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1 
 
 
CAMINHOS 
 
 
 
 
Acir Caiana 
 
 
Poemas e Poesias 
2019 
 
 
2 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
ACIR CAIANA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAMINHOS 
 
 
 
 
1ª edição 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Muriaé 
Edição do Autor 
2019 
 
 
 
 
4 
 
Copyright © 2019 by Acir Caiana 
 
Todos os direitos deste livro 
estão reservados ao autor. 
 
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, por 
quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor. 
 
Edição do autor 
 
Projeto gráfico e capa 
O autor 
Impressão e acabamento 
O autor 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
 
 
Registro na Biblioteca Nacional sob n° 763.573 
 
5 
 
Sumário 
 
Caminhos 
 
Com a sua permissão 06 
Aconteceu naquela noite 06 
Para começar 06 
Dia comum 07 
Mel no café da manhã 10 
Preguiça 13 
Tiro na testa 16 
Psicopata 19 
Louca vida 
Desabafo 
23 
25 
Domingo 27 
Madrugada 30 
É muito imbecil! 34 
Manga madura 38 
Realeza 41 
Avós e netos 44 
Pequenos novos detalhes 47 
Amor e conivência 50 
Outro discurso absurdo 53 
Nova aurora 57 
O louco nasce novamente 60 
Mais mentiras 63 
Música no ar 66 
Na estrada 69 
Nua 70 
Também quero 71 
Outros 72 
Ressaca sem álcool 73 
A mudança 76 
 
 
 
 
 
 
6 
 
Com a sua permissão 
 
A mente pede passagem pelas tramas do inconsciente, 
submetendo-se às dores que afloram sem a devida permissão. 
Suplica pelo momento exato, quando poderá existir. 
Implora para que o passado resista ao futuro, ainda por vir. 
É a criança sem alma, é o espírito sem razão. 
É fraca, quando forte, é a súplica pela sanidade... 
É a luta do enfermo buscando a compreensão. 
 
Aconteceu naquela noite 
 
Alguns dias são dias inteiros, outros trazem o toque de terceiros. 
No diário, horas divididas de dias matreiros... 
A manhã do passado é a tarde do presente. 
O futuro sendo contado em detalhes, mas ausente. 
O olhar da transposição, às vezes sem direção. 
Os personagens humanos e vivos, entre cios e gritos, pedindo atenção. 
 
Para começar 
 
Dizem da mesma história. Contam versos de formas diferentes. 
Trazem a rima descompassada, brincando com a mente da gente. 
Do dia morno ao grão de trigo, fazendo poucas rimas. 
Do plebeu pobre ao líder santo, escrevendo noutras linhas. 
Caminham por seus amores, amando os seus caminhos. 
E, se amam, enquanto caminham, constroem seus novos ninhos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
7 
 
Dia comum 
 
Hoje acordei cedo, como há algum tempo não fazia. 
Diminuí o volume do som, Raul, porque minha mulher estava cansada e 
queimada. 
Parecia até uma cereja! 
E a ressaca da cerveja? 
 
Fui passear sozinho, a pé, pelo mundo... 
 
Mineiro, nesse caso, filho da capital anormal que me prendeu. 
Por aqui fiquei, mas sei que não morrerei. 
Seguirei outro caminho pelas entrelinhas, como sempre foi no tabuleiro 
com os guias, nos temporais e nos sonhos ancestrais. 
 
Terça-feira de outra terça, bem diferente... 
E a outra gente? 
Lá de cima, bem pertinho do Equador. 
Essa é diferente, menor do que a gente, menos indiferente. 
 
Voltamos do sol que escalda, da noite molhada, dos rios com peixes, das 
sereias alheias. 
E a poesia? 
Vai dar um tempo... 
 
Pé ante pé, cheguei ao ponto do ônibus, que há cerca de uma década não 
frequentava. 
Passeava, de quando em vez, mas era por prazer. 
Ainda é, mas mudou. 
O carro ficou na garagem de novo. 
 
Vi o que queria e o que não deveria. 
Omiti-me, quando quis; e protegi quem mereceria. 
Quanto aos outros seres humanos, vi seus movimentos em seus 
pequenos mundos, como o meu, aquele que poucos conhecem e 
ousariam tocar. 
 
Rezei, pedi para não ser assaltado, embora soubesse que não seria, 
saindo pela tangente depois de abandonar a periferia de outra tentativa. 
E acredite... Há valia! 
 
8 
 
E a poesia? Voltou sem me pedir. 
 
Vi as velhas mulheres caminhando, os jovens alienados correndo, os 
fracos com o medo do forte, a fome chegando, a rondar... 
 
Vi a vida que conhecia e a que viria. 
Sabia sobre o que viria. 
Vi. Senti. Preparei-me. 
Sinto muito, mas eu também sei. 
 
Chacoalhei de uma ponta à outra do ônibus, mesmo estando sentado na 
ida. 
Muito cedo e poucas novidades, junto ao proletariado, como eu, que 
segue rumo às obrigações de mais um dia. 
 
Tem gente gorda, branca, forte, fraca, feia e amada. 
Tem pernas pra lá, passinhos pra cá, tem falsos olhares e todo o 
restante... 
 
Ida tranquila, sem mais tropeços, metade a pé e metade sentado. 
Cheguei lá, mostrei os meus dedos e não fui preso. 
 
Ah, que alívio! Fiquei surpreso! 
 
Entrei e aprendi, como há muito não fazia se não fosse o que queria... 
Fiz e gostei, portanto voltarei ao sistema e aos seus esquemas, apenas 
um pouco diferente... 
 
Depois de tocar nas entrelinhas da sanidade e da loucura, no bem e no 
mal e assistir ao último episódio daquele menino mexicano... 
Sinto muito, mas me esqueci do nome... 
 
Pois é. Cheguei a casa, mas, antes, eu voltei... 
De ônibus, porque de táxi, agora, apenas em terras estranhas. 
 
Aprendi, mostrei o dedo, saí, caminhei e voltei. 
 
Tipos estranhos, mal educados, crianças novas, azeitadas e acabadas. 
Tipos mais sábios, com cabelos brancos. 
A fragilidade e o pouco espaço. 
 
9 
 
Tipos formosos, filhos do mundo, também dengosos, nem sempre 
imundos. 
 
Vi o desrespeito do novo frente ao velho. 
Vi o egoísmo, egocêntrico, como sempre... 
 
Homens covardes tocando mulheres, tomando lugares, fingindo... 
 
E o forte? 
Há! Esse mundo virá! 
Será novo, será belo, sem o desespero do medo dos velhos, sem o 
egoísmo dos jovens e os seus dedos, olhares e telas. 
 
Virá o tempo? Já chegou! 
 
Falta apenas o respeito... 
Ao homem, à mulher, ao idoso, à criança, à esperança. 
E amanhã é quarta-feira de qualquer maneira. 
Mel no café da manhã? 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
10 
 
Mel no café da manhã 
 
Mel no café da manhã. 
 
Sei que não deveria, mas gosto do mel como companhia, trazendo-me a 
fantasia daquele gosto que ainda não esqueci. 
Gosto de mulher. 
 
A moça deitada ao meu lado ainda dorme e dormirá por mais algumas 
horas. 
 
Penso comigo: 
 
Que sorte! 
Vou levantar, tomar um banho, encaminhar-me. 
Tomar meu rumo, achar o prumo, reinventar o que aprendi. 
Sair pro mundo, sem me cobrar, ver outras moças a passear. 
Ver como ajo, vou corrigir, observar e prosseguir... 
 
Acordei bem humorado, embora cansado. 
Pus no bolso os meus trocados e caminhei por um bocado. 
Não era a trabalho, tão pouco por diversão. 
Era só outro dia, em meio à confusão. 
 
Gosto do mundo em movimento, com os que vão, com os que ficam, 
com os que tentam. 
 
A moça sentada logo à frente tem cabelos castanhos e lisos, olhos claros 
e tristes. 
É branca, mas está morena, com as unhas curtas, com a mochila no colo 
e sem paciência. 
Gosta da fruta que gosto, eu tenho certeza... 
Pelos trejeitos, pelas maneiras. 
Seu olhar transita pelos de outras moças que, com pescoços desnudos, 
mostram as suas tatuagens. 
 
Vejo um coelho, um beija-flor, o ar em chamas de um dragão... 
Vejo quem fui e quem seria. 
Finjo estar morto para os meus guias. 
 
 
11 
 
Penso na fruta e no seu gosto, sigo esperando o resultado. 
Se me dedico, posso explicar-me, mas sem emendo, não há contexto, 
não há dinheiro, nem mesmo a esperança de esperar. 
 
As pernas estão bambas, embora esteja sentado. 
Dormi pouco de novo, mas fiz o que queria na noite anterior. 
O dia segue frio e a chuva voltou. 
Caiu como um temporal na tarde passada e persistiu, mansa, durante a 
madrugada. 
 
A cidade está mais calma e o mel continua doce, assim como os beijos 
passados de lembranças que nunca existiram. 
Das nucasfemininas ao louco dos números, que fala pausadamente, 
fingindo ser homem, me dando sono, mais sono que antes. 
 
É quarta-feira, dia da abertura dos portões do inferno. 
Até pouco tempo atrás os demônios eram soltos nessas quartas, se não 
percebeu. 
Saíam todos nus, passeando pela Terra, tentando uns, enlouquecendo 
alguns... 
 
E como eles me amam! 
Amam tanto que até dói! 
 
Mas algo mudou e essa quarta será a primeira de outras, com os 
demônios apenas a observar, sem nenhum pedido, sem o meu nome para 
trocar. 
 
Foram-se, por agora, mas sei que voltarão. 
 
Há tempo para a espera, para os anjos caídos e pras suas festas. 
Há tempo para o amor, para o perdão dos renegados, para a revolução 
que virá para as pessoas desse lugar. 
 
A manhã transcorreu sem problemas ou qualquer dilema. 
 
Dia chato, quando o sol, a pino, prova que ainda não morreu, apenas 
renasceu. 
O frio esconde o corpo visto e revivido, gostoso e vistoso, trazendo o 
desejo e atiçando a alma. 
 
12 
 
Acorda-se, alimenta-se, caminham, observam e confundem-se com os 
números transformados em letras que, como palavras, soam pelo ar. 
 
O gosto do sexo oposto segue doce, como o mel do meu café... 
Pão, rapadura, manteiga e fruta madura. 
Carne vermelha, arroz e centeio, gosto da cana e feijão de mineiro. 
 
Os olhares mudaram no retorno vazio, enquanto, sozinho, voltei a 
caminhar. 
Novas nucas e cabelos amarrados, da cor do jambo à cor do luar. 
 
Haja mulheres! 
Haja a mulher! 
Prove o tempero do que convier... 
 
Vozes esparsas de pessoas dispersas atiçando a mente que ainda 
persiste... 
 
Que venha a tarde de mais uma quarta, com novas ideias e sons 
diferentes, com as lembranças da noite passada, em claro, ouvindo os 
uivos dos cães, que presos por suas correntes, isolados em suas 
masmorras, choram pelos seus donos, pelos insanos, pelos ausentes. 
 
