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2018 Metodologia do ensino da Física Profª. Juliana Machado Copyright © UNIASSELVI 2018 Elaboração: Profª. Juliana Machado Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. M149m Machado, Juliana Metodologia do ensino da física. / Juliana Machado – Indaial: UNIASSELVI, 2018. 241 p.; il. ISBN 978-85-515-0175-7 1. Física - Estudo e ensino (Superior) – Brasil. 2. Professores de física - Formação – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 530.7 III apresentação É muito provável que, ao iniciar uma disciplina de Metodologia do Ensino de Física, você, estudante de licenciatura em Física, espere aprender um conjunto de métodos de ensino. Essa visão é bastante compreensível tendo em vista as origens históricas da didática, que até hoje influenciam o modo como esta é percebida no senso comum. Nessa visão, às vezes espera- se das disciplinas didático-metodológicas que ensinem técnicas de como ensinar bem qualquer conteúdo, de como ter "domínio de classe" ou até de como organizar bem a disposição do conteúdo do quadro-negro para os alunos o copiarem. Ao longo da evolução histórica da Física, muitas concepções fortemente enraizadas no pensamento científico precisaram ser revistas. É o caso, por exemplo, das concepções clássicas de espaço e tempo, das teorias corpuscular e ondulatória da luz, dos modelos atômicos, entre muitos outros que poderiam ser citados. O mesmo ocorreu com o que sabíamos a respeito da didática e metodologia de ensino. Ideias antigas, como a de um método capaz de ensinar qualquer coisa a qualquer pessoa, ou a de que a mente do aluno é como uma tela em branco a ser preenchida pelo professor, não resistiram às descobertas mais recentes sobre como os sujeitos aprendem e sobre a própria origem do conhecimento científico. Além disso, a própria escola passou por muitas mudanças desde então. A universalização do ensino fundamental e médio, a partir dos anos 1970, trouxe à escola um público que, até então, não a frequentava. Novas realidades sociais e econômicas vêm mudando constantemente nossa sociedade. Nossas relações com a ciência e a tecnologia também vêm passando por diversas e relativamente rápidas transformações. Frente a tantos desafios, já não basta discutir sobre como ensinar. Mais do que isso, precisamos falar sobre o que, por que e para quem ensinar. Esse é o convite que fazemos a você, acadêmico, nesse livro de Metodologia do Ensino de Física. Nele, esperamos que possamos desenvolver um diálogo instigante nessa direção, capaz de motivá-lo a buscar um olhar cada vez mais crítico sobre a sua tarefa como futuro professor de Física. Para isso é fundamental que você não se limite a uma leitura passiva do material, mas procure se engajar de fato nas questões que são propostas ao longo dos tópicos e desenvolver as atividades sugeridas. É esse engajamento que fará toda a diferença. Realizar as leituras mais de uma vez também favorece (muito!) a compreensão. São indicados, também, materiais complementares, com o objetivo de ampliar e aprofundar os assuntos discutidos. Não deixe de consultá-los, pois foram escolhidos cuidadosamente para enriquecer a sua formação. IV É fato que muito daquilo que é importante para a boa prática de ensino nasce, justamente, da prática, do exercício diário da docência. Por outro lado, a prática sozinha, sem reflexão, sem provocações e sem questionamentos, tende a se autorreproduzir acriticamente, e pode levar à pura repetição e ao esvaziamento de sentido. Por isso é necessário que ao futuro professor seja ofertado, pelo menos, algum ferramental de análise que o auxilie a construir o significado do seu trabalho e a refletir criticamente sobre as questões que são próprias da prática docente. Esperamos que a disciplina de Metodologia do Ensino de Física ajude você a desenvolver seu próprio entendimento da diferença entre "dar aulas" – algo que, em princípio, qualquer um pode fazer – e "ensinar Física", que requer algo mais que isso. Que tenhamos sucesso e possamos seguir evoluindo em nosso trabalho como professores de Física! Desejo votos de um bom trabalho a todos! Profª. Juliana Machado V Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VI VII UNIDADE 1 – CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO ..................................... 1 TÓPICO 1 – ORIGEM DO CONHECIMENTO ................................................................................. 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O PROBLEMA DO CONHECIMENTO ........................................................................................... 5 3 EMPIRISMO E INDUTIVISMO........................................................................................................ 6 4 POPPER E O FALSIFICACIONISMO .............................................................................................. 12 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 23 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 25 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 26 TÓPICO 2 – SUJEITO DO CONHECIMENTO ................................................................................. 27 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 27 2 CONCEPÇÕES ALTERNATIVAS ..................................................................................................... 28 3 TRATAMENTO DIDÁTICO DAS CONCEPÇÕES ALTERNATIVAS ...................................... 32 4 OS OBSTÁCULOS E A EPISTEMOLOGIA DE GASTON BACHELARD ............................... 35 5 CONHECIMENTOS: DO CIENTISTA E DO ALUNO ................................................................. 39 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 41 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................42 TÓPICO 3 – CONCEPÇÕES DE ENSINO E OS TRÊS MOMENTOS PEDAGÓGICOS ......... 43 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 43 2 CONCEPÇÕES DE ENSINO .............................................................................................................. 44 3 OS TRÊS MOMENTOS PEDAGÓGICOS ...................................................................................... 50 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 55 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 56 TÓPICO 4 – ABORDAGEM HISTÓRICO-FILOSÓFICA PARA O ENSINO DE FÍSICA ....... 59 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 59 2 ANEDOTAS: NEWTON E A MAÇÃ ................................................................................................. 59 3 HISTÓRIA DA CIÊNCIA COMO CAMPO DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS ...... 61 4 HISTÓRIA DA CIÊNCIA NO ENSINO .......................................................................................... 61 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 72 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 75 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 76 UNIDADE 2 – LITERATURA DIDÁTICA PARA O ENSINO DE FÍSICA E NOVAS TENDÊNCIAS DIDÁTICAS ...................................................................................... 79 TÓPICO 1 – DO COMPÊNDIO AO LIVRO DIDÁTICO ................................................................ 81 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 81 2 TRAITÉS E COURS .............................................................................................................................. 82 3 PROJETOS ESTRANGEIROS TRADUZIDOS NO BRASIL ....................................................... 85 4 PROJETOS DE ENSINO ELABORADOS NO BRASIL ............................................................... 90 suMário VIII 5 LIVROS DIDÁTICOS .......................................................................................................................... 96 6 A TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA....................................................................................................... 97 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 103 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 104 TÓPICO 2 – ATIVIDADES EXPERIMENTAIS NO ENSINO DE FÍSICA ................................... 107 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 107 2 EXPERIÊNCIA E EXPERIMENTAÇÃO ........................................................................................... 107 3 ATIVIDADE EXPERIMENTAL .......................................................................................................... 112 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 122 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 123 TÓPICO 3 – MODELOS E MODELIZAÇÃO .................................................................................... 125 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 125 2 OS MODELOS E O ENSINO DE FÍSICA ........................................................................................ 125 3 MODELOS MATEMÁTICOS ............................................................................................................ 132 4 MODELOS COMO ANALOGIAS .................................................................................................... 137 5 MODELOS COMO MEDIADORES ................................................................................................. 