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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais FABIO SCARINGELLA TARIKIAN Mobilidade Urbana: uma análise sociológica das Ciclovias e Ciclofaixas na cidade de São Paulo Mestrado em Ciências Sociais São Paulo 2017 Fabio Scaringella Tarikian Mobilidade Urbana: uma análise sociológica das Ciclovias e Ciclofaixas na cidade de São Paulo Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, área de concentração em Sociologia, sob a orientação da Profa. Dra. Marisa do Espírito Santo Borin. São Paulo 2017 ERRATA Fabio Scaringella Tarikian Mobilidade Urbana: uma análise sociológica das Ciclovias e Ciclofaixas na Cidade de São Paulo PÁGINA PARÁGRAFO LINHA ONDE SE LÊ LEIA-SE 19 3º 2 Ciclorotas Ciclorrotas 19 Nota de rodapé 4 ciclovaixas ciclofaixas 21 1º 1 a utilizem As utilizam 21 3º 1 diversificado diversificadas 22 3º 4 parra para 29 1º 3 acaba acabam 29 3º 1 Lefebriano Lefebvriano 36 3º 1 são São 40 1º 4 avenida avenidas 40 Imagem 2 ‘fonte’ http://www.usp.br/fau FAU USP, 2007 44 2º 2 configura configurar 44 2º 5 rápidamente rapidamente 44 2º 8 cumprires cumprirem 50 1º 13 habitat habitar 50 3º 9 penas apenas 59 2º 1 obtidos obtida 65 2º 3 crescendo em média crescimento médio 67 1º 2 ocada cada 67 1º 4 compartihadas compartilhadas 68 2º. 1 Cicloviario Cicloviário 68 2º. 3 idade cidade 69 Imagem 4 ‘fonte’ CET SP CET SP, 2017 69 Imagem 5 ‘fonte’ CET SP CET SP, 2017 71 1º 1 das duas 72 2º 5 cicloviária cicloviárias 72 2º 5 quede que de 72 4º 1 china China 73 3º 1 (…) destaque e (…) destaque é 73 3º 2 pedalaram pedalam 74 1º 2 Associacao Associação 74 3º 4 Panmob/SP PlanMob/SP 78 Imagem 8 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 79 1º 5 recorde recorte 79 Imagem 9 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 80 Imagem 10 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 81 Imagem 11 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 81 Imagem 12 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 83 Imagem 13 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 83 Imagem 14 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 84 Imagem 15 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 85 Imagem 16 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 85 Imagem 17 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 86 Imagem 18 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 86 Imagem 19 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 87 Imagem 20 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 87 Imagem 21 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 88 Imagem 22 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 89 Imagem 23 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 89 Imagem 24 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 89 2º 1 paa para 90 Imagem 25 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 90 Imagem 26 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 91 Imagem 27 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 91 Imagem 28 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 91 Imagem 29 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 92 1º 3 pra para a 93 Imagem 30 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 94 2º 3 (...) corresponde à este (...) corresponde a este 94 Imagem 31 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 95 Imagem 32 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 95 Imagem 33 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 95 Imagem 34 ‘fonte’ Ciclocidade Ciclocidade, 2016 98 2º 2 (...) presente no no (...) presente no 101 3º 3 ciclorotas ciclorrotas 107 1º 2 uma um 114 2º 3 pois a pois 131 4º 2 noçâo noção 132 2º 3 claros claro Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, unicamente para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. fabio.berin@gmail.com mailto:fabio.berin@gmail.com Nome: Fabio Scaringella Tarikian Título: Mobilidade Urbana: uma análise sociológica das Ciclovias e Ciclofaixas na Cidade de São Paulo Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________ Profa. Dra. Marisa do Espírito Santo Borin (Orientadora) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP ______________________________________________________________ Profa. Dra. Maura Pardini Bicudo Veras Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP ______________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Adélia Aparecida de Souza Universidade de São Paulo – USP 5 Para Rosana e Roberto, meus grandes incentivadores: minha mãe, cuja dedicação e amparo em todos os campos da minha vida, em especial na preocupação com minha educação, fez-me chegar até aqui; meu tio (in memoriam), de quem sempre tive apoio e exemplo, que me inspirou nesta trajetória de ação e pesquisa no campo da mobilidade e planejamento urbano. Eu dedico aos dois este trabalho. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que fizeram possível este trabalho, em especial: Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, que tão bem me recebeu dando todo o suporte para que esta pesquisa se concretizasse; À minha orientadora, Professora Doutora Marisa do Espirito Santo Borin, pela paciência nа orientação, com enorme dedicação e empenho, bem como pela confiança depositada em mim, o que tornou possível а conclusão deste trabalho; Às Professoras Dra. Maura Pardini Véras e Dra. Dulce Baptista, membros da banca de qualificação, pelas valiosas contribuições à esta dissertação; À professora Dra. Maria Adélia Souza que, gentilmente, aceitou participar da banca examinadora; À Bruna Servino, por quem nutro grande admiração, e de quem tive todo apoio e incentivo, de forma especial е carinhosa, que me deu força е coragem nos momentos de alegria ou ajudando a superar os momentos de dificuldade; Aos amigos de todas as horas, Ana Jerez, Bruno Henrique e Renato Fleury, por toda a ajuda, além de todas as valorosas conversas e contribuições sobre o tema desta pesquisa; Ao Marcelo Constantino, pelo apoio e disposição nos momentos de enorme ansiedade presentes durante boa parte do tempo no desenvolvimento deste trabalho; À Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes de São Paulo; em especial ao Secretário Municipal, Sr. Sérgio Henrique Passos Avelleda, bem como ao Secretário Adjunto, Sr. Irineu Gnecco Filho; sem esquecer da assessora Carolina Cominatto; À Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo; e ao seu Diretor de Operações, Sr. Milton Roberto Persoli; 7 À Associação Nacional de Transportes Públicos; bem como ao seu presidente, o Sr Ailton Brasiliense Pires; além dos consultores, Eduardo Alcântara de Vasconcelos e Maria Ermelina Brosch Malatesta; Ao Vereador Ricardo Teixeira; Ao Urbanista Flaminio Fischman; Ao Urbanista e Professor, Nabil Georges Bonduki; À Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo; ao seu Diretor Geral, Daniel Guth; ao Coordenador de Comunicação, Flávio Soares e ao associado Yuri Souza; Ao movimento Ccicloativista e aos bravos Ciclistas Urbanos que enfrentam cotidianamente as dificuldades e perigos desta cidade hostil. Por fim, agradeço de forma especial aos ciclistas que puderam partilhar suas belas histórias: Ana Paula Tavares Carla Moraes Claudia Franco Daniel Goldstein Marcia Fernog Mauricio Marengoni Michel Teixeira Ricardo Ferreira Ricardo Gaspar Tatiane Rodrigues Tu Moon Jr Vera Penteado 8Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (Processo nº 1465333) bem como ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Processo nº 134152/2016-6), pela contemplação de bolsa de estudos, possibilitando o desenvolvimento desta pesquisa. 9 A cidade não é apenas uma linguagem, mas uma prática. (Henri Lefebvre1) 1 (1991, p. 98) 10 RESUMO Tendo como pano de fundo a análise acerca do processo de evolução do espaço urbano e suas principais especificidades ao longo do desenvolvimento histórico e social na cidade de São Paulo, a presente dissertação faz uma análise sociológica sobre as recentes medidas e políticas de incentivo ao uso de transporte ativo, em especial o sistema cicloviário, que recebeu significativo incremento nos últimos anos. Partindo-se de ferramental multidisciplinar, com especial ênfase na teoria do ‘Direito à Cidade`, buscou-se aprofundar o conhecimento sobre o modelo de evolução urbana na cidade de São Paulo, para correlacioná-lo com padrões de organização de mobilidade e transporte, tido como um dos principais problemas do município atualmente, para, enfim, analisar seus efeitos e consequências sobre a vida social em vista da mobilização em torno da apropriação ou reconquista do Espaço Público Urbano. PALAVRAS CHAVE: Mobilidade Urbana, Direito à Cidade, Ciclovias e Ciclofaixas, 11 ABSTRACT . Based on the analysis of the evolution of urban space and its main features throughout the historical and social development of the city of São Paulo, this dissertation presents a sociological analysis of the recent measures and policies to encourage the use of active transport, in particular the bicycle system, which has received a significant increase in recent years. Based on multidisciplinary tools, with special emphasis on the theory of 'Right to the City', we sought to deepen knowledge about the urban evolution model in the city of São Paulo, to correlate it with patterns of organization of mobility and transportation, considered as one of the main problems of the municipality today, in order to analyze its effects and consequences on social life in view of the mobilization around the appropriation or reconquest of the Urban Public Space. KEY WORDS: Urban Mobility, Right to the City, Bike Path & Bike Lanes 12 LISTA DE IMAGENS Imagem 1 – Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo .................................................... 