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Impactos da difusão da inteligência artificial (IA) na educação técnica de nível médio Impactos da difusão da inteligência artificial (IA) na educação técnica de nível médio Caruso, Luis Antonio Cruz Impactos da difusão da inteligência artificial na educação técnica de nível médio / Luis Antonio Cruz Caruso. – Brasília : UNESCO, 2021. 75 p., il. Incl. bibl. ISBN: 978-65-86603-01-9 1. Inteligência artificial 2. Tecnologia educacional 3. Sistema educacional 4. Brasil I. UNESCO II. Título CDD 370 Esclarecimento: a UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se, nesta publicação, os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam escritos no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino. Publicado em 2021 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 7, place de Fontenoy, 75352 Paris 07 SP, França, e Representação da UNESCO da UNESCO no Basil, em cooperação com o Ministério da Educação. © UNESCO 2021 Esta publicação está disponível em acesso livre ao abrigo da licença Atribuição-Partilha 3.0 IGO (CC-BY-SA 3.0 IGO) (http://creativecommons.org/ licenses/by-sa/3.0/igo/). Ao utilizar o conteúdo da presente publicação, os usuários aceitam os termos de uso do Repositório UNESCO de acesso livre (www.unesco.org/open-access/terms-use-ccbysa-port). As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites. As ideias e opiniões expressas nesta publicação são as dos autores e não refletem obrigatoriamente as da UNESCO nem comprometem a Organização. Coordenação técnica da Representação da UNESCO no Brasil: Marlova Jovchelovitch Noleto, diretora e representante Maria Rebeca Otero Gomes, coordenadora do Setor de Educação Revisão técnica: Setor de Educação da Representação da UNESCO no Brasil Revisão gramatical e ortográfica: Marina Mendes Revisão editorial e diagramação: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil Foto da capa: © World Bank-Charlotte Kesl Projeto gráfico: UNESCO Setor de Educação da UNESCO A educação é a prioridade número 1 da UNESCO, porque se trata de um direito humano básico e é o alicerce para a construção da paz e a impulsão do desenvolvimento sustentável. A UNESCO é a agência especializada das Nações Unidas para a educação, e seu Setor de Educação assume liderança global e regional em educação, fortalece sistemas educacionais nacionais e responde a desafios globais contemporâneos por meio da educação com foco especial na igualdade de gênero e na África. Agenda Mundial da Educação 2030 A UNESCO, no papel de agência especializada das Nações Unidas para a educação, está encarregada de liderar e coordenar a Agenda 2030 para a Educação, a qual faz parte de um movimento global para erradicar a pobreza por meio de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030. A educação, essencial para o cumprimento de todos esses objetivos, tem seu próprio ODS, o de número 4, que visa a “assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos”. O Marco de Ação da Educação 2030 fornece orientações para a implementação desses ambiciosos objetivos e compromissos. Listas Lista de tabelas Tabela 1: Áreas ocupacionais selecionadas ..................................................................................................................................26 Tabela 2: Estrutura das CBO 1982, 1994 e 2002 ...........................................................................................................................28 Tabela 3: Estrutura das atividades ocupacionais por nível de qualificação, nos anos de 1982 e 2002 ...................39 Tabela 4: Proporção de atividades ocupacionais, por natureza e gênero, para as ocupações técnicas de nível médio e para o total de ocupações ......................................................................40 Tabela 5: Ocupações exercidas por homens e mulheres em 2018 (quinze ocupações com maior quantidade de vínculos) ......................................................................................41 Tabela 6: Estimativa, para 2030, da estrutura das atividades ocupacionais ......................................................................42 Tabela 7: Estimativa, para 2030, das atividades ocupacionais no padrão de difusão restrita ....................................46 Tabela 8: Impacto nas ocupações dos técnicos em função da difusão de IA: padrão de difusão restrita .............46 Tabela 9: Impacto, por gênero, nas ocupações dos técnicos em função da difusão de IA: padrão de difusão restrita ...............................................................................................46 Tabela 10: Estimativa, para 2030, das atividades ocupacionais no padrão de difusão ampla ......................................47 Tabela 11: Impacto nas ocupações dos técnicos em função da difusão de IA: padrão de difusão ampla ...............48 Tabela 12: Impacto, por gênero, nas ocupações dos técnicos em função da difusão de IA: padrão de difusão ampla .........................................................................................48 Tabela 13: Ocupações impactadas, pertencentes a grupos ocupacionais com indicação para redução de oferta de cursos técnicos: padrão de difusão restrita ...........................................................51 Tabela 14: Ocupações impactadas, pertencentes a grupos ocupacionais com indicação para redução de oferta de cursos técnicos: padrão de difusão ampla ............................................................52 Lista de gráficos Gráfico 1: Representação estilizada e ilustrativa do comportamento das atividades rotineiras e não rotineiras, de natureza manual e cognitiva, de 1900 a 2010 ...............................................16 Gráfico 2: Mudanças esperadas nas atividades ocupacionais decorrentes da difusão da IA ......................................19 Lista de figuras Figura 1: Mudanças nas atividades ocupacionais e nas ocupações e impactos na educação profissional em função da difusão da IA ....................................................................12 Figura 2: Ciclo histórico de codificação de conhecimentos tácitos .....................................................................................17 Figura 3: Novo ciclo de codificação de conhecimentos tácitos ............................................................................................19 Lista de boxes Box 1: Transformações na ocupação de torneiro mecânico .............................................................................................14 Box 2: O analista simbólico ............................................................................................................................................................15 impactos nas atividades ocupacionais e na educação profissional técnica. Em sua estrutura, o livro contempla questões conceituais e metodológicas, identifica soluções tecnológicas de IA, examina os impactos de sua difusão e apresenta considerações e ponderações com pertinência e equilíbrio. O estudo tem o mérito de contextualizar os efeitos da IA, principalmente no que diz respeito aos impactos no cenário brasileiro, caracterizado por múltiplas desigualdades sociais, inclusive de gênero, bem como no que se refere a questões éticas e morais implícitas. Como salienta o autor na introdução, a utilização e o desenvolvimento de uma tecnologia são condicionados porinúmeros fatores de natureza econômica, cultural e social, atingindo trabalhadores, empresas e a sociedade em geral de maneira diferenciada do que foi inicialmente concebido pelos desenvolvedores da tecnologia. Em outras palavras, o contexto de aplicação das inovações tecnológicas condiciona e diferencia seus efeitos, sobretudo em países de acentuadas desigualdades como as que se verificam no Brasil, potencializadas atualmente pela pandemia do coronavírus, que subtrai vidas e empregos, estreita ou até fecha horizontes de perspectivas e agrava o quadro social existente. Conforme salienta Caruso, a opção do estudo, que recaiu no ensino médio técnico, foi realizada em virtude das alterações profundas da IA nesse grupo ocupacional e devido às mudanças estruturais previstas pela reforma do ensino médio, aprovada no final de 2017. Além disso, a escolha de um setor da educação é importante, face ao impacto da IA que já se mostra à vista nas políticas educacionais em sentido mais amplo. É importante salientar que a IA constitui uma das formas mais radicais de inovação tecnológica, com profundas implicações nas atividades humanas e, portanto, na educação, que constitui uma atividade radicalmente humana. A escola é o local em que crianças e jovens projetam seu futuro e almejam, um dia, exercer atividades significativas nos planos individual e social. Segundo o autor, especificamente no campo educacional, são esperadas aplicações como sistemas tutoriais inteligentes, robótica educacional inteligente e processamento de linguagem natural, que tendem a facilitar a interação e o aprendizado dos estudantes, reconhecendo as dificuldades de aprendizagem em um determinado assunto e elaborando conteúdos educacionais por meio de linguagem e formato, por exemplo, adequados para cada estudante em particular. Como informa o autor, citando fonte do Laboratório do Futuro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), até o ano de 2040, a automação ameaçará mais da metade dos empregos em todos os municípios brasileiros. Essa previsão, que certamente decorre do acelerado ritmo dos avanços da IA, afetará todo o processo Prefácio Inteligência artificial e educação: mudanças à vista Entre as marcas históricas da UNESCO que pautaram e continuam a pautar a sua trajetória, destacam-se a construção de valores civilizacionais, as mudanças cidadãs e a antecipação