Dessa vez não haverá mais uma fuga, embora tenha me perdido no 
início. 
Aprenderei, mesmo sem qualquer ajuda, mesmo sem querer, porque 
chegará a noite e a cerveja é barata, a companhia é perfeita e a mulher 
desejada. 
 
Ficarão os nomes de um dia vencido. 
Irão os olhares dos que veem escondidos. 
 
Banho gelado, anseio no peito, corpos molhados e o cheiro do leito. 
 
E o cão que uiva ainda ladra. 
Morde a corrente e quer ser gente... 
E uivará na madrugada... 
Pra quem escuta, mas não entende. 
 
 
 
13 
 
Preguiça 
 
O dia acordou preguiçoso, lento como o abrir dos meus olhos. 
O corpo pede para descansar, embora saiba que a batalha será perdida. 
Tenho as olheiras de sempre, apenas mais profundas. 
 
Tudo bem. 
A noite foi boa, valeu a pena o sono perdido. 
 
A rotina mudou com o tempo, levando a temporada das tempestades. 
Faz sol novamente e as nuvens tornaram-se claras, sob um céu azul. 
 
As aves cantam e as flores florescem. 
As mulheres rezam e os Deuses agradecem. 
 
Necessito do meu café, forte, antes da caminhada matutina. 
Fumo outro cigarro, lavo as partes limpas e parto pra rotina. 
 
Hoje é dia de circo, dos elefantes e dos micos... 
 
O palhaço subiu no palco sem pedir licença e cobrou pelo serviço. 
Esqueceu-se, temporariamente, dos seus vícios e das manias e tentou 
cantar a melodia. 
 
Tentou, mas nasceu palhaço, vestido de bobo da corte. 
É inteligente, esperto e voraz, covarde e traiçoeiro, ao olhar pra trás. 
 
Gosta das moças, ou assim diz. 
Gosta de muitas pra ser feliz. 
Se vem do subúrbio, diz sempre que sim. 
Se tudo é verdade, verá mais no fim. 
 
O palhaço vestiu-se, desceu e subiu no palco, fez seu show, insinuou-se. 
Quem percebeu, viu outro circo, de cores diferentes e com outra plateia. 
Ouviu as vaias e percebeu, no ar, o desespero daquele que não se 
conhece, que oferece, que enaltece e diz que acontece. 
 
Estávamos limpos, naquele instante, o palhaço, a consorte e o infante. 
Cada um no seu processo, dois próximos e um distante. 
 
 
14 
 
Já era tarde naquela tarde, quando a cavalaria rompeu a última defesa. 
Descemos a serra com os espólios da guerra. 
Caminhamos por léguas com o peso das vidas que roubamos. 
 
Vieram a esperança, a certeza, a visão e a sensação. 
Sentíamos o futuro que, antes escuro, omitiu-se sem sorrir. 
Sabíamos das certezas que chegariam, como o vento em forma de 
pensamento. 
 
Purificamo-nos em mais um ritual, em nome da libertação, dançamos 
nus e tomamos da poção. 
 
Rimos do palhaço, entendemos o seu jogo, voltamos descansados, 
circundados de decoro. 
 
E o novo acordo? 
Virá em forma de cantos, tambores, músicas e amores. 
Livros abertos em páginas belas, novos caminhos à luz de uma vela... 
Sem o palhaço e toda a sua lábia, em matas floridas, em terras cruas e 
velhas, com ou sem saias. E haja audácia! 
Os corpos que seguem são limpos, como sempre foram, redescobrindo 
os segredos esquecidos. 
O sabor do amor mudou as cores dos convivas. 
Se, no passado, foram escuros, agora são claros, como o novo dia. 
 
Vem a noite. 
Vai-se a tarde. 
Chega o torpor, com a apresentação da realidade. 
 
O que foi dúvida concretizou-se em esperança e o desejo de renascer 
trouxe para a cama compartilhada a força da fênix, do dragão e da 
destemperança. 
 
E o palhaço transforma-se apenas em mais uma lembrança. 
Lembro-me de um homem pequeno, sem a alma que desejaria ter. 
Vejo-o desesperado, tentando ser mais do que poderia ser. 
 
Aprendeu a pintar o seu rosto, vestindo-se dos pés ao pescoço com as 
vestes que lhe foram impostas. 
Mentiu para os tolos e para os mouros, gozou dos pais e das crianças. 
 
15 
 
Tinha a cara pintada, mas víamos os seus olhares. 
Desejava ter todas as moças, imaginando todos os gostos, sabendo que, 
por ser um palhaço, não provaria da carne, sonharia apenas com o osso. 
Então, foge de si mesmo, cria histórias surreais, vende caro o seu 
serviço, e diz ser e o que não faz. 
 
Se acredita no que diz, é problema do palhaço. 
Eu prefiro a minha carne bem mais crua e temperada. 
E aceito o seu jogo, pois deseja o que já tive. 
E recolho-me no refúgio e sorrio para o mundo. 
 
Mesmo que, ainda assim, sinta-me imundo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
16 
 
Tiro na testa 
 
Hoje serei um atirador, caçando a mente que, por anos, iludiu o povo 
com as promessas de um todo novo. 
Estudei a vítima e sei das suas fraquezas. 
Sei quando omite, quando mente, quando ri da nossa gente. 
Sei do seu filho, da família, do caminho que escolheu, da fazenda e da 
partilha. 
 
O discurso é populista, trazendo o falso coração à boca, falando com 
entusiasmo, iludindo a todos que aceitaram os papéis de criados. 
Foi miserável e foi corajoso. O aleijado e a esperteza. 
O orador para o trabalho. O submundo e suas riquezas. 
 
Falta-lhe o tato e também a verdade. 
Já é um velho, não um homem de verdade... 
 
Caminho, lentamente, até o ponto escolhido. 
Trouxe comigo a arma, a revolta, uma bala para um tiro. 
Quero o centro da testa, para que não restem dúvidas. 
 
Irá morrer, independentemente da vontade de viver. 
Irá com o vento, levando a vergonha com o nome e, ao seu lado, a 
amargura. 
 
Passo calado pelo povo amedrontado. 
Disfarço-me para não ser notado. 
Subo as escadas rumo ao alvo. 
Isolo-me, preparo-me e aguardo. 
 
Haveria festa após o discurso de retorno, pouco aguardado pelos sábios 
e vangloriado pelos tolos. 
Haveria bebidas geladas, falsos abraços, mulheres bonitas e os novos 
criados. 
Mas hoje, o último som a cortar o ar será o estampido da arma que trago 
comigo. 
Será curto e surdo, certeiro como o abraço de um urso. 
Trarei a justiça para os corações roubados, para as almas que, no 
passado, acreditaram. 
 
 
17 
 
Houve o estudo prévio da história daquele que vai morrer. 
Houve a perda da inocência de quem já jogou para perder. 
Há nas ruas o medo de que tudo retorne,lembrando um passado há 
pouco vencido. 
Há a expectativa de que, sem o velho, o novo renasça, com a morte do 
filho. 
 
Então, escuto, sorrindo aos montes, o aguardado estampido. 
 
Cai o velho. Sangra o povo. 
Correm muitos. Ficam poucos. 
 
Ouço os gritos sem partilhar da euforia de quem aplaude. 
Chegam os parceiros, os seguranças, as mulheres e os amantes. 
Há crianças, há cachorros. 
Tem palhaços em desespero. 
 
Desfaz-se o ciclo, morre outro velho, chora a mulher, ficam herdeiros. 
 
Escondo-me por um momento e aguardo o desenrolar dos fatos. 
Na fuga, confundo-me e mudo os meus passos. 
Fico perdido, pois não há sol, não há chuva. Há muitos sons. 
 
Vejo a mulher solitária, separada da multidão. 
Segue só, absorvida pelo seu mundo, com uma sombrinha na mão. 
Caminhando no escuro, sem a sombra ao seu lado, cobre o corpo e cobre 
o rosto; mas, se sem sol; mas, se sem chuva, fica a pergunta sem mais 
respostas: 
Foi ao sermão? Creio que não. 
 
Apenas sabe que nesse mundo, entre velhos e moribundos, o maldito 
também envelhece. 
 
Lembra-se daquele que se cortou, porque quis, criando a mentira que 
engoliu todo um país. 
Lembra-se da história inventada de um herói, de um homem imaculado, 
das barbas negras que se tornaram brancas, da voz mais grave, de toda a 
prosa. 
 
 
18 
 
Lembra-se e percebe que o velho também morre, que lá no inferno é o 
espeto quem comanda e o capeta quem se envolve. 
Tenta correr, ausentar-se da multidão; mas, se não pode, segue distante 
com a sombrinha, lembrando-se do dia em que um velho a salvaria... 
 
Chego a casa, deixando-a para trás. 
Não faz parte da minha vida e nunca fará. 
 
Voltei feliz com o sangue em minhas mãos, com a força de quem vive 
pelo amor e pela razão. 
 
Então, aguardo, esperando as consequências. 
Se me acham, me condenam. 
Se me esquecem, se agradeço... 
 
Ouço os choros dos canalhas pelos cantos, dos que sofrem sem 
sofrerem. 
Vejo o fim dos seus prazeres. Vejo flores. 
Vejo os gritos de euforia pelas ruas, com o povo mais feliz, livre de mais 
um ladrão, com as amantes sem maridos, com os padres e o perdão. 
E perdoo-me por ter pecado, por ter matado, por, só depois de tantos 
anos, ter me apresentado. 
E vou dormir. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
19 
 
Psicopata 
 
O assassino provou o sangue da vítima. 
Não fora a primeira vez e não seria a última. 
 
Era doce, diferente dos anteriores. 
Talvez o medo interfira no sabor, assim pensou. 
 
Cortou os corpos para não deixar rastros. 
Guardou os corações para os rituais e os cérebros para os próximos 
jantares. 
Aguardou que todo o sangue restante fosse lavado pela água que caía do 
chuveiro, observando a pilha de carnes disformes criada para a sua 
libertação. 
 
Sentia-se mais forte, livre dos últimos detalhes, que insistentemente 
levaram-no de volta ao passado que tanto desejara esquecer. 
Ainda tinha fome, mas agora era diferente. 
Era uma fome que chegava trazendo novas nuances... 
 
De orgulho, de libertação e de prazer. 
 
Carregou os restos daqueles que se diziam homens e deu-os para os 
porcos no quintal. 
 
Gostava do sabor da carne desses animais, alimentados com a escória 
humana, criados livres nos pastos, comendo as frutas que caiam das 
árvores, bebendo das águas da fonte. 
 
Estava tudo pronto. 
Enterrara uma parte dolorosa do seu passado. 
Já poderia caminhar. 
 
Era tarde para uma manhã e cedo para outra noite de sábado, frio e 
nublado. 
Não chovia, mas serenava de tempos em tempos; e o assassino, agora 
liberto, saiu de casa... 
Nu, com o rosto pintado com as cores dos seus guias, com a clave em 
uma mão e a espada na outra. 
Chamava atenção por onde passava, mas não se importava mais. 
 
