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Fazendo Gênero 8 Fazendo Gênero 8 Fazendo Gênero 8 Fazendo Gênero 8 ---- Corpo, Violência e PoderCorpo, Violência e PoderCorpo, Violência e PoderCorpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Trajetória de vida e de trabalho de mulheres indígenas em Manaus Wagner dos Reis Marques Araújo;1 Iraildes Caldas Torres 2 (Universidade Federal do Amazonas) Palavras-chave: Trabalho doméstico; Mulheres indígenas; Amazonas. ST 19 – Intersecções entre Gênero e Sociodiversidade Amazônica Nas últimas quatro décadas os empreendimentos que abriram as portas da Amazônia brasileira para a modernização, estão relacionados à presença de megaprojetos, dentre os quais se situa a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM). De acordo com Valle (2007, p. 110), [...] “sujeita à dinâmica do capitalismo, a Amazônia, e, em particular a cidade de Manaus, sofrem mudanças acentuadas com os processos de expansão e recomposição da economia capitalista mundial”. Nesse quadro a Amazônia Ocidental (Pará, Amazonas, Rondônia, Acre, Roraima) é transpassado por uma intensa mobilidade do trabalho rural-urbano e por conflitos de terra. A rápida e crescente escala de ocupação regional, nos liames da industrialização, provocam transformações de ordem social na cidade de Manaus. Na obliqüidade da sociedade capitalista, a população da cidade de Manaus saltou de 300 mil habitantes, na década de 1970, para 800 mil, em 1985. E, no ano 2000, a capital amazonense já contava com 1,4 milhões de habitantes, concentrando-se quase a metade dos 3 milhões de habitantes de todo o Estado do Amazonas. Destes habitantes 18.783 são indígenas que residem nas cidades do Estado e, destes, 7.894 estão concentrados na capital, conforme dados do IBGE/2000. Observa-se, a partir dos dados coligidos, que a urbanização de Manaus comporta fortemente o segmento indígena. Concernente à população indígena presente em Manaus, Mainbourg et alli (2000), tomando por base as estimativas feitas pela Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), considera que o número de indígenas variam entre 15.000 a 20.000 em Manaus. Os índios sateré-mawé sobressaem com 27,35% e os Tikuna compõem 23,50%, e 25,74% provém de outras etnias. De acordo com Moura et alli (1993, p. 09): “Com o processo de urbanização e modernização acelerada, e diante da incapacidade da ampliação da infra-estrutura urbana, intensificou-se uma favelização nas periferias de Manaus, para onde se dirigiu a população migrante rural”. Em consonância com o processo de desenvolvimento econômico que, em sociedades capitalistas, processa- 2 se pela concentração de riquezas, Manaus produziu um exército industrial de reserva composto por migrantes cabocos, ribeirinhos e indígenas. No epicentro desse cenário estão as mulheres indígenas e cabocas, que na expectativa de melhoria das condições de vida e trabalho, deslocam-se de seus lugares de origem em busca de educação formal e são adsorvidos no trabalho domésticos. Ainda que permeado pela desvalorização, invisibilidade e experiências negativas, o trabalho doméstico constitui-se na porta de entrada para a mulher indígena que veio do interior da Amazônia. Nos diferentes ciclos econômicos pelos quais passaram a capital e o Estado do Amazonas, esteve presente o preconceito étnico articulado pelos processos culturais e sociais. Esta é, talvez, uma forma de legitimar a exploração da mão-de-obra indígena e da caboca, no trabalho doméstico e nos demais tipos de trabalho existentes, inclusive o industrial. A mulher indígena é inserida no trabalho doméstico, em condições quase semi-servis. Kosminsky e Santana (2006), consideram importante o trabalho doméstico para as mulheres, sendo, pois, uma possibilidade de ganho econômico, uma contribuição para a renda familiar. Mas “o trabalho doméstico remunerado pode ser visto, sob muitos aspectos, como um micro-organismo crescente de desigualdade social entre as mulheres” (TORRES, 2005, p. 158). Na cultura do