de tendências. Como os extraordinários e incessantes avanços do conhecimento teórico e suas inúmeras aplicações em vários setores das atividades humanas estão no centro das causas de tantas transformações paradigmáticas que caracterizam os tempos modernos, essa agência das Nações Unidas sempre se manteve atenta ao impacto de tais avanços nas instituições e no desenvolvimento humano. Estas são mudanças que não impactam somente os processos produtivos que se vinculam ao mercado, mas também a vida das pessoas e o rumo das sociedades. Por intermédio de estudos, pesquisas e conferências mundiais, e com o apoio de seus institutos e escritórios localizados em todos os continentes, a UNESCO procura examinar, prospectar e discutir as implicações humanas das conquistas da ciência e da tecnologia. Foi assim, por exemplo, na conferência que promoveu em Budapeste, no ano 2000, sobre os usos éticos do conhecimento científico, oportunidade em que, na Declaração Mundial resultante do evento, chamou-se atenção para a dimensão moral e ética de sua disseminação e aplicação prática. Isso porque o enorme acervo de conhecimentos e saberes disponíveis e continuamente renovados e ampliados não deveriam ser utilizados para fins não éticos, como o que ocorre na atualidade, com a ciência sendo colocada a serviço da degradação planetária. O mesmo ocorreu na Declaração de Incheon, na Coreia do Sul, oportunidade em que se procurou fortalecer e conferir novo impulso às metas de educação sustentável para todos, como condição imperativa para a redução das desigualdades e a paz com a natureza. Em que pese esse quadro de adversidades que caracteriza o cenário atual de notáveis desenvolvimentos da ciência e da tecnologia, por um lado, e, por outro, o acirramento das desigualdades, decorrentes em boa parte de lutas geopolíticas por poder e mercados, a UNESCO segue a sua história de enfrentamentos e lutas por cenários sociais de equidade e igualdade. Assim, o livro que ora se publica, “Impactos da difusão da inteligência artificial na educação técnica de nível médio”, de autoria de Luiz Antônio Cruz Caruso, tem o objetivo de examinar as mudanças que estão à vista pela introdução dessa tecnologia na gestão de escolas de educação técnica. Como afirma o autor, considerando-se as ocupações técnicas de nível médio, o estudo tem o propósito, entre outros, de identificar atividades ocupacionais que poderão reduzir, aumentar ou se manter inalteradas, bem como as que poderão surgir ou desaparecer nos próximos anos. Para tanto, o estudo estabeleceu uma metodologia para inventariar padrões de difusão da inteligência artificial (IA), seguindo-se à avaliação de seus Prefácio educacional em sua missão precípua de preparar e formar pessoas para o exercício da cidadania e para as diversas demandas do desenvolvimento social e econômico. Destaca-se que, no padrão de difusão mais ampla, o impacto no volume de emprego é ainda maior. Ademais, a automação reduz postos de trabalho – em que pesem estimativas mais otimistas, como chamou atenção Kai-Fu Lee (2019)1, um dos expoentes da IA –, além de ocasionar a perda direta de empregos. Assim, essa nova tecnologia exacerbará a desigualdade econômica global. Ao dar aos robôs o poder de visão e a capacidade de se mover de forma autônoma, a IA revolucionará as indústrias do terceiro mundo, podendo suprimir os degraus inferiores na escada do desenvolvimento econômico e dificultando aos países pobres a oportunidade de iniciar o crescimento econômico. Além do impacto econômico, há um outro aspecto que certamente se sobressai como um desafio sem precedentes. Na evolução do desenvolvimento humano, o trabalho sempre despontou como um dos fatores centrais na luta por uma vida melhor, na busca das pessoas por uma autorrealização mais plena. As históricas lutas dos trabalhadores por condições e trabalhos decentes mostram isso. Na medida em que tecnologias como a IA colocam em risco a possibilidade de conquista de um emprego, o trabalho, um dos mais fundamentais valores humanos, se fragiliza. A renda universal, que se apresenta como solução possível, poderá ser apenas paliativa. De acordo com o estudo, os impactos no ensino técnico de nível médio estão relacionados precipuamente à velocidade e à direção da difusão da IA, sendo que as respostas das instituições de formação profissional, no que diz respeito ao preparo de quadros técnicos e à requalificação dos profissionais deslocados, poderão depender dos padrões de difusão restrita, com base na aquisição de soluções de IA, ou ampla, apoiada no desenvolvimento de sistemas ciberfísicos. No padrão de difusão restrita, tenderá a ocorrer uma redução de atividades ocupacionais de natureza cognitiva e rotineira, e no padrão de difusão ampla, acrescentam-se aos impactos a redução de atividades rotineiras e não rotineiras. 1 LEE, Kai-Fu. Inteligência artificial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos comunicamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. 2 WULF, Christoph. Educação para o desenvolvimento sustentado no Antropoceno: mimese, rituais e gestos. Berlim, 2019. (mimeo). Entre as virtudes deste estudo, registre-se ainda as entrevistas em profundidade realizadas com diversos profissionais da área, com o objetivo de colher subsídios e ponderações diante da complexidade da IA em seus diversos campos de aplicação e, em especial, na educação profissional. Daí a importância deste livro, que, ao examinar o impacto da IA na gestão de escolas formadoras de técnicos de nível médio, também colocaem evidência a necessidade de estudos sobre a filosofia e as políticas de educação, sobretudo na perspectiva imaginada por Kai-Fu Lee (2019), de construção de um projeto para a coexistência entre os seres humanos e a IA, com vistas a forjar uma nova sinergia entre a própria IA e o coração humano. Esse pesquisador destaca que a construção de sociedades que prosperem na era da IA exigirá mudanças substanciais na economia, na cultura e nos valores humanos: “Se entendida e aproveitada adequadamente, pode na verdade nos ajudar a gerar valor econômico e prosperidade em uma escala nunca vista na história da humanidade” (Lee, 2019, p. 269). A rigor, somente por esse caminho será possível aproveitar e direcionar a tecnologia da IA para fins públicos do bem comum e do desenvolvimento sustentado. No caso da educação, o impacto da IA no agravamento das desigualdades sociais torna ainda mais urgente a sua importância, devendo ser elevada ao status de política de Estado, de modo a assegurar uma progressiva educação de qualidade para todas as crianças e todos os jovens e, com essa estratégia, atenuar o fosso das diferenças entre pessoas e regiões. Por último, como alertou Christoph Wulf (2021)2, da Universidade de Berlim, em um contexto de lutas por melhores modelos de desenvolvimento, faz parte da educação, de sua condição no processo do ser humano, ocupar-se do debate sobre questões desafiadoras da sustentabilidade, pois a Educação para o Desenvolvimento Sustentável é a expressão da preocupação com o futuro do planeta e das sociedades que o habitam. Prefácio Marlova Jovchelovitch Noleto Diretora e representante da UNESCO no Brasil Índice Sumário 1. Introdução ............................................................................................................9 1.1. Objetivo .........................................................................................................................................................................................12 2. Aspectos conceituais ..........................................................................................13 2.1. Breve histórico das mudanças ocupacionais ...................................................................................................................14 2.2. Ciclo de codificação de conhecimentos tácitos ...............................................................................................................16 2.3. Aprendizagem individual e organizacional ......................................................................................................................17 2.4. Novo ciclo de codificação de conhecimentos tácitos ...................................................................................................18 2.5. Aprendizado de máquina ........................................................................................................................................................20 3. Procedimentos metodológicos .........................................................................22 3.1. Procedimentos metodológicos da abordagem qualitativa ........................................................................................24 3.1.1. Soluções tecnológicas em IA ......................................................................................................................................24 3.1.2. Difusão tecnológica de IA (próximos 10 anos) .....................................................................................................25 3.1.3. Impactos nas atividades ocupacionais ...................................................................................................................25 3.1.4. Impactos na educação profissional técnica de nível médio ...........................................................................25 3.1.5. Setores de atividade econômica ...............................................................................................................................25 3.1.6. Grupos ocupacionais .....................................................................................................................................................26 3.2. Procedimentos metodológicos utilizados na