20 
 
Que olhassem. 
Que o vissem. 
Como sempre fora durante toda a sua vida. 
 
Viam-no, mas não o tocavam. 
Sorriam, sem que fossem sinceros. 
Fingiam... 
A amizade, o interesse e a devoção. 
 
Parou na padaria e pediu um café, sentou-se, teve uma ereção, tomou e 
não pagou. 
Cuspiu na face da atendente e a chamou de escrota, enquanto defecava 
no jornal que roubara da banca. 
Saiu, quebrou os vidros de alguns veículos estacionados, deu um tapa na 
cara de uma cadela louca e correu, gritando frases sem sentido e 
sentindo, no fundo do seu coração, a saudade dos velhos amigos e das 
amigas que, por um tempo, imaginara ter. 
 
Não foi preso, nunca seria e disso já sabia. 
Tinha o corpo fechado, filho de um guia pobre. 
Tinha a força dos ares, das matas, da terra, do fogo e dos prazeres. 
 
Era um novo homem e nunca mais mataria por necessidade. 
A partir de agora seria apenas por prazer. 
Traria consigo, eternamente, a capacidade de matar para se libertar, 
mesmo sabendo que os rituais antigos mudariam para sempre, a partir 
daquele exato momento. 
Pensou no filho que ainda não tinha e na família que o abandonara. 
Havia aceitado que o último ritual viria para libertá-lo das mazelas 
passadas, dos traumas, das infelicidades impostas pelo destino. 
 
Nunca tivera problemas com os seus antepassados, apenas não gostava 
de ser esnobado e ignorado por todos, como se fosse apenas mais um 
dos seus porcos, como aqueles do quintal. 
 
Então, decidira matá-los, esquartejá-los e alimentar-se dos seus 
cérebros, fritos no azeite; 
e dos seus corações, assados na manteiga. 
 
 
21 
 
Que delícia, pensava, assim poderei compreendê-los e receber o perdão 
que nunca precisarei. 
 
Quando mortos, não precisarei de avós, tios e tias para o meu filho, que 
virá para ser um novo rei, livre e desgarrado dos que machucam, porque 
não sabem amar. 
Quando ingeridos, trarão a força dos meus ancestrais, que nus, assim 
como eu, corriam pelas florestas e pelos campos, pelas escarpes e por 
outros planos. 
 
É minha a nova liberdade. 
Não cobrarei as contas que me eram devidas, pois foram pagas. 
 
Nunca mais correria vestido, para sempre seria um novo homem, um 
assassino diferente. 
 
Nu, continuou correndo, xingando os homens e os seus ternos, passando 
a mão nas bundas daqueles que fingiam pureza, chutando na boca os 
covardes que choravam sem qualquer certeza. 
 
Queria e teria mais. 
Seria e não fugiria. 
Mataria e nunca mais morreria. 
 
Seria eterno, porque entendera a eternidade, sem as correntes do passado 
e sem as marcas das falsas verdades. 
Seria frio, imbatível, insensível como sempre desejara ter sido. 
 
Seria o homem nu, correndo pelas novas madrugadas, lembrando-se do 
gosto do sangue daqueles que enterrara no estômago dos porcos, assim 
como no seu. 
 
Estava feliz e realizado, acreditando e vendo claramente, e pela primeira 
vez, o seu novo futuro. 
 
Teria uma família e um filho, para quem ensinaria, como não 
ensinaram-lhe, as mazelas da vida. 
 
Ensinaria o alfabeto, a caminhar e a correr. 
Testaria os seus limites na natureza, como aprendera a fazer. 
 
22 
 
Cantaria os hinos dos rituais para que pudesse dormir, roubaria dos 
quintais outros porcos para que pudesse comer. 
 
E daria a ele um nome, que pudesse escolher. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
23 
 
Louca vida 
 
Vida louca e a baba na boca. 
Boca de trouxa, eterna masmorra. 
 
Vida puta de uma esguia madre, 
meus senhores, meus compadres. 
Vida intensa que foi forte, 
prumo torto rumo ao norte. 
 
Pleito aberto, o som desperto pros covardes, pros espertos... 
Pras senhoras, pros senhores, vinho azedo e carne podre. 
 
Para os filhos do engano, desengano e outro encanto. 
Morte e vida na esperança, pro adulto e com prazer. 
Boca frouxa, fronha suja, um novo encanto, eu e você. 
 
Brocha borrada e a parede pintada. 
Broxa na cama, não pense que engana... 
 
Som nos portais. Também quero mais. 
Cio na boca, sexo e amor. 
Parceiros doentes como os animais.Vozes na mente e o som do tambor. 
 
Ilusões partidas de antigos mendigos. 
Filhos da terra, do ar, de inimigos. 
Pais displicentes de filhos doentes, 
novos caminhos e antigas correntes. 
 
Muda o garoto. Vê novo filme. 
Morre sozinho. Prova do cio. 
É velho, foi homem. Imaturo garoto. 
Madura semente. A criança e o aborto. 
 
Vida louca, não troque de roupa. 
Discurso vazio e o fim de um ciclo. 
Provas forjadas por homens de fardas, 
mulheres vazias, sinceros suspiros. 
 
 
24 
 
Pra tudo o que vive a cor do amor, 
um som. diferente, mais lento que a gente. 
Morte e saúde, saída e comida, 
Amor pela vida e a teta ferida. 
 
Ganhos por fora, dinheiro e prazer. 
Relembre e repense, eu e você. 
Outra melodia e marcas nas faces. 
Durma de noite, se esqueça do enlace. 
 
Pão, carne, sangue, azeite e lembranças. 
Morte pro homem, renasce a criança. 
Do mel me lambuzo como o beija-flor. 
Das carnes me farto, sem nojo e sem dor. 
 
Não. Sim. Talvez. 
Quem sabe, outra dívida. 
Perguntas vazias e apostas devidas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
25 
 
Desabafo 
 
Na tentativa de controlar o vazio, a alma se esquece de viver. 
Os dias parecem iguais, como se fossem curtos ciclos temporais. 
A angústia mantém o coração acorrentado, refém do desespero. 
O medo confunde a mente, desafiando a coragem. 
 
Não há um planejamento a ser executado, pois a batalha é constante. 
A liberdade vem apenas nos sonhos, mesmo que incoerentes. 
Há confusão nos fragmentos dignos de serem lembrados. 
É a culpa, antes de tudo, a responsável pelo caos presente. 
 
Não era assim, mesmo que não fosse prazeroso. 
Havia a curiosidade sobre os segredos da existência. 
Tudo seria possível, mesmo que cansativo. 
Viver seria um eterno desafio, carregado de questionamentos. 
 
É dia lá fora e noite aqui dentro. 
O receio mantém o presente opaco, como se este fosse um fardo. 
Não há a necessidade de iniciar um novo ciclo. 
Viveu-se mais que o necessário nesse curto tempo perdido. 
 
A vida mostrou-se implacável quanto aos erros cometidos. 
Foram muitos, lembranças de incansáveis recomeços. 
A mente quebrou-se e pede socorro à imparcial racionalidade. 
Tenta alcançá-la, em meio à guerra interna travada pelas emoções. 
 
Não adianta chorar, pedir ajuda, correr para o abrigo, mesmo que 
seguro. 
Os fantasmas chegaram para ficar e compartilharão o caminho a ser 
seguido. 
Estamos nas mãos do destino pela primeira vez nessa existência. 
Apenas pairando no caos, aguardando pela teia a que nos prenderemos. 
 
Tudo está confuso e a presente batalha será aquela a definir o futuro. 
As escolhas serão tomadas por terceiros e a mente obedecerá. 
O mundo exterior foi trancafiado, enquanto o corpo abdicou dos 
instintos. 
Tudo é cinza, sem emoções ou desejos, sem quaisquer utopias. 
 
 
26 
 
As decisões não nos pertencem neste exato momento. 
Existe apenas o fluxo universal, percebido pela primeira vez. 
O mundo exterior dita as regras, mesmo que ignorado. 
O corpo abdicou da mente em conflito e diz que sim. 
 
Aceita o caos e não luta contra os novos desafios impostos. 
O tempo passa, enquanto a alma percebe ser velha para o corpo físico. 
Foram batalhas demais no pouco tempo vivido. 
A guerra parece infindável e tem sempre um novo começo. 
 
Estamos cansados por demais: A alma, meus fantasmas e eu. 
Não há interesse em encontrar o melhor nos estranhos. 
O desejo da reconstrução esvaiu-se e não anseia retornar. 
Viveu-se demais em apenas uma vida e a existência tornou-se 
insuportável. 
 
O corpo deseja o descanso e a alma implora pela paz. 
Que sessem os questionamentos e as respostas vazias. 
Que o amor retorne aos jogadores, mesmo como uma possibilidade. 
Que haja vida a ser vivida e não mais do mesmo a ser partilhado. 
 
A prisão está fria por demais desta vez, impedindo a entrada do sol. 
A tortura é psicológica, comandada pelo subconsciente desarranjado. 
Não há coragem para buscar a morte, pois o castigo seria eterno. 
Não há forças para seguir adiante e a esperança esfacelou-se. 
 
Teremos que aguardar o final desta batalha e de outras mais. 
A sanidade retornará e o ser será temporariamente humano. 
A sociedade voltará a ser concreta, embora corrupta. 
Os homens terão a bondade latente, esperando para ser descoberta. 
E o louco controlará a sua mente, perdida em batalhas internas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
27 
 
Domingo 
 
Domingo é dia de supermercado. 
Todos sabem disso desde que o mundo é da gente. 
E, se ainda não se entendem, não serei o insano que mente, mostrando 
para o povo que o mais importante é o gosto do gozo. 
 
Os sabores variam do salgado ao doce, do suave ao forte, do azedo ao 
anormal. 
Gosto de carne crua, molhada pela sua capacidade, ser, de prová-lo 
indefinidamente, até pedir, pelo amor de Deus, para dormir. 
 
Pede, suplica, treme nas bases, mas a cria do mundo sempre quer mais, 
porque, afinal, gosto de gozo é vitamina que fortifica e faz crescer o 
prazer que, pra mim, não sei se pra você, é o melhor em viver. 
 
Por isso vou aos domingos, ao supermercado, pra comprar a carne a ser 
cortada, a cerveja a ser gelada, o docinho para os intervalos e a 
surpresinha da semana, em forma de uma rosa. 
 
Cato os trocados e coloco nos bolsos, entro no carro e assumo o meu 
posto. 
Sigo o caminho conhecido e vou dedilhar o inferno, afinal, amar é 
comprar, cortar, preparar o almoço e o jantar aos domingos, senão, de 
cria, o homem vai ao criador e perde a paciência. 
 
Digo dedilhar o inferno, porque mesmo o caminho se torna um 
tormento. 
Não sei se percebeu, mas o ser humano simplesmente enlouqueceu. 
Tomou chá demais, fumou o cigarro do capeta, cheirou do pó de arroz e 
começou a se achar, porque tem dívidas de carros, casas e prazeres que 
nunca serão dele. 
 
Que pena, tão pouco se enxerga! 
Mas não importa, o importante é a prenda... 
 