patriarcado os serviços domésticos, as atividades reprodutivas e os cuidados com os membros da família, são considerados uma obrigação das mulheres. Histórica e culturalmente, pesa o estigma de que a mulher já nasce pronta para o exercício dos serviços domésticos, a responsabilidade com a casa e os membros da família. Mesmo a partir do processo de constituição da sociedade industrial, quando houve a separação do trabalho na esfera pública do espaço doméstico, mantiveram-se as concepções tradicionais, de que o lugar natural da mulher seria a casa e sua função primordial, ter filhos e cuidar deles (HOLZMANN, 2006). Nas sociedades emergentes a partir da Revolução Industrial, a posição de desqualificação dos serviços domésticos, acentua-se, contribuindo para a marginalização das mulheres que são transformadas em mão-de-obra barata. Nesse sentido, as mulheres são exploradas, tanto na condição de dona-de-casa, quanto nas diferentes ocupações exercidas por elas ao longo dos processos e ciclos econômicos. Conforme Perrot (2005), a presença das mulheres nos diferentes motins radicais é visível, quando protestam contra os preços abusivos e a falta de alimentos, na Paris do século XIX. E, mesmo enfrentando sanções, essas donas-de-casa lutam contra as mudanças que solapam o trabalho tradicional da indústria têxtil a domicílio, que incidiam na diminuição e postos de trabalho e adoção de disciplinas. 3 Nas sociedades indígenas da Amazônia brasileira, a figura da mulher é, também, balizadora da economia doméstica. Na etnia tikuna o trabalho das mulheres é visto como um fator de manutenção e desenvolvimento social da economia doméstica, as atividades femininas é o ponto basilar da organização do trabalho. A divisão sexual do trabalho e transpassada pelas relações simbólicas e pelo corte de gênero (TORRES, 2007). A nossa pesquisa foi realizada com oito mulheres indígenas da comunidade Tikuna de Manaus, bairro Cidade de Deus, localizada na Zona Leste de Manaus. A pesquisa contou também com entrevistas realizadas durante a Oficina com a Associação Poterîka’ Numiâ (APN), em 2007. E traz relatos de exploração de mulheres no trabalho doméstico, especialmente mulheres indígenas inseridas na sociedade envolvente. A comunidade tikuna do bairro Cidade de Deus foi formada há acerca de 16 anos e, atualmente, é constituída por oito famílias, que correspondem a aproximadamente 80 pessoas, agrupadas em sete casas dispersas linearmente numa vasta área, cada uma das casas moram pelo menos duas famílias. Os tikuna da primeira e segunda geração, logo que migraram, foram acolhidos por parentes já fixados em Manaus, os quais moravam de aluguel. Constata-se a ausência de uma infra-estrutura urbana de saneamento básico, dispondo, apenas, de serviço de energia elétrica que foi instalado no ano de 1998. A água disponível é originária de poço, situação que pode comprometer a qualidade para o consumo humano. Os dados cotejados em campo, revelam a situação de vulnerabilidade social em que se encontra o indígena migrante. O contexto de interações sociais dos tikuna não se distingue do experimentado por outras comunidades indígenas de Manaus3, sobretudo no que tange as condições de moradia, saneamento e assistência à saúde. Na nação Tikuna o trabalho faz parte do processo de maturação e desenvolvimento social para as mulheres. A menina tikuna é preparada durante a menarca, para assumir a futura função de esposa, ficando reclusa por determinado período aperfeiçoando as prendas domésticas e aprendendo a arte da olaria e tecelagem. Pois a mulher é indigna de ter um marido bom caçador se não souber [...] “fabricar uma louça de qualidade para cozinhar e servir a sua caça” (LEVI-STRAUSS, apud. TORRES, 2007, p. 369). A arte da olaria tikuna, que consiste em produzir os utensílios de cerâmica é um aspecto significativo da divisão sexual do trabalho.Embora a mulher tikuna não se ocupe da arte da olaria, em Manaus, a jovem é preparada para realizar o trabalho de artesã aprendendo a confeccionar adornos com sementes, fibras naturais e madeiras da Amazônia. O trabalho das mulheres, ainda que fora do seu habitat ancestral constitui-se [...] “como o elemento ordenador da economia doméstica na etnia ticuna” (TORRES, 2007, p. 369). 