38 Imagem 2 – Evolução da mancha urbana da Região Metropolitana de São Paulo .................. 40 Imagem 3 – Setores Censitários segundo o grupo dominante do chefe de domicilio .............. 41 Imagem 4 – Mapa do sistema cicloviário (completo) .............................................................. 69 Imagem 5 – Mapa do sistema cicloviário (ciclovias e ciclofaixas) .......................................... 69 Imagem 6 – Faixas etárias – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo .................................. 77 Imagem 7 – Faixas etárias (quantidades) – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ............ 77 Imagem 8 – Escolaridade – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo .................................... 78 Imagem 9 – Escolaridade por área – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ...................... 79 Imagem 10 – Renda dos ciclistas - perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ........................ 80 Imagem 11 – Renda dos ciclistas, por área - perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......... 81 Imagem 12 – Renda dos ciclistas, distribuição - perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ... 81 Imagem 13 – Frequência de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ...... 83 Imagem 14 – Distribuição de frequência de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo .................................................................................................................................. 83 Imagem 15 – Tempo de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ............ 84 Imagem 16 – Tempo de uso de bicicleta, por área – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 85 Imagem 17 – Tempo de uso de bicicleta, por gênero – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 85 Imagem 18 – Distribuição de tempo de uso de bicicleta por renda – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo .............................................................................................................. 86 Imagem 19 – Distância de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo......... 86 Imagem 20 - Distância de uso de bicicleta, por área – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 87 13 Imagem 21 - Distância de uso de bicicleta, por gênero – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 87 Imagem 22 - Tempo de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ............. 88 Imagem 23 – Dispersão da frequência de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 89 Imagem 24 – Frequência de uso de bicicleta – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ...... 89 Imagem 25 – Frequência de uso de bicicleta, por gênero – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 90 Imagem 26 – Frequência de uso de bicicleta, por área – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 90 Imagem 27 – Frequência de uso de bicicleta, por motivos (lazer) – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ............................................................................................................................ 91 Imagem 28 – Frequência de uso de bicicleta, por motivos (compras) – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo .............................................................................................................. 91 Imagem 29 – Frequência de uso de bicicleta, por motivos (estudos) – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo .............................................................................................................. 91 Imagem 30 – Principal motivação de uso – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ........... 93 Imagem 31 – Principal motivação do uso, por renda – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 94 Imagem 32 – Principal motivação do uso, por área – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 95 Imagem 33 – Principal motivação do uso, por gênero – Pesquisa do perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ..............................................................................................................95 Imagem 34 – Principal motivação do uso, por idade – perfil dos ciclistas urbanos em São Paulo ......................................................................................................................................... 95 14 LISTA DE ABREVIATURAS ANTP Associação Nacional de Transportes Públicos CET Companhia de engenharia de Tráfego de São Paulo CF Constituição Federal CMV Câmara Municipal de Vereadores ConCidades Conselho das Cidades CTB Código de Transito Brasileiro DETRAN Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo Fundurb Fundo de Desenvolvimento Urbano MCidades Ministério das Cidades OD Pesquisa de Origem e Destino PDE Plano Diretor Estratégico PlanMob Plano Diretor de Transporte e da Mobilidade PlanMob/SP O Plano de Mobilidade Urbana da cidade de São Paulo PMU Plano de Mobilidade Urbana PNDU Política Nacional de Desenvolvimento Urbano RMSP Região Metropolitana de São Paulo SMT Secretaria Municipal dos Transportes UCB União dos Ciclistas do Brasil 15 SUMÁRIO Problema de pesquisa ......................................................................................................... 20 Percurso Metodológico ....................................................................................................... 20 Estrutura do trabalho ........................................................................................................ 21 CAPÍTULO 1 – O ESPAÇO URBANO ............................................................................... 23 1.1 - O Direito à Cidade ..................................................................................................... 30 1.2 - Breve panorama histórico e social da cidade de São Paulo .................................... 36 1.3 - A Mobilidade Urbana no Espaço Social ................................................................... 41 CAPÍTULO 2 – POLITICAS PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO DE MOBILIDADE URBANA ................................................................................................................................. 48 2.1 Panorama das legislações nacionais de mobilidade urbana ..................................... 51 2.1.1 - Constituição Federal da República ........................................................................ 51 2.1.2 - Código de Trânsito Brasileiro ............................................................................... 52 2.1.3 - Estatuto da Cidade ................................................................................................. 53 2.1.4 - Ministério das Cidades .......................................................................................... 54 2.1.5 - Política Nacional de Mobilidade Urbana .............................................................. 57 2.2 - Plano Diretor Estratégico de São Paulo ................................................................... 59 2.3 - Plano de Mobilidade Urbana da cidade de São Paulo – PlanMob SP (2015) ....... 63 2.3.1 - O Sistema Cicloviário de São Paulo ..................................................................... 67 CAPITULO 3 – SÃO PAULO EM DUAS RODAS (O CICLISMO E A CIDADE) ........ 70 3.1- O Movimento Cicloativista ......................................................................................... 70 3.2 - Os ciclistas urbanos e seus perfis .............................................................................. 75 3.2.1 - Gênero ................................................................................................................... 75 3.2.2 - Idade ...................................................................................................................... 76 3.2.3 - Escolaridade .......................................................................................................... 78 3.2.4 - Renda ..................................................................................................................... 80 3.2.5 - As viagens com bicicleta ....................................................................................... 82 3.2.6 - Motivo das viagens com bicicletas ....................................................................... 88 3.2.7 - Motivações para uso da a bicicleta como meio de transporte ............................... 92 3.1.8 - Vulnerabilidade dos ciclistas ................................................................................. 96 3.3 - O retorno à velha cidade ............................................................................................ 98 3.3.1 - A visão dos especialistas ..................................................................................... 102 3.4 – A (re)apropriação do Espaço Urbano .................................................................... 114 3.4.1 - O relato dos usuários (a bicicleta e a disputa pelo direito ao espaço) ................. 