Minha casa fica praticamente ao lado do supermercado, mas até o 
percurso torna-se engraçado. 
 
Paro num sinal, paro no segundo. 
 
28 
 
No terceiro, enquanto a luz repete o ciclo do vermelho ao verde, fico 
agarrado atrás daquele caminhão, o da coleta, enquanto o funcionário, o 
mesmo que caminhava entre os carros, chutando latas e vasilhames para 
dentro do caminhão, canta, quase na saída, aquela música das estrelas, 
em que o seu, o nosso e o amor que era dele perderam-se. 
 
Fazer o que? 
Esperar. 
 
E abre e fecha, abre e fecha e ele canta. 
E mal, não como o pica-pau, porque esse sabe cantar. 
 
Bom, como era de se esperar, chego ao meu destino. 
Preparado para a guerra, pois em tempos de feriados, fila de 
supermercado é zona de conflito. As pessoas gritam, choram, rezam, 
arrancam os cabelos, disputam territórios com olhares ameaçadores e 
paqueram, porque em toda guerra também há o sexo, as paixões e as 
traições. 
 
E, no comando, o supervisor das caixas, ridículo, feio e nojento, 
cantando todas, contando anedotas, tentando a qualquer custo fazer, 
mostrar-se e acontecer. 
É verdade, e mulher bonita, culta, inteligente, gostosa e safada também 
tem o seu lugar... 
Senão, não... 
Enquanto espero, com saudades daquele que pelo menos cantava, 
converso com uma senhora sobre a falcoaria e a feitiçaria, o amor e a 
idolatria. 
Até ganho um amuleto de presente... 
Gosto deles, quando vêm de bruxos, pois sei que me entendem e, pra 
isso, me sentem. 
 
Quase uma puta hora depois, consigo chegar ao estacionamento e o 
responsável por verificar se gastamos ou não o nosso dinheiro lá em 
cima, para que sejamos ou não cobrados, brincava com uma pazinha de 
lixo, levantando e abaixando aquela merda de madeira, abrindo e 
fechando a guarita... 
Pazinha pra lá, sensor pra cá, consigo fugir e, enfim, vou cozinhar. 
 
E que delícia! 
 
29 
 
Tem camarão e vai ter linguiça de tira-gosto. 
Tem filée vai ter risoto para o almoço. 
Tem mulher e tem tesão pra sobremesa. 
Tem o odor de quem enseja, tem ereção e tem cerveja. 
E com certeza! 
Ah que beleza! 
 
Domingo, feriado, poesia, um legado, beijo quente, útero são, dois na 
cama, não diga não. 
 
E o anão... Vi por ali. 
O alemão, esse eu não vi. 
 
A bruxaria foi pra panela, com os temperos e outras ervas. 
A alegria pra nossa cama e a ilusão saiu de cena. 
 
Haja domingo, novos retratos, garis cantores, bruxos e cascos. 
Haja desejos para as segundas, que venham muitas, que venham todas. 
Haja mulheres, homens e caixas, haja galãs, moças e postas. 
Haja o amor a ser compartilhado, o perdão a ser pedido, os dedos a 
serem perdidos e novas tardes de domingo. 
 
E, então, meu amigo, serei o galã cantor, o bruxo pegador, o gozo 
diferente, a vida e o instante. 
Serei o rei a ser servido naquela roda de amigos. 
Serei a história e o exílio, a forca e o auxílio, o imprevisto no caminho e 
o cabelo, como um cílio. 
Serei o comedor, o cozinheiro, o gozo por inteiro, o sabor do tempero, a 
espada de um guerreiro, a fome, a peste, a morte e o plebeu que quis ser 
rei. 
 
Mas, hoje, é só domingo. 
Dia da família, dos presentes, dos amigos. E dos vícios... 
 
 
 
 
 
 
 
 
30 
 
Madrugada 
 
Percebi que enquanto escutávamos a penúltima balada do sino da 
madrugada... 
Perdi todo o meu medo, enquanto você, moça forte, temível, corajosa, 
toda prosa... 
Conheceu o seu. 
 
Tocou-a. 
Sequer percebeu, mas sabe que chegou, desafiador, trazendo a dor, o 
amor, o temor e a desesperança, porque as estruturas foram abaladas. 
O jogo virou. 
 
O descendente mar beijou-lhe os pés. 
Você, nascida da água doce, filha das cachoeiras. 
Ascendente das linhagens de Oxum, apenas mais pura, como o sangue 
que, outrora, num dia, foi azul. 
 
Compartilhamos da mesma origem. 
Eu, filho. 
Você, filha... 
 
Nuca de Ossá, de Iemanjá. 
 
Banho nos pés e a bênção da libertação pela água, pela nascente doce, 
pelos amores que deixou pelo caminho, pelas origens, por suas dores e 
dissabores. 
 
Filho e filha, no presente, pais diversos e mães ausentes, a guia e o 
errante, o passado e o instante. 
Fogo, terra, água e ar em comunhão. 
O Akasha sem senãos... 
 
Filho do pai ar e da mãe terra, trago comigo a minha irmã gêmea, a 
guerra. 
Não veio do pai, tão pouco da mãe, apenas chegou e se instalou. 
Trago o caçador, o machado, filho de Oxóssi e de Xangô, que olha por 
Ossá com os seus filhos... 
 
Somos o início e o número primo. 
 
31 
 
Aquele que vem antes. 
Aquele que vem depois. 
Fechando o número dois. 
 
Sinto o seu medo, consigo farejá-lo e já foi o meu, apenas mais 
profundo. 
Conheço o que sente e porque chegou, quando, finalmente, o destino se 
apresentou. 
O destino astuto e rápido, inabalável e implacável, preparado para 
qualquer desafio. 
 
Pois conhece a minha terra, sabe que falo com os animais e o quanto me 
atrai. 
Conheço da sua água e sei como flui, doce, pelas terras das montanhas. 
Sabe da minha guerra, do soldado revoltado, dos loucos aloprados, do 
general e dos macacos. 
Sei que vem do ar, o quanto é doce, sem ser vulgar. 
O quanto ama e teme amar. 
Filha do ar. 
 
Filhos do universo. 
Sangue, fogo e ar a queimar, aguardando pelo mar, por Iemanjá... 
 
Amor, coragem, música, liberdade, presente, saudade, futuro e sanidade. 
 
Jogo virado; e o medo que chegou veio e não sairá, enquanto não deixar. 
Medo de perder o que não tem, de abrir mão da ilusão de ser alguém, de 
doar pra quem quiser, de ir sem ser notada, de trair e se esconder, de 
mentir e se enganar. 
Medo do retorno do passado e do desejo isolado, escondido nas 
entrelinhas de quem você imagina ser... 
 
Fluida, traiçoeira, matreira, intocável e indelével, filha nobre que gosta 
de ditar. 
E bem, não se engane, mente muito! 
Mente! 
Desmente! 
E gosta. 
E como goza! 
 
 
32 
 
Pois é! 
Gosto também e muito! 
E sabe o que faço. 
E sabe de tudo! 
 
E, se gosta e é pura, amo tudo como um puto, me confesso 
impressionado, se valeu cada segundo. 
 
E nas conversas que não ouço, cansei-me de opinar. 
Dorsos de inimigos cultos, que aprenderam a jogar. 
Jogam sujo e se tingem, para ver no que vai dar... 
E o muro segue bambo e mais bambo vai ficar. 
 
Toma uma, toma duas, toma três, sem ser vulgar. 
Bata a quarta, a quinta vez, vamos ver no que vai dar. 
Sejam seis, sejam sete, porque o muro vai ficar. 
Mas, meu Deus, que coisa é essa? 
Começou a balançar... 
 
Caiu uma, duas pedras, caiu toda uma parte. 
E o muro? 
Não tão firme, não tão certo, não tão forte. 
Gostaria de saber da conversa entre os três, da menina e das cobras, da 
entranha e dos reis. 
Gostaria, mas já sei que não vai valer a pena, porque sei do que 
conversam, do escalpo e da contenda. 
 
Papo manso e inteligente do covarde que se omite. 
Concordância e jogo sujo do irmão que não pariu. 
Ouça uma, duas vezes, veja bem o que lhe apraz. 
Dê-me logo o que é meu, o seu nome e a minha paz. 
 
Paz na terra para os homens agressivos e covardes. 
Paz e guerra entre Deuses, Iemanjá e seus rapazes. 
 
Clave, flecha e facão. 
A espada em duas mãos. 
Fogo, água, ar e terra. 
E renasce outra contenda... 
 
 
33 
 
E se ainda não entendeu, vem de tempos ancestrais. 
Ódio seu e ódio meu, dos dragões e dos pardais. 
É o tempo vindo em chamas, vento e fogo pelos ares. 
É a luta pela vida do elemento e de seus pares. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
34 
 
É muito imbecil! 
 
_ Ah! Seu imbecil... 
Pensou que poderia mudá-la, transformá-la, trazer para a sua casa aquela 
que desejou, a moça que pensou ter um dia, a mulher que pra sempre 
teria... 
 
_ Ah! Como é menino... 
Humilhou-se, abaixou a guarda, destruiu a sua vida, jogou tudo para o 
alto sem pensar nas consequências, nem sequer no desencanto... 
 
_ Ah! Se um dia ouviu... 
As piores injúrias, a mulher vinda em fúria, a doença que vem do outro, 
a negação de quem é, a mais pura loucura... 
 
_ Ah! Se engoliu a família que não existia... 
Se permitiu ser usado, se deixou que virasse um capacho. 
 
_ E haja saco! 
É, porque merece e não se enaltece... 
Pois fica daí, aturando o que não precisa, cobrando-se pelo que não fez, 
imaginando o que faria. 
 
_ Eh! Vida louca e insana. 
Achou um dom através de quem não manda. 
Pensou amar e ajudar. 
Foi ao inferno sem reclamar. 
Tentou ser forte pra perdurar, mas vai saber a quem amar... 
 
_ Eh? E agora? 
Vale a pena? 
Vai ter mais pena? 
Vai aturar a deslealdade? 
Vai exigir a verdade? 
Vai cobrar as mentiras veladas? 
Vai procurar outra estrada? 
Vai ser homem ou uma piada? 
 
_ Eh! Pois é! 
A piada... 
 
35 
 
Virou um pária, um homem sem pátria, pensou que o amor perduraria, 
mas viu na loucura apenas o que ela queria. 
Não mudou em nada, nem mudaria... 
Não tentou te enxergar e jurou, fez o que poderia e o que não deveria. 
Foi ao inferno e rastejou. 
Pediu pra voltar e blasfemou. 
Pensou ter encontrado, pensou ter sido amado. 
E não foi. 
 
_ E agora? Ficou velho e pobre. 
Tentou ajudar e terminou num porre. 
Foi humilhado, maltratado, engoliu calado. 
Correu para um lado, fugiu para o outro. 
Aguardou por desculpas, pelo amor, como um estorvo. 
Esperou que mudasse, que entendesse a loucura, mas nada mudou, nem 
mesmo a cor das paredes ou qualquer maldita gravura. 
E agora, bossa nova? 
 