abordagem quantitativa ................................................................26 3.2.1. Descrição dos procedimentos metodológicos ....................................................................................................26 4. Tecnologias de inteligência artificial selecionadas ..........................................31 4.1. Serviços intensivos em conhecimento ...............................................................................................................................32 4.2. Manufatura ...................................................................................................................................................................................32 4.3. Educação .......................................................................................................................................................................................32 4.4. Saúde ..............................................................................................................................................................................................33 5. Estimativa da difusão da inteligência artificial ................................................34 5.1. Fatores condicionantes da difusão de IA ...........................................................................................................................35 5.1.1. Fatores que dificultam a difusão de IA ....................................................................................................................35 5.1.2. Fatores que facilitam a difusão de IA .......................................................................................................................35 5.2. Difusão esperada de tecnologias de IA (próximos 10 anos) .......................................................................................36 5.2.1. Serviços intensivos em conhecimento ...................................................................................................................36 5.2.2. Manufatura ........................................................................................................................................................................36 5.2.3. Educação ............................................................................................................................................................................36 5.2.4. Saúde ..................................................................................................................................................................................36 7 Índice 5.3. Identificação de padrões de difusão .................................................................................................................................... 36 5.3.1. Padrão de difusão restrita ............................................................................................................................................. 37 5.3.2. Padrão de difusão ampla .............................................................................................................................................. 37 6. Mudanças quantitativas na estrutura das atividades ocupacionais ...............38 6.1. Mudanças na estrutura das atividades ocupacionais entre 1982 e 2002 ............................................................... 39 6.2. Estrutura das atividades ocupacionais por gênero ......................................................................................................... 40 6.3. Procedimentos para estimar mudanças na estrutura das atividades em 2030 .................................................... 41 6.4. Impactos na estrutura de atividades dos técnicos: estimativa para 2030.............................................................. 41 7. Impactos qualitativos nas atividades ocupacionais .........................................43 7.1. Fatores condicionantes dos impactos nas atividades ocupacionais ........................................................................ 44 7.1.1. Forma de utilização da IA: complementaridade e substituição...................................................................... 44 7.1.2. Interlocução de fornecedores de soluções de IA com empresas usuárias ................................................. 45 7.2. Impactos nas atividades ocupacionais: padrão de difusão restrita .......................................................................... 45 7.2.1. Estimativa de mudanças nas atividades ocupacionais: padrão de difusão restrita ................................. 45 7.2.2. Impactos quantitativos por gênero: padrão de difusão restrita ..................................................................... 46 7.2.3. Efeitos compensatórios no emprego: padrão de difusão restrita .................................................................. 46 7.3. Impactos nas atividades ocupacionais: padrão de difusão ampla ............................................................................ 47 7.3.1. Estimativa de mudanças nas atividades ocupacionais: padrão de difusão ampla .................................. 47 7.3.2. Impactos quantitativos por gênero: padrão de difusão ampla ...................................................................... 48 7.3.3. Efeito compensatório no emprego: padrão de difusão ampla ....................................................................... 48 8. Recomendações para a educação profissional .................................................49 8.1. Recomendações gerais ............................................................................................................................................................. 50 8.2. Recomendações para a educação profissional: padrão de difusão restrita ........................................................... 50 8.2.1. Formação de novos perfis profissionais .................................................................................................................. 50 8.2.2. Requalificação de técnicos deslocados pela difusão de IA............................................................................... 50 8.2.3. Restringir a oferta de cursos técnicos que vêm apresentando desequilíbrios.......................................... 50 8.3. Recomendações para a educação profissional: padrão de difusão ampla ............................................................ 51 8.3.1. Formação de novos perfis profissionais .................................................................................................................. 51 8.3.2. Requalificação de profissionais deslocados pela difusão de IA ...................................................................... 51 8.3.3. Restringir a oferta de cursos técnicos que vêm apresentando desequilíbrios.......................................... 52 9. Considerações finais ............................................................................................53 Referências bibliográficas ......................................................................................56 Anexos .....................................................................................................................59 Anexo 1: Relação de especialistas ............................................................................................................................................ 60 Anexo 2: Relação de verbos das atividades da CBO .......................................................................................................... 62 Anexo 3: Probabilidades de distribuição das palavras por natureza de atividade ocupacional ....................... 64 Anexo 4: Lista de palavras utilizadas para classificar as atividades cognitivas interativas .................................. 70 Anexo 5: Relação de tecnologias de IA selecionadas ........................................................................................................ 70 Anexo 6: Atividades ocupacionais selecionadas para entrevista ................................................................................. 74 Anexo 7: Lista de ocupações impactadas no padrão de difusão restrita................................................................... 76 Anexo 8: Lista de ocupações impactadas no padrão de difusão ampla .................................................................... 