116 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 133 16 INTRODUÇÃO Não há nada mais trivial na cidade de São Paulo do que a questão da mobilidade e dos congestionamentos, entretanto, paradoxalmente, também não há outra questão que afete tanto a vida cotidiana das pessoas. No simples movimento de ir e vir rivaliza-se pelo direto ao espaço e a escolha de um acaba por interferir diretamente na vida de outro (ou de todos). A discussão sobre questões de trânsito, transporte ou uso e ocupação de solo é antiga, mas recentemente ganhou um novo participante, a bicicleta. Não que a ‘magrela’ seja uma invenção nova, mas a cidade, tão espraiada e pensada para o automóvel, não tornava esse meio de locomoção atrativo além do que curtas viagens interbairros, ou para poucos entusiastas de coragem. Nesta descrição não se inclui o uso esportivo da bicicleta, que sempre foi presente em parques e praças da cidade, ou mesmo em percursos noturnos. A questão é que a utilização da ‘bike’ como meio de transporte diário nas vias públicas seria algo impensado até pouco tempo, em vista do ‘não-reconhecimento’ deste modal alternativo e da falta de segurança no sistema viário da cidade para seus usuários. Essa é a lógica que conduziu o próprio desenvolvimento social e urbano da capital paulista - o da segregação sócio espacial, com claro privilégio às elites motorizadas. Há de se ressaltar que quem de fato vive nesta metrópole sabe das dificuldades do cotidiano em especial no que tange à locomoção. Questões sobre tempo ou distâncias são subvertidas pela rotina paulistana. Mobilidade passou a ser um dos assuntos mais carentes e atuais, de pautas jornalísticas até conversas informais. Aliás, mobilidade é um tema que paira no Zeitgeist2 da cidade, de tal importância que pôde influir decisivamente em resultados de eleições, como destacado em alguns jornais e revistas3. Ainda que com certa dose de polêmica, a Gestão Municipal (2013-2016)4 captou este sinal. Na tentativa de se libertar da ‘absolutização’ do carro, a cidade foi contornada com faixas vermelhas destinadas a delimitar o espaço próprio do ciclista – cor que, neste caso, não denota 2 Zeitgeist, palavra alemã, em tradução livre ‘espírito do tempo’, cujo sentido determina o conjunto e as características culturais emergentes de um determinado momento de uma sociedade. 3 https://www.cartacapital.com.br/politica/sao-paulo-uma-eleicao-que-pode-ser-decidida-no-transito 4 Gestão de Fernando Haddad, eleito o 51º Prefeito de São Paulo, para mandato no período entre 1º de janeiro de 2013 e 31 de dezembro de 2016. 17 nenhuma orientação política, partidária ou ideológica, como a regulamentação de sinalizaçãode solo aponta sobre a implementação das ciclovias5. As vias vermelhas, que destoam do monocromático (cinza) característico da cidade, criaram um espaço exclusivo para circulação de bicicleta, na tentativa de integrar esse modal na realidade urbana de São Paulo. Abriu-se um espaço reservado, ao lado dos automóveis e outros veículos, para que os ciclistas pudessem passar com mais integração e segurança. Mas, ainda que aparentemente isolados por uma faixa, estar cercado de automóveis denota uma serie de relações que pautam conflituosamente a vida urbana na cidade. Em torno desta questão está o Direito à Cidade, conceito do qual esta pesquisa se assenta, proposto originalmente pelo filósofo e sociólogo Henri Lefebvre em seu livro Le Droit à la ville6, publicado em 1968, através do qual discute um acesso renovado e transformado à vida urbana, como um direito de não exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana. Este assunto será discutido à frente, em um capítulo próprio. Estas relações a partir do uso da bicicleta não são de fácil compreensão. O fato é que o destaque à ciclovia como objeto de estudo sociológico é algo recente na literatura acadêmica, bem como a sociologia urbana é algo igualmente novo para a minha realidade. Ainda enquanto graduando do curso de economia, interessei-me pelo estudo da cidade, especificamente sobre o tema mobilidade urbana, através de questões de oferta, demanda, falhas de mercado, políticas públicas, etc., onde fui contemplado, em três oportunidades, com bolsas de iniciação cientifica para o desenvolvimento destes temas7, tendo como objetos de estudo (i) as implicações econômicas sobre obras de infraestrutura urbana, apontando como estudo de caso a construção dos tuneis da avenida Faria Lima sob as avenidas Rebouças e Cidade Jardim; (ii) o modelo de pedágio urbano, tendo em vista teorias de taxação e regulação; ou ainda (iii) o estudo sobre o desenvolvimento urbano e econômico em vista do modelo rodoviarista de transportes adotado pela cidade. Minha monografia, como exigência de conclusão de curso, 5 http://www.denatran.gov.br/download/resolucoes/resolucao_contran_160.pdf 6 O Direito à Cidade. Publicada no brasil em sua 1ª edição pela editora morais, 1991. 7 TARIKIAN, Fabio Scaringella. Efeitos Econômicos e Sócio-políticos da Gestão de Trânsito: Um Estudo de Caso. Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2005. _____, Estudo sobre Pedágio Urbano: a importância de um sistema de Trânsito Tarifado. Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2007. _____, Estudo comparado entre políticas de controle e planejamento de transporte, nos modelos Norte Americano e Europeu. Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2009. http://www.denatran.gov.br/download/resolucoes/resolucao_contran_160.pdf 18 seguiu a mesma linha de pesquisa, aprofundando esta visão urbana e de mobilidade. Todos os objetos continham dois denominadores comuns: o uso do Carro e a Cidade de São Paulo. Talvez eu tenha sido orientado, ou condicionado, a pensar sobre mobilidade urbana pela perspectiva dominante desta cidade, sendo o automóvel particular historicamente o pivô das políticas públicas de trânsito e transporte, em detrimento a outros meios coletivos ou mesmo alternativos de locomoção, deixando escapar a análise mais apurada de todas as relações sociais que derivam do tema. Como percebido, esta é a própria dinâmica do desenvolvimento social e urbano de São Paulo. Desta maneira, como novato pesquisador, encontrei no programa de Mestrado em Ciências Sociais uma nova área que pôde ampliar minhas perspectivas sobre o tema que venho desenvolvendo em minha curta vida acadêmica. Meu interesse pelo objeto desta pesquisa veio com uma certa dose de acaso. Apesar de interesse e desenvolvimentos prévios na área de estudo, devo admitir que a princípio não era nenhum ativista da causa, estando fora de forma para conseguir adotar a bicicleta como transporte do cotidiano, a não ser por uma necessária rotina de exercícios, mas para quem estuda mobilidade não deixa de ser estimulante ver a cidade, na tentativa de se libertar da ideologia rodoviarista única (este pensamento no qual apenas o carro é abarcado no planejamento da cidade), sendo contornada com as tais faixas vermelhas. No ano de 2013 eu tive o privilégio de morar por alguns meses na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Um ambiente novo para mim e de certa forma hostil, em um país cuja vida urbana é totalmente pautada pelo uso do automóvel. Entretanto, Nova Iorque se diferencia de outros centros estadunidenses por ter um antigo e caótico, embora eficiente, sistema de transporte público, especialmente metroviário, ainda que seu traçado urbano não deixe dúvidas sobre o privilégio que o carro tem no espaço construído. Como pedestre, pude usufruir deste sistema de transporte púbico destinado a pessoas que, como eu (por escolha - ou falta dela), não se utilizavam do carro como meio de transporte. Apesar da ampla estrutura férrea subterrânea, esta cidade investiu muito dinheiro e esforço no desenvolvimento de outros modais. Foi onde conheci o conceito de bicicletas compartilhadas8. O sistema havia sido recém-inaugurado e deu uma nova dimensão ao plano cicloviário que havia sido implementado ainda no ano de 20079, do qual busquei conhecer. De imediato tornei- 8 https://www.citibikenyc.com/ 9 SADIK-KHAN, 2016. 19 me um usuário entusiasta, pois era uma opção barata, sustentável, segura e extremamente prática para o deslocamento na cidade, e me deu uma compreensão nova sobre os alcances para a mobilidade urbana. Retornando ao Brasil, no início de 2014, coincidentemente pude acompanhar o desenvolvimento do sistema cicloviário em São Paulo. Neste sentido, a partir de observações e discussões informais, despertou-se em mim o interesse em desenvolver uma pesquisa científica com este objeto de análise. Com muita satisfação busquei no mestrado a porta que abriu meu caminho para os estudos na Sociologia, do qual, espero, eu possa continuar percorrendo - e pedalando. Apesar das diferenças socioeconômicas, climáticas ou mesmo topográficas, a intenção, desde o início, não foi o de fazer nenhum paralelo entre as cidades. Nova Iorque me deu a inspiração, mas meu olhar sempre foi para São Paulo. Neste sentido, o interesse era de entender o impacto das ciclovias da capital paulista para a dinâmica social e urbana desta cidade, em termos de facilidade de locomoção e mobilidade, bem como em possibilidades para uma apropriação do espaço público e de sociabilidade por parte dos que adotaram a bicicleta como meio de transporte cotidiano. É mister ressaltar que, em São Paulo, o Sistema Cicloviário é composto por diferentes estruturas de circulação, constituídas pelas Ciclovias10, Ciclofaixas11 e Ciclorotas12. Apesar de suas características e especificidades, esta pesquisa adota os termos Ciclovias e Ciclofaixas de forma generalista, considerado sinônimos de vias cicláveis, como forma de analisar o plano cicloviário como um todo, não um componente especifico do plano, dentro da política pública desenvolvida na gestão municipal (2013-2016) onde ambas as faixas exclusivas tiveram o mesmo tratamento. 