_ Agora não haverá conversas, nem carinhos. 
Haverá a guerra. 
Virão como num turbilhão a ausência e a paciência, a audácia e a 
empáfia, a vingança de quem buscou perseverança. 
 
_ OK, que seja... 
Que nunca se esqueça das dores que sentiu, das humilhações por que 
passou, do quanto foi desprezado, abandonado, maltratado e cobrado, 
porquecomo todo criado, nasceu para estar errado, seu palhaço! 
 
_ E dá pra segurar? 
Dá pra perdurar? 
Dá pra ser feliz? 
Dá pra dizer que sim? 
 
_ Não, não dá! 
Não há porquês. 
E o que fazer? 
Se refazer? 
Tentar não ser? 
 
_ Apenas seja, oriente-se, olhe pros lados, mas vá pra frente. 
 
36 
 
Deixe a loucura que não é sua, a vadiagem que vem das ruas, os filhos 
tortos que não são Deuses, a louca nua e as suas vestes. 
Volte pra casa, a que é sua. 
Não dê mais flores, não dê presentes. 
Olhe nos olhos de quem é gente, de quem conhece quem é que sente. 
 
_ Pois chute o balde e não se cale, aguardará mais uns instantes. 
Esperará pelo contato que, se vier, será bem-vindo... 
Se não vier, outro caminho... 
Vida que segue, porque vivemos... 
Morte iminente, de quem não mente... 
Fim de um amor, que é doente... 
 
E haja amor no coração que ainda bate, que pensou ter encontrado a 
menor das verdades... 
O corpo pede pelo carinho, mas se cansou do desafio. 
E percebeu que existem outros corpos abertos pelo caminho. 
O que não foi nunca será. 
O que seria e quem dirá? 
 
_ Que bom! Que lindo! 
Filosofia! 
E nascerá um novo dia! 
Verá raiar a fantasia! 
Mas volte atrás, seu imbecil, lembre-se bem do que viveu... 
Do que sentiu, quando morreu... 
Das cores fortes que vêm do inferno... 
Da louca nobre e do império... 
 
_ Pois lembrará, agradecendo por quem será, quem foi e quem seria. 
Agradecerá pelas escolhas que fez e pelo destino que virá. 
Levantará a cabeça e assumirá a guerra por que pagou. 
Será insensível e invencível... 
Intocável, sequer imóvel... 
Um novo homem num novo rumo... 
O escritor dos absurdos... 
O rei das flechas e dos machados... 
O criador de um novo mundo! 
 
_ E a loucura? Que se dane! 
 
37 
 
_ E a conduta? Que se exploda 
_ E a vida? Quero outra! 
_ E o amor? Que se entenda... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
38 
 
Manga madura 
 
O cão chupava a manga e secava os pelos, enquanto o papagaio de pirata 
fingia ter um olho só, na nuca, porque era macho e não tinha testa. 
Nenhum fora rei e nunca seria, embora tivessem ascendentes das 
linhagens reais. 
Eram pobres, analfabetos, feios e esquisitos. 
 
Enquanto um latia, o outro remedava e, enquanto um chupava, o outro 
observava, sobrevoando com os dois olhos bem abertos, mais que 
despertos, as praias desertas de águas azuis, com os seus corais e as 
cantigas das sereias. 
 
O cansaço causado pelo sol do nordeste retornaria, em breve, na forma 
de peixes assados e de camarões, de sotaques estranhos e de novas 
visões, como aquela de que ainda se lembra... 
 
O metrô estaria cheio para uma segunda-feira, mesmo sendo domingo, 
dia de futebol, dos atletas heróis e dos artistas medíocres. 
 
Não chovia e não fazia sol. 
O dia apenas aguardava... 
 
Os olhos pesavam na fronte, suplicando para permanecerem cerrados, 
enquanto a língua provava as sobras do gozo da noite anterior. 
O feriado passara e os chocolates começariam a ser consumidos, do 
mais barato ao mais caro, para que não fôssemos exibidos: 
 
_ Bom dia! 
Nova semana. 
Vozes antigas de algumas lembranças... 
 
_ Palavras no quadro e esquemas armados. 
A sorte e a saudade, a vida e a vigília... 
 
O torpor causado pela bebida consumida diminuíra os reflexos, tornando 
lento o movimento; e fraco o pensamento. 
Passara o dia da mentira, sem maiores alardes ou piadas ensaiadas, 
enquanto o velho sol da nova semana raiara mais frio e letárgico que o 
anterior. 
 
39 
 
Gostaríamos de mais, de maiores informações a respeito dos desafios 
que chegariam em breve, mas não poderíamos tê-las, porque sequer 
mereceríamos. 
Por isso aguardaremos a redação terminar o jornal, para que possa ser 
lido, sem ser entendido. 
 
_ Tive outra crise com o Chico, velho inimigo. 
Tentei e não consegui controlar-me. 
Ele cantava e eu suava. 
Ele tocava e me irritava. 
E, se respirava, também incomodava. 
 
_ Foi o pânico e já sabíamos das consequências, por isso fugimos com o 
coração disparado, com as pernas tremendo e a mente em silêncio. 
 
_ Prefiro os saltimbancos vestidos de mendigos, bancando os palhaços. 
Pelo menos são engraçados, como aquele senhor que vimos no banco da 
praça, sentado. 
 
_ Pois é, mas esse também dançava, dava cambalhotas, fazia caras e 
bocas. 
 
_ Perdi novamente a paciência, mas não foi com você, embora tenha 
sofrido as consequências da minha mais recente visita à loucura. 
As cores mudaram e o olfato isentou-se, diminuindo o espaço a ser 
compartilhado e trazendo à tona o instinto, a ser dominado. 
 
_ Precisaria fugir para consertar os danos. 
Cacos de vidro pelo chão e a parede borrada pelo batom vermelho que 
usava, quando, sem graça, visitamos os resquícios de outra maldição. 
 
_ Sinto a vergonha de sempre. 
Não dormi e, antes mesmo que o galo cantasse, iniciei o novo dia, 
tentando rever a melodia que reabriria as portas do que havia sido 
esquecido. 
Não havia luz, apenas as estrelas no céu, formando a velha cruz. 
E, mesmo assim, no intervalo, aconteceu algo inesperado para os poucos 
convivas que se arriscaram a comparecer e a observar as questões 
apresentadas. 
 
40 
 
Choveu uma chuva seca, incapaz de molhar as bocas carentes por novos 
sabores, enquanto provávamos do vinho, da carne e dos amores. 
 
O tempo corria mais rápido que o normal, embora o sono chegasse 
implacável, fechando as possibilidades, trazendo os olhos para baixo, 
aguardando por mais um olhar desejado. 
Não houve tempo para as análises de sempre, tão pouco coragem. 
A preguiça optou por aguardar a chegada do novo sol nordestino, 
planejado há tempos, carregado de surpresas. 
 
Os gostos variaram na noite anterior, antes da insônia. 
Mais uma vez, a evolução do sabor... 
Do amargo ao salgado, trazendo o insípido, ao acaso. 
Ardente álcool e doce melado. 
 
É tarde morna, impaciente, como as mentes insistentes lutando por 
atenção: 
 
_ Não há nucas tatuadas, costas suadas, cores de cabelos, nem pernas 
depiladas. 
 
_ Há o recomeço, vozes passadas, sob esquecidos resquícios, fazendo 
renascer o desejo pelos antigos gostos. 
 
Acabou o feriado e as filas de domingo. 
Os guias foram descansar depois do exílio. 
Novas linhas foram escritas com a loucura desabrochando. 
Os corpos assassinados, inertes, enterrados e sem sangue. 
 
Nova segunda de outra lua, que cresce rumo à próxima semana. 
Os sons mudaram com os novos desejos. 
As verdades foram ditas e não há mais segredos. 
Nasceu a flor, depois de meses. 
Ouviu-se o uivo dos infelizes. 
 
 
 
 
 
 
 
41 
 
Realeza 
 
A princesa vinha de uma antiga linhagem de sangue azul, criada dentro 
de muros de cristais, construídos pela bruxaria que sempre a 
acompanhara. 
Trazia consigo um encanto de família, nascido da luta entre a beleza e a 
inveja, entre o fogo e o dragão. 
 
Havia argumentos legítimos nas bocas dos sábios e dos seus espiões 
quanto à maldição que a acompanhava e às mortes dos que a rodeavam. 
 
Odiavam-na, como odiavam o povo. 
Cobravam-na por uma resolução positiva que trouxesse para o reino 
uma saída e aguardavam em suas bibliotecas e laboratórios pelo retorno 
do sol e dos seres quentes, pois, há tempos, não viam o florescer das 
antigas profecias, mesmo procurando velhas saídas e criando novos 
encantos. 
 
O príncipe nunca fora filho legítimo do rei opositor. 
Nascera pobre, em meio às fezes e à urina dos plebeus de um reino 
inimigo. 
Crescera lutando pela sobrevivência, respeitado nas vielas pútridas por 
onde transitara até que pudesse ser considerado homem. 
 
E de homem foi a mago, lendo o destino através dos olhos de falsos 
amigos. 
Conhecera a fome e o isolamento, a solidão e o sofrimento. 
Tornara-se amargo e decidira exigir do destinoo preço a ser pago pelo 
valor que considerasse justo, independentemente das consequências. 
 
A princesa e o príncipe, o bem e o mal, entre nomes que não entendiam-
nos, sob as rédeas do amor, do ódio e do destino. 
Sangues azuis em pontos opostos, sempre alertas, muito dispostos. 
Contando o tempo, impacientes, isolados pelo mundo, unidos pelos 
pensamentos. 
 
Magos, bruxos e soldados obtusos. 
Generais e suas tropas, almirantes e armadas. 
Feitiços traiçoeiros e verdades a serem contadas. 
O reencontro aguardado e o enigma da empreitada. 
 
42 
 
A princesa conheceu o inferno, enquanto dormia, trazendo em seus 
sonhos respostas às feitiçarias. 
Virgem de alma, desconhecia o medo. 
Criada entre muros, não sabia do mundo. 
 
O príncipe enfrentou a guerra, provando do sangue dos inimigos 
descrentes, angariando aliados e destruindo reinados. De plebeu a rei. 
De inocente a malfeitor. 
Do puro destino a ser seguido à escolha de um novo caminho. 
 
Estradas percorridas de um ao outro lado, contando o tempo, sem o 
esquecimento dos dias e das suas horas, das luas e das suas modas, das 
mãos lavadas e das antigas prosas. 
 
O planeta retornara á origem com a inversão do ciclo. 
Deixou de girar para a direita e trouxe o nascer do sol para o oeste. 
Não existiam mais o verão e o inverno, com a vida fluindo em uma 
eterna primavera. 
Chegara a verticalização e tudo fora reformado, recombinado em novas 
origens e lendas. 
 
As batalhas e os exércitos tinham terminado. 
Os reis e os súditos falavam a mesma língua. 
O oculto e a esperança dominavam. 
O caminho estava livre para os poucos que acreditaram. 
Os muros de cristais foram rompidos, derretendo sob o escaldante sol da 
virada e, após o fogo, viera a água e, após a água, chegara a fome. 
 