138 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 144 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 146 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 147 TÓPICO 4 – PLANEJAMENTO E AVALIAÇÃO INDISSOCIÁVEIS ........................................... 149 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 149 2 PAPEL DO PLANEJAMENTO NO ENSINO .................................................................................. 150 3 AVALIAÇÃO: TIPOS E FINALIDADES .......................................................................................... 155 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 158 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 159 UNIDADE 3 – PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DE FÍSICA .................................................... 161 TÓPICO 1 – LEI DE DIRETRIZES E BASES E DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO E O NOVO ENSINO MÉDIO ................................................ 163 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 163 2 A LDB ...................................................................................................................................................... 164 3 AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA .............. 165 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 174 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 175 TÓPICO 2 – PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E ORIENTAÇÕES CURRICULARES .............................................................................................................. 179 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 179 2 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO ......................... 179 3 ORIENTAÇÕES EDUCACIONAIS COMPLEMENTARES AOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS – PCN+ FÍSICA ........................................................................... 185 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 194 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 195 TÓPICO 3 – TECNOLOGIAS NO ENSINO DE FÍSICA ................................................................. 199 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................199 2 SIGNIFICADOS DE TECNOLOGIA ............................................................................................... 199 3 REAL, DIGITAL E VIRTUAL ............................................................................................................. 200 IX 4 INTELIGÊNCIA COLETIVA .............................................................................................................. 202 5 CONHECIMENTO CIENTÍFICO: RELAÇÃO ENTRE REAL E VIRTUAL .............................. 204 6 VIRTUALIZAÇÃO E ENSINO DE CIÊNCIAS .............................................................................. 207 7 VIRTUALIZAÇÃO E APRENDIZAGEM ........................................................................................ 208 8 AS TECNOLOGIAS NO ENSINO .................................................................................................... 210 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 214 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 215 TÓPICO 4 – O ENFOQUE CTS NA EDUCAÇÃO CIENTÍFICA ................................................... 217 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 217 2 O QUE É CTS? ....................................................................................................................................... 218 3 CIÊNCIA NA CTS ................................................................................................................................ 219 4 TECNOLOGIA NA CTS ...................................................................................................................... 220 5 SOCIEDADE NA CTS ......................................................................................................................... 221 6 EDUCAÇÃO E CTS .............................................................................................................................. 222 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 227 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 231 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 232 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 235 X 1 UNIDADE 1 CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • identificar algumas limitações das perspectivas empiristas e positivistas do conhecimento científico; • compreender alguns aspectos básicos da relação entre sujeito e objeto na produção e apropriação do conhecimento científico; • caracterizar as concepções de ensino e suas relações com concepções sobre o sujeito e sobre o conhecimento; • identificar limitações, desafios e possibilidades das abordagens histórico- -filosóficas no ensino de Física. Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – ORIGEM DO CONHECIMENTO TÓPICO 2 – SUJEITO DO CONHECIMENTO TÓPICO 3 – CONCEPÇÕES DE ENSINO E OS TRÊS MOMENTOS PEDAGÓGICOS TÓPICO 4 – ABORDAGEM HISTÓRICO-FILOSÓFICA PARA O ENSINO DE FÍSICA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 ORIGEM DO CONHECIMENTO 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, iremos problematizar as concepções de conhecimento científico do senso comum; conceituar a epistemologia e discutir sua relevância para a formação do professor de Física; examinar algumas das críticas às concepções empirista e ao positivismo-lógico; introduzir as concepções epistemológicas de Popper e Kuhn e discutir algumas implicações das epistemologias pós-positivistas ao ensino de Física. Para começar, dedique alguns minutos para pensar e responder à questão proposta a seguir. Você também pode discuti-la com seus colegas e com o professor e/ou com os tutores do seu polo. • Como você desenvolveria uma atividade de ensino que tivesse o objetivo de convencer seus alunos de que a Terra não é estacionária, usando para isso apenas dados naturais observáveis no cotidiano deles? UNI Como foi? Fácil? Registre seus pensamentos, pois nós voltaremos a essa questão mais tarde. Como você deve ter notado a partir do título deste tópico, nosso curso inicia com uma discussão sobre a própria natureza do conhecimento científico, deste que você, como futuro professor de Física, será um importante porta-voz. Como ponto de partida, na próxima página você verá três propostas. Após ler cada uma delas, indique o seu respectivo grau de concordância, desde zero (nenhuma concordância) até 5 (concordância total), sendo 1 até 4 graus de concordância parcial. UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 4 • Proposta A "A Física estuda determinados fenômenos que ocorrem no Universo. O método que utiliza para conhecer esses fenômenos é simplificadamente o seguinte: observar repetidas vezes o fenômeno destacando fatos notáveis. Utilizando aparelhos de medida, desde o relógio para medir o tempo e a fita métrica para medir comprimentos, até instrumentos mais sofisticados, determina a medida das principais grandezas presentes no fenômeno. Com essas medidas, procura alguma relação existente no fenômeno tentando descobrir alguma lei ou princípio que o rege. Em resumo, o método da apreensão do conhecimento da Física é o seguinte: a) observação dos fenômenos, b) medida de suas grandezas, c) indução ou conclusão de leis ou princípios que regem os fenômenos. Esse método de conhecimento é denominado método experimental.'' FONTE: RAMALHO, F.; FERRARO, N. G.; SOARES, P. A. T. Os fundamentos da Física. V. 1. 5. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 1989. • Proposta B O conhecimento físico é um conhecimento racional, dedutivo e demonstrativo. O método principal que ela utiliza é a dedução: a partir de certos axiomas, princípios ou leis gerais, os quais possuem validade universal, o cientista deriva logicamente consequências para situações particulares. É assim que a Física pode produzir explicações, demonstrações e previsões. Um exemplo de dedução desse tipo é o seguinte: Lei geral: os metais se expandem quando são aquecidos. Situação particular: este fio de cobre variou sua temperatura de 20 ºC para 40 ºC. Conclusão: este fio de cobre se expandiu. Se a lei geral e a situação particular forem verdadeiras, a conclusão em qualquer demonstração lógica desse tipo tem que ser verdadeira. Ademais, demonstrações desse tipo na Física podem ser matemáticas. Assim é que, a partir de uma lei geral na forma de uma equação, por exemplo F = ma , é possível, através de um processo de dedução, prever, demonstrar e explicar vários sistemas mecânicos particulares. Grau de concordância 0 1 2 3 4 5 Grau de concordância 0 1 2 3 4 5 TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 5 • Proposta C As teorias e leis da Física não podem ser provadas experimentalmente. Elas não são retiradas da experiência: elas são inventadas, antes de serem observadas. A dedução lógica também não é capaz de provar proposições científicas. Na melhor das hipóteses é possível provar que um certo conhecimento científico não é verdadeiro e que, portanto, deve ser refutado. É dessa maneira que a