77 8 © h tt ps :// 1d ay re vi ew .c om / C C BY 2 .0 1 Introdução 1. Introdução Atualmente, encontramo-nos na fase de introdução da difusão da inteligência artificial (IA), e o seu campo de aplicações permanece em aberto, uma vez que, teoricamente, as novas tecnologias de IA podem ser utilizadas por todas as áreas. Ainda assim, como a tecnologia não é um fator isolado da sociedade, não estão predeterminados todos os benefícios e consequências que esta pode trazer antes de sua aplicação efetiva. Ao invés, o desenvolvimento e uso de uma tecnologia são condicionados por inúmeros fatores de natureza econômica, cultural e social, de forma que atingem trabalhadores, empresas e a sociedade em geral, de maneira diferenciada do que foi inicialmente concebido pelos desenvolvedores da tecnologia. Seja no desenvolvimento de algoritmos ou na utilização de soluções de IA, estarão presentes tanto questões éticas como questões que podem reforçar ou reduzir desigualdades sociais existentes. Questões de ordem ética são levantadas por instituições nacionais e internacionais, como a UNESCO no “Consenso de Beijing”. O Consenso surgiu no ano de 2019 em Beijing, a partir da organização, pela UNESCO, da Conferência Internacional sobre Inteligência Artificial (IA) e Educação, evento que contou com a participação de 50 ministros e vice-ministros de governo, além de cerca de 500 representantes internacionais de mais de 100 Estados-membros, agências das Nações Unidas, instituições acadêmicas, sociedade civil e o setor privado. O “Consenso de Beijing” foi um dos documentos gerados a partir dessa Conferência, tendo como foco a utilização da IA na educação. O Consenso 28 destaca a importância de saber que os aplicativos de IA podem impor diferentes tipos de tendências inerentes aos dados nos quais a tecnologia é treinada e usada como entrada, bem como na maneira como os processos e algoritmos são construídos e usados. Conhecer os dilemas do equilíbrio entre acesso aberto a dados e proteção da privacidade de dados. Estar atento às questões legais e aos riscos éticos relacionados à propriedade, privacidade e disponibilidade dos dados para o bem público. Lembrar da importância de adotar princípios de ética, privacidade e segurança planejados (UNESCO, 2019d). Para que os algoritmos sejam desenvolvidos, é preciso acesso a uma quantidade gigantesca de dados e, na maioria das vezes, esses dados são de indivíduos e empresas, que precisam saber e aprovar que seus dados sejam utilizados. O segundo ponto é que o desenvolvedor dos algoritmos possui uma visão de mundo, com seus valores e preconceitos, e isso pode influenciar, de forma intencional ou inconscientemente, o resultado final da aplicação do algoritmo, favorecendo determinados grupos na sociedade em detrimento de outros. Muitas medidas vêm sendo tomadas pelos países, como leis de acesso a informações e utilização de equipes multidisciplinares e multiétnicas para o desenvolvimento de soluções de IA. Como estamos na fase inicial de difusão das novas tecnologias de IA, essa discussão irá se colocar em muitos momentos da trajetória de difusão e novas regulamentações deverão surgir para responder a questões desse tipo. Do ponto de vista tecnológico existem soluções de IA para, praticamente, todas as atividades humanas.No campo da medicina, por exemplo, as aplicações de IA possibilitam analisar imagens de exames radiológicos de tomografias ópticas para identificar alterações que possam causar a perda de visão. Podem, também, realizar análises de todas as radiografias de um paciente e compará- las com milhões de radiografias similares e respectivos laudos. Isso pode auxiliar significativamente o médico responsável pelo laudo final ou, então, pela decisão de tratamento com base em muitas informações clínicas, como histórico do paciente, sintomas, exames laboratoriais e imagens. A qualidade e a quantidade desses dados estão melhorando rapidamente – estima-se que crescerá exponencialmente em todo o mundo (PUC RIO, 2019). Outra área que vem apresentando evolução acelerada com inúmeras aplicações, no âmbito da inteligência artificial (IA), é a de processamento de linguagem natural (PLN). O objetivo do PLN é entender um texto, isto é, reconhecer o contexto, fazer análise sintática, semântica, léxica e morfológica, criar resumos, extrair informação, interpretar os sentidos, analisar sentimentos e até aprender conceitos com os textos processados. Isso possibilita saber se a opinião textual de uma pessoa tem um sentimento positivo ou negativo, podendo ser aplicado em campanhas publicitárias, campanhas políticas, avaliação de produtos, bloqueio de mensagens racistas, homofóbicas e agressivas, dentre outras aplicações (PUC RIO, 2019). No campo educacional são esperadas aplicações como sistemas tutoriais inteligentes, robótica inteligente educacional e processamento de linguagem natural, que tendem a facilitar a interação e o aprendizado do aluno, reconhecendo dificuldades de aprendizagem em um determinado assunto e elaborando conteúdos educacionais por meio de linguagem e formato, por exemplo, adequados para cada aluno em particular. Na produção manufatureira poderão ser registradas e tratadas, em tempo real, grandes quantidades de informações sobre o que está ocorrendo na produção, nos mercados onde a empresa atua, no país e no exterior, assim como entre os fornecedores. No campo do direito, os serviços de elaboração de contratos simples de prestação de serviços, locação residencial e acompanhamento de processos já foram automatizados. Atualmente, no Brasil, existem mais de 100 startups no ramo jurídico, as chamadas lawtechs e legaltechs, que analisam e compilam dados, automatizam o processamento de documentos, realizam a gestão do ciclo de vida de contratos e processos, dentre outras atividades. Analisar dados e aplicar a estatística no direito (jurimetria) são algumas das novas competências 1. Introdução 10 que estão sendo discutidas e até mesmo incorporadas ao currículo do curso de advocacia de escolas como a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A IA pode, também, ser utilizada para aumentar a criatividade. Por exemplo, o Flow Machines é um projeto de pesquisa destinado a aumentar a criatividade do artista na música (PUC RIO, 2019). Ao mesmo tempo em que os exemplos de aplicação da IA se multiplicam a cada dia, as estimativas de impacto das tecnologias de IA no trabalho também vêm multiplicando-se e tendem a ser, em geral, muito negativas. Destacamos alguns desses estudos: • 47% das ocupações dos EUA irão desaparecer (Frey; Osborne, 2013) • Até 2030, mais de 800 milhões de trabalhadores perderão seus empregos para robôs e máquinas. Cerca de 60% dos empregos que possuam pelo menos 1/3 de atividades rotineiras poderão ser automatizados (MCKINSEY, 2018) • Até 2022, cerca de 70 milhões de empregos serão perdidos para a automação, embora cerca de 133 milhões surgirão em novas ocupações derivadas de uma nova divisão de trabalho entre humanos, máquinas e algoritmos (World Economic Forum, 2017) Estudo recente do Laboratório do Futuro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aponta que a automação ameaçará mais da metade dos empregos em todos os municípios brasileiros até 2040. Ou, ainda, que a automação pode impactar 56% dos empregos formais no país (Kubota; Maciene, 2019). Albuquerque e outros, 2019, realizaram um estudo baseado em metodologia similar à de Frey e Osborne (2013) e identificaram, em um cenário em que profissões com alta chance de automação passariam a ser exercidas por autômatos, que aproximadamente 30 milhões de empregos estariam em risco até 2026 no Brasil. Essas estimativas foram feitas com propósitos específicos. Como no caso do presente estudo o propósito é subsidiar o planejamento de instituições de educação profissional, desenvolvemos uma metodologia que propicia a antecipação dos impactos em diferentes tipos de trabalho: os voltados para o desenvolvimento de soluções em IA, e os que serão deslocados pelas aplicações de IA. A chave para analisar esses impactos é o padrão de difusão de IA, uma vez que não basta existir uma solução de IA, é preciso que ela se difunda na economia para que se verifique e observe o efetivo impacto ocupacional. A ideia de antecipar impactos ocupacionais está presente na visão estratégica de muitos organismos multilaterais, como é o caso da UNESCO. O Consenso 17 destacou um aspecto que se relaciona diretamente com o tema do presente estudo: Atualizar e desenvolver mecanismos e ferramentas para antecipar e identificar as necessidades atuais e futuras de habilidades em relação ao desenvolvimento da IA, a fim de garantir a relevância dos currículos para as economias, mercados de trabalho e sociedades em mudança (UNESCO, 2019). Do ponto de vista educacional, a preocupação de antecipar necessidades atuais e futuras em meio a rápidas transformações tecnológicas exige um tempo necessário para as instituições educacionais reorganizarem suas ofertas formativas e se inserirem mais ativamente nessas transformações. Agindo dessa forma, a oferta do sistema formativo amplia sua chance de dar respostas ao sistema produtivo. A IA possibilita a personalização em massa de serviços e produtos de consumo de baixo valor por meio de sistemas ciberfísicos. Para tanto, faz-se necessário organizar uma quantidade muito grande de dados e desenvolver e testar muitos algoritmos, o que requer um conjunto significativo de competências de alta complexidade. Existem, também, muitas soluções de IA disponíveis no mercado para as empresas adquirirem. A aquisição de soluções requer outro conjunto de competências para a realização de atividades ocupacionais associadas à adaptação da solução à realidade da empresa usuária. Na fase atual de difusão de IA as empresas estão adotando inúmeras soluções, como a organização de grupos multidisciplinares de trabalho para melhor utilizar os sistemas de inteligência artificial. As instituições educacionais, particularmente universidades e instituições de formação profissional, estão oferecendo diferentes tipos de especializações, sendo que um mesmo curso de especialização pode ser realizado por profissionais de diferentes ocupações. Essa dinâmica contribui para a configuração de novos campos de atribuições em ocupações existentes, além de favorecer a emergência de novas ocupações. Ao mesmo tempo, já existem manifestações de instituições que contribuem para a processo de difusão de IA alertando que uma eventual falta de mão de obra qualificada pode comprometer o desenvolvimento e implantação de algumas tecnologias, como por exemplo, da telefonia 5G e da indústria 4.0 (ABDI, 2019), assim como da tecnologia da informação (BRASSCOM, 2019). Na medida em que aumente a taxa de difusão de IA, empresas, instituições governamentais, associações e sindicatos de trabalhadores passarão a gerar convergências em torno de demandas de novas competências, e mesmo de novas ocupações. A dinâmica de difusão de IA traz mudanças no trabalho e na formação de pessoal qualificado, fazendo com que Organismos das Nações Unidas, como a UNESCO, enfatizem ainda mais o tema das desigualdades sociais. No “Consensode Beijing”, o Consenso 27 enfatiza a desigualdade de gênero como um tema a ser observado: Promover a igualdade de gênero no desenvolvimento de ferramentas de IA e capacitar meninas e mulheres com habilidades de IA para promover a igualdade de gênero entre as forças de trabalho e empregadores de IA (UNESCO, 2019d). Portanto, o Consenso 27 aborda a questão de gênero tanto sob a ótica do mercado de trabalho, quanto da formação, e precisa ser observado, no caso brasileiro, a partir das desigualdades de gênero existentes no mercado de trabalho e no sistema educacional. Além disso, o Consenso 23 do “Consenso de Beijing” associa mais diretamente o tema da desigualdade à questão da educação: 1. Introdução 11 Garantir que a IA promova oportunidades de educação e aprendizagem de alta qualidade para todos, independentemente de gênero, deficiência, status social ou econômico, origem étnica ou cultural ou localização geográfica. O desenvolvimento e o uso da IA na educação não devem aprofundar o hiato digital e não devem exibir viés contra grupos minoritários ou vulneráveis (UNESCO, 2019d). Como a IA é uma tecnologia disruptiva com potencial de impactar toda a estrutura ocupacional da economia, sua difusão exigirá um novo conjunto de competências e de habilidades transferíveis necessárias para entrar, permanecer ou reingressar no mercado de trabalho. Esse novo conjunto necessita ser desenvolvido por instituições educacionais procurando não reproduzir os padrões de desigualdade social. O uso de tecnologias de IA mobiliza muitos profissionais que se encontram no mercado de trabalho e que necessitam de atualização tecnológica. Com a difusão da IA, as atribuições desses profissionais podem ser ampliadas ou reduzidas. Existem, também, profissionais que participarão diretamente do desenvolvimento de soluções de IA e que requerem novas competências. Na Conferência sobre IA, realizada em Beijing, essa questão foi abordada na perspectiva de substituição e transformação. A perspectiva de substituição revela medos em relação à perda e deslocamento de trabalhos pela automação. A perspectiva da transformação destaca a visão otimista de que a automação de tarefas rotineiras pouco qualificadas cria oportunidades para aumentar a demanda por tarefas altamente qualificadas e criativas que costumavam ser bastante limitadas. Ambas as perspectivas exigem um redesenho fundamental do que as pessoas aprendem nas escolas e instituições de TVET, a fim de atender à demanda no mercado de trabalho (UNESCO, 2019e, p. 6). Os desafios para governos e instituições de educação profissional são enormes pois, na maioria das vezes, os profissionais que serão deslocados pela difusão da IA não irão ocupar os postos de trabalho abertos para desenvolver as soluções de IA. Como a IA tem o potencial de impactar toda a estrutura ocupacional, para efeito de estudo, é necessário delimitar um determinado grupo de ocupações. A escolha recaiu sobre os técnicos de nível médio, por duas razões principais: (1) os técnicos terão seu campo de atribuições profundamente alterado; e (2) a estrutura de oferta de educação técnica de nível médio passou por uma mudança estrutural com a reforma do ensino médio no final de 2017. Por essas razões, é muito relevante que as instituições de educação profissional possam antecipar as demandas por técnicos de nível médio, de modo a melhor poder atendê-las, dado o tempo necessário entre a identificação da demanda até o posicionamento, no mercado de trabalho, de um profissional com os novos perfis requeridos. 1.1 Objetivo Considerando-se as ocupações técnicas de nível médio pretende-se identificar atividades ocupacionais que poderão reduzir, aumentar ou se manter inalteradas, bem como quais ocupações poderão surgir ou desaparecer nos próximos 10 anos. Podemos ilustrar o objetivo do estudo no esquema apresentado abaixo (Figura 1). O prazo de 10 anos tem-se mostrado adequado para o planejamento de cursos e programas de educação profissional técnica de nível médio (Caruso; Pio, 2017). Para isso, o primeiro passo foi desenvolver uma metodologia para mapear padrões de difusão da IA e, em seguida, avaliar seus impactos nas atividades ocupacionais. A partir da identificação das mudanças nas atividades ocupacionais, o passo seguinte foi identificar seus impactos na educação profissional técnica de nível médio. O presente documento está dividido em nove itens, incluindo esta introdução, que corresponde ao primeiro item. O segundo item é de natureza conceitual. O terceiro é de natureza metodológica. O quarto item apresenta as soluções tecnológicas de IA selecionadas em cada setor estudado. O quinto trata da difusão das soluções selecionadas nos próximos 10 anos. O sexto item analisa as mudanças quantitativas na estrutura das atividades ocupacionais. O sétimo item analisa os impactos da difusão das tecnologias de IA nas atividades ocupacionais dos técnicos de nível médio. O oitavo item analisa os impactos da difusão da IA na educação profissional, e o nono contém as considerações finais. Figura 1: Mudanças nas atividades ocupacionais e nas ocupações e impactos na educação profissional em função da difusão da IA Desenvolver procedimentos metodológicos para antecipar mudanças na demanda do sistema produtivo em função da difusão da IA Que novas atividades ocupacionais poderão surgir ou desaparecer? Formação de novos profissionais Requalificação de profissionais deslocados pela difusão de IA Que impactos podemos esperar na educação técnica de nível médio?Que novas ocupações poderão surgir ou desaparecer? 1. Introdução 12 © K iri ll Ig na ty ev /F lic kr C C BY -N C 2. 0 2 Aspectos conceituais Box 1: Transformações na ocupação de torneiro mecânico Em um torno convencional todos os parâmetros necessários para a confecção de uma peça de metal, como por exemplo velocidade e ângulo de corte, são alterados pelo próprio torneiro mecânico (um trabalhador que exerce a ocupação de torneiro mecânico). Em um torno a comando numérico computadorizado (CNC), todos esses parâmetros passaram a ser controlados por um software. Qualquer alteração dos parâmetros para a confecção da peça deve ser feita no próprio software. Com isso, modifica- se a estrutura de atividades e de ocupações, cujo posto principal era ocupado por um torneiro mecânico que realizava um conjunto muito amplo de atividades, as quais passaram a ser incorporadas ao programa. Gradualmente, à medida que ocorreu a difusão do torno CNC, começou a surgir o operador de CNC, com um conjunto de atividades mais específico que o do torneiro mecânico (incluindo o conhecimento básico de programação) e o programador de CNC, cuja principal atividade é elaborar o programa para a confecção da peça. Além de conhecimentos de programação, o programador CNC deve conhecer processos de usinagem. A ocupação de torneiro mecânico continua a existir para operar tornos convencionais, e surgiram as ocupações de operador CNC e programador CNC. A quantidade de trabalhadores empregados como torneiros deixou de crescer à mesma taxa anterior e ampliaram-se as quantidades de trabalhadores empregados como operadores e programadores CNC. 2. Aspectos conceituais A IA é uma tecnologia que surgiu nos anos 50 e, nos dias de hoje, acelerou sua evolução em função da convergência com outras tecnologias, da disponibilidade maciça de dados e do aumento da capacidade de armazenamento e de processamento de dados, dentre outros fatores. Seus impactos nas atividades ocupacionais segue uma lógica e uma tendência que se iniciou na época da chamada 1ª Revolução Industrial, à exceção da redução das atividades cognitivas analíticas, fenômeno novo inaugurado pela difusão de IA. Analisaremos essa mudança a partir de uma perspectiva da história do ciclo de codificação de conhecimentos. 2.1 Breve histórico das mudanças ocupacionais Para compreendermoso fenômeno atual, adotaremos uma perspectiva histórica das mudanças ocupacionais mais importantes que ocorreram no período da industrialização, a partir da perspectiva do conteúdo do trabalho ou das atividades de trabalho. Na etapa da mecanização da indústria, produzir significava, basicamente, transformar fisicamente a matéria, o que desenvolveu e mobilizou um certo conjunto de competências de natureza cognitiva, visual, tátil, olfativa e auditiva dos trabalhadores. A ênfase recaía sobre as habilidades e destrezas manuais. Nessa etapa, foi preciso parcelar o trabalho, constituído de um saber mais integrado detido pelos trabalhadores, em atividades mais simples e repetitivas (Landes, 2005; Mantoux, 1927). A codificação de conhecimentos nessa etapa da revolução industrial do século XVIII incidiu, principalmente, sobre as atividades manuais rotineiras. A produção industrial baseada na química e na eletricidade teve como característica principal a aplicação de conhecimentos das ciências básicas existentes em universidades e centros de pesquisa. Para utilizá-los na produção, foi necessário um desenvolvimento tecnológico de natureza distinta do que ocorreu na etapa de mecanização, mobilizando conhecimentos de física, química e biologia aplicados a processos contínuos de produção (Landes, 2005). Em processos contínuos de produção ocorre uma transformação físico-química da matéria, modificando seu estado original (sólido, por exemplo) para outro estado (líquido ou gasoso). Essa transformação ocorre durante o processo de fabricação, submetendo a matéria a condições controladas de temperatura, vazão e pressão, por exemplo. Pela própria essência do processo, ele nasce contínuo e requer um trabalho mais abstrato (Castro; Figueiredo, 2005). As competências mobilizadas para operar os equipamentos em indústrias de processo contínuo requerem elevada capacidade de abstração, uma vez que todos os