O mundo faminto e as línguas mortas. A chegada do ciclo das inversões. 
Uma nova vida, velas e visões. 
 
Para a princesa, veio a purificação e os rituais iniciáticos. Com a queda 
dos muros, transformou-se na sacerdotisa do novo mundo. 
Para o plebeu, dito rei, restou a desolação pela perda do que, antes, 
havia conseguido. 
 
Sexo e sangue em rumos congruentes. 
Desalento e esperança para toda uma gente. 
Tempo que passa, nomes que ficariam. 
Reencontro aguardado. O amor e a feitiçaria. 
 
43 
 
Do cheiro da morte à esperança da renovação, a princesa prostituída e o 
príncipe da razão. 
Reencontro que viria entre os muros de cristais, entre os filhos da magia, 
dos amantes e demais. 
 
Novo mundo sem estradas, sem consolos nas paradas. 
Fome e peste no caminho e o início da jornada. 
Dois amores separados pelo fogo e pelo chão. 
Raios, chuva, lama e terra. 
Cama, casa, campos, eras. 
Conta a história a nova lenda dos plebeus e dos senhores. 
Conta o tempo de outros dias em que o sol queimava a fronte. 
Cantam homens nas tabernas as antigas odes tortas. 
Cortam árvores e rios, se encantam pelas moças. 
 
E a princesa e o plebeu, esquecidos, se encontraram. 
Um viveu, outro morreu, sem saber se um dia amaram. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
44 
 
Avós e netos 
 
A antropologia chegou a um final e foi ligeiro. 
O cansaço e o tempo perdido forçaram o retorno dos veículos e dos 
motores, das buzinas em meio às torres. 
As análises inúteis sobre o comportamento humano precisarão aguardar 
por uma nova oportunidade, por mais que demore. 
A rotina retornará através do isolamento, seja entre as paredes de 
concreto ou entre os analfabetos que insistem em prosseguir, em 
sobreviver. 
 
Voltaremos ao passado e aos traumas causados, como num legado de 
um falso antropólogo. 
 
As meninas retornarão na forma de mulheres educadas pelos revezes da 
vida, com o sangue escorrendo pelas antigas feridas, que não fecham, 
apenas infectam. 
 
Os meninos tentarão esquecer as consequências trazidas pelos 
ignorantes que ignoram, sem pedir desculpas, a sua e a nossa existência. 
 
E, por excelência, tentaremos manter a consciência limpa, para que a 
loucura seja bem-vinda, quando voltar a se manifestar. 
 
O tempo voltará a ser lento, como fora outrora, nos anos em que era 
permitido sonhar e conquistar o seu lugar. 
 
Não há um par, nem pares saltitando pelos locais conhecidos, entre 
quatro paredes ou ao ar livre, nas ruas e nos bares. 
 
Morreu o casal. 
Enterrou-se a desavença. 
Surgiu o absurdo. 
Nasceu a descrença. 
 
Da madrugada à nova noite, brincam nuas as crianças, sem as vestes 
exigidas pelos mais recentes anos de vida. 
Criam desafios e enfrentam o perigo, tentando reaver e recriar a menina 
e o menino que, perdidos, não conseguiram tocar o homem, nem beijar a 
mulher. 
 
45 
 
O útero ainda sangra e o órgão ainda emerge, mas, inertes, não copulam, 
nem confabulam para uma nova concepção. 
Concebe-se a vida sem as exigidas premissas e o respeito é deixado de 
lado, abandonado como o cão que cresceu e deixou de ser inocente. 
 
A educadora vem de longe, carregando nos braços uma nova pilha de 
informações que não serão acessadas, porque nada será lido, sequer 
entendido. 
 
A psicologia sorri, às escuras, daqueles que buscam a ajuda que nunca 
tiveram nos processos anteriores de libertação. 
Individuais, porque assim somos. 
 
O frio retornou com a chegada do outono, sem a chuva que deveria ter 
caído no verão passado, enquanto a fome e a pobreza rondam os quintais 
separados pelas cercas que construímos. 
 
O louco e o homem são dão as mãos. 
O pobre exige o seu pão e os filósofos calam-se, dizendo sins e nãos, 
enquanto late o cão. 
E a vida aguarda, em vão. 
 
Pais, mães, filhos e filhas. 
Cães, cadelas, o frio e o cio. 
 
Novas manhãs para os meninos, que já são homens. 
Novas noites para as meninas e para as mulheres indecentes. 
Novas horas impróprias para as mesmas discórdias. 
Novos caminhos a serem traçados para a nova história. 
 
Mamãe pediu licença e adentrou ao quarto. 
O filho dormia. 
Papai acordou cedo e saiu para o trabalho. 
O dia corria. 
 
A irmã perdeu a virgindade e ganhou alguns trocados, se você não sabia. 
A família se lembrou do dinheiro que deixou no mercado, mas não teria 
saída. 
 
As contas aumentaram e o salário encurtou. 
 
46 
 
A mãe via o filho e o pai não voltou. 
O filho dormia, sorrindo, querendo acordar. 
A filha sabia de tudo, mas não conseguira sonhar. 
 
A mãe não trazia consigo o amor de outrora. 
O pai se cansou do passado, resolveu ir embora. 
 
Famílias paridas sem sorte, perdidas de graça. 
Papais e mamães caminhado, sozinhos nas praças. 
 
As filhas ganhando dinheiro, vendendo os seus corpos. 
Os filhos dormindo, cansados, sonhando com os corvos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
47 
 
Pequenos novos detalhes 
 
Pequenos detalhes retornam às mesas de discussões e os especialistas 
recobram as forças abandonadas no passado, ao acaso. 
 
Novas possibilidades são geradas e a filosofia é fortalecida. 
 
Há paz, após a guerra entre os homens. 
O bem não venceu o mau e a prostituição confrontou a sobrevivência, 
reescrevendo-se o conto do príncipe e da princesa. 
 
O ladrão apresentou-se, trajando a roupa de sempre, com a boca sedenta 
e o bolso vazio. Pensava ser malandro, conviver com a verdadeira 
infantaria, mas do morro, nunca saberia. 
 
Nascera pobre, filho de trabalhador. 
Assim diz. 
E diz ter trabalhado e nunca usufruído dos bens que, num dia, teria. 
 
Nasceu covarde, medroso, vingativo e, como diriam, um traíra. 
 
Se não conhece o peixe, cuidado com os dedos, porque morde. 
E dói. 
Se der azar, arranca-os. 
 
E o danado é gostoso, na panela, porque fora dela, me desespera! 
 
Finge desinteresse, ser mais do que não é. 
A cara é de bom moço, mas não larga mais o osso. 
Morde e lambe o que não lhe pertence. 
Chafurda nos restos da lama que não reconhece. 
 
Echega com os falsos sorrisos e a filosofia da lei, enquanto explora os 
benefícios dos pobres que o pariram, que veem no homem a identidade 
de um menino. 
 
Ladrão branco, sem ser negro, pardo ou mulato, da cor que lhe convier. 
Politicamente correto, transita pela covardia, faz discurso sobre tijolos, 
usurpa as saias e os seus modos, mas não prova do que oferece, 
deixando claro nas suas vestes que tem bem mais do que disseste. 
 
48 
 
Vem de baixo e não aceita. 
Não é mais do que combate. 
Traz nos olhos a inveja. 
Come e bebe sem alardes. 
 
Se tem pai, também explora. 
Se é pai, finge e se mostra. 
Tem na mãe a segurança. 
Com os irmãos pouco se importa. 
 
Vida curta para as questões que chegariam, com veemência. 
Mostrou a cara depois de tudo, fingindo ser mais uma vítima. 
 
E, se engana, também é cego. 
Não vê quem vê, enquanto olha. 
Não se expõe por pouca merda. 
Só dá a mão pra quem a molha. 
 
E o tempo passa celeremente. 
Vozes vazias nas mãos inertes. 
Tem, do seu lado, a arma armada. 
Tem vestes limpas e engomadas. 
Haja ladrão e paciência. 
Haja o jargão e a ciência. 
Venha com o golpe e com a verdade. 
Olhe pro nome e pra idade. 
 
E quem não vê, olha adiante, mas quem percebe se sente inútil. 
Não vai mudar a empreitada. 
Sabe dos golpes e das jogadas. 
 
Conseguia ver a flor, mas não a tinha, não sabia do gosto que viria. 
 
E, da esfera, assim diziam, viria a pirâmide. 
E haja pirâmides! 
E, das pirâmides, o cubo, que, por insulto, quis ser esfera. 
 
E, da primeira à nova era, pulando no circo, quando em quinto, o 
palhaço contou os detalhes da sua história apenas para os iniciados, que 
prosperaram, trazendo as novas flores. 
 
49 
 
Do um ao sete, passando pelo treze, ajoelhando-se em frente à décima-
nona descendente da história terrena. 
 
E viva a terra, o metal, a água, o ar e o dragão de fogo, com muito 
fôlego: 
 
_ E quem diria, você, velho roqueiro, ouvindo Fagner, pois é... 
Pensando nos passarinhos ou nos negócios? 
 
_ Depende dos pássaros e de quais negócios. 
 
_ E quanto tempo teremos com o que virá, sendo dito, benzido e 
maldito? 
 
_ Todo o tempo. 
Para que se apresentem os ladrões. 
Para que vivam em três dimensões. 
Para que escutem tudo, movidos apenas pelas emoções. 
 
Cairá o ladrão. 
Renascerá o trovão. 
Retornarão as emoções. 
 
_ E as monções? 
 
_ Seguirão mais fortes, como se fossem o mar, quando, ao adentrarem 
aos continentes, beijarão a terra com um choro mais doce, menos 
salgado, trazendo a chuva. 
 
E chove nos cristais, nas masmorras do tempo. 
Chove a água dos corpos, dos corvos, dos Deuses e das suas rezes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
50 
 
Amor e conivência 
 
Entendeu muito cedo a estreita relação entre o amor e a conivência e 
construiu, com o tempo, a sua estratégia para chegar aonde queria. 
Desejou ter mais do que poderia e, para que o seu intento se tornasse 
real, corrompeu o amor pela criança, acreditando que a paciência dos 
que o amavam nunca terminaria. 
 
Cresceu, quase chegou a ser um homem e, num determinado momento, 
percebeu o que todos já sabiam. 
 
Não sabia amar. 
 
E a estratégia traçada trouxe a exploração dos mais próximos. 
E, ainda assim, prosseguiu... 
 
Para as contas que eram suas, abria o bolso alheio. 
Pros erros que cometia, pedia desculpas primeiro. 
Do dinheiro que nunca teria, usufruiu sem a licença pedida. 
Dos tombos que deu pela vida, relembrou-se da estratégia escolhida. 
 
Deixou de ser homem aos olhos do mundo e, não podendo ser mais um 
menino, pensou muito bem e escolheu ser a vítima. 
 
Fingiu não saber, ao fazer. 
Perdoou-se por sempre querer. 
Aguardou o momento propício. 
Deu o golpe do fim ao início. 
 