10 Ciclovias são vias exclusivas, em espaço segregado para fluxo de bicicletas, comumente instaladas em canteiros centrais, com sinalização de solo e horizontal específicos, sem interferência com os demais veículos. 11 Ciclovaixas são faixas exclusivas, instalada sobre a via ou calçamento, apenas com pintura específica e sinalização de solo a demarcando 12 Ciclorotas são faixa compartilhada da via entre diferentes modais, com sinalização de solo indicando a preferência para bicicletas, sem qualquer segregação ou pintura exclusiva20 Problema de pesquisa Assim, através do percurso descrito, levantou-se o Problema de Pesquisa: “Até que ponto as ciclovias e ciclofaixas contribuíram para o desencadear da mobilização em torno da apropriação do Espaço Público Urbano?” Como análise a esta pergunta, a pesquisa se debruça em usuários das ciclovias que a utilizam como viário, tendo as bicicletas como meio de locomoção cotidiano para o trajeto entre suas residências e seus afazeres do cotidiano, em especial no trajeto pendular entre residência e local de trabalho. Percurso Metodológico Para responder a esta pergunta, propôs-se, inicialmente, como plano metodológico, uma discussão teórica sobre o espaço urbano. Esta pesquisa se debruça na teoria de autores que contribuíram para o arcabouço teórico da sociologia urbana, fundamentalmente de viés marxista, bem como de autores de áreas correlatas, como a geografia ou o urbanismo, buscando compreender, de forma interdisciplinar, a maneira como se dá a ocupação no espaço urbano, as produções e reproduções existentes, os desequilíbrios e contradições neste ambiente social que é a cidade moderna e a dinâmica da vida cotidiana. De maneira teórica e conceitual, visando a compreensão das implicações que este desenvolvimento se dá na vida da população, dentro do viés estabelecido, a pesquisa também visa propor, de forma específica, uma análise do contexto sócio histórico que pautou o desenvolvimento urbano da cidade de São Paulo, relacionando-se, em seguida, aos desafios de mobilidade urbana da cidade, utilizando-se, para isso, de referencial bibliográfico adequado. Para a compreensão destes assuntos, é elaborada, também, uma análise legislativa e normativa, valendo-se para tal de regulamentos, códigos e leis que disciplinam a mobilidade na cidade, e uma discussão de políticas públicas sobre a implementação das faixas cicláveis na capital paulista, de modo a compreender o cenário de pressões, vetos e concessões que permitiram a implementação desta política de mobilidade dentro deste espaço urbano. A seguir, realizou-se uma pesquisa de campo, para compreensão do objeto de estudo, através de entrevistas semiestruturadas com técnicos e especialistas qualificados, professores e urbanistas, dirigentes de Órgãos Oficiais, como a Companhia de engenharia de Tráfego de São Paulo (CET), Secretaria Municipal dos Transportes (SMT), Câmara Municipal de Vereadores 21 (CMV), entre outros, contribuindo para a discussão teórica, inclusive no tocante às ações do estado resultantes nas reproduções existentes, os desequilíbrios e contradições neste ambiente social que é a cidade moderna. Ainda foram ouvidos 12 ciclistas e usuários das ciclovias, que a utilizem como modal rotineiramente em seus trajetos cotidianos, no movimento pendular ‘casa-trabalho’. A escolha por estes entrevistados foi feita dentro de comunidades de ciclistas, respeitando o critério estabelecido de divisão por sexo, idade e assiduidade com o uso das bicicletas e região de residência. Propõe-se, o critério de escolha de a 6 homens e 6 mulheres, sendo que destes, dentro desta divisão por gênero, foi escolhido ao menos 1 usuário de cada região de São Paulo, a considerar Zonas Norte, Sul, Leste, Oeste e Central. Dentro do recorte de gênero, também foi escolhido ao menos 2 ciclistas com idade superior a 50 anos e, ainda, ao menos 1 que seja ciclista recente, com menos de 3 anos pedalando em seus afazeres do cotidiano. Estes critérios foram pensados no intuito de se obter opiniões e análises diversificado sobre o tema, permitindo-se, assim, uma avaliação qualitativa das informações levantadas, e serão retomados posteriormente, no capítulo em que se apresentam os resultados. Estrutura do trabalho A Estrutura do trabalho segue lógica proposta pelo percurso metodológico acima exposto, tendo como 1º capítulo a discussão teórica sobre a concepção do espaço público, o espírito de segregação e a estruturação do espaço urbano. O transcorrer do capítulo teve como base a Teoria do Filósofo Henry Lefebvre, e sua análise do Direito à Cidade. Corroborando com esta concepção, a dissertação também se apoia fundamentalmente em autores como Flávio Villaça, Raquel Rolnik, Ana Fani Carlos, Ermínia Maricato, David Harvey, entre outros. Para se tomar São Paulo como pano de fundo desta investigação, de forma contextualizada, expôs-se uma breve análise do desenvolvimento urbano e social da cidade, correlacionando os temas. Neste Capítulo, é introduzida, ainda, a discussão sociológica acerca da mobilidade urbana na capital paulista, que visa compreender, dentro do ambiente urbano segregado e de desequilíbrios, o enfoque dado aos diferentes modais, entre eles a bicicleta, antecipando a discussão do capítulo seguinte. 22 O 2º Capítulo contempla a discussão das políticas públicas de mobilidade que impactam na vida urbana de São Paulo, entre as quais o Plano Nacional de mobilidade, o Estatuto das Cidades e, com maior ênfase, a revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE). Após esta análise, levantam-se os destaques das leis ao modo de transporte em bicicleta, correlacionando tais análises ao Plano de Ciclovias implementado pela Gestão Municipal (2013-2016). O 3º capitulo retoma brevemente conceitos da discussão sobre o espaço urbano para exibir, de maneira objetiva, os conflitos existentes na dinâmica urbana sobre o uso da bicicleta em São Paulo. Neste sentido, é apresentado o movimento cicloativista que surge do esforço de promover o uso da bicicleta dentro da dinâmica urbana de mobilidade, também é apresentado o perfil dos ciclistas urbanos, e dos tipos de viagens que estes fazem na cidade, através da análise quantitativa de dados secundários. Para melhor compreensão dos resultados do plano cicloviário, de seus fatores positivos e negativos, e dos aspectos técnicos e políticos, dos seus efeitos aos usuários, bem como uma crítica sobre a possibilidade retrocessos sobre esta política, neste capitulo também são ouvidos especialistas e autoridades, parra corroborar com a análise proposta e enriquecer a discussão. Por fim, o capítulo apresenta o resultado de entrevistas com usuários das ciclovias, dentro do perfil estabelecido na descrição do plano metodológico, ou seja, usuários que utilizam as bicicletas em seus trajetos entre a casa e o trabalho, com diferentes identidades e características e de diferentes regiões da cidade, contribuindo com uma análise qualitativa, para uma compreensão da dimensão social das ciclovias e ciclofaixas, na busca pela elucidação do problema de pesquisa previamente apresentado. 23 CAPÍTULO 1 – O ESPAÇO URBANO Inicialmente, a presente pesquisa busca a compreensão da realidade urbana através de referências não apenas no contexto da sociologia, mas também em autores e conceitos de fontes diversas das ciências humanas e sociais, no intuito de enriquecer a discussão e a compreensão da cidade através da análise da vida cotidiana como prática sócio espacial; isto é, a cidade como o espaço onde se desenrola e ganha sentido a vida cotidiana. Para tanto, parte-se da análise sobre o Espaço Urbano, fundamental para a percepção dos desequilíbrios impostos à vida nas cidades, e entender de que forma se insere a discussão sobre as faixas cicláveis na cidade de São Paulo.13 Tomada esta perspectiva preliminar, percebe-se que, de forma um tanto equivocada, as cidades comumente vêm sendo pensadas fora deste contexto social, seja pela perspectiva física e concreta, quando do aspecto de seus planejamentos, ou como meros ambientes urbanos inertes, de forma naturalizadas, sem que sejam considerados seus importantes aspectos sócio espaciais, como aponta Carlos (2007). Estes aspectos são próprios a darem sentido, tanto em forma quanto em conteúdo, expressando o desafio de desvendar a realidade urbana em sua totalidade, incluindoas possibilidades que resultam para a vida cotidiana da cidade. Tendo esta ideia como ponto de partida, postula-se, portanto, a ideia de cidade como uma construção humana permanente. Partindo deste pressuposto, ainda segundo Carlos (2007), a compreensão sobre a cidade faz-se através da compreensão da prática sócio espacial, ou seja, do modo pelo qual a vida na cidade se realiza, enquanto formas e momentos de apropriação do espaço como elemento constitutivo da realização da existência humana. O espaço urbano apresenta um sentido profundo, pois se revela condição, meio e produto da ação humana – pelo uso - ao longo do tempo. Esse sentido diz respeito à superação da ideia de cidade reduzida à simples localização dos fenômenos (da indústria, por exemplo), para revelá-la como sentido da vida humana em todas as suas dimensões, – de um lado, enquanto acumulação de tempos, e de outro, possibilidade sempre renovada de realização da vida. Assim, a cidade se realizaria também, como lugar do possível (CARLOS, 2007, p. 11). 