parâmetros de produção são controlados por meio de sensores e 2. Aspectos conceituais 14 Box 2: O analista simbólico Na década de 1990 começaram a surgir novas categorias de análise, como a dos prestadores de serviços simbólicos analíticos, que incluíam os trabalhadores que identificavam e resolviam problemas manipulando símbolos, além de fazerem intermediação estratégica. Ademais, esses serviços podiam ser transacionados em escala mundial. Essa foi uma perspectiva importante adotada para compreender melhor as mudanças que estavam ocorrendo com a difusão de tecnologias de base microeletrônica uma vez que, naquele período, a análise simbólica já possuía uma magnitude importante, pelo menos na economia dos EUA (Reich, 1993). atuadores e são apresentados para os operadores, na maioria das vezes, sob a forma de gráficos ou tabelas (Castro; Figueiredo, 2005). Posteriormente, passou a ocorrer a integração das etapas do processo de fabricação por meio do sistema digital de controle distribuído (SDCD), em processos contínuos de fabricação. Mais recentemente, as tecnologias de base microeletrônica passaram a codificar também conhecimentos e habilidades derivadas de atividades cognitivas rotineiras. Além de um conjunto extenso de novas tecnologias digitais, que foram substituindo tecnologias e processos analógicos, ocorreu a integração de diferentes etapas do processo de fabricação, envolvendo atividades realizadas no interior das plantas e, também, fora delas. Em processos discretos de produção buscou-se a automação da área de projetos por meio do desenho assistido por computador (CAD), da automação da produção, da manufatura assistida por computador (CAM) e, também, da integração dos projetos com a produção por meio da manufatura integrada por computador (CIM). Com a difusão de tecnologias de base microeletrônica em empresas e na sociedade em geral, a interface digital que faz a intermediação entre o ser humano e a máquina passou a ser o padrão dominante. Tomando o exemplo do torneiro, podemos dizer que as atividades realizadas por trabalhadores passaram a ser mediadas por algum código ou símbolo, por exemplo, por softwares incorporados aos equipamentos ou por algum sistema informatizado. Essas interfaces necessitam ser conhecidas e seus códigos interpretados pelos trabalhadores, para que possam intervir corretamente no processo de fabricação. De forma geral, a ampliação da capacidade de abstração para a realização de atividades do trabalho na sociedade moderna foi uma trajetória comum a todas as etapas de mudança tecnológica anteriormente mencionadas. Essa ampliação teve fortes repercussões e foi influenciada por profundas mudanças nos sistemas educacionais durante todo o século XX, o que se mantém no século atual. Com a intensificação tecnológica nos sistemas produtivos, ampliaram-se as possibilidades de ocorrência de falhas não previstas que, para serem resolvidas, passaram a exigir diagnósticos envolvendo trabalhadores situados em diferentes locais dentro da empresa, ou fora dela, como fornecedores e clientes. As competências de cooperação, comunicação, interação social e trabalho em equipe ganharam importância para viabilizar e ampliar o uso das novas tecnologias digitais, bem como para solucionar, de forma ágil, problemas cada vez mais complexos. Além disso, as inovações passaram a ser geradas crescentemente por meio da mobilização de competências dos trabalhadores de uma mesma equipe e, também, do compartilhamento de conhecimentos e informações entre trabalhadores de outras empresas e instituições, seja do próprio país ou de outros países. Como as inovações tornaram-se mais complexas e interdependentes, reconfiguraram os espaços entre ciência e tecnologia, bem como entre produtor, cliente e fornecedor, requerendo complementaridade de um conjunto de competências que passaram a ser agrupadas sob a denominação de competências sociocomunicativas, ou soft skills. O conjunto de competências soft skills passou a ser mais demandado e tornou-se cada vez mais visível para indivíduos e empresas, sendo constituído de: competências básicas, competência para lidar com os desafios da era digital, competências de comunicação, trabalho em equipe, liderança, empreendedorismo, gerenciamento, criatividade, design e competências emocionais. A UNESCO conceitua o termo como habilidades transferíveis e indica um conjunto de qualidades pessoais intangíveis, traços, atributos, hábitos e atitudes que podem ser usadas em muitos tipos diferentes de trabalhos. Como são amplamente aplicáveis, também são vistas como habilidades transferíveis, mesmo se essa ideia de transferibilidade seja frequentemente questionada, porque indivíduos aprendem a desempenhar tarefas em determinados contextos e podem não ser capazes de aplicá-los em outros. Exemplos de habilidades subjetivas incluem: empatia, liderança, sentido de responsabilidade, integridade, autoestima, autogestão, motivação, flexibilidade, sociabilidade, gestão de tempo e tomada de decisões (UNESCO, 2016). Se observarmos a transformação das atividades ocupacionais da etapa de mecanização até a difusão de tecnologias de base microeletrônica, a trajetória de interação de tecnologias com 2. Aspectos conceituais 15 ocupações resultou, principalmente, na redução de atividades manuais de rotina e, por outro lado, no crescimento de atividades de natureza cognitiva não rotineiras. Isso ampliou a demanda por trabalhadores que possuíam capacidades e habilidades não rotineiras, de natureza cognitiva e de interação, e reduziu a demanda por trabalhadores que possuíam capacidades e habilidades rotineiras. Kruger (1991); Autor (2013); Autor, Levy e Murmane (2001); Frey e Osborne (2013), dentre outros, realizaram estudos para verificar em que medida a tecnologia e a informatização de processos complementa ou substitui as atividades realizadas • Atividades cognitivas analíticas: caracterizam- se poratividades que envolvem absorção, processamento e tomada de decisão, baseadas em informações abstratas • Atividades cognitivas interpessoais: caracterizam-se por atividades que requerem traços de personalidade e comportamentos, como trabalho em equipe • Atividades manuais não rotineiras: caracterizam-se por habilidades predominantemente físicas de mudar e reagir a circunstâncias mutáveis • Atividades cognitivas rotineiras: caracterizam-se por atividades repetitivas de natureza cognitiva • Atividades manuais rotineiras: caracterizam-se por movimentos repetitivos que requerem, principalmente, habilidades físicas Gráfico 1: Representação estilizada e ilustrativa do comportamento das atividades rotineiras e não rotineiras, de natureza manual e cognitiva, de 1900 a 2010 por trabalhadores. Em vários países, observou-se uma correlação positiva entre o rápido declínio dos preços dos equipamentos de base microeletrônica e a redução na demanda de trabalho baseado em atividades rotineiras, principalmente as atividades manuais de rotina e, mais recentemente, também as cognitivas rotineiras, além de um crescimento na demanda de trabalho baseado em atividades não rotineiras. Essa tendência também é observada no caso brasileiro, ainda que de forma menos intensa que nos EUA, Inglaterra ou Austrália (Aedo et al., 2013). Assim, desde os anos 1950, é possível observar uma redução mais intensa de atividades manuais de rotina e um crescimento das atividades não rotineiras cognitivas, analíticas e interativas e interpessoais (Gráfico 1). Fonte: elaboração própria a partir de Autor, Levy e Murmane (2003). Desse modo, podemos destacar que, considerando o período entre a mecanização e a automação de base microeletrônica, a codificação de conhecimentos e a complexidade das inovações ampliaram a capacidade de abstração para a realização de atividades ocupacionais, transformando o trabalho nas seguintes dimensões: • Redução de atividades manuais rotineiras • Redução de atividades manuais não rotineiras • Redução de atividades cognitivas rotineiras • Aumento de atividades cognitivas não rotineiras analíticas • Aumento de atividades cognitivas não rotineiras sociocomunicativas O ritmo e a intensidade com que ocorreram essas mudanças dependeram de diversos fatores, dentre os quais destacaremos o processo de codificação de conhecimentos que ocorreu em empresas, condicionado pelo contexto educacional e de inovação, no âmbito local e nacional. 2.2. Ciclo de codificação de conhecimentos tácitos A codificação de conhecimentos decorrente das aprendizagens que ocorrem nos locais de trabalho é um fator importante para compreender as transformações das atividades no âmbito de uma ocupação. No caso deste estudo, estamos considerando apenas a dimensão da codificação que serve de base para rotinas e tecnologias e que pode modificar atividades no âmbito das ocupações, conforme apresentado na Figura 2. Uma parte importante das mudanças tecnológicas é originada nos locais de trabalho mediante a interação dos conhecimentos dos trabalhadores com tecnologias preexistentes. Dessa interação resulta um processo de aprendizagem inicialmente individual, por meio do qual são gerados novos conhecimentos, de natureza 50 37,5 25 12,5 0 1900 cognitivas analíticas cognitivas interpessoais cognitivas rotineiras manuais não rotineiras manuais rotineiras 1950 2010 2. Aspectos conceituais 16 tácita. Esses conhecimentos tácitos necessitam ser codificados para a obtenção de ganhos sistemáticos de produtividade. Dessa codificação resultam rotinas, normas e procedimentos que são a base para o desenvolvimento de inovações incrementais, inscritas normalmente em uma mesma trajetória tecnológica. 