Ladrão das galinhas dos outros, gostava dos quintais com os frutos. 
Cuspia os caroços das mangas. 
Do figo fazia o seu doce. 
Roubava a goiaba e provava... 
Do sumo, do suco das jarras. 
 
Passou pelo fogo cruzado dos olhares que perceberam as técnicas que 
utilizava para sobreviver. 
E errou. 
Não pela escolha que fez, mas porque sentiu-se seguro demais e 
esqueceu-se de esconder a calda, que enorme, resolveu aparecer. 
 
51 
 
Não se preocupava mais em sentar no rabo para apontar o traseiro 
alheio. 
 
E roubava. 
 
Era ladrão e sabiam, mas, ignorante como era, nunca conseguira ouvir a 
verdadeira música. 
Tornara-se surdo, pois o problema não se resume em apenas escutar as 
músicas. 
Torna-se necessário entendê-las. 
E essa é a parte mais complicada na complexa relação existente entre o 
português e o inglês, quando, ao sabermos que ambos são porcos, vemos 
em um, o bigode, e no outro a falta dos dentes. 
 
Há cabelos cacheados e negros ou não há cabelos lisos. 
 
Questão complexa, que não se resolve, uma vez que a cultura vivida 
leva ao entendimento que, obrigatoriamente, será diferente em todo e 
qualquer país. 
 
Agradecidos, agradeceremos pelo resto de nossas vidas à simplicidade 
dos monossílabos e dissílabos nórdicos, sem os quais a sonoridade não 
chegaria ao Rock. 
Mas precisamos aceitar que o Rock não fala português, uma vez que, 
mesmo que os bigodes sejam brancos, negros ou mulatos, trarão para a 
sonoridade os tambores e os tamborins, as violas e as sanfonas. 
 
Percebida a impossível correlação, tenta-se desesperadamente criar para 
a guitarra, tocando-se o violão, enquanto batem nos tambores, sem a 
bateria na questão. 
 
Das letras minúsculas com os refrãos repetitivos, que encantam e 
enfeitiçam, à complexa associação dos caracteres em conjugações 
diversas e desconexas, continuam tentando, sempre confundindo o 
sentido proposto. 
E não acertam, apenas confundem os que dizem ouvir. 
Então, não tentem criar o som em outra língua, pensando e escrevendo 
na sua. 
E vice-versa, como nessa conversa: 
_ Hope and folk. 
 
52 
 
Worst and most. 
Hell and well. 
O mel e o fel. 
 
_ Paz e traz. 
Casa e asa. 
Centena e dezena. 
The house and the mouse. 
 
Mono, bi, tri ou mais, ao som da viola, do bandolim e do berimbau, 
dançando entre as palavras estrangeiras que nunca entenderemos 
plenamente, porque sem lê-las, poderemos apenas sussurrar, enquanto 
gememos sons disformes. 
 
E ainda temos a audácia de enchermos os peitos e dizermos que 
gostamos dessa ou daquela banda estrangeira, fazendo o papel de idiotas 
e ignorantes, ronronando sons e acordes. 
 
Precisamos aceitar que os infernos propostos são diferentes, pois 
também são assim as mitologias que os criaram. 
Os Deuses são os mesmos, mas as representações dos elementos são 
vistas sob óticas diversas. 
Assim como a do ladrão, que rouba, já que escuta e não assimila a 
verdadeira filosofia dos infernos criados, mesmo quando ajoelhado em 
frente às entidades formatadas entre as guerras e as lembranças de uma 
ou outra cultura, que difere da sua. 
 
O ladrão rouba e, por não saber ser ladrão, rouba o pai, a mãe e o irmão. 
 
Mas como o mundo é justo nas suas injustiças, temos as exceções, como 
o português que reconhece o inglês, nascendo roqueiro, vindo do inferno 
nórdico, reconhecendo o inimigo e o ladrão desde o seu nascimento, 
aguardando apenas o momento propício para o início do conflito. 
 
 
 
 
 
 
 
 
53 
 
Outro discurso absurdo 
 
_ Sei, não reconhece o discurso absurdo que acabou de ser proferido, 
mas sabe como interpretá-lo. 
Há um conto esclarecedor das dúvidas que todos têm, ao ouvir o 
discurso. 
 
_ Sim, sei dos detalhes. 
Conta-se do amor manipulado, da fragilidade fingida, da filha 
encomendada e do roubo à família, enquanto o assassino aguarda de 
fora, esperando pelo momento da quebra do respeito, para que as 
verdades sejam ditas e a música entendida. 
 
_ A guerra será declarada em breve e sabemos disso. 
Haverá a oportunidade para que se faça justiça, com o sangue 
escorrendo pela lâmina. 
A espada traráa vingança e os cristais tornar-se-ão vermelhos, como 
nunca o foram. 
 
_ Sim, fará e será. 
Farão e serão. 
 
_ Vencerá, vencerão, mas, primeiro, entenda o conto e escute o outro, se 
assim desejar: 
 
Traz na cintura o cantil vazio. 
A sede aumenta a cada segundo e o sol parece não querer ceder às 
súplicas do caminhante. 
O peso da bagagem é o mesmo, mas sente-a bem mais pesada que no 
começo da empreitada. Os lábios cortados sangram insistentemente, 
enquanto o suor encharca as vestes roubadas, dias atrás, do último 
cadáver que enterrou. 
 
Há dias não chove e a poeira adentrou em todas as passagens que 
encontrou para dentro das suas roupas, das suas esperanças. 
Sente-se sujo, como se fosse um porco que, ao rolar na lama, impregna-
se das patas às orelhas, chafurda e ronca alto, sem que ninguém o escute. 
 
 
54 
 
Os abutres continuam a acompanhá-lo, assim como a seus 
companheiros, sobrevoando as futuras carcaças que virão a se 
apresentar. 
 
Não há saída para a situação e todos sabem que morrerão. 
 
Sente-se no ar o cheiro que vem com o vento. 
Fede a carniça. 
Fede a desespero. 
 
O ouro começa a ser deixado pelo caminho e a urina diminui o seu 
volume, dia após dia, concentrando-se toda vez que são obrigados a 
bebê-la. 
 
Falta pouco para que o sol se ponha e o grupo já sabe que muitos 
sucumbirão ao frio que chegará com a noite, fortalecendo a desolação do 
deserto, deixando-os à mercê dos medos e das paranoias que tentaram 
derrubar. 
 
O sistema caiu, mas foram traídos. 
O exílio foi a única saída. 
Ou fugiam, ou morreriam. 
 
Por isso caminham, ainda persistindo, sob o sol do novo deserto, criado 
pelas bombas dos homens e dos seus guias. 
 
Queriam mais para os famintos, que optaram por segui-los. 
Tentaram construir um sonho, mesmo sabendo da impossibilidade da 
concretização dos desejos plebeus. 
 
Nada deu certo e perderam a batalha, por isso seguem... 
Famintos sob o sol, rumo à noite fria, que sabiam, traria a morte 
novamente. 
 
Continuam a beber o sangue dos que morrem, mas os números 
diminuem a cada novo dia. 
Mantiveram as ideias que os aproximaram e, por elas, morrerão, em 
breve. 
 
Não há cajados mágicos, nem milagres à frente. 
 
55 
 
Apenas seguem rumo ao destino que não escolheram, quando 
acreditaram ser possível reconstruir a humanidade, enquanto civilização. 
 
Os joelhos tremem, o delírio aumenta, as visões confundem-se e o céu e 
o inferno sorriem. 
 
Sente fome e não tem medo, o andarilho. 
Tem sobre os ombros o olhar da morte, obrigando-o a carregar a foice, 
liderando o exército de moribundos que insistiu em segui-lo. 
 
Morrerão, em breve, sem as glórias prometidas, com os mesmos nomes 
que tinham e com as lembranças dolorosas das famílias que deixaram 
para trás. 
 
Alguns cantam os hinos de guerra, enquanto observam a queda dos mais 
fracos. 
 
Eles caem, um após o outro, deixando sobre a areia um rastro de corpos 
torturados. 
 
Ainda conta os dias, implorando para que a sanidade mantenha-se ao seu 
lado. 
Vê pardais, sobrevoando plantações e peixes recém-pescados, presos nas 
antigas redes dos pescadores. 
 
Leva consigo, nos seus bolsos, as duas sementes que ganhou na 
despedida. 
Pretendia plantá-las, mas sabe que não haverá tempo. 
 
Morrerão em breve. 
 
Lembra-se dos perfumes e dos curtumes. 
Veste a roupa nova e prepara-se para a festa. 
Toma um porre, como feito um porco, busca e encontra o êxtase. 
 
Transa, trai, vive e mata. 
 
Chega à liderança que ansiava e se vê como um rei, rindo das 
palhaçadas do duende, vestido de borboleta, babando pelos cantos da 
 
56 
 
boca uma baba grossa, com cheiro de vinho velho, servido nas noites de 
festa. 
 
Levanta-se e caminha sem direção, como faz agora, bebendo do vinho 
que lhe arde à boca. 
 
Prova da caça e sente o estômago. 
Fuma do ópio e recorda-se insano. 
Vê os pássaros, os campos, os filhos e as mulheres... 
 
E morre, definhando sob os bicos dos abutres. 
 
_ E o outro? 
_ Que outro? 
_ O outro conto? 
_ Esse ainda não lhe pertence, mas disso você já sabia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
57 
 
Nova aurora 
 
A fase do isolamento findou-se sem qualquer permissão. 
Não pediu licença e saiu à francesa. 
 
Ficou a confusão criada pelo enigma a ser decifrado, sem respostas 
concretas que possam simplificar as decisões em sins ou nãos. 
 
Será preciso reavaliar o retorno da segurança amorosa e a perda do 
sonho material. 
 
Tudo parece estar mais nublado e as risadas perderam o sentido. 
 
O rumo traçado foi alterado sem qualquer destino concreto com a 
quebra do leme, enquanto o barco segue perdido, guiado por correntes 
desconhecidas. 
 
Os dias passam sem a percepção do tempo, vindos sob outras 
circunstâncias que, agora, apresentam-se estranhas. 
 
É segunda-feira, depois de um domingo, dia que precede a mais um 
feriado. 
Dia interessante e diferente, mesmo para os que trabalham. 
 
O trânsito flui, levemente, enquanto os poucos que insistem em 
caminhar apresentam-se sonolentos e desatentos, como se os 
pensamentos transitassem entre os dias anteriores e o posterior, na ânsia 
de menos um dia de trabalho. 
 
É como se fosse uma pequena faísca de sacanagem, quebrando os 
merecidos quatro dias de descanso do pobre que nunca será rico. 
 
A direção torna-se mais prazerosa e podemos, inclusive, prestar atenção 
em alguns detalhes da cidade que nunca veríamos em um dia comum. 
Quebra-se o paradigma do motorista, sempre absorto entre placas e 
pernas, sinais e cruzamentos, como se a vida existisse apenas dentro dos 
veículos. 
Conseguimos, mesmo que por instantes, observar as construções, as 
placas luminosas, as pessoas e os cães que, com ou sem coleiras, 
defecam nas portas alheias. 
 