13 Não sendo esta uma pesquisa desenvolvida no campo da teoria da Geografia, doravante o termo Espaço ou Espaço Urbano será tratado como sendo palavra ou expressão de acepção semelhante ao de cidade, salvo por algum conceito específico apresentado no texto, ou citação, cujo sentido possa ser compreendido (e explicado) à parte. 24 Desta forma, o espaço é revelado enquanto produto social e como condição para que as transformações sociais, políticas e econômicas se materializem no decorrer da história. A produção do espaço urbano consiste na realização das próprias condições da existência humana, orientando a práxis social na construção do mundo objetivo. Como bem definido pelo autor português, Machado Pais (1993) afirma sobre esta construção que caracterizam ou representam a vida passante do quotidiano reflete-se na constatação de que ‘o quotidiano é o que se passa quando nada parece passar’ (PAIS, p. 9). (...) é porque ‘o que se passa tem um significado ambíguo próprio do que se subitamente se instala na vida, do que nele irrompe como novidade (‘o que passou?’), mas também no que nela flui ou desliza (o que se passa...) numa transitoriedade que não deixa grandes marcas de visibilidade’ (PAIS, 1993, p. 9). A cotidianidade, deste modo, não trataria apenas do que se supõe como um senso comum, mas uma maneira metodológica de abordar as relações sociais e questões de sociabilidade. Para o autor, estas relações seriam resultados da arte de pensar, questionar e fazer, cuja matéria prima seria uma espécie de ‘barro social’. Este barro, em sua forma mais simples, equivaleria ao cotidiano (PAIS, 2013, p. 111). Martins (1998) demonstra um raciocínio semelhante ao encontrar, na análise da vida cotidiana, não apenas o repetitivo, mas também a inovação e a produção de novas relações sociais. O autor evidencia que no cotidiano vislumbra-se o possível. O autor já demonstrava essa percepção ao salientar os sutis e complicados mecanismos da reprodução social para evidenciar a dinâmica do imobilismo, do repetitivo, da permanência dentro da perspectiva de vida cotidiana: O conhecimento de senso comum e a vida cotidiana (...) aparecem circunscritos ao âmbito da atenção e da vigília. O que, no fundo, sugere uma instabilidade permanente da vida cotidiana, sujeita aos choques que estabelecem descontinuidades mais ou menos profundas na passagem de um mundo a outro do que Schutz14 define como realidades múltiplas. Múltiplas, justamente, porque cada mundo (como a vida cotidiana, o sonho, a loucura etc.) tem o seu próprio estilo cognitivo, definidor dos limites de suas significações. Embora a vida cotidiana seja o mundo que dá sentido aos demais, enquanto referência, aparece subvertida e alterada nesses outros mundos. O que nos mostra as descontinuidades que atravessam a vida cotidiana todos os dias (MARTINS, 1998, p. 5). O espaço urbano, portanto, contém e revela ações passadas, ao mesmo tempo em que o projeta o futuro a partir da construção da vida no momento presente – “o que nos 14 APUD, MARTINS, 2008. SCHUTZ, Alfred & LUCKMANN, Thomas. La estruturas del mundo de la vida. Trad. Néstor Míguez. Buenos Aires, Amorrortu Editores. 1977. 25 coloca diante da impossibilidade de pensar a cidade separada da sociedade e do momento histórico analisado” (CARLOS, 2007, p. 20). Nesta perspectiva, percebe-se o espaço como sendo um produto histórico sujeito às mudanças pelas quais passam a sociedade ao longo das gerações, em um processo cumulativo; do mesmo modo, percebe-se a cidade como lugar preponderante do viver contemporâneo, onde estabelecem-se novos arranjos e configurações de vida, refletindo diretamente nas formas de socialização e sociabilidade. Em outras palavras, o espaço é uma realidade prática que se constitui no decorrer da história da humanidade enquanto condição, meio e produto das relações sócio espaciais (CARLOS, 2007), o que implica em compreendê-lo como parte fundamental e fundante da reprodução da vida em nossa sociedade que é predominantemente urbana. Assim, o espaço surge enquanto nível determinante que esclarece o vivido, na medida em que a sociedade o produz, e nesta condição apropria-se dele e domina-o. Na apropriação se colocam as possibilidades da invenção que faz parte da vida e que institui o uso que explora o possível ligando a produção da cidade a uma prática criadora. Isto porque o homem habita seus espaços como atividade de apropriação (mesmo comprando um valor de troca, como uma casa por exemplo, em que a importância para seu habitante recai sobre o uso que se faz dela para realização da vida e a partir dela para a apropriação dos lugares da cidade), o que significa que está se refere a um lugar determinado no espaço, a uma localização e distância construída pelo indivíduo e a partir da qual que se relaciona com outros lugares da cidade, atribuindo-lhes qualidades específicas (CARLOS, 2007. p.11). Sendo o espaço um produto histórico sujeito às mudanças da sociedade e com elas a face do urbanismo decorrente da expansão do modo de produção capitalista, estabeleceu-se uma contradição intrínseca no movimento de produção e reprodução do espaço pois, nesse sentido, na modernidade o espaço se tornou mercadoria e condição para a reprodução continuada do capital. Por esta via, o espaço passa a ser reproduzido de acordo com as necessidades de acumulação e do lucro, com consequências diretas sobre as condições de realização da vida (CARLOS, 2007; ALVES, 2016). Toda esta construção acerca do espaço, pela análise histórica e pela perspectiva do cotidiano, pode ser observada pela teoria de Lefebvre (1991, 2000), que acusa o modo de produção capitalista de criar uma série de reflexos no espaço urbano contemporâneo, percebidos, dentre outros, em expansões que incrementam as desigualdades sócio espaciais no que o autor denomina como ‘espaço abstrato’, isto é, o espaço direcionado para a produção e para o consumo, construído de acordo com a lógica dominante do capital. Trata-se de uma definição da cidade e do urbano como sendo uma projeção da sociedade sobre um espaço, não apenas sobre o aspecto da vida social de cada lugar, mas também no plano 26 abstrato, como explicado. Assim, o espaço contém e está contido nas relações sociais, desta maneira, Lefebvre (2000) sugere que o real seria historicamente construído tendo como representação mental o urbano e a cidade como expressão material desta representação. Deste modo, o espaço se configura como uma criação da sociedade, que envolve as relações sociais e de produção em que se “[...] organiza, produz, ao mesmo tempo em que certas relações sociais, seu espaço (e seu tempo) [...] projeta sobre o terreno estas relações [...], e a sociedade se apropriado espaço” (LEFEBVRE, 2000, p. 12). Seria, portanto, o espaço urbano fragmentado, homogêneo e hierarquizado. A partir deste raciocínio, o espaço traduziria um conjunto de diferenças, ou seja, de coexistência e de pluralidade, de maneiras diversas de experimentar a vida urbana. Bem como o espaço também seria o lugar dos conflitos, em vista da ocorrência de exploração e das relações de poder e subordinação entre as classes sociais. O espaço urbano envolve as contradições da realidade à medida que é um produto social, no sentido em que é fundamentalmente marcado pelo modo de vida urbano, que se baseia principalmente a partir do consumo característico do modo de produção capitalista. Diante deste fato, o espaço torna-se uma mercadoria que se abstrai ao mesmo tempo que traduz as diferenças e as particularidades sociais. A cotidianidade moderna se resume a uma constante programação de hábitos sempre direcionados para a produção e para o consumo, produzindo uma “sociedade burocrática de consumo dirigido” (Lefèbvre, 1980, p. 47), onde a cotidianidade é pautada pelo consumo em massa. Na tentativa de visualizar novas formas de racionalidade o autor objeta sobre o alcance do cotidiano na sociedade moderna, tentando identificar se seria possível perceber certa cotidianidade deste lugar regido pela racionalidade oficial, Lefèbvre (1991, 2008) detalha os instrumentos sociais, por força do próprio estado e das forças dominantes, para controlar a vida cotidiana das pessoas. Como o próprio conceito já coloca, essa sociedade de consumo dirigido tem como características ser controlada pelo estado e sua máquina burocrática através de uma manipulação subjetiva dos sistemas de valores – que, na verdade, são os definidores e direcionadores do consumo. [trata-se de] produção de relações sociais e reproduções de determinadas relações. É nesse sentido que o espaço torna-se o lugar dessa reprodução, aí incluídos o espaço urbano, os espaços de lazeres, os espaços ditos educativos, os da cotidianidade, etc. (LEFEBVRE, 2008, p. 48-49). 