ciência evolui: algumas ideias são demonstradas como falsas, o que abre espaço para surgirem teorias novas ou aperfeiçoamentos nas antigas. Feito? Para manter um registro das suas ideias, sugerimos que você escreva o que o motivou a concordar e a discordar com as propostas apresentadas.DICAS 2 O PROBLEMA DO CONHECIMENTO Certamente, você deve ter notado que todas as três propostas descritas anteriormente nada mais são do que respostas possíveis a uma mesma questão. Você conseguiria enunciar que questão é essa? Uma maneira de fazê-la é a seguinte: "Como se alcança o conhecimento?". Inicialmente, ao fazermos essa pergunta estamos nos referindo àquele conhecimento que ainda não está pronto nos livros; ainda não está dado, alcançado; é um conhecimento novo. Existe um amplo espectro de respostas a essa pergunta, que têm sido buscadas por um campo dentro da Filosofia denominado de Epistemologia. Embora você talvez não tenha, até hoje, feito essa pergunta a si mesmo de maneira explícita, todos nós assumimos implicitamente alguma concepção sobre o conhecimento, a qual você teve a oportunidade de explicitar nesse momento. Afinal, por que estamos falando de Epistemologia em um livro de metodologia do ensino? O que essa área da Filosofia pode ter de relevante para nós, professores de Física? Grau de concordância 0 1 2 3 4 5 UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 6 Primeiro, porque sabe-se hoje que há relação entre as concepções de ciência (no sentido de respostas admitidas implicitamente para a pergunta anterior) e as questões de o quê, por quê e como ensinamos ciência. Além disso, note que a pergunta colocada antes também tem sentido no contexto da sala de aula, afinal, o conhecimento científico com o qual trabalhamos é, do ponto de vista do aluno, um conhecimento novo do qual ele precisa se apropriar. 3 EMPIRISMO E INDUTIVISMO Uma concepção extremamente difundida intuitivamente no senso comum (mas também, muitas vezes, na escola) é a de que a ciência é derivada diretamente a partir dos fatos, os quais podemos acessar através da experiência. Essa ideia básica também está na essência de uma posição filosófica conhecida como empirismo, que está presente em algumas teorias do conhecimento. Na visão empirista, o conhecimento verdadeiro reside no objeto a ser conhecido. O conhecimento seria, portanto, alcançado através dos dados da experimentação e da observação, obtidos através dos órgãos dos sentidos. A partir de observações e experimentações cuidadosas e realizadas muitas vezes, poderíamos induzir a verdade factual dessas observações. Por exemplo: observamos que o Sol nasce a cada 24 horas. Notamos que ele assim o faz ao longo de todo o ano. Também observamos que isso ocorre em diversos locais da Terra. Após muitas e cuidadosas observações, concluímos que o Sol sempre nascerá a cada 24 horas. O tratamento dos dados assim obtidos é o que – na visão empirista – dá origem à descoberta das leis que governam o mundo físico e natural. O que significa induzir? Para esse contexto, podemos considerar como a seguinte forma de pensar: Princípio da Indução Se um grande número de As foi observado sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses As observados possuíam sem exceção a propriedade B, então todos os As possuem a propriedade B (CHALMERS, 1993, p. 36). Por causa da importância do pensamento indutivista ao empirismo, muitos autores usam a expressão empirista-indutivista para caracterizar essa teoria do conhecimento. Um dos principais autores ligados ao programa empirista é Francis Bacon, filósofo inglês. Bacon pretendia criar um método infalível e perfeito de se chegar ao conhecimento verdadeiro. Para ele, o intelecto humano é repleto de falsas noções, ou ídolos, que impedem o acesso à verdade. É por esse motivo que, para Bacon (2002), a verdadeira ciência deveria se ater exclusivamente ao experimento, e dele induzir a verdade. TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 7 “[...] toda verdadeira interpretação da natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e adequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga a natureza e a própria coisa” (BACON, 2002, p. 26). FIGURA 1 – FRANCIS BACON (1561-1626) FONTE: Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/ Francis_Bacon#/media/File:Francis_Bacon.jpg>. Acesso em: 24 maio 2018. John Locke, David Hume e Auguste Comte foram pensadores que representaram outras variações do empirismo. Este último, particularmente, é considerado um dos principais pensadores que fundou a corrente filosófica positivista, que mais tarde deu origem ao positivismo lógico. Positivismo lógico Corrente filosófica que associa o pensamento empirista tradicional ao formalismo lógico- matemático. É com base nessa associação que os positivistas lógicos respondem à pergunta: "Como se alcança o conhecimento?". Surgido no início do século XX, foi desenvolvido pelos membros do chamado Círculo de Viena, sob a liderança de Moritz Schlick. Para os positivistas lógicos, o conhecimento verdadeiro é aquele que pode ser provado cientificamente com base nos dados sensíveis, na indução e na lógica matemática, ou seja, que pode ser verificado. NOTA UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 8 Se o conhecimento está, de fato, no objeto, poderíamos acessá-lo diretamente através dos órgãos dos sentidos. Um dos nossos sentidos mais importantes é a visão. Então, se dois observadores humanos, equipados com o mesmo aparelho visual, olham para um mesmo objeto, ambos deveriam ter as mesmas experiências visuais e relatá-las equivalentemente. Será que é isso o que acontece? Observe a figura a seguir. O que você vê? Mostre-a a mais alguém próximo de você e conversem sobre o que podem ver nessa imagem. Vocês viram as mesmas coisas? Se você vê apenas uma figura, observe por um pouco mais de tempo. FIGURA 2 – FIGURA DE GESTALT FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.com/ pin/521995413033573783/>. Acesso em: 24 maio 2018. E será que se você vir novamente essa imagem amanhã, terá a mesma impressão que teve na primeira vez em que a viu? Presumivelmente, a imagem formada na retina de cada um dos observadores, a qualquer tempo, é a mesma. No entanto, muitas vezes (assim como agora), observadores diferentes "veem" coisas diferentes no mesmo objeto. Isso significa dizer que a experiência visual não é determinada exclusivamente pelo objeto. TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 9 FIGURA 3 – DETALHE DE “MERCADO DE ESCRAVOS” (1940), PINTURA DE SALVADOR DALÍ FONTE: Disponível em: <http://www.dali-gallery.com>. Acesso em: 15 maio 2018. Pense agora em imagens científi cas, tais como células vistas sob um microscópio ou imagens de raios-X do pulmão de um paciente. Se é necessário, na maioria das vezes, longo treino e formação para capacitar alguém a "ver" determinadas coisas nessas imagens, então parece que aquilo que é "visto" não depende exclusivamente do objeto em si. Ao explorar essa questão, Hanson (1958) nos convida a imaginar um cenário que remete ao problema que propomos a você no início desse tópico. No cenário imaginado por Hanson, Johannes Kepler observa o nascer do Sol do alto de uma colina. Ao seu lado, encontra-se Tycho Brahe. Como sabemos, para Kepler, o Sol está fi xo e é a Terra que se move, enquanto para Tycho é o contrário: a Terra é imóvel e o Sol é que se movem em torno dela. A questão feita por Hanson frente a esse cenário é: Tycho e Kepler veem a mesma coisa ao observarem o Sol nascente? A questão aqui não é de natureza fi siológica. Claramente, as imagens do objeto físico Sol que se formam na retina de indivíduos com visão normal são basicamente iguais: ambos veem um disco amarelado-esbranquiçado sobre um fundo de tonalidades azuis ou avermelhadas. No entanto, tanto Tycho quanto Kepler podem apelar a essa experiência visual como fonte observacional de suas duas – diferentes – teorias. Como é possível que a mesma observação dê origem a conceitualizações diferentes e até mesmo opostas entre si? Nesse sentido, é UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 10 como se Tycho e Kepler acabassem "vendo" coisas diferentes ao observarem o Sol nascente. Tycho e Kepler estão para o Sol como você e outra pessoaestão para a Figura 3, quando você vê um casal se beijando e a outra pessoa vê o rosto de um homem idoso. O ponto levantado por Hanson, cujas variações também foram discutidas por muitos filósofos da ciência, é que as observações de fatos da experiência não são "puras", mas são elas próprias carregadas de teorias prévias, de tal modo que aquilo que percebemos não é uma simples "absorção" do objeto que nos chega diretamente através dos órgãos dos sentidos. O estímulo visual puro, na forma de raios de luz que atingem a retina do sujeito que observa o objeto, não produz por si só nenhuma afirmação sobre o que está sendo visto. Mesmo antes de poder formular uma afirmação sobre um objeto que observamos, fazemos uso de um certo referencial conceitual de fundo e de algum pré-conhecimento sobre como utilizá-lo. Questões sobre o papel da observação e experimentação, e suas relações com a produção do conhecimento, têm sido objeto de um rico e controverso debate filosófico nas últimas décadas e poderiam ser