2.3. Aprendizagem individual e organizacional Ao longo do tempo, a codificação de conhecimentos tácitos acompanhou a evolução das tecnologias de organização do trabalho. No âmbito das tecnologias de organização destacaremos a relação entre a aprendizagem individual e a organizacional, ou a transformação do conhecimento tácito em conhecimento codificado. A aprendizagem individual propicia a geração de conhecimentos, e o aprimoramento e desenvolvimento de habilidades e atitudes, e pode ocorrer em vários ambientes (escola, empresa, sociedade em geral), de modo formal ou informal. No local de trabalho a aprendizagem ocorre, ao longo do tempo, por meio de cursos específicos ministrados pelas empresas ou por fornecedores, pela interação entre trabalhadores, bem como pela interação dos trabalhadores com as rotinas e tecnologias das empresas. Assim, uma questão relevante é como os conhecimentos detidos por trabalhadores individuais podem ser mobilizados de forma sistemática e permanente pelas empresas e transformados em novas rotinas e soluções tecnológicas. Esse é o tema central da aprendizagem organizacional. A aprendizagem organizacional pode ser vista como uma mudança no conhecimento da organização derivada da experiência de criar, de forma sistemática, uma resposta prática para solucionar um novo problema, ou uma melhor resposta para um problema já existente (Argote, 2005). As aprendizagens, individual e organizacional, são fortemente condicionadas pelas tecnologias de organização do trabalho, sendo a aplicação prática dos princípios e conceitos historicamente associada ao taylorismo, ao fordismo, a sistemas especialistas e ao toyotismo. Um dos princípios do sistema taylorista/fordista é a definição e implementação de novas rotinas, sem o envolvimento e participação direta dos trabalhadores (predominou na automatização de base mecânica e eletromecânica). O sistema especialista foi uma técnica criada para consulta a especialistas e, a partir de seus conhecimentos e saberes profissionais, criar novos processos ou rotinas (teve aplicação mais difundida no início da difusão da tecnologia de base microeletrônica nos anos 1980). O toyotismo foi uma forma de organização do trabalho desenvolvida pela empresa Toyota, no Japão, que preconiza o envolvimento dos trabalhadores (teve início nos anos 1950 e apresentou forte difusão entre empresas ocidentais a partir dos anos 1980). As três tecnologias de organização destacadas são um instrumento gerencial de codificação de conhecimentos tácitos e estabelecem uma relação entre processos de aprendizagem e geração de conhecimentos individuais e codificação em rotinas e inovações (conhecimento organizacional). Atualmente, existe uma tendência de adoção de modelos de gestão mais orgânicos, que ampliam e estimulam a participação dos trabalhadores, bem como a complementaridade de conhecimentos detidos por outras empresas e instituições para a geração de inovações. Isso altera de forma estrutural as atividades inerentes às ocupações, bem como os conhecimentos, habilidades e atitudes que são mobilizados na produção de bens e serviços. A aplicação prática dessas tecnologias de organização reforça a capacidade de cooperação e de trabalho em equipe. Quando a empresa consegue mobilizar o conhecimento tácito detido pelos trabalhadores, obtém maior eficiência, aumento de produtividade, melhoria da qualidade de produtos e introdução de inovações incrementais. Nonaka e Takeushi (1997) destacam que as inovações incrementais decorrem da interação de conhecimentos tácitos e explícitos, constituindo um ciclo contínuo que considera o compartilhamento de conhecimentos tácitos, a conversão de conhecimentos tácitos em explícitos e a elaboração de rotinas e construção de protótipos até serem geradas novas aprendizagens a partir da incorporação, pelos trabalhadores, dos novos conhecimentos codificados. Figura 2: Ciclo histórico de codificação de conhecimentos tácitos Fonte: elaboração própria Conhecimento tático Codificação de conhecimento Mudanças ocupacionais Aprendizagem 2. Aspectos conceituais 17 O conhecimentotácito é desenvolvido permanentemente na prática profissional sempre que um trabalhador se depara com um novo problema técnico cuja solução não está presente em manuais e rotinas, e mobiliza sua experiência e intuição para solucionar o problema. O conhecimento tácito é altamente pessoal, difícil de formalizar, transmitir e compartilhar, pois está enraizado em ações, experiências e emoções de um indivíduo. O conhecimento codificado, por sua vez, é expresso em palavras e números, inscrito em tecnologias e rotinas, sendo, portanto, mais facilmente comunicado e compartilhado (Nonaka; Takeushi, 1997). Desse modo, a transição da aprendizagem individual para a aprendizagem organizacional passa por transformar o conhecimento tácito em conhecimento codificado. Quando os conhecimentos são codificados, podem gerar novas rotinas e inovações de natureza incremental as quais, uma vez colocadas em uso, modificam as ocupações, que por sua vez irão gerar novos aprendizados e assim sucessivamente, fluxo este representado na Figura 2. Assim, se uma atividade era realizada de uma determinada forma pelo trabalhador, com a criação/alteração de uma rotina ou introdução de uma nova tecnologia, esta atividade pode ser modificada ou eliminada (incorporada à tecnologia ou agregada a uma outra atividade da própria ocupação ou de outra ocupação), assim como pode surgir uma nova atividade. O resultado dessa codificação pode ser expresso em rotinas (mapeamento de processos e definição de regras de negócio) e inovações (principalmente, melhorias de natureza incremental aplicadas a processos, produtos e estratégias de mercado). As rotinas constituem a memória da empresa (Nelson; Winter, 2005) e, por meio delas, é possível estabelecer, controlar e modificar metas físicas e financeiras. As rotinas são materializadas em processos que necessitam ser periodicamente mapeados, a partir de normas preexistentes e conhecimentos tácitos dos trabalhadores. A transformação dos conhecimentos tácitos dos trabalhadores em rotinas é um processo permanente e dinâmico que gera um conhecimento coletivo e consolida a aprendizagem organizacional. Por outro lado, como as rotinas, os valores e as crenças representam o conhecimento acumulado da empresa e, em geral, criam uma forte dependência com o passado, o que pode dificultar mudanças diante de um contexto de fortes transformações. A mudança tecnológica é, por natureza, cumulativa, ou seja, decorre de inúmeras inovações incrementais oriundas de uma inovação radical, que ocorre de forma diferenciada entre setores e firmas. Dada a natureza da mudança tecnológica, as grandes etapas de evolução baseadas na mecânica, eletricidade, eletrônica e microeletrônica podem ser consideradas como referências para o processo de codificação de conhecimentos, que foi avançando gradualmente a cada etapa. A tecnologia codificou inicialmente os conhecimentos das atividades manuais de rotina (mecânica e eletricidade), até codificar as atividades cognitivas de rotina (microeletrônica). Essa codificação reduziu a proporção de atividades rotineiras e aumentou a de não rotineiras; reduziu as atividades manuais e aumentou as atividades cognitivas, cujos resultados foram apresentados por Autor (2003) (ver Gráfico 1). Desde a etapa da mecanização até a difusão das tecnologias de base microeletrônica veio se modificando a importância relativa de determinadas categorias ocupacionais, de acordo com as funções que as inovações desempenharam nas estratégias competitivas das empresas. Inicialmente, cientistas e engenheiros geravam inovações; posteriormente os profissionais de marketing tiveram um papel importante; em seguida, os trabalhadores da produção passaram a ter reconhecidas suas competências no processo de geração de inovações; por fim, chega-se à etapa em que a firma deve interagir com trabalhadores de outras firmas, instituições diversas e consumidores para gerar inovações (Tether, 2005). Além do processo de substituição de trabalho por capital, a estrutura ocupacional também se modificou, ao longo do tempo, pela substituição de trabalho que incorporava conhecimentos pouco sistematizados (aprendidos de forma empírica) por trabalho que incorporava conhecimentos mais sistematizados e codificados (aprendidos em sistemas educacionais e de formação profissional). As mudanças nas competências requeridas pelas empresas estão associadas aos padrões de competição existentes nos mercados onde atuam e ocorrem, atualmente, em intervalos de tempo muito curtos. As empresas necessitam modificar permanentemente suas capacidades estáticas e dinâmicas para inovar, reduzir custos, melhorar a qualidade dos produtos e identificar oportunidades de novos produtos em outros mercados. Os sistemas educacionais consolidam e disseminam as bases de conhecimento da sociedade e se atualizam de forma mais estrutural e mais lenta. Com a difusão da IA, esses mecanismos, que afetam diretamente o perfil profissional dos trabalhadores, vem sofrendo profundas transformações, sendo o surgimento de um novo ciclo de codificação de conhecimentos tácitos o eixo dessas transformações. 