4 O trabalho da mulher tikuna constitui-se numa estratégia fundamental para o desenvolvimento da sociedade-índia urbana. As atividades das mulheres são voltadas para produção de artesanato, cuja comercialização é ponto central da economia doméstica. A mulher e o homem tikuna inseridos na sociedade envolvente, reignifica o seu sistema simbólico de ações incorporando outras representações. O labor do homem tikuna consiste na manutenção da área ocupada, na organização de atividades culturais e coordenação do trabalho das artesãs. Fora da comunidade indígena presta serviços avulsos e esporádicos, atividades profissional como auxiliar de serviços gerais e segurança. Segundo Maués (apud, TORRES, 2007, p. 370), [...] toda a lógica subjacente ao sistema que informa as ações e comportamento indígena em suas relações sociais, particularmente no que se refere àquelas entre homens e mulheres, reside no modo como os sujeitos percebem e organizam o seu universo cultural. Nesse universo, as diferenças centrais entre os gêneros servem como baliza para determinar as posições ocupadas por eles no contexto social onde atuam (MAUÉS, apud. TORRES, 2007, p. 370). A função de guerreio e cacique do homem tikuna, enquanto liderança indígena e articula, junto aos organismos governamentais e não-governamentais, nacional e internacionais. é bem significativa. O jovem na sociedade tikuna deve saber caçar, pescar e lidar com os mistérios da mata. Mas na comunidade indígena urbana, constata-se que ele tem buscado ampliar seu capital cultural para o fortalecimento da identidade étnica tikuna. O artesanato na nação Tikuna era confeccionando para o uso pessoal e para as trocas no âmbito da economia solidária. O produto resultante da venda do artesanato é indispensável, às necessidades básicas da comunidade em Manaus, consistindo-se no elemento ordenador da economia doméstica tikuna. Por meio do trabalho as mulheres tikuna, assim como as de outras etnias, as indígenas da Amazônia estão inscrevendo seus nomes na história mundializada. As peças produzidas levam consigo traços da cultura que é transmitida às mulheres de geração a, consistido numa [...] “herança cujos substratos estão salvaguardados e impregnado na alma do indígena, [...] apesar do processo de amalgamação sofrida no processo de colonização” (LIMA e TORRES, 2005, p. 7). O fazer artístico presente na produção artesanal traz a marca da ancestralidade, perceptível por meio da trama das fibras, do trançado dos cestos e das cores aplicadas às sementes. As fibras, as sementes e a madeiras são o elo de ligação dessa etnia com a natureza. Segundo Torres, [...] “a experiência de trabalho do indígena se dá a partir da sua experiência com a terra, a floresta e os rios, que são maiores referencias de sua vida”. 5 Em situação diferente encontram-se as mulheres da Associação Poterîka’ Numiâ (APN), constituída por 15 mulheres e cinco homens, das diferentes etnias existentes em Manaus. Fundada para criar alternativas de renda para as indígenas residentes em Manaus, a associação nasce a partir da experiência das Mulheres indígenas do Rio Negro (AMARN), do conjunto Tiradentes em Manaus. Além do artesanato comercializado em feiras as associadas comercializam culinária indígena, bebidas regionais que são o caxixi, e outras. O trabalho com o artesanato não é a única atividade exercida pelas mulheres indígenas da associação Poterîka’ Numiâ. É o que nos revela o relato de um artesão indígena da etnia tukano, que afirma: [...] “a Associação dos Artesãos Indígenas Poterîka’ Numiâ, foi fundada para criar alternativas de renda para indígenas residentes na cidade. Por que para nós que vem da aldeia para a cidade, tentando melhorar saúde, educação, conseguir emprego é difícil. Tanto que a maioria das mulheres