aprofundadas para muito além do que podemos fazer neste livro. Contudo, o ponto essencial a captar do que discutimos brevemente aqui é que não há observação e experimentação "puras": elas são inerentemente carregadas de teoria. Por isso, não é de estranhar que você tenha encontrado dificuldades em desenvolver a atividade de ensino no desafio que propomos no início desse tópico. Somando-se a isso, o que poderíamos dizer sobre a possibilidade de descobrir leis a partir de resultados experimentais? Tomemos um exemplo simples: o estudo experimental do movimento de um pêndulo. Silveira e Ostermann (2002), ao criticarem um procedimento desse tipo, mostram que é possível ajustar muitas equações diferentes ao tratar matematicamente dados experimentais que relacionam, por exemplo, o período de um certo pêndulo com o seu comprimento. Qual dessas equações deve ser escolhida para ser a lei experimental? TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 11 FIGURA 4 – CURVAS POSSÍVEIS PARA O MOVIMENTO DO PÊNDULO FONTE: Silveira e Ostermann (2002, p. 14) Como mostram Silveira e Ostermann (2002), a opção por qualquer uma das possíveis leis experimentais carrega pressupostos teóricos, e não é dada apenas em termos de critérios matemáticos formais. Ainda outro aspecto problemático na visão empirista do conhecimento se refere ao seu fundamento indutivista. Lembra-se do princípio da indução, que descrevemos há pouco? Sobre ele, há um pequeno conto atribuído a Bertrand Russell: Na sua primeira manhã na fazenda, um peru observou que fora alimentado às 9 da manhã. Como esse peru era um bom e cuidadoso indutivista, não tirou conclusões apressadas. Esperou até que pudesse recolher um grande número de dados observacionais de que era, de fato, alimentado às 9 da manhã; observou esse fato durante os diferentes dias da semana, em dias ensolarados e chuvosos, em tempo frio ou quente. Finalmente, após observar o fato se repetir muitas vezes e em uma grande variedade de circunstâncias, o peru indutivista pôde concluir: sempre sou alimentado às 9 da manhã. Mas, ai dele, que sua conclusão um dia se mostrou falsa: na véspera de Natal, às 9 da manhã, ao invés de ser alimentado, o peru indutivista foi degolado (CHALMERS, 1993, p. 31). O que esse pequeno conto ilustra é o chamado problema da indução. É impossível justificar logicamente o princípio da indução, pois nesse tipo de raciocínio, a conclusão é mais geral do que as premissas. Isso significa dizer que não importa quantos cisnes brancos tenhamos visto, isso não autoriza a concluir (logicamente) que todos os cisnes são brancos. T (s ) SQ = 0,0056 s2 SQ = 0,0078 s2 D (cm) 200180160140120100806040200 0,0 0,5 1,0 1,5 2,0 2,5 3,0 UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 12 Questões como o problema da indução e o fato de a experiência ser intrinsecamente carregada de teoria, além de outros debates afi ns que vêm se desenvolvendo principalmente a partir dos anos 1930, levaram diversos epistemólogos, sob várias perspectivas diferentes, a destacar que a concepção empirista não dá conta de responder satisfatoriamente à questão "como se alcança o conhecimento?". Em outras palavras, para entender essa questão não basta apelar à experimentação, à observação e ao uso da lógica matemática, embora esses elementos também tenham seus papéis. 4 POPPER E O FALSIFICACIONISMO Um dos primeiros epistemólogos modernos infl uentes a romper com a visão empirista foi o austríaco Karl Popper. Em sua obra A lógica da pesquisa científi ca, publicada originalmente na Áustria, em 1934, Popper contesta as bases do positivismo lógico, que era a visão epistemológica predominante no início do século XX e representada principalmente pelos fi lósofos ligados ao Círculo de Viena. A principal crítica de Popper direciona-se para o indutivismo presente na visão empirista dos positivistas lógicos. FIGURA 5 – KARL POPPER (1902-1994) FONTE: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Karl_ Popper>. Acesso em: 24 maio 2018. TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 13 Assim como outros antes dele, Popper (1985) aponta que não é possível justificar logicamente o princípio da indução. Repare que o raciocínio indutivista, na visão do positivismo lógico, é o que permite verificar as teorias científicas; e teorias verdadeiras, para os positivistas, precisam ser verificáveis. Essa noção é por vezes referida como verificacionismo. Esse método de procurar verificações para as teorias passou então a ser alvo da crítica de Popper. Segundo ele, qualquer teoria, boa ou má, pode, em princípio, ser verificada (confirmada), bastando que se procure o suficiente. Além disso, não importa quantas vezes uma teoria tenha sido verificada, ainda assim ela pode se mostrar errada no futuro (vide problema da indução). Por esses motivos, procurar por verificações não é um teste válido para determinar se devemos manter ou abandonar uma teoria científica. Popper foi além disso. Desconfiado que era dos freudianos e marxistas de sua época, que pareciam ver em tudo confirmações de suas próprias teorias, Popper começou a pensar que essas teorias jamais poderiam mostrar-se erradas porque eram tão flexíveis, tão adaptáveis, que poderiam acomodar em si e tomar como confirmação de si mesmas qualquer comportamento humano ou evento histórico: Um marxista não era capaz de olhar para um jornal sem encontrar em todas as páginas, desde os artigos de fundo até os anúncios, provas que consistiam em verificações da luta de classes; e encontrá-las-ia sempre também (e em especial) naquilo que o jornal não dizia. E um psicanalista, fosse ele freudiano ou adleriano, diria sem dúvida que todos os dias, ou até de hora em hora, estava a ver as suas teorias verificadas por observações clínicas" (POPPER, 1987, p. 180). Como consequência, considerou Popper, apesar de terem a aparência de teorias muito fortes, sólidas e bem confirmadas, no fundo elas não eram capazes de explicar nada, justamente porque explicavam qualquer coisa. Não era possível sequer conceber um fato, mesmo hipotético, que, caso ocorresse, significaria uma refutação a tais teorias: eram irrefutáveis. E essa característica é, para Popper, a marca da não ciência (POPPER, 1987). Popper comparou isso com um experimento muito famoso da Física. Em 1919, Arthur Eddington dirigiu um teste observacional da Teoria da Relatividade Geral de Einstein. Essa teoria prediz que raios de luz devem sofrer um desvio ao passarem por um campo gravitacional intenso, tal como o que é produzido pelo Sol. Isso faria com que uma estrela situada atrás do Sol aparecesse para nós em uma posição diferente do que ela deveria estar caso não ocorresse tal desvio. Eddington aproveitou a ocorrência de um eclipse para medir essa posição. A observação de Eddington confirmou a previsão da teoria de Einstein. Mas o ponto importante aqui, para Popper (1987), é que ela poderia não ter confirmado. Havia a possibilidade, a princípio,de que a observação não indicasse esse desvio, refutando a teoria einsteiniana. É isso, diz Popper (1987), que distingue uma teoria científica de uma teoria não científica: a sua refutabilidade. Assim, para Popper, um enunciado ou teoria só é científico quando é UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 14 potencialmente refutável, ou seja, quando é falsificável (POPPER, 1987). Daí que a proposta de Popper seja conhecida como falsificacionismo. “Uma hipótese é falsificável se existe uma proposição de observação ou um conjunto delas logicamente possíveis que são inconsistentes com ela, isto é, que, se estabelecidas como verdadeiras, falsificariam a hipótese” (CHALMERS, 1993, p. 58). NOTA • Alguns enunciados falsificáveis: 1. Nunca faz sol aos domingos. 2. O momento angular de um sistema isolado sempre se conserva. 3. Nenhum corpo que possui massa pode se deslocar a uma velocidade igual ou superior à velocidade da luz no vácuo. 4. As órbitas dos planetas em torno do Sol seguem trajetórias elípticas. • Alguns enunciados não falsificáveis: 1. Choverá. 2. Todos os pontos num círculo euclidiano são equidistantes do centro. 3. Se jogar na loteria hoje é possível que você ganhe. 4. Existe vida em outros planetas. Para Popper (1987), um enunciado qualquer, para ser considerado científico, necessariamente deve ser falsificável. Quanto mais falsificável for, melhor é a teoria. Por exemplo: dizer que "todos os planetas se movem em trajetórias elípticas em torno do Sol" é mais falsificável do que dizer "a Terra se move em torno do Sol", já que oferece mais possibilidades de refutação. Observe que, na visão popperiana, não se trata de obter hipóteses que "brotam" da observação e da experiência para depois confirmá-las; pelo contrário, as hipóteses precedem as observações e experiências e são inventadas, usando não apenas dados observacionais, mas também a imaginação, a criatividade, princípios teóricos etc. É a partir daí que se deduzem consequências dessas hipóteses para submetê-las a testes, não apenas empíricos, mas também teóricos. Com Popper, entre outros filósofos da ciência pós-positivista, rompe- se a ideia de um método científico infalível. Falsificacionistas admitem que as observações são planejadas, guiadas e interpretadas com ajuda da teoria, ao ponto que não há observações livres de teorias. O principal ponto metodológico do falsificacionismo é que a ciência progride por causa das tentativas de refutações TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 15 das teorias, e não por causa de suas confirmações. Ao tentarmos refutar uma teoria, procuramos justamente pelos pontos em que ela pode falhar e, portanto, onde pode ser melhorada, aperfeiçoada ou substituída por outra. Assim, a ciência não começa com observações, mas com problemas. Na busca por resolver esses problemas, criamos teorias. Ao invés de buscar confirmá-las, devemos procurar testá-las, ou seja, encontrar contraexemplos capazes de refutá-las. Se não são refutadas, permanecem provisoriamente (até que sejam refutadas). E é nesse sentido que o método popperiano, ao contrário dos positivistas lógicos, deixa de ser infalível: porque reconhece que qualquer teoria pode ser refutada a qualquer tempo, inclusive, as refutações são refutáveis. Isso significa dizer que o conhecimento científico é hipotético, conjectural e provisório. 