2.4. Novo ciclo de codificação de conhecimentos tácitos A inteligência artificial integrada a sistemas de máquinas inteligentes e à robótica móvel levanta inúmeras questões sobre como os sistemas de máquinas inteligentes podem aprender de forma autônoma a partir da própria experiência (Jordan; Mitchell, 2015). A resposta a essa questão passa por compreender o desenvolvimento de algoritmos de máquinas inteligentes, o que será feito no próximo item. 2. Aspectos conceituais 18 Figura 3: Novo ciclo de codificação de conhecimentos tácitos Fonte: elaboração própria Para o propósito deste estudo, cabe compreender as mudanças ocupacionais decorrentes da difusão de IA incluindo o tipo de trabalho necessário para o desenvolvimento dos novos algoritmos. Uma primeira mudança ocupacional é de natureza tendencial e acentua a trajetória das curvas de atividades ocupacionais: uma redução ainda maior da participação das atividades rotineiras e não rotineiras, manuais e cognitivas, e um maior crescimento da participação das atividades não rotineiras cognitivas interativas. A segunda mudança é de natureza disruptiva. De acordo com Frey e Osborne (2013), “a automação está avançando agora para o domínio do que, comumente, se denomina de não rotineiro” (Frey; Osborne, 2013, p. 16). Apesar de avançarem sobre as atividades não rotineiras, não é esperado que as competências interativas e sociocomunicativas sejam incorporadas, em um futuro próximo, a softwares e sistemas. Contudo, já se verifica uma inflexão na curva das atividades cognitivas analíticas, e esse é o fato que distingue a trajetória da IA das tecnologias precedentes. Assim, nos próximos anos, é esperado que uma parte muito significativa das atividades manuais não rotineiras (como dirigir veículos autônomos e realizar cirurgias simples) e das cognitivas não rotineiras, especificamente as cognitivas analíticas (como emitir pareceres jurídicos), tenham seus conhecimentos codificados e incorporados a sistemas de máquinas inteligentes, que passam a realizar essas atividades de forma autônoma, promovendo uma inflexão na curva dessas atividades ocupacionais, conforme ilustrado no Gráfico 2. Essa segunda mudança, de natureza disruptiva, decorre da modificação estrutural do ciclo histórico de codificação de conhecimentos (“aprendizagem – codificação – mudança ocupacional”), uma vez que uma parte exponencialmente crescente da codificação de conhecimentos passa a ser realizada pelo próprio sistema de máquinas inteligentes. Desse modo, a inteligência artificial aprofunda e reforça tendências anteriores e consolida uma nova trajetória tecnológica de digitalização de processos, criando um processo mais autônomode geração e codificação de conhecimentos tácitos do próprio sistema de máquinas (Figura 3). • Atividades cognitivas analíticas: caracterizam- se por atividades que envolvem absorção, processamento e tomada de decisão, com base em informações abstratas • Atividades cognitivas interpessoais: caracterizam-se por atividades que requerem traços de personalidade e comportamentos, como trabalho em equipe • Atividades manuais não rotineiras: caracterizam-se por habilidades predominantemente físicas de mudar e reagir a circunstâncias mutáveis • Atividades cognitivas rotineiras: caracterizam-se por atividades repetitivas de natureza cognitiva • Atividades manuais rotineiras: caracterizam-se por movimentos repetitivos que requerem, principalmente, habilidades físicas Gráfico 2: Mudanças esperadas nas atividades ocupacionais decorrentes da difusão da IA Fonte: elaboração própria a partir de Autor, Levy e Murmane (2003). Conhecimento tático trabalho – Conhecimento tático máquina Codificação de conhecimento trabalho – Codificação de conhecimento máquina Mudanças ocupacionais – Mudanças em algoritmos Aprendizagem trabalho – Aprendizagem máquina cognitivas analíticas cognitivas interpessoais cognitivas rotineiras manuais não rotineiras manuais rotineiras 60 50 40 30 20 10 0 1900 1950 20302010 2. Aspectos conceituais 19 No novo ciclo de codificação de conhecimentos, o sistema de máquinas inteligentes é capaz de aprender e codificar conhecimentos gerados a partir da própria experiência. Esse novo processo de codificação interage com o ciclo tradicional de codificação baseado na experiência dos trabalhadores e explica a mudança ocupacional de natureza disruptiva. 2.5. Aprendizado de máquina A inteligência artificial (IA) é um modelo avançado da ciência da computação que realiza predições com base em figuras, textos, números ou qualquer dado matematicamente quantificável, e é capaz de modificar suas previsões iniciais com base em um fluxo dinâmico de dados. As primeiras aplicações de IA surgiram nos anos 50 e, após inúmeros avanços e retrocessos, no estágio atual, a IA está se consolidando como uma tecnologia disruptiva, viabilizada por um amplo processo de convergência tecnológica. A história de registro, armazenamento e tratamento de dados nos ajuda a entender melhor o papel da IA. Na etapa de mecanização, os trabalhadores operavam máquinas e detinham, de forma particularmente isolada, os conhecimentos sobre problemas e boas performances dessas máquinas. Os conhecimentos tácitos eram detidos praticamente só pelos trabalhadores que atuavam diretamente na produção. Esse ciclo começou a mudar com a digitalização dos processos de fabricação e a difusão das tecnologias de base microeletrônica, a partir dos anos de 1980, quando as próprias máquinas começaram a registrar e armazenar seus erros e boas performances em uma base de dados. Os engenheiros que fabricavam equipamentos utilizavam essa mesma base de dados, assim como a base de todas as empresas que compravam seus equipamentos, trazendo para a área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) um volume muito grande de dados, o que possibilitava a introdução de melhorias nas máquinas e equipamentos fabricados. Os engenheiros das empresas usuárias utilizavam essa base de dados para programar e melhorar processos e produtos, bem como realizar manutenções remotamente, dentre outras inúmeras aplicações. Essa base de dados, oriunda do registro, armazenamento e tratamento automático de dados, representa uma primeira forma de codificação de conhecimentos tácitos gerados pelas próprias máquinas. Paralelamente a essa forma embrionária de codificação de conhecimentos pelas próprias máquinas, desenvolveram- se sistemas de codificação de conhecimentos apoiados em tecnologias de organização do trabalho, como os sistemas especialistas e os modelos similares ao toyotismo. O progresso recente da IA deve-se à explosão da disponibilidade de dados online, à possibilidade de se armazenar grandes quantidades de dados (computação em nuvem) e organizá-los em gigantescos bancos de dados que podem ser transformados em conhecimento devido à capacidade de desenvolver algoritmos que aprendem com a própria experiência, e a uma computação de baixo custo e com maior capacidade de processamento. Além disso, os novos algoritmos avançam, rapidamente, como resultado do desenvolvimento em áreas como ciência de dados, ciência da cognição e neurociência. a. Bancos de dados gigantescos (big data) As fontes de dados podem ser as mais variadas, sendo as mais comuns as oriundas do abastecimento aberto de grandes conjuntos de dados e imagens, como por exemplo: redes sociais, websites públicos e documentos legais. Os dados utilizados nos novos algoritmos podem ser de diferentes tipos – numéricos, discretos ou categóricos, registrados em áudio, imagem ou texto, armazenados em qualquer meio ou transmitidos em tempo real em sistemas ciberfísicos. Dados que alimentam bancos em tempo real dependem da internet das coisas (IoT), que propicia: • A atribuição de uma identificação única a qualquer dispositivo em uma rede digital viabilizada pelo protocolo IoT • A interação e troca de dados entre dispositivos que coletam e enviam dados requeridos pelo ambiente em que estão instalados • A produção de uma enorme quantidade de dados por dispositivos conectados, devido à nova geração de sensores b. Algoritmos que aprendem com a própria experiência Para viabilizar o aprendizado de máquina e o aprendizado profundo foi necessário mudar a lógica tradicional de programação. Atualmente, a matemática pura está na base da computação e do desenvolvimento de algoritmos, para automatizar operações e gerar comandos de decisão. A lógica tradicional de programação procura incorporar previamente aos programas a maior quantidade possível de eventos que possam ocorrer durante a operação do sistema. Ela está baseada em sistemas especialistas tradicionais, que funcionam por regras. Atualmente, a IA trabalha com dados, e não com regras. Os novos algoritmos estão baseados em machine learning e deep learning. Com o aprendizado de máquina (machine learning), os algoritmos melhoram seu desempenho automaticamente por meio da experiência e tomam decisões sob incertezas. A aprendizagem profunda (deep learning) possibilita o desenvolvimento de algoritmos baseados em redes neurais, que ajustam automaticamente os parâmetros ao longo das várias camadas que integram suas redes. O campo mais virtuoso do aprendizado de máquinas é o deep learning, onde é possível ensinar algo que o sistema aprende com a maior fidedignidade possível. 2. Aspectos conceituais 20 Os algoritmos são desenvolvidos de modo a possibilitar que os dados aprendam, por meio de dois métodos principais. No método de aprendizado supervisionado é realizada, incialmente, uma marcação e treinamento dos dados e, após o treinamento, pode-se produzir uma previsão em resposta a uma consulta. Desse modo, a partir de dados, ensina-se ao sistema o certo e o errado, e depois verifica-se se ele acertou. Exemplo: para identificar um spam em um conjunto de e-mails, marca-se inicialmente o que é spam. Por meio do método de aprendizado não supervisionado o aprendizado ocorre quando não existem dados para treinar o sistema. Desse modo, como o sim e o não estão marcados nos dados, é realizada uma análise para descobrir padrões e propriedades estruturais em dados não treinados. Exemplo: categorizar consumidores em grupos. As linguagens de programação atualmente utilizadas estão baseadas em códigos abertos, especialmente em Python, e vêm apresentando contínua expansão. c. Computadores mais rápidos A análise de volumes gigantescos de dados requer computadores cada vez mais rápidos e com maiores capacidades de processamento. d. Capacidade de armazenamento A capacidade