58 
 
O dia nasce e segue lânguido, abrindo os olhos com a ressaca do final de 
semana e ansioso pela chegada da terça-feira. 
Hoje não haverá trabalho, apenas estudo. 
 
Não posso dizer que o ânimo é o mesmo de um domingo matutino, mas 
parece ser bem parecido. 
Mudam-se os desejos, as horas e as drogas, porque é segunda-feira. 
 
Seguindo, a primeira droga deve ser consumida imediatamente após o 
café da manhã. 
A depressão deve ser tratada constantemente, porque assim pede a 
mente. 
 
Café, pães, remédios e direção. 
Sala de aula, poucas pessoas, muitas ausências e exceções. 
 
Aprenderemos sobre o direito e os seus efeitos, sem qualquer paciência 
para mais essa ciência, com seus artigos, parágrafos, acordos, ajustes, 
partes e sacanagens. 
 
Prefiro os feriados prolongados sem a quebra do descanso, mesmo que 
curtos, mesmo sem dinheiro no bolso. 
 
Nesse, como estamos duros, não viajaremos, mas no próximo estaremos 
distantes por alguns instantes do ninho que construímos nos últimos 
anos. 
 
Até vejo as gaivotas sobrevoando os peixes sobre a orla, sentindo o 
vento molhado e salgado, com a cerveja gelada e o camarão tostado, 
com o pé na areia e o amor ao lado. 
Conquistado! 
 
Conquista, que da paixão foi à loucura em função de uma única pessoa. 
Complexa, mais que o normal. 
Bela nas suas formas e suave nos seus modos, recém-descoberta por si 
mesma e por aquele com quem escolheu compartilhar a sua história e os 
segredos ocultos dos anos passados. 
 
E vice-versa, tudo descrito na forma de versos. 
 
 
59 
 
Pois segue o dia, pesa o pensamento, trabalha a caneta e sentimos as 
consequências. 
 
As drogas mudaram e não são mais ilícitas. 
Precisam da exposição ao alheio, para que, através da burocracia, 
consigam adquiri-las legalmente nas drogarias, como nunca imaginaram 
que seria. 
 
É isso aí, paranoia e pânico, irritabilidade e ira, impaciência, tédio e 
nostalgia. 
E do outro lado, o bem e o mau naquele conflito astral, aguardando por 
uma brecha nas entrelinhas para que aguerra volte a nos rondar, mesmo 
acreditando que não mais acontecerá. 
 
Nada virá sem a nossa permissão, mesmo que cheguemos ao 
descontrole, mesmo que os coquetéis noturnos extrapolem a capacidade 
racional de reconhecer o dia e a sua energia, porque sabemos que 
estamos mais fortes na parceria proposta e percebemos que começamos 
a tocar nas respostas. 
 
Mentes sadias e entorpecidas pelo lícito e pelo ilícito, aprendendo a 
amar algo além dos seus umbigos, olhando pros lados, acordando 
cansadas, mantendo a jornada rumo ao sagrado em uma segunda-feira 
com cara de domingo. 
 
E, quando saio, continua dormindo, como sempre fez. 
 
Voltarei no almoço para que cozinhemos juntos, com a cerveja em um 
braço e a rosa no outro. Prepararei a carne para o jantar, que assim como 
a noite, chegará mansa, apaziguando os ânimos, aguardando pelos 
próximos medicamentos, pelos novos envolvimentos, como os parceiros 
que chegaram, não pelo acaso, mas pela necessidade de nos 
encontrarmos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
60 
 
O louco nasce novamente 
 
Nascemos, de novo, neste louco mundo, entre as sobras da feira dos 
nobres e as latrinas podres e infectas da plebe. 
Vida louca para muitos, escravos dos poucos que nos presenteavam com 
os seus restos mortais, com a matéria desperdiçada nas orgias. 
 
Não havia comida para muitos loucos, mas havia comida para todos, que 
não eram poucos. 
 
Nasceu, assim, na porta da latrina, pedindo pela vida, mas veio para o 
novo cisma. 
Não veio de preto com a gravata no peito, mas veio feio, asqueroso 
como o camponês sem valia. 
O cheiro ressoava pela noite úmida, filha da névoa trazida das 
montanhas. 
Havia descido feroz, rumando para a foz, exatamente no local em que o 
rio encontrava o mar. 
 
Tinha gosto de sal, o ar. Tinha cheiro de carvão, o mar. 
Tinha a fumaça das torres dos desabrigados e, ao seu lado, um cão 
perdigueiro, perdido na capital do mundo inteiro. 
 
Nasceu sem ser o primeiro, mas nasceu inteiro, levado pelos braços 
desesperados daquela que, pelo caminho, perdeu-se da força que viria e, 
à revelia, desistiu do que queria. 
 
Foi deixado, abandonado. 
Chorou e repudiou. 
Tentou amar e odiou. 
E das latrinas fedidas ao seio da capital do mundo, construiu o 
personagem que deveria ser. 
 
Nascemos loucos, transviados, ensandecidos pelo entendimento da mais 
mera possibilidade de um dia chegarmos a tentar poder aprender. 
Bilhões de paranoicos, donos da verdade, transitando da porta à janela, 
das casas à cidade. 
 
Não trazemos conosco as lembranças do que fora a única verdade. 
 
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Esquecemo-nos, porque, assim, permitiu a caridade daqueles que nos 
enviaram. 
E chegamos, assim como cheguei e como chegou aquele que nasceu 
fedendo a sal, nas latrinas, em meio às névoas do mau. 
 
Nasceu bom, puro como mais um mortal, antes imortal, enquanto luz ou 
provençal. 
Amigo meu, cresceu sob os peixes mortos, caçando-os, cheirando-os, 
comendo-os, sentindo-os. 
Fedia a fezes nobres, comia as sobras dos porres, falava da vida dos 
pobres e nunca foi esnobe, porque vivia da forma que queria, se assim 
poderia, o menino sem família. 
 
O porto seguro não existiria, porque a guerra chegara às portas dos 
bastardos e dos abastados. 
Chovia fogo nas noites mais frias e a lâmina deixara de ser a rainha que 
dominara um mundo. 
 
Pobres, ricos, filhos, pais, normais, provençais, crianças de colo, o 
ferreiro e o astrólogo. 
 
A guerra pelo menino da latrina, fedido, vestido de farda verde, sem os 
pais da guerra, 
mas no campo de batalha da insana sociedade arcaica, vaidosa e 
perigosa... 
 
Sangue, fezes, vozes e novas vestes para o filho das intempéries, para o 
menino que tentou ser homem e se perdeu nas esquinas daqueles que 
não o conheceram. 
 
Música, vinho, pulhas e cios para o pobre que nasceu rico, sem nomes e 
sobrenomes, filho das putas renascidas no exílio. 
 
Nasceu sem a vaidade exigida aos de menor idade, não sabia das 
consequências das suas escolhas e jamais teria qualquer referência a ser 
seguida como a única verdade, na essência. 
 
Ausentou-se das iniciativas válidas, comeu da merda cortada à navalha, 
tentou sobreviver apenas como mais uma traça pelas praças, lambendo 
velhos corpos e provando das migalhas. 
 
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Sentiu a noite mais fria, provou o gosto da vagina vazia, observou fotos 
daqueles que não queria e escondeu-se dos poucos que tentaram, sem 
alarde, dizer-lhe que alguma merda teria valia. 
 
Pobre e louco, fedido e doente, nasceu para um mundo ao qual não 
pertencia. 
Quis sem saber se poderia e tentou ser o que nunca seria. 
 
E das fotos levadas, às escondidas, nas bolsas vadias, percebeu que, da 
sua, nenhuma nova história viria. 
Nunca teria lugar, por se tratar de outro qualquer, branco sem as cores 
desejadas, sem os cabelos enrolados ou os terninhos usados. 
Podre, como nasceu para ser, filho de pulha, criado por vadios, lambido 
à revelia e desejoso pela morte, que num belo dia, ressurgiria. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Mais mentiras 
 
A sacana carregava a foto de um amor do passado ao seu lado, enquanto 
o bobo, cansado de ser humilhado, fingia não ligar para o que se passara, 
para os suspiros fingidos, nem sequer para os resultados. 
 
Mas, como nem todo bobo é corno e todo esperto sabe ser usado, 
preferiu esperar para conferir, mesmo que perdendo; enquanto ardia no 
sossego, aguardando pelo momento exato para que o jogo pudesse ser 
jogado, trocando os búzios por um novo ente desperto a um novo 
confronto aberto. 
 
Foi-se o dia. 
Veio à tarde. 
 
Caiu no frio, na noite de um novo desafio, filho da mesma velha afronta. 
A luta entre o negro e o branco, entre a mentira cantada sob prantos e a 
verdade e os seus desencantos. 
 
O bobo fora branco e a foto era preta. 
O corno fora preto e o branco não tinha tretas. 
 
Para disfarçar, as fotos vinham em fileiras. 
De um lado, as da mãe, que nunca teve maneiras. 
E do outro, as do puto, que não gostava da galinha à brasileira. 
 
Jantar servido e gosto de vingança. 
Preto no branco e o branco pelos cantos, sob a luz do velho encanto, que 
quebrara-se sem o consentimentos dos putos, dos filhos, das mães, de 
qualquer senhorinha que viesse a ter novamente a coragem de mentir e 
fingir ser feliz ao seu lado. 
 
Ele sabia o que queria. 
Ela sabia que fingiria. 
O tempo arderia e também permitiria. 
 
Viria o frio, como fera, enjaulado no coração dos poucos que esperaram. 
Foi-se a vida, como era, refugiada nas gretas da casa que tiveram. 
 
Foto escondida nas entrelinhas de uma pura fingida. 
 
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Guerra aguardada e preterida em favor de mais uma última chance na 
vida. 
 
E, como toda chance tem suas nuances, sem mais conversas fiadas 
criou-se a história da pulha e da masmorra, assim como o conto do 
cinzeiro e do aquecedor, a ser contado em outro momento, 
menos propício que o de hoje, porque aos domingos os pássaros cantam 
mais alto e os bêbados fingidos ignoram a chance perdida de um dia 
terem sido machos. 
 
Os cães ladram, enquanto conta-se pelas avenidas a história de quando o 
príncipe encontrou-se com a princesa. 
 
Dizem por aí que o príncipe nunca o fora. 
Contam que a princesa, de pura, não tinha nada. 
Ainda assim, encontraram-se e comungaram sob as vestes brancas do 
pedófilo de plantão, sem o devido sermão e ao mais dos benditos dos 
sons. 
 
Maldito destino, frio e liso, duro e certeiro, pai de um filho besta, sem a 
mãe que nunca fora escrota, ou a filha que entendera as suas fraquezas. 
 
Noite alta de lua cheia, gosto na boca da última ninfeta, tabaco e incenso 
pelo ar, álcool e drogas sobre a mesa, solidão traçada à faca e à marreta. 
Mundo torto de mães doentes, filha impura e inocente, mentiras 
contadas aos poucos prescritos, o altar e os santos dos que ainda 
consentem

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