1 Reflita e proponha: (a) uma proposição de observação capaz de falsear os enunciados falsificáveis listados anteriormente; e (b) justificativas para classificar como não falsificáveis os respectivos exemplos. 2 Seu colega afirma que possui um argumento irrefutável para defender determinada teoria. Avalie essa afirmação do ponto de vista do falsificacionismo. 3 Retome o desafio proposto no início desse tópico sobre o movimento da Terra. Como você criticaria e reformularia o próprio desafio (no sentido de propor um planejamento de ensino) com base no que discutimos até agora? AUTOATIVIDADE Outro epistemólogo de enorme influência na filosofia da ciência é Thomas Kuhn. Também um grande crítico do positivismo lógico, Kuhn (2000) propõe um modelo detalhado da questão de fundo “Como se alcança o conhecimento?”, cujos conceitos básicos ajudam a entender diversos aspectos do conhecimento científico. Em particular, a epistemologia de Kuhn tem sido transposta para o contexto educacional e gerado contribuições importantes para o trabalho do planejamento do ensino de ciências. UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 16 FIGURA 6 – THOMAS KUHN (1922-1996) FONTE: Disponível em: <http://www.scuolafi losofi ca.com/4624/ thomas-khun-e-la-struttura-delle-rivoluzioni-scientifi che>. Acesso em: 24 maio 2018. Nas linhas que seguem, vamos discutir os conceitos básicos do autor e a visão kuhniana do desenvolvimento científi co. Não se assuste com os termos novos ou conceitos que podem parecer difíceis à primeira vista: após uma segunda ou terceira leitura, não parecerão mais tão difíceis. Lembre-se também de que sempre poderá trocar ideias com o seu professor ou tutor do polo, além de consultar as leituras complementares que estarão indicadas ao fi nal do tópico. Inicialmente, apresentaremos os três conceitos fundamentais que aparecem na sua principal obra: A estrutura das revoluções científi cas – Paradigma, ciência normal e revolução científi ca, para em seguida delinear como Kuhn vê o desenvolvimento da Ciência. U m paradigma é basicamente uma "visão de mundo", um modo de pensar e de encarar o mundo e seus objetos; um "modo de ver". De certa forma, um paradigma é aquilo que "se pensa antes mesmo de pensar". Na Física, um paradigma é formado por todo o quadro de referência teórico, explícito e implícito, enfi m, por tudo aquilo que é assumido pelos cientistas que formam uma comunidade científi ca. Kuhn também defi ne, inversamente, uma "comunidade científi ca" como o conjunto de cientistas que compartilham em comum um mesmo paradigma (KUHN, 2000). Por exemplo, podemos pensar na mecânica newtoniana como o grande paradigma da Física Clássica. Na Cosmologia, podemos falar no paradigma ptolomaico e no paradigma copernicano. Afi nal, o que queremos dizer com "tudo aquilo que é assumido pelos cientistas"? Kuhn (2000) exemplifi ca os seguintes elementos que, em conjunto, constituiriam um paradigma: TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 17 • Generalizações simbólicas: de forma simplificada, são as leis científicas, tanto aquelas expressas simbolicamente (como F=ma / V=Ri) quanto linguisticamente (como a toda força de ação corresponde uma força de reação, igual e contrária). • Modelos particulares: são os modelos explicativos, geralmente heurísticos ou analógicos. Exemplos de modelos particulares são: "as moléculas de um gás são como bolas de bilhar movendo-se ao acaso"; "a luz comporta-se como uma onda" e "a luz comporta-se como se fosse constituída por partículas". • Valores compartilhados: são os valores epistêmicos (ou seja, referentes ao conhecimento) aos quais os cientistas daquela comunidade científica aderem. Alguns exemplos: as teorias devem ser simples; teorias quantitativas são preferíveis às qualitativas; as teorias devem ter consistência interna etc. • Exemplares: são as resoluções concretas de problemas que os estudantes encontram ao longo da sua formação científica, tanto durante as aulas quanto nos livros didáticos, nos laboratórios etc. Exemplares são uma espécie de exemplo compartilhado que ensina os estudantes como resolver os problemas de sua área, formando a sua maneira de pensar e de encarar os problemas de maneira a refletir o paradigma. Este último componente é de especial importância, pois: Descobrindo, com ou sem assistência de seu professor, uma maneira de encarar um novo problema como se fosse um problema que já encontrou antes, o estudante passaria a dominar o conteúdo cognitivo da ciência que, segundo Kuhn, estaria não nas regras e teorias, mas antes, nos exemplos compartilhados fornecidospelos problemas. Uma ilustração deste ponto de vista é dada por Kuhn através de uma generalização simbólica - a segunda Lei de Newton - F=ma (Kuhn,1978, p. 233). Os estudantes aprendem, quando confrontados com uma determinada situação experimental, a selecionar forças, massas e acelerações relevantes. Isto ocorre à medida que passam de uma situação problemática a outra e enfrentam o problema de adaptar a forma F=ma ao tipo de problema: queda livre, pêndulo simples, giroscópio. Uma vez percebida a semelhança e reconhecida a analogia entre dois ou mais problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre os símbolos e aplicá-los à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado eficácia. A forma F=ma funciona como instrumento, informando ao futuro cientista que similaridades procurar, e sinalizando o contexto dentro do qual a situação deve ser examinada. Dessa aplicação resulta a habilidade para ver a semelhança entre uma variedade de situações, o que faz com que o estudante passe a conceber as situações problemáticas como um cientista, encarando- as a partir do mesmo contexto que os outros membros do seu grupo de especialistas (OSTERMANN, 1996, p. 187). Como você já deve ter notado, não é qualquer simples ideia que é um paradigma. Além de fornecer uma visão de mundo, possuir os componentes listados anteriormente e atrair um grupo considerável de pesquisadores que aderem a ele de forma duradoura (ou seja, uma comunidade científica), os paradigmas são uma fonte de problemas abertos, tanto teóricos quanto experimentais, a serem resolvidos. Todo o período durante o qual a comunidade científica adere a um paradigma e trabalha resolvendo esses problemas é chamado por Kuhn de Ciência Normal. UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 18 A atividade dos cientistas, dentro dos períodos de Ciência Normal, assemelhar-se-ia assim à montagem de quebra-cabeças: as peças já estão lá (são dadas pelo paradigma), mas para encontrar as soluções dos problemas é preciso encaixá-las corretamente. Os principais tipos de atividades desenvolvidas durante os períodos de Ciência Normal, segundo Kuhn (2000), são: • Determinação de fatos significativos: envolve a obtenção de dados experimentais relevantes (como condutividades elétricas, pontos de ebulição de substâncias etc.), de constantes universais (como aceleração da gravidade ou a constante de Planck) ou de relações significativas (como a equação do fabricante de lentes). • Desenvolvimento de predições com base na teoria: por exemplo, a invenção da máquina de Atwood ou a invenção do laser, a construção de aceleradores de partículas etc. • Articulação da teoria: são as atividades ligadas a ajustes que se mostram necessários dentro do paradigma, tais como resolver ambiguidades ou completar certas lacunas. Observe que toda essa montagem de "quebra-cabeças" não envolve fenômenos essencialmente novos. Basicamente os problemas são sugeridos pelo próprio paradigma e, a priori, todos eles são tidos como passíveis de solução dentro do paradigma. Essa característica faz com que os períodos de Ciência Normal sejam considerados conservadores: A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma (KUHN, 2000, p. 44-45). Além disso, esses períodos são essencialmente acumulativos, à medida que mais e mais quebra-cabeças vão "fechando", o conhecimento vai "crescendo". Quando algum problema específico se mostra de difícil solução, o fracasso não é atribuído ao paradigma que fornece as peças, mas aos cientistas individuais que a ele se dedicaram. Ocorre que, enquanto os cientistas resolvem todos esses