27 Para este modelo de sociedade tem-se como principal característica a desigualdade sócio espacial que é imposta e garantida a partir da concepção de propriedade privada do solo urbano. A propriedade privada, enquanto uma das estruturas em que se sustenta a sociedade moderna, foi construída enquanto discurso e prática a partir de ações do Estado, que naturalizaram esta estrutura a medida em que as políticas públicas invadiram o cotidiano a ponto de torna-la inquestionável (CARLOS, 2007). Para Carlos (2011) fica claro o entendimento de que o espaço aparece, no pensamento de Lefebvre, como condição para a reprodução do capital, assegurada pelo Estado, que passa a controlar o espaço da cidade para dar a sustentação a essa produção e reprodução. Soja (1993) também aponta, como uma das grandes contribuições de Lefebvre no que tange à análise crítica da relação do espaço com “[...] os processos pelos quais o sistema capitalista como um todo consegue ampliar sua existência, através da manutenção de suas estruturas definidoras” (SOJA 1993, p. 118). Mumford, por sua vez, discorre sobre a relação entre a forte influência do capital e mecanismos de produção e reprodução do espaço, em especial nas primeiras décadas do século XX, através do processo de urbanização, resultante do forte impulso de industrialização, trazendo com ele a inserção de fábricas nas cidades, acarretando, com isso, um aumento populacional e a explosão dos subúrbios, bem como no aumento do tráfego de veículos, num processo que o autor denominou de “planta em grade”, como resultado da relação entre o capital e a produção do espaço a respeito da evolução das cidades como consequência direta da expansão urbana (MUMFORD, 1998. p. 455). Neste sentido, ao revelar a história do espaço urbano, Lefebvre (1999) demonstra que o próprio espaço passou a ter papel fundamental no processo de produção e a reprodução do modo de produção capitalista, de forma a garantir a estrutura necessária para manutenção e ampliação do seu próprio domínio. Isto ocorre no momento em que o processo de reprodução da sociedade, sob o comando do capital, passou a realizar-se na própria produção do espaço. Isto significa dizer que o preço da terra passou a ser determinado não pelo resultado do trabalho socialmente despendido, mas, dado seu caráter de mercadoria, o valor resulta da capacidade de retorno ou ganho que o solo poderia proporcionar ao seu proprietário. Lefebvre (2008) revela ainda que a industrialização promoveu a organização da cidade na direção do capital, através de práticas comerciais, acarretando em generalização da mercadoria, onde o valor de troca passa a ser atribuído a tudo. Não só as relações que existiam 28 com as mercadorias são deturpadas, mas também as são as relações com a cidade, ou que ocorrem nela, haja visto as diversas formas de sociabilidade neste ambiente. Deste modo, o valor de troca passa a predominar na realidade urbana, correspondendo à negação da cidade e de sua humanização no que o autor categoriza como a “não-cidade. Este processo não ocorre ao acaso, mas relaciona-se a uma ideologia, utilizada de maneira estratégica para manter o domínio sobre a cidade. O espaço não é um objeto científico descartado pela ideologia ou pela política; ele sempre foi político e estratégico. Se esse espaço tem um aspecto neutro, indiferente em relação ao conteúdo, portanto ‘puramente’ formal, abstrato de uma abstração racional, é precisamente porque ele já está ocupado, ordenado, já objeto de estratégias antigas, das quais nem sempre se encontram vestígios. O espaço foi formado, modelado a partir de elementos históricos ou naturais, mas politicamente. O espaço é político e ideológico. É uma representação literalmente povoada de ideologia (LEFEBVRE, 2008, p. 61-62). Desse modo, nota-se como que espaço urbano sofre com o processo de dominação acentuado por força das relações capitalistas de produção. Ao se constatar que a produção do espaço é resultado de um processo articulado de dominação marcado por aspectos econômicos, políticos e sociais, Lefebvre revela o caráter político e instrumental do espaço, sendo este o “[...] lugar e meio onde se desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam” (LEFEBVRE, 2008, p. 172). Percebe-se, portanto, que a cidade capitalista, encetada com a modernidade, evidencia uma nova contradição manifesta pela intensa fragmentação e especulação do espaço, associada à elevada capacidade técnica e científica da produção do espaço social. Na medida em que as forças de mercado passam a exercer influência na transformação do espaço em um ambiente segmentado em unidades dotadas de valor de troca, modifica-se, também, o propósito de uso do espaço urbano, configurando-se, portando, como mercadoria. Os espaços urbanos (solo e terra) acabam por se enquadrarem, assim, dentro das leis de mercado, acarretando inclusive em escassez, no que Lefebvre (1991) denominou de “novas raridades”, implicando diretamente no aumento da capacidade de ganho e no seu valor de troca. Decididamente mobilizado pela valorização capitalista, o espaço passou a integrar as novas raridades. Se outrora o pão, os meios de subsistência eram raros, agora não [...] não obstante, as novas raridades, em torno das quais há luta intensa, emergem: água, o ar, a luz, o espaço (LEFEBVRE, 2008, p. 9). Desta maneira, o espaço intencionadamente se torna algo raro, valorizado artificialmente, contribuindo, assim, para o avanço do domínio do urbano pelo capital. Nesse sentido, Lefebvre alerta que “o capitalismo apossou-se do solo, do espaço [...] por se tratar de 29 indústria nova, menos submetida aos entraves, saturações, dificuldades diversas que freiam as antigas indústrias” (2008, p. 118). Os espaços construídos dentro desta lógica econômica e políticaseguem uma racionalidade, por forca da padronização e do individualismo, configurando-se em espaços abstratos, mas sem conseguir derrubar completamente as contradições da realidade acaba por abrigar novos conflitos concernentes à própria lógica capitalista. Neste sentido, surge o espaço das diferenças, fragmentado pela resposta da sociedade, resultando numa reprodução das relações sociais no que Lefebvre categoriza em três níveis do real: o percebido, o concebido e o vivido, estes por sua vez, articulados às práticas espaciais, às representações do espaço e aos espaços de representação. As práticas espaciais seriam, portanto, aquelas projetadas no espaço social, tanto no que se refere ao espaço físico, quanto o espaço social e o mental. Prática espacial – que engloba a produção e a reprodução, e as localizações particulares e os conjuntos espaciais característicos de cada formação social. Prática espacial assegura continuidade e algum grau de coesão. Em termos de espaço social, e de cada membro de um dado relacionamento da sociedade com aquele espaço, esta coesão implica num nível garantido de competência e um nível específico de performance. Representações do espaço, que são amarradas às relações de produção e a ‘ordem’ que essas relações impõem, e portanto ao conhecimento, signos, aos códigos, e para as relações ‘frontais’. Espaços de representação, incorporando complexos simbolismos, algumas vezes codificados, outras não, ligados ao lado clandestino ou subterrâneo da vida social, como também para a arte (que pode eventualmente ser definida menos como um código do espaço do que um código dos espaços de representação) (LEFEBVRE, 2000, p. 33). Dentro do pensamento Lefebriano, percebe-se: (i) o espaço concebido caracteriza-se como sendo o da razão instrumental, dos ‘tecnocratas’ e é notadamente o da representação abstrata, entendida nesta sociedade capitalista moderna através do pensamento hierarquizado, distante do real. Derivado de um saber técnico e, ao mesmo tempo, ideológico, as representações do espaço privilegiam a ideia de produto devido à supremacia do valor de troca na racionalidade geral; (ii) o espaço percebido, por sua vez, revela-se como sendo o das práticas espaciais advindas de atos, valores e relações específicas de cada formação social. Deste modo, atribui-se às representações mentais materializadas características e usos diversos, que correspondem a uma lógica de percepção da produção e da reprodução social. (iii) já o espaço vivido denota as diferenças em relação ao modo de vida programado. Neste sentido, as experiências cotidianas corresponderiam ao espaço das representações, tornando-se um resíduo de clandestinidade da obra e do irracional (LEEFEBRE 2000). 