, seja em sua própria realidade física, através de 
reciclagem de uso de um mesmo espaço, seja nos sistemas de vida que 
justificam a sua existência”. 
 
 
 
UM BAIRRO COM RESQUÍCIOS DE 
PROFISSÕES ARTES ANAIS 
0 universo Bexiga situa-se num meio urbano, numa sociedade 
complexa, constituído de uma série de características heterogêneas, porém, 
com experiências básicas comuns. Chamo a atenção do leitor para a presença 
de uma vida descontraída pertinente ao ritmo diário do calabrês e dos seus 
descendentes: a inexistência de grandes indústrias ocasionou uma opção pelo 
trabalho privado, levando o morador a ter um modo de viver desvinculado 
de patrões e de horários rígidos, caracterizando o bairro por profissões 
artesanais. 
A produção artesanal funciona a contento, visto que ela possibilita a 
transmissão do conhecimento de uma arte às novas gerações, e fica portanto 
comprovada a necessidade da perpetuação das atividades artesanais 
garantindo a preservação de determinadas criações artísticas que refletem as 
condições tanto materiais como existenciais do contingente social que 
compõe o fulcro dinâmico do bairro. 
O hábito de beber vinho e comer pão e sardelia é implícito à vida do 
imigrante no Novo Mundo, que uma vez inserido, num processo de 
aculturação, registrou suas marcas. A pizza napolitana foi integrada ao 
roteiro alimentício do paulistanopor volta de 1910, quando os proprietários 
das cantinas anunciavam o tagliatelle, o fuzzilli e os inúmeros outros 
suculentos pratos que foram incorporados aos nossos cardápios. 
No Bexiga, a instalação de cantinas é um episódio tão antigo quanto a 
sua história. Os italianos, uma vez instalados, objetivando à sua adaptação, 
utilizaram recursos inatos de sua personalidade, tais como boa amizade, 
temperamento alegre, e os requintados pratos vieram reforçar os laços 
sociais e aprofundar o seu entrosamento ao novo meio. 
Por volta de 1907, Francesco Capuano recebia amigos em sua casa, onde 
jogavam carteado, bebericavam um bom vinho acompanhado de um 
saboroso provolone. A instalação de sua cantina na Rua Major Diogo foi o 
resultado de um processo espontâneo e natural: Capuano acabou colocando 
mesas e cadeiras em sua sala para atender os conterrâneos. De início os 
clientes traziam o pão de casa e debruçavam-se ao jogo de “morra”, “três 
sete”, “bisca”, sempre regado a vinho. Com o aumento contínuo dos 
frequentadores, Capuano passou a servir refeições feitas com a arte italiana, 
onde os molhos destinados às macarronadas e pizzas eram feitos logo pela 
manhã, seguindo as normas das cantinas da Península. Esta técnica perdurou 
ao longo dos tempos e os mesmos cuidados artesanais no preparo das 
refeições inseriu-se no contexto gastronômico do bairro, no qual cantinas e 
pizzarias apresentam a mesma assiduidade no preparo de seus pratos. O 
forno a lenha, o autêntico molho de tomate e a técnica na seleção de queijos 
são requisitos básicos nos serviços das casas. 
Âs padarias mais famosas, inauguradas na segunda década do nosso 
século, subsistem, nas mesmas instalações, pertencendo às mesmas famílias 
e mantendo as mesmas tradições. Relata Domingos Laurenti: “Quando eu 
era moço, aqui havia muita serenata, eu saía de madrugada para entregar 
pães e encontrava os colegas ainda cantando pelas ruas”. 
Os temas de estudo neste capítulo variam segundo cada abordagem a 
ser estudada, porém há sempre um ponto comum que é o padrão de 
comportamento das técnicas artesanais nas atividades profissionais. 
O artesão na sociedade contemporânea tem um relevante significado 
pela referência humana de estilo de vida. Beleza, poesia e liberdade são os 
fatores que evidenciam o artesanato. A contribuição humana, para ser 
dimensionada, não pode ser mensurada no quantitativo, mas sim no 
qualitativo, pela colaboração que é atribuída à comunidade. 
Os alfaiates do Bexiga foram considerados os grandes mestres, e todos 
eles recebiam os meninos aprendizes, que vinham inclusive de outros bairros 
para assimilar a bela profissão. Havia também as costureiras famosas, que 
faziam os vestidos de casamento e roupas para os grandes eventos, mas a 
maioria delas já era especialista em reformas de roupas usadas. Destacavam- 
se também as lavadeiras, uma das mais frequentes profissões da mulher, 
atividade que geralmente era realizada em casa mesmo. Hoje, devido à 
poluição proliferada pelo ar e pela falta de espaço nos quintais coletivos, é 
impossível manter a atividade profissional das lavadeiras. 
O conserto e reforma de roupas são uma especialidade que evoluiu nas 
pequenas oficinas. Ê muito comum calça de adultos transformar-se em 