tipos de "quebra- cabeças", baseados em uma forma de pensar compartilhada que foi moldada durante suas formações através dos "exemplares", eventualmente algum desses quebra-cabeças não poderá ser montado. São ocasiões em que algum problema surgido revela-se resistente às tentativas de resolução até dos membros mais capazes da comunidade científica. É como se o paradigma não tivesse preparado o cientista para resolver aquele problema. Quando essa situação persiste, o fenômeno inexplicado é eventualmente reconhecido como uma anomalia. TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 19 FIGURA 7 – A CIÊNCIA RI FONTE: Harris (2007, p. 140) É claro que esse reconhecimento é complexo e não se dá de uma hora para outra. Quando ocorre, ele inaugura um novo período, que é o de uma crise na comunidade científica. É o que ocorreu, por exemplo, com a astronomia no final do século XVI, com o fracasso do paradigma ptolomaico, e no início do século XX com as falhas do paradigma newtoniano. Alguns cientistas começam a perder a confiança no paradigma, porém o paradigma em crise só é invalidado ou rejeitado a partir do momento em que surge um novo paradigma que ofereça, no mínimo, uma promessa de solução para o fenômeno que gerou a anomalia. Esse novo paradigma rival, na visão kuhniana, é radicalmente diferente do antigo e incompatível com ele, pois envolve uma nova visão de mundo. Ocorre então um período de rivalidade entre os paradigmas concorrentes. Se o paradigma novo mostrar-se eficaz o suficiente para atrair um número crescente de adeptos, poderá eventualmente tornar-se dominante. Ocorreria assim uma ruptura, com o abandono do paradigma "velho" para adoção do "novo". É o que aconteceu, por exemplo, no final do século XVI, com a emergência do paradigma copernicano em substituição do ptolomaico; e no início do século XX, com o surgimento do paradigma relativístico no lugar do newtoniano. Tais ocorrências são chamadas por Kuhn (2000) de Revoluções Científicas. Uma revolução científica é, assim, um processo de mudança de paradigma: envolve uma forma diferente de ver o mundo. Cada paradigma vê o mundo como sendo composto de diferentes tipos de coisas. Assim, por exemplo, no paradigma UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 20 aristotélico, o universo era dividido em dois reinos: supralunar e sublunar, que não eram governados pelas mesmas leis. Enquanto a região supralunar é imutável e incorruptível, a região sublunar (onde vivemos) é mutável e corruptível. Paradigmas que vieram depois do aristotélico tinham uma visão radicalmente diferente, isto é, de que o universo seria composto dos mesmos tipos de coisas e governado pelas mesmas leis. Grosseiramente comparando, é como se as diferentes visões da Figura 2 – casal ou rosto de idoso – fossem diferentes paradigmas com que vemos um mesmo objeto. O principal aspecto da Revolução Científica na proposta de Kuhn é que períodos assim não podem ser vistos como um processo cumulativo de produção do conhecimento, isto é, o conhecimento do paradigma velho não é simplesmente acumulado, somando-se ao novo. Pelo contrário, a Revolução Científica representa uma ruptura com o velho: uma descontinuidade. Essa característica é profundamente contrária à visão que temos de Ciência no senso comum, como sendo um corpo de conhecimento que vai aos poucos acumulando mais e mais saberes, que vai crescendo linearmente com o passar do tempo. Kuhn (2000), na sua obra, argumenta que não é isso que acontece no todo (embora ocorra uma acumulação nos períodos de ciência normal) e exemplifica sua tese usando a própria história da ciência, especialmente da Física. A figura a seguir esquematiza, de forma sintetizada, o desenvolvimento da Ciência segundo Kuhn: FIGURA 8 – O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA NA VISÃO KUHNIANA FONTE: Adaptado de: <http://www.fisica-interessante.com/aula-historia-e-epistemologia-da- ciencia-12-pos-positivistas-2.html>.Acesso em: 15 maio 2018. Paradigma vigente Crise. Não há resposta Novo Paradigma Revolução científica RUPTURA ANOMALIA TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 21 Discutiremos as concepções dos alunos no próximo tópico. ESTUDOS FU TUROS 1 Escreva, de forma sintetizada, a resposta de Kuhn à pergunta: "Como se alcança o conhecimento?". 2 Seu amigo afirma que o progresso da ciência é semelhante à construção de uma casa, colocando-se os tijolos um de cada vez, um sobre o outro, até formar uma parede, e depois mais outra, e assim sucessivamente. Comente essa afirmativa à luz da epistemologia de Thomas Kuhn. 3 Escolha um tópico de Física e planeje uma aula com base na proposta O aluno como cientista kuhniano, de Zylberstajn (1991). AUTOATIVIDADE O aspecto fundamental a destacar aqui é que o conhecimento não "brota" do objeto a ser conhecido, mas é construído na interação entre esse objeto e o sujeito do conhecimento (que podemos considerar, conforme o contexto, o cientista na sua prática ou o aluno de ciências que encontramos na sala de aula). A contribuição do sujeito está presente desde o reconhecimento de um problema (que depende fortemente do contexto histórico-cultural em que ele está inserido) até a produção de inferências, incluindo-se aí suas hipóteses, criatividade, imaginação, paradigmas anteriores, entre muitos outros fatores. IMPORTANT E C OS FIGURA 9 – INTERAÇÃO COMO GÊNESE DO CONHECIMENTO. SUJEITO (S) E OBJETO (O) CONTRIBUEM PARA A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO FONTE: Adaptado de Delizoicov (2008) UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 22 Para saber mais, seguem algumas indicações de leitura para você complementar o seu estudo. • CHALMERS, A. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. Em uma linguagem acessível e clara, Alan Chalmers apresenta uma introdução às perspectivas modernas sobre a natureza da Ciência. Sua leitura poderá ser bastante útil para estudantes iniciantes no tema e interessados em geral. • KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1995. Esta obra de Kuhn é uma das mais importantes da filosofia da Ciência moderna, podendo ser considerada um marco da área. Nela, o autor apresenta seus conceitos de Revolução Científica, Paradigmas e Ciência Normal, com riqueza de exemplos extraídos principalmente da história da Física. • SILVEIRA, F. L.; OSTERMANN, F. A insustentabilidade da proposta indutivista de descobrir a lei a partir de resultados experimentais. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 19, p. 7-27, 2002. A partir da constatação do predomínio de visões empiristas-indutivistas nas concepções de profissionais da área do ensino de Física, os autores apresentam argumentos para defender a insustentabilidade dessas visões, baseando-se no exemplo de uma prática de laboratório voltada ao estudo do Pêndulo Simples. DICAS O texto apresentado a seguir foi extraído de Delizoicov (2008) e trata de uma adaptação de Zylberstajn (1991). Ele apresenta uma proposta para o ensino de física fundamentada na concepção kuhniana de ciência. Leia-o com atenção: TÓPICO 1 | ORIGEM DO CONHECIMENTO 23 O aluno como cientista kuhniano "Deve-se deixar claro que, quando discutindo a educação em ciência, Kuhn tem em mente a formação de pesquisadores e não o ensino de ciências para o estudante em geral. No entanto, fazendo uma analogia e admitindo-se que os alunos de disciplinas científicas (os exemplos deste texto ficarão restritos à Física) possam ser construídos como cientistas kuhnianos, o analogista enfrenta uma importante questão: a que tipo de cientistas devem estes alunos ser identificados? Àquele trabalhando nas condições da ciência normal ou a um participando de uma revolução científica? O ponto de vista aqui adotado é o de que nenhum dos dois casos pode, isoladamente, fornecer uma analogia fértil para o ensino. Tradicionalmente, assume-se, no ensino de ciências, que o aluno é uma “tábula rasa”, isto é, não tem nenhuma ideia sobre o tópico antes de ser formalmente ensinado ou que, no caso de ter algumas ideias sobre o tópico em questão, estas têm pouca influência na aprendizagem. De acordo com este enfoque, o conhecimento científico é introduzido na forma de teorias e exemplos de aplicação, e problemas de aplicação são usados para treinamento e avaliação; para alguns alunos, uma minoria decerto, este procedimento revela-se bastante efetivo. Por outro lado, trabalhos de pesquisa na área do ensino de ciências têm mostrado que alunos trazem para a sala de aula algumas ideias (“concepções alternativas”) sobre a natureza do mundo físico, geralmente conflitantes com aquelas a serem aprendidas. As pesquisas direcionadas para a investigação das concepções de alunos sobre a relação entre força e movimento ilustram bem este ponto. De acordo com esses estudos, alunos que não tiveram uma instrução formal em mecânica tendem a associar o movimento com a ação de uma força. Neste exemplo particular, parece ser válido supor que as dificuldades sentidas por nossos alunos no estudo da dinâmica recapitulem algumas das dificuldades observadas na passagem da dinâmica pré-galileana para a dinâmica inercial. Visando reconciliar alguns elementos da abordagem tradicional, os quais, de acordo com Kuhn, são centrais à educação científica, com