30 O espaço social, deste modo, caracteriza-se como a expressão mais concreta do espaço vivido, compreendido através da hegemonia das ações humanas sobre o objeto. Por conseguinte, o espaço, dentro desta análise de produção e reprodução do espaço, é considerado um campo de possibilidades de construção de um espaço diferencial, que se opõe ao homogêneo, não havendo imutabilidade entre as dimensões espaciais, desta forma, nada impediria que o espaço concebido absorva o espaço vivido. O Espaço é usado pelo homem para o viver, de acordo com as condições naturais e históricas específicas. O espaço traduz um conjunto de diferenças, ou seja, é o lócus de coexistência e de pluralidade. Assim, a análise da dialética do espaço significa ponderar sobre as contradições presentes no espaço, uma abstração que se concebe a partir de sua definição como mercadoria, e, por conseguinte, por seu consumo que se faz presente na apropriação desigual da cidade. Portanto, o espaço (social) não é apenas uma condição e um produto, mas meio para as relações conflitantes dentro da sociedade capitalista moderna, e como se desdobra a vida cotidiana de uma sociedade urbana. Certamente um outro projeto de sociedade (e de cidade) é possível, mas para isso é imperativo pensar a partir de novas possibilidades, em que se projete uma nova sociedade. Neste sentido, apresenta-se, na sequência, uma análise de cidade mais voltada para uma democratização do espaço, do convívio, da cotidianidade e da vida. 1.1 - O Direito à Cidade A proposição de Marx (1961, p. 203) de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” cabe perfeitamente ao que foi apresentado até aqui. Como visto anteriormente no pensamento de Lefebvre, as contradições do espaço urbano resultantes do processo de expansão do capitalismo apresentam-se de forma contundente, sendo nítida a crítica acerca das forças que produzem a segregação nas cidades, bem como para a realidade urbana, subordinando o valor uso aos domínios da lógica Capitalista. A concepção de cidade é percebida como um espaço de “fluxos” e de “trocas”, pela possibilidade de realização das práticas comerciais, comunicacionais, de informações, entre outras. O próprio espaço segue esta ordem, sendo categorizado como objeto de consumo em detrimento à categorização dos espaços como ambientes de convívio. Esta é a representação da 31 cidade como valor de troca e como valor de uso. O ambiente urbano, em seus contornos e limites, deixa de ser local de encontro, ou local propício para o desenrolar vida cotidiana, mas caracteriza-se como mero lugar de passagem sem qualquer relação de pertencimento ou convívio, perdendo-se, com isso, as formas de sociabilidade. O próprio processo de urbanização, como entendido, é resultado direto das forças de produção industrial, que levou a população a concentrar-se ao redor das fábricas, acarretando num adensamento e espraiamento do tecido urbano, no sentido no que Lefebvre designa por ‘ideologia urbana’. Esta concentração cria um ambiente propicio para conflitos, uma vez que no espaço urbano as relações de convívio e de comunidade se enfraquecem onde não existe uma herança cultural comum, e a cidade acaba por se definir como um “lugar para estranhos” (LEFEBVRE, 1999). Como resultado desta força capitalista, o espaço urbano passa a ser orientado por uma estratégia de classes privilegiadas, que exercem esse domínio através do urbanismo, submetendo às demais classes ao que se compreende como Sociedade Burocrática de Consumo Dirigido e à ideologia que oculta, através do consumo, os conflitos da produção e reprodução do espaço (LEFEBVRE, 1999). Com efeito, o espaço da sociedade capitalista pretende-se racional quando, na prática, é comercializado, despedaçado, vendido em parcelas. Assim, ele é simultaneamente global e pulverizado. Ele parece lógico e é absurdamente recortado. Essas contradições explodem no plano institucional. Nesse plano, percebe-se que a burguesia, classe dominante, dispõe de um duplo poder sobre o espaço; primeiro, pela propriedade privada do solo, que se generaliza por todo o espaço, com exceção dos direitos das coletividades e do Estado. Em segundo lugar, pela globalidade, a saber, o conhecimento, a estratégia, a ação do próprio Estado. Existem conflitos inevitáveis entre esses dois aspectos, e notadamente entre o espaço abstrato (concebido ou conceitual, global e estratégico) e o espaço imediato, percebido, vivido, despedaçado e vendido (LEFEBVRE, 2008, p. 57). Percebe-se uma projeção da sociedade sobre um espaço, sobre o aspecto da vida social de cada lugar, incluindo o plano abstrato. A partir desse raciocínio, Lefèbvre (2000) afirma que o espaço traduz um conjunto de diferenças, ou seja, de coexistência e de pluralidade, de maneiras de viver a vida urbana. Em outras palavras, a cidade é o lugar dos conflitos, onde há exploração e relações de poder e subordinação entre classes sociais. Diante desta afirmação o espaço torna-seuma mercadoria que se abstrai ao mesmo tempo que traduz as diferenças e as particularidades sociais. A cotidianidade moderna se resume a uma constante programação de hábitos sempre direcionados para a produção e para o consumo (LEFEBVRE, 2000, p. 47). Como demonstrado, como resultado destas forças de domínio, grupos ou classes sociais acabam por serem segregados, num movimento que, paradoxalmente, acaba por corroer 32 estruturalmente a cidade, ameaçando a vida urbana. O sentido da cidade como espaço ou obra coletiva se perde na medida que os parte dos habitantes são impelidos a viver em regiões periféricas, expulsos dos centros urbanos e de toda estrutura neles presentes. Assim, a vida social, denominada ‘habitar’, é substituída pela moradia ‘habitat’, submetendo o morador da cidade à uma cotidianidade alienada (LEFEBVRE, 1991). Em vista desta realidade urbana o autor aponta sua inquietação com o caráter alienista dos estudos urbanistas modernos que se multiplicavam até então, tornando-se necessárias novas formas de investigação no sentido de se estabelecer uma nova “Ciência da Cidade”, Lefebvre (1991) alcançada por meio da práxis, ou prática social, da sociedade urbana. Assim, o que se estabelecia como conhecimento cientifico sobre a Cidade seria demasiadamente reducionista e simplificado, concebendo os problemas urbanos como questões meramente técnicas, e por isso não conseguiam abarcar toda panorâmica que esta temática engloba. A cidade tradicional seria fruto do velho humanismo, ou seja, no passado se construiu um projeto que satisfazia àquele momento. Ao novo humanismo cabe o papel de refazer o projeto urbano segundo as necessidades atuais, atualizando o espaço “Nem o arquiteto, nem o urbanista, nem o sociólogo, nem o economista, nem o filosofo ou o político podem tirar do nada, por decreto, novas formas de relações”. Já que essas relações sociais não advêm de projetos técnicos e científicos elaborados a partir de ideologias, mas, somente e exclusivamente, a partir da práxis. Em outras palavras, há a necessidade de se pensar a respeito do espaço urbano e seu significado efetivamente para aqueles que o habitam no momento presente. Portanto, é na direção de um novo humanismo que devemos tender e pelo qual devemos nos esforçar, isto é, na direção de uma nova práxis e de um outro homem, o homem da sociedade urbana. A vida urbana ainda não começou. Estamos acabando hoje o inventário dos restos de uma sociedade milenar na qual o campo dominou a cidade, cujas ideias e "valores", tabus e prescrições eram em grande parte de origem agrária, de predomínio rural e "natural". Esporádicas cidades apenas emergiam do oceano do campo (...). Observação decisiva: a crise da cidade tradicional acompanha a crise mundial da civilização agrária. Cabe a "nós" resolver essa dupla crise, notadamente ao criar com a nova cidade a nova vida na cidade (LEFEBVRE, 1991, p. 107). A construção de novo espaço seria possível através de duas vias: ‘transducção’ - onde a partir da observação do real, que é dinâmico, criar-se-iam ações a atender às demandas que este real apresenta, e deve ser constantemente interpretado; e `utopia’- no exercício permanente ao homem de sonhar com um novo espaço, pensá-lo, planejá-lo, para enfim construí-lo. A utopia deve ser considerada experimentalmente, estudando-se na prática suas implicações e consequências. Estes podem surpreender. Quais são, quais serão os locais que socialmente terão sucesso? Como detectá-los? Segundo que critérios? Quais tempos, quais ritmos de vida quotidiana se inscrevem, se escrevem, se 33 prescrevem nesses espaços "bem-sucedidos", isto é, nesses espaços favoráveis à felicidade? É isso que interessa (LEFEBVRE, 1991, p. 108). Porém, Lefebvre alerta que esta construção do real é baseada em questões subjetivas, afinal, o espaço de cada um é impregnado de subjetividade, símbolos, significados pessoais. " O sistema de significações do habitante diz respeito das suas passividades e das suas atividades; é recebido, porém modificado pela prática. É percebido" (LEFEBVRE, 1991, p. 109). Ou seja, existe um sistema de significações que cada indivíduo cria para si dentro do espaço em que habita. Outras demarches intelectualmente indispensáveis: discernir, sem os dissociar, os três conceitos teóricos fundamentais, a saber: a estrutura, a função, a forma. Conhecer o alcance deles, suas áreas de validez, seus limites e suas relações recíprocas - saber que eles formam um todo, mas que os elementos desse todo tem uma certa independência e uma autonomia relativa - não privilegiar nenhum deles, fato que dá origem a uma ideologia, isto é, um sistema dogmático e fechado de significações: o estruturalismo, o formalismo, o funcionalismo. Utilizá-los alternadamente, em pé de igualdade, para a análise do real (análise que não é nunca exaustiva e sem resíduos) bem como para a operação dita " transducção". Compreender que uma função pode se realizar através de estruturas diferentes, que não existe ligação unívoca entre os termos. Que função e estrutura se revestem de formas que as revelam e que as ocultam - que a triplicidade desses aspectos constitui um "todo" que é mais que esses aspectos, elementos e partes (LEFEBVRE, 1991, p. 109). Assim, para que este urbano se desenvolva é necessário a criação do que Lefebvre (1991) descreve como estratégias: Que a cidade torne a ser o que foi: ato e obra de um pensamento complexo, quem não desejaria isso? [...] Quem diz "estratégia" diz hierarquia das "variáveis" a serem consideradas, algumas das quais tem uma capacidade estratégica e outras permanecem ao nível tático - também chamado de força suscetível de realizar essa estratégia na prática. Apenas grupos, classes ou frações de classes sociais capazes de iniciativas revolucionárias podem se encarregar das, e levar até a sua