bermuda de criança. A saia rodada em desuso da mãe converter-se em 
minivestidos, satisfazendo a extensa progénie. 
No começo do século, muitos italianos transformaram-se em 
vendedores ambulantes — desfilando pelas ruas com cestas repletas de 
queijos, cebolas, alhos e batatas — oferecendo sua mercadoria aos 
moradores de casa em casa. Nesse itinerário paravam para expor suas 
histórias e contos, ouvir comadres e brincar com crianças. Era comum 
durante seu trabalho cantarem árias de óperas, como La donna e mobile, e 
muitas músicas populares italianas. 
A ideia de vender os produtos “a granel” em vendinhas é uma realidade 
nas experiências do cotidiano da área. É comum personagens em pequenas 
lojas vendendo os mais diversos tipos de mercadorias, onde afloram 
vassouras, lataria, feijão, sabão e objetos de toucador. Mesmo em plena era 
dos supermercados sobrevivem, em condições privilegiadas para operar um 
tipo de comércio, os “bazares de armarinhos”, que vendem linhas, botões, 
meias e camisetas a um preço razoável, que dão soluções aos problemas 
imediatos e respondem às inesperadas festas de aniversários. 
Nas horas matinais, veem-se pessoas circulando, fazendo suas primeiras 
compras, trabalhadores tomando seu café em balcões de padarias, donas- 
decasa realizando suas compras em quitandas e açougues, enquanto outras 
conduzem seus filhos à escola. 
As sapatarias de consertos rápidos e pequenas fábricas de calçados 
coexistem no bairro, assinalando o requintado trabalho de artesão no gosto, 
na arte e no acúmulo de energias, nas realizações do dia-a-dia. Pequenas 
vitrinas exibem riquíssimos calçados confeccionados a mão, com as mesmas 
técnicas italianas. 
As sapatarias e alfaiatarias partilham o mercado, não apenas atendendo 
nas suas imediatas tarefas, mas propiciando a dinamização do circuito de 
notícias entre amigos, certificando amizades de um elevado contingente 
afetivo. Sapateiros e alfaiates nas décadas passadas eram dotados de uma 
mentalidade expansiva, onde a música e o canto eram cultivados, 
propiciando o afluxo de seresteiros nas suas instalações. 
Os sapateiros trabalhavam sempre cantando, apenas interrompiam suas 
canções no momento de atender amigos que surgiam com dupla finalidade, 
pôr meia-sola no calçado ou tendo por fim um encontro social, atualizador 
de notícias. 
Era comum instrumentos musicais estarem inseridos nas barbearias, dos 
quais faziam uso elementos que aguardavam sua vez para serem atendidos. 
Estantes de livros instaladas em alfaiatarias eram frequentes, onde as 
gazetas vivas permutavam livros e discutiam posições ideológicas. 
O atendimento dos serviços seguia um ritual lento, pois tudo sempre era 
feito com muita calma; as “provas” de praxe nas alfaiatarias seguiam um 
cerimonial todo especial, onde misturavam-se dialetos e músicas ítalo- 
brasileiras. 
A riqueza dessas atividades artesanais está globalizada na autonomia do 
exercício da atividade profissional, na ausência de grandes estruturas e de 
equipamentos modernos que evidenciam a indústria contemporânea. 
Dentre as poucas indústrias instaladas no Bexiga, temos a Indústria de 
Calçados Scatamacchia e a Fábrica de Doces Bela Vista, esta última fundada 
em 1910, que foi pioneira em São Paulo na produção industrial de doces 
caseiros. Entretanto estas fábricas permaneceram pouco tempo no cenário do 
bairro. 
Encontramos hoje algumas lojas de roupas, como existem em outros 
bairros, mas as de “quinquilharias” são mais frequentes. Nos mercados de 
troca, deparamos com peças de arte, de antiquário, bonecas antigas e roupas 
usadas. 
As oficinas de “consertos em geral” são típicas na área, onde os 
técnicos parecem mais engenheiros do que mecânicos. Aí consertam-se 
carros, bicicletas, máquinas de costura, aspiradores, liquidificadores e ferros 
elétricos. 
Dos comerciantes ambulantes ainda sobrevivem o amolador de facas, o 
homem que conserta panelas de alumínio. Fazem sua via-sacra de tempos 
em tempos, contando estórias e brincando com a criançada. 
Hoje sabemos da destruição das culturas humanas e do ambiente 
ecológico, em consequência da falta de visão da importância cultural na qual 
utilizam-se recursos tecnológicos indiscriminados, sem avaliar a importância 
de salvaguardar o homem com seus resquícios naturais. 
Enfim, a realidade Bexiga é muito mais rica do que aquela que está 
incorporada na linguagem dos fatos; para senti-la, é necessário vivenciá-la. 
 
 
 
 
 
FESTEJOS POPULARES COMO 
FORMA DE EXPRESSÃO 
CULTURAL 
 
As culturas humanas e sobrevivências populares dimensionam-se 
integradas à vida de um

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