os resultados anteriormente citados pode-se sugerir que alunos de disciplinas científicas devem ser encarados, em momentos instrucionais distintos, tanto como cientistas trabalhando em condições de ciência normal quanto como cientistas envolvidos em uma revolução científica. O aluno como cientista em uma revolução Este será o caso em que um novo tópico esteja sendo introduzido e sobre o qual existam indicações de que a maior parte dos alunos apresenta algumas concepções. Dentro do contexto instrucional, esta situação pode ser denominada “estágio de revolução conceitual”, pois, durante ela, as atividades de sala de aula irão, dentro dos limites da analogia proposta, apresentar paralelos com os eventos LEITURA COMPLEMENTAR UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 24 que caracterizam as revoluções científicas. São sugeridos os passos instrucionais delineados a seguir para este estágio: a) Elevação do nível de consciência conceitual: as revoluções científicas iniciam-se com o surgimento de anomalias, que são detectadas e consideradas como tais apenas quando vistas contra o pano de fundo fornecido por estas concepções. Considerando que muitos alunos não se encontram plenamente conscientes de suas próprias concepções, a introdução de anomalias deverá ser precedida de uma preparação, visando elevar o nível de consciência deles com relação às suas próprias ideias. Uma maneira pela qual isto pode ser feito é solicitar aos alunos que respondam às questões que problematizem as suas concepções e, depois, discutam as respostas individuais em pequenos grupos. Durante este passo instrucional, o professor deverá preocupar-se em auxiliar os alunos a expressar e aplicar as suas ideias, adotando uma postura não crítica em relação a elas. b) Introdução de anomalias: assim que os alunos estiverem conscientes de suas concepções, e mesmo sentindo-se à vontade ao aplicá-las, as anomalias poderão ser introduzidas. O objetivo principal desse passo instrucional é criar uma sensação de desconforto e insatisfação com as concepções existentes. c) Apresentação da nova teoria: o resultado do passo anterior será o desenvolvimento de um certo nível de tensão psicológica. Uma crença foi abalada e uma sensação de desconforto gerada, sem que nenhuma alternativa tenha sido proposta. Trata-se do equivalente instrucional ao estado de crise que no modelo de Kuhn precede as revoluções científicas. Os alunos estarão agora preparados para receberem um novo conjunto de ideias que irá acomodar as anomalias. Ao introduzir o novo conjunto de concepções, o professor pode estimular os alunos a propor suas própriassoluções e discuti-las com todo o grupo, um procedimento que possibilita o exercício da criatividade e do debate. Deve-se ter em mente, contudo, que na maioria das vezes, a solução cientificamente aceitável terá de ser fornecida pelo professor que, neste caso, estará procedendo como um cientista tentando converter outros a um novo paradigma. Ele terá, então, de apresentar as novas concepções ao grupo e, atuando como um “tradutor” no sentido sugerido por Kuhn para os casos dos debates interparadigmáticos, ser capaz de mostrar essas concepções a seus alunos como novas. O aluno como um cientista normal Ao final do “estágio de revolução conceitual”, espera-se que as novas concepções tenham se tornado mais aceitáveis para a maioria dos alunos. O conjunto de atividades seguintes é análogo à pesquisa em ciência normal e será denominado “estágio de articulação conceitual”. Neste estágio instrucional os esforços devem ser dirigidos à interpretação de situações e a resoluções de problemas, de acordo com as novas ideias introduzidas". FONTE: Zylberstajn (1991 apud DELIZOICOV, 2008) 25 Neste tópico, você aprendeu que: • As concepções empiristas e indutivistas não se sustentam enquanto respostas para a questão “Como se alcança o conhecimento?”. • Nessa discussão, pudemos destacar que os sujeitos do conhecimento não são neutros nesse processo, mas possuem conhecimentos anteriores, expectativas, valores, objetivos e visões de mundo que interferem no seu olhar sobre o objeto. Assim, as próprias observações são inerentemente carregadas de teoria. • Você também pôde conhecer um pouco sobre duas perspectivas epistemológicas pós-positivistas: o falsificacionismo de Popper e a epistemologia de Kuhn. Essas considerações podem ser transpostas para o contexto do ensino, já que trabalhamos com um saber escolar cuja referência é o conhecimento científico e com um aluno cuja mente não é comparável a uma folha de papel em branco onde os conhecimentos são simplesmente escritos pelo professor. RESUMO DO TÓPICO 1 26 1 Sobre as concepções epistemológicas de Karl Popper e de Thomas Kuhn, assinale a alternativa INCORRETA: a) ( ) A revolução copernicana pode ser considerada um exemplo de revolução científica, já que caracteriza uma mudança de paradigma, na visão de Thomas Kuhn. b) ( ) Ao enfatizar o papel das revoluções científicas, a epistemologia kuhniana dá destaque ao caráter descontínuo, de não cumulatividade, da Ciência. c) ( ) Segundo Karl Popper, o valor de uma teoria científica deve ser medido pela possibilidade de que esta seja verificada, isto é, confirmada. d) ( ) Popper criticou o indutivismo presente em concepções empiristas do conhecimento científico. 2 Sobre as concepções epistemológicas de Karl Popper e de Thomas Kuhn, assinale assinale a alternativa INCORRETA: a) ( ) De acordo com a epistemologia de Popper, a Ciência começa com observações, e o conhecimento científico cresce à medida que as observações são acumuladas. b) ( ) Um dos sentidos do termo “paradigma”, na obra de Kuhn, é o de uma visão de mundo, a qual serve como referência para o trabalho dos cientistas durante o período de Ciência normal. c) ( ) De acordo com a epistemologia de Kuhn, a ocorrência de uma ruptura com o paradigma vigente é o ponto culminante de um período de crise que se iniciou com a identificação de anomalias importantes relacionadas àquele paradigma. d) ( ) Para Popper, um enunciado qualquer, para ser considerado científico, necessariamente deve ser falsificável. AUTOATIVIDADE 27 TÓPICO 2 SUJEITO DO CONHECIMENTO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, iremos caracterizar o que se entende por concepções alternativas e identifi car suas características; exemplifi car algumas concepções alternativas mais comuns presentes na sala de aula de Física; discutir alguns aspectos das concepções alternativas à luz de contribuições da epistemologia; analisar implicações das concepções alternativas ao ensino de Física; conceituar os obstáculos epistemológicos e apontar aspectos de diferenciação entre as estruturas de pensamento do aluno e científi ca. Leia a tirinha: FIGURA 10 – CALVIN E HOBBES FONTE: Bill Watterson (1993, s.p.) Procure refl etir sobre perguntas que você formulava, desde a infância, sobre fenômenos da natureza. Consegue se lembrar de algumas? Essas perguntas tinham respostas, na época em que você inicialmente as formulava? Em caso positivo, quais eram? Registre, de maneira resumida, suas refl exões. DICAS UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 28 2 CONCEPÇÕES ALTERNATIVAS No final da década de 1970, começaram a surgir estudos na área de pesquisa em ensino de Ciências que mostravam que os alunos, antes de entrarem no ensino escolar, já desenvolveram um pensamento próprio sobre os fenômenos da natureza, incluindo-se aí os fenômenos físicos de seu cotidiano, tais como os movimentos dos objetos à sua volta, dos astros celestes, a luz, as cores, o calor, o som etc. Um trabalho pioneiro nessa descoberta foi a tese O raciocínio espontâneo na dinâmica elementar, de Laurence Viennot, publicada em 1977. Essa pesquisadora propôs uma série de problemas conceituais, bastante simples do ponto de vista formal, a estudantes de diversos níveis escolares e diversas formações. Para você ter uma ideia desses tipos de problemas, veja esse exemplo. Um jogador lança para cima seis bolas, que no instante t estão nas posições indicadas na figura a seguir. Suas trajetórias são indicadas pelo pontilhado. A questão proposta é: Como se comparam as forças que agem sobre as bolinhas em cada situação? FIGURA 11 – CONCEPÇÕES DE FORÇAS SOBRE AS BOLINHAS LANÇADAS PARA CIMA FONTE: Viennot (1977, p. 22) Como você imagina que seus estudantes responderiam a essa questão? Viennot pôde mostrar em sua pesquisa que uma parcela significativa dos estudantes entrevistados acreditava que as forças que agem sobre a bolinha eram diferentes nos diferentes pontos de suas trajetórias, inclusive para aqueles que já haviam estudado, nos seus cursos escolares anteriores, disciplinas de dinâmica. Uma resposta comum era a de que existe uma força que empurra a bolinha para cima durante o movimento de subida e que "acaba" quando esta atinge o ponto mais alto da trajetória (VIENNOT, 1977). v1 v2 = 0 v3 v4 v6 v5 t TÓPICO 2 | SUJEITO DO CONHECIMENTO 29 Respostas de natureza semelhante surgiram também para muitos outros problemas similares a este, como mais tarde se mostrou, não apenas no campo da dinâmica, mas também nas demais áreas da Física e em outras disciplinas científicas, como a Química e as Ciências Biológicas. O que Viennot pôde indicar em seu estudo