associadas trabalha, como empregada doméstica. A maioria ganha pouco trabalhando o dia todo, às vezes, final de semana trabalhando e as crianças sem atenção da própria mãe” (J.K. 29 anos, entrevista/ 2007). O indígena torna-se frágil fora da sociedade-não-india, o ethos que perpassa a vida desse sujeito não se efetiva fora da comunidade étnica a qual pertence. Na ausência de um sentido de pertencimento a um grupo identitário, torna-se sujeito fácil de exploração e cooptações de diferentes ordens. Em função disso muitas mulheres indígenas se submetem às condições de exploração, no trabalho doméstico. Para as mulheres indígenas da Associação Poterîka’ Numiâ o trabalho com o artesanato constitui-se em um complemento de renda. O trabalho doméstico ainda que em situação de exploração é a atividade principal exercida por essas mulheres indígenas, situação diferente da constatada na comunidade Tikuna. Mesmo consciente da situação de exploração muitas mulheres indígenas, sem oportunidades de trabalho, podem, facilmente, não sair da condição de empregadas domésticas. A baixa escolaridade e a falta de treinamento, impedem que elas exerçam outras ocupações mais valorizadas econômica e socialmente. Em entrevista uma das mulheres da etnia Tuyuca e artesã da Associação Poterîka’ra Numiâ (APN) afirma que: A realidade das mulheres na cidade, umas não tendo artesanato para trabalharem, trabalham de doméstica. E doméstica é aquele trabalho explorado, pagam cem reais, cento e cinqüenta reais, a pessoa passa o dia todinho tem esse problema, também. E a maioria das pessoas, dos brancos, exploram. Por que as pessoas não tem assim, um pouco de conhecimento, então elas são exploradas. Elas trabalham dois, três meses e ficam sem receber, ficam chateadas, saem e ficam aqueles três meses de graça, eu sei porque eu já conheço essa realidade, assim de experiência própria. Então eu acho que é essa a realidade (M.A.P, 47 anos, entrevista/ 2007). 6 O ideário eurocêntrico, legitimador da dominação e exploração do território amazônico, construiu a imagem do indígena como inferior e irracional. Trata-se de uma estratégia utilizada para legitimar a escravidão e a inferioridade étnica em relação aos amazônicos. Esse ideário permanece na mentalidade de empregadores que submetem a mulher indígena a condições de trabalho semi-servil. A situação das mulheres indígenas exige, que os organismos de atendimento ao indígena criem novas alternativas de inserção social e formas de trabalho que não os exclua da sociedade industrial. São necessárias ações transformadoras das mentalidades que legitimam a situação em que se encontra a mulher indígena, em Manaus. O trabalho doméstico não deve constituir-se no único caminho para a chegada das mulheres indígenas a Manaus, outras possibilidades existem. Referências bibliográficas: CARVALHO, Auriane. Jornal: Amazonas em Tempo, Manaus, Estado do Amazonas. Caderno: Dia-a- Dia, C/2 30 de marc. de 2008. DIESE, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. As mulheres e o Salário Mínimo nos Mercados de Trabalho Metropolitano. Ano 3 – Nº 32 – Março de 2007. HOLZMANN, Lorena. Divisão Sexual do Trabalho. IN: Dicionário de Trabalho e Tecnologia/ Antonio David Cattanni, Lorena Holzmann (orgs.). – 1ª. Ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006, p. 101 - 106. IBGE. Instituto Brasileira de Geografia e Estatística. Tendências demográficas. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/AM.pdf.>Acessado em 20 de abr. de 2008. 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Globalização e reestruturação produtiva: um estudo sobre a produção offshore em Manaus. – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007. 1Filosofo pela UFMG, Pós-Graduado em Sociologia/UFRGS, Mestrando do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura da Amazônia – UFAM e Professor Substituto de Sociologia/Politica da UFAM. 2 Doutora em Ciências Sociais/Antropologia e Professora da UFAM.
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