plena realização, soluções para os problemas urbanos; com essas forças sociais e políticas, a cidade renovada se tornará a obra. Trata-se inicialmente de desfazer as estratégias e as ideologias dominantes na sociedade atual. O fato de haver diversos grupos ou várias estratégias, como divergências (entre o estatal e o privado, por exemplo) não modifica a situação. Das questões da propriedade da terra aos problemas da segregação, cada projeto de reforma urbana põe em questão as estruturas, as da sociedade existente, as das relações imediatas (individuais) e quotidianas, mas também as que se pretende impor, através da via coatora e institucional, àquilo que resta da realidade urbana. Em si mesma reformista, a estratégia de renovação urbana se torna "necessariamente" revolucionária, não pela força das coisas mas contra as coisas estabelecidas. A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma (LEFEBVRE, 1991, p. 111-112). Porém, este suporte social descrito, a impulsionar a ciência da cidade a uma atuação mais incisiva e direta, só seria possível através de um ‘componente chave’: o processo de transformação do espaço urbano só seria possível a partir da classe trabalhadora, sendo esta a única capaz a pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela. “Isto não quer dizer 34 que a casse operaria fará sozinha a sociedade urbana, mas que sem ela nada é possível. [...] quando a classe operária se cala, quando ela não age e quando não pode realizar aquilo que a teoria define como seno sua ‘missão histórica’, é então que faltam o ‘sujeito’ e o ‘objeto’” (LEFEBVRE, 1991, p. 112). A partir destas reflexões, o autor lança mão do conceito “O Direito à Cidade”, como uma via a enfrentar os múltiplos desequilíbrios e contradições que ocorrem sobre o espaço urbano. Esta construção teórica seria possível por meio de uma concepção de cidade mais próxima dos encontros e dos desejosque se manifestam no espaço territorial (LEFEBVRE, 1991). (...) o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.). A proclamação e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria) (LEFÈBVRE, 2010, p. 139). O direito à cidade apregoa a realização da vida urbana como valor de uso, através dos encontros da cotidianidade, exigindo um maior domínio de seu valor de troca. Deste modo a cidade vai sendo construída e compreendida pelos sujeitos, ao mesmo tempo em que os constrói, ainda que de formas desiguais. O direito à cidade é, neste sentido, uma forma de resistência à fragmentação do espaço das cidades. O direito à cidade trata-se, portanto, de um direito à liberdade da vida urbana renovada e participativa. O direito à cidade aponta para o fim das segregações, a reconquista da cidade pelas classes e grupos minoritários dela antes excluídos, como ocorre em São Paulo, com seus habitantes segregados à áreas extremamente periféricas, e pode ser contextualizado (e já antecipando algumas análises desta pesquisa) como consequência da política rodoviarista na cidade de São Paulo iniciada desde o plano de avenidas apresentado em 1930 por Prestes Mais, e com este as políticas de uso e ocupação de solo, espraiando a cidade, transformando os extremos urbanos em territórios-dormitório, como uma espécie de ‘haussmannização’, também explicada por Lefèbvre, citando o caso de Paris15. A dialética entre o espaço fisico e o espaço de convivio se concretiza no momento que o acesso se revela pela apropriação da cidade, que não se faz de forma igual em toda parte ou à todos, o que pode ser percebido, principalmente nos espaços urbanos que reagem à forma 15 Em referência ao período das intervenções de Georges-Eugène Haussmann, a partir de 1853 em Paris, num período de transformações intensas, com derrubadas de prédios, abertura de vias e todo o conjunto de intervenções que representou a higienização do espaço urbano. 35 metropolitana e evidenciado também na questão de mobilidade, como condicionante ao acesso, uso e convivio da cidade. O cotidiano de diferentes lugares designa a atividade criadora por meio da construção individual e coletiva dos seus moradores diante da reprodução do espaço. O direito à cidade então é visto por Lefèbvre como um direito sobretudo à própria vida, não apenas no sentido da existencia, mas pela valorização da obra e do uso, isto só é exeqüível através da construção de uma analise da cidade mais voltada para um novo humanismo. Harvey (2009), outro autor que colabora com esta análise, considera o direito à cidade como um direito coletivo, que consiste em um poder da sociedade sobre a formulação dos processos coletivos de urbanização: o direito à cidade deve ser considerado, assim, como um direito favorável às transformações, constituindo-se como o direito de se fazer algo no momento presente algo tendo em vista também a perspectiva futura. Assim, determina que “reclamar o direito à cidade é reclamar ter voz ativa sobre os processos de urbanização, por meio dos quais nossas cidades são feitas e refeitas de uma maneira fundamentalmente radical” (HARVEY, 2009). Desse modo, para Harvey (2008), o direito à cidade não é simplesmente o direito possível de se exercer na cidade, mas o de se transformar continuamente cidade em algo diferente, em busca de um espaço de convívio equânime. A cidade deve ser vista como um corpo político e que, portanto, deve ser produzida coletivamente a partir das concepções dos sujeitos que participam ativamente dessa produção, a partir de uma visão de transformação humanizadora, como espaço de materialização dos princípios de justiça social. É com base nestas ideias que defende que “estabelecer a gestão democrática do desenvolvimento urbano constitui o direito à cidade” (HARVEY, 2008, p. 37). Soja (2009) entra nesta discussão analisando a ideia de justiça espacial, numa construção que que poderia possibilitar o estabelecimento de redes de ativismos sociais na luta por diversas possibilidades de conquistas dentro do espaço urbano. A formulação teórica sobre o direito à cidade, seja por Lefebvre, seja por Harvey, não enfatiza a questão de “causalidade espacial da justiça e da injustiça”, tão pouco a noção de “justiça e injustiça que estão incorporadas na espacialidade” (SOJA, 2009, p. 3). A construção teórica lefebvriana privilegia a análise dos processos sociais de dominação e controle que acarretam numa ocupação territorial desigual e injusta, mas isto também faz com que as características desses territórios sejam fontes de injustiça. 36 Trata-se de uma dialética sócio espacial, segundo a qual o territorial molda o social tanto quanto o social molda o territorial (SOJA, 2010). Entretanto, esta concepção não afasta os pensamentos, pois existem pontos em comum entre a ideia de direito à cidade e a de justiça espacial, o qual considera o funcionamento quotidiano no espaço urbano “uma fonte primeira de desigualdade e injustiça porque a acumulação de decisões locativas numa economia capitalista tende a favorecer a redistribuição do rendimento real para os ricos em detrimento dos pobres” (Soja, 2009, p. 4). O direito à cidade, com justiça social, implicaria na construção de um projeto de sociedade utópica, nas definições Lefebvrianas, mas de forma possível através de estratégias de realização levando-se em conta a apropriação de espaços, de bens e equipamentos urbanos, mas que passa pelas representações que os habitantes têm acerca do acesso e apropriação destes mesmos espaços e equipamentos. 1.2 - Breve panorama histórico e social da cidade de São Paulo O crescimento da cidade de são Paulo teve sua origem impulsionada pelo ciclo cafeeiro e, sobretudo, o capital que o ciclo gerou, transformando totalmente o espaço, por ser, inclusive, conexão entre o porto de escoamento da produção, em Santos, e as demais regiões produtoras, o que resultou, em 1867, na primeira ferrovia da cidade (ROLNIK, 2003). Na virada do século a cidade recebeu grande fluxo imigratório estrangeiro, resultando em um aumento significativo populacional. Este fato foi coincidido com o primeiro surto industrial, baseado principalmente nos setores têxteis e alimentícios, instalados próximos a regiões de passagem férrea. Este panorama resultou nas delimitações urbanas, delimitando regiões por classe e funções, forçando a implementação dos primeiros serviços públicos, como pavimentação de ruas, iluminação, e transporte através de bondes em trilhos. Neste momento, surgem na cidade os fundamentos urbanísticos que pautam até hoje a vida social de São Paulo; uma região central destinada às elites, com a maior oferta dos serviços públicos, frente à ocupação periférica e desordenada, fundamentando a geografia social da cidade. Em nada diferente ao percebido como modelo de desenvolvimento das cidades modernas capitalistas (VILLAÇA, 1998; ROLNIK, 2003). Os principais serviços públicos, como iluminação, saneamento, comunicação e transporte eram ofertados por uma única empresa de capital misto estrangeira, com configuração monopolística, a ‘The São Paulo Tramway Light and Power Co.’, o que significou 37 em São Paulo a ótica da urbanização liberal, com eixos de expansão a partir de critérios de mercado, definindo quem deveria ser beneficiado e quem seria excluído da provisão de infraestruturas (ROLNIK, 2003). Ressalta-se que o eixo da Estrada de ferro acabou por definir uma clara divisão social urbana, ou seja, a construção da malha férrea acabou por criar uma linha
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