pioneiro, e muitos outros pesquisadores puderam confirmar desde então, é que os estudantes possuem ideias intuitivas, diferentes daquelas ensinadas na escola, mas que são resistentes ao processo de ensino. Essas ideias foram referidas pelos pesquisadores com diferentes termos: concepções alternativas; ideias espontâneas; representações intuitivas; ideias prévias; entre outros. São nomes distintos que na verdade tratam do mesmo fenômeno: a existência de esquemas conceituais de pensamento desenvolvidos pelos sujeitos espontaneamente sobre o mundo à sua volta. Essas concepções alternativas, como chamaremos aqui, muitas vezes são implícitas: elas não são formuladas explicitamente pelo sujeito, mas se revelam na forma como ele realiza tarefas ou responde a questões semelhantes àquela que exemplificamos antes. Além disso, a maioria delas é conflitante com o conhecimento científico. Nas duas últimas décadas do século passado, uma enorme quantidade de pesquisas na área de ensino de ciências voltou-se para o entendimento, classificação e mapeamento das concepções alternativas. Um dos aspectos que chamou muito a atenção dos pesquisadores era o fato de que sujeitos de diferentes localizações geográficas, diferentes países, com diferentes idiomas, contextos culturais, classes sociaisetc., pareciam ter basicamente as mesmas concepções alternativas sobre um dado fenômeno. É quase universal, por exemplo, a ideia de que há uma força sobre a bolinha atuando para cima enquanto ela está subindo, na situação representada na Figura 11. Assim também ocorre com a maioria das concepções alternativas. É possível, hoje, encontrar na literatura do ensino de ciência pesquisas sobre concepções alternativas de qualquer área da Física. Tornaram-se extremamente populares os testes para detecção dessas concepções, aplicados geralmente na forma de questionários. Com isso, sabe-se consideravelmente bem quais são as concepções alternativas que se pode esperar de um estudante que chega às salas de aula. Além disso, várias outras características dessas concepções têm sido percebidas pelos pesquisadores. Uma delas é que elas são explicativas: mesmo que elas possuam eventualmente inconsistências internas, elas preenchem a necessidade de explicação do sujeito, que as considera satisfatórias. E, de fato, em grande parte das situações cotidianas elas servem aos propósitos a que se destinam, inclusive de comunicação. Apenas para exemplificar, listamos resumidamente algumas concepções alternativas mais comuns. Essa é uma lista muito incompleta e tem como objetivo apenas auxiliar na compreensão do que são concepções alternativas e como podem se manifestar: UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 30 a) Mecânica • Se um corpo está em movimento, então uma força resultante age sobre ele. • A força resultante sempre tem a mesma direção e sentido do movimento. • Se um corpo está parado, então significa que nenhuma força age sobre ele. • A velocidade de um corpo em movimento é proporcional à força que age sobre ele. • As forças são propriedades dos objetos, no sentido de que estes "têm" uma força e essa força pode ser "gasta" ou "perdida" espontaneamente. • Ação e reação agem sobre o mesmo corpo. • A aceleração de um objeto em queda livre é proporcional à massa do objeto. • A força é transmitida do motor para o móvel (uma bolinha entra em movimento quando ela é lançada porque o lançador "deu" força à bolinha). b) Termodinâmica • O calor é uma propriedade dos corpos e seu conceito é confundido com o de temperatura. • O calor é considerado como se fosse uma substância presente nos corpos e cuja quantidade determina suas temperaturas. • A temperatura deve variar durante a mudança de fase. • A temperatura é transferida entre corpos em contato. • Alguns materiais, como a lã, teriam a capacidade de aquecer os corpos. c) Eletromagnetismo • A corrente que passa por certo componente do circuito depende do que acontece no componente anterior e não do circuito como um todo. • A pilha é uma fonte de corrente. • A lâmpada, ou outros elementos resistivos, consomem corrente. • O fato de que a corrente elétrica atingiu certo ponto do circuito significa que elétrons saídos da fonte chegaram até aquele ponto. d) Óptica • A cor de um objeto é uma propriedade intrínseca a ele. • O olho pode ser um agente ativo na visão, de onde saem os raios luminosos que permitem ver. • O raio luminoso é imaginado como algo real e não como uma representação. • A luz solar seria de natureza diferente da luz produzida por lâmpadas. • O tamanho da imagem em um espelho plano diminui à medida que o objeto se afasta do espelho. Testes de detecção de concepções alternativas, que se tornaram muito populares nos anos 1980 e 1990, tipicamente apresentam alguma situação e solicitam que o sujeito preveja o que ocorre. Observe, por exemplo, a Figura 12. TÓPICO 2 | SUJEITO DO CONHECIMENTO 31 Um homem gira uma pedra amarrada a uma corda sobre um plano horizontal. A corda é cortada quando a pedra está na posição em preto. Qual o movimento subsequente da pedra? FIGURA 12 – UM TESTE PARA DETECÇÃO DE CONCEPÇÕES ALTERNATIVAS FONTE: McCloskey (1978, p. 128) Aplicações dessa questão têm mostrado que, muito frequentemente, até mesmo um sujeito com instrução formal em dinâmica espera que a pedra siga a trajetória indicada na opção à direita da Figura 12. Essa indicação é interpretada como revelando uma concepção alternativa segundo a qual existiria uma espécie de inércia rotacional, que mantém a pedra descrevendo uma curva mesmo quando a força centrípeta deixa de agir sobre ela. O ponto fundamental a compreender com a descoberta das concepções alternativas é que nenhum aluno é uma folha de papel em branco em que o professor escreve os saberes científicos. Cada sujeito traz consigo, desde antes de chegar à escola, saberes próprios, fruto de seus esforços para compreender e agir no mundo, suas vivências e de suas interações sociais. Tais saberes não são simplesmente substituídos pelos conhecimentos científicos escolares, mas interagem de formas complexas com estes, as quais precisam ser entendidas e consideradas pelo professor ao planejar o ensino. IMPORTANT E Como você deve estar percebendo, as concepções alternativas não são meros erros aleatórios. Não são devidas a uma simples desatenção, incapacidade ou falta de estudo. Por outro lado, é claro que nem todos os "erros" dos estudantes são concepções alternativas, mas é fundamental que o professor conheça o que são as concepções alternativas e como se caracterizam. UNIDADE 1 | CONHECIMENTO E SUJEITO DO CONHECIMENTO 32 É preciso também compreender que elas são resistentes e não se modificam facilmente. Viennot (1977) e muitos outros autores depois dela puderam constatar que, nas diversas áreas da Física, essas concepções permaneciam, mesmo depois que os sujeitos já haviam passado pelo ensino formal das teorias cientificamente aceitas, que eram frontalmente contrárias às suas concepções alternativas. Essa resistência se manifesta, por vezes, mesmo naqueles sujeitos que têm bom desempenho na resolução de problemas tradicionais. Isso impõe questões importantes ao professor de Ciências e Física. 3 TRATAMENTO DIDÁTICO DAS CONCEPÇÕES ALTERNATIVAS Então, frente à existência dessas concepções, o que fazer? No ensino tradicional, a própria existência de concepções alternativas é ignorada e, com ela, toda a bagagem de conhecimentos prévios carregada pelos alunos. Tal posição não parece ser sustentável tendo em vista tudo o que viemos discutindo. Sabemos, das pesquisas na área de ensino que já vêm se realizando há décadas, que quando o professor desconsidera a existência das concepções alternativas no planejamento do ensino, há diversas consequências negativas sobre a aprendizagem conceitual, incluindo dificuldades ao estudante em aplicar as ideias científicas em qualquer contexto levemente diferente daquele que foi usado explicitamente pelo professor. Como as ideias científicas são geralmente conflitantes com as concepções alternativas, o resultado dessa desconsideração é que restam ao aluno duas estruturas teóricas diferentes e bem separadas: aquela da física de sala de aula, que se aplica às provas escolares, e outra, das concepções alternativas, que se aplica às situações do seu dia a dia no "mundo real". Dessa forma, não é nada difícil entender porque tantos estudantes percebem a Física como um conhecimento que não se conecta à sua vida cotidiana. Se a simples desconsideração das concepções alternativas no planejamento do ensino não é uma resposta razoável, como o professor deve considerá-las? Será que a realização de atividades experimentais para "mostrar" que o conhecimento científico está "certo" seria suficiente para "erradicar" as concepções alternativas dos alunos? Qual a sua opinião, considerando o que discutimos sobre Ciência no Tópico 1? É claro que apenas fornecer experiências ou dados observacionais não basta. Assim como Kepler e Tycho "viam" diferentes coisas no Sol nascente, ou como você e outrem veem coisas diferentes na Figura 2, assim também os alunos veem (e legitimamente, mesmo que não cientificamente) diferentes coisas nas observações e experiências. Como discutimos no
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