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SUMÁRIO UNIDADE 1 - A SAÚDE ENQUANTO ASPECTO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL ....................................................................................................................... 2 UNIDADE 2 - A SAÚDE NO CENÁRIO GLOBALIZADO: TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS E OS ORGANISMOS INTERNACIONAIS....................................... 10 UNIDADE 3 - O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO CONTEXTO ATUAL: AVANÇOS E PERCALÇOS ........................................................................................................ 21 UNIDADE 4 - GESTÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E PARTICIPAÇÃO SOCIAL: PREVENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE AÇÕES LOCAIS ................................. 38 UNIDADE 5 - CAPITALISMO E SAÚDE PRIVADA: AS AÇÕES EM SAÚDE NO SISTEMA PRODUTIVO ............................................................................................ 53 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 65 Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 2 UNIDADE 1 - A SAÚDE ENQUANTO ASPECTO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL O entendimento das Políticas de Saúde implementadas pelo Governo em resposta às demandas da sociedade, pressupõe uma cuidadosa reflexão sobre o caráter social do processo saúde e doença e do conceito desse binômio. Essa reflexão é importante porque, se a relação entre saúde e doença for apontada apenas sobre o ponto de vista biológico causal e não de uma maneira sistêmica, que considere a relação dos processos de saúde/doença com o contexto no qual se inserem, teremos uma visão parcial e, portanto, limitada do fenômeno. Em consequência, não se poderá abranger todos os fatores explicativos para as condições que determinam as formas individuais e coletivas de adoecer e morrer. Tais condições são criadas e transformadas no espaço social, gerando tanto os meios de vida quanto as demandas por ações de saúde. Fatores como as condições de saneamento básico e higiene são os aspectos mais evidentes dessa relação, assim como os fatores relacionados as condições de emprego, renda, segurança urbana, nível educacional e acesso à informação, também exercem grande influência sobre as condições de saúde e os processos de doença de uma população. Dessa maneira, as reflexões e linhas de ação implementadas, tanto no contexto amplo da gestão em saúde representado pelos organismos internacionais e pelas ações de governo, quanto no âmbito das organizações e redes de saúde privadas devem considerar sua inserção num determinado meio social. Tradicionalmente, a conceituação da doença tem tido como base uma referência biológica individual. Essa acepção está apoiada sobre um modelo científico que procura isolar um aspecto estudado de seu objeto, investigando relações de causa e efeito. Tal perspectiva gera um modelo médico-clínico e um discurso sobre a saúde pública, predominante até os dias atuais, que opera com base em dados estatísticos, cuja análise desconsidera a história do indivíduo e da sociedade a que este pertence. Assim, tal modelo torna-se insuficiente para explicar os perfis epidemiológicos de diferentes países e classes sociais. No caso brasileiro, por exemplo, os dados estatísticos sobre a saúde pública não se mostram explicativos por si mesmos, mas se articulam profundamente com o quadro de desigualdade social presente em nosso país. Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 3 Além disso, ao se considerar apenas dados estatísticos e reduzir o fenômeno da doença a uma relação causal determinada biologicamente, desconsiderando a história do indivíduo e seu meio social, corre-se o risco de imputar unicamente ao indivíduo a responsabilidade por problemas de saúde, cuja ocorrência muitas vezes opera com grande influência das condições sociais, culturais, econômicas e ecológicas de vida. Contrariamente, os processos de saúde e doença contemplados, a partir do contexto social em que se inserem, levam em conta que a sociedade comporta diversos aspectos em interação e, desse modo, uma perturbação por vezes considerada pequena pode gerar graves efeitos. Isso ocorreu, por exemplo, com a situação do mercado imobiliário americano, de caráter local, que acabou por gerar uma crise econômica mundial de grandes proporções a partir de 2008. Neste caso, tal como em outros fenômenos sociais, o modelo matemático, embora legítimo, pode não ser suficiente para analisar de maneira profunda os conflitos e correlações, enfim, a dinâmica de um sistema. Nesse sentido, é preciso considerar não apenas o conhecimento científico tradicional sobre um tema, mas as realidades, forças, relações, tensões e direcionamentos dos grupos sociais envolvidos no desenrolar de um dado fenômeno social. A resolução de problemas e tomada de decisões, nesta perspectiva, considera componentes desses dois aspectos distintos, além dos interesses comerciais ou corporativos que muitas vezes interferem nos resultados das decisões ou os avaliam, buscando construir uma análise mais ampla dos problemas. No campo da saúde, podemos encontrar um exemplo na situação da tuberculose. Como aponta Vendramini: A análise da situação da tuberculose em nível mundial revela que a doença está ligada à pobreza, à má distribuição de renda e à urbanização acelerada e necessita de medidas urgentes de controle. A epidemia da síndrome da imunodeficiência adquirida e a emergência de focos de tuberculose multirresistente têm mobilizado o mundo para a questão da tuberculose e alertado as autoridades de saúde para a necessidade de revitalização de seu controle, com o emprego de medidas enérgicas, eficazes e suficientes.(VENDRAMINI, 2005, p.238) Por meio desse exemplo, é possível observar como fatores, como acesso ao sistema de saúde, grau de informação, compreensão do problema e adesão ao tratamento, influenciam as condições de saúde. Por sua vez, as relações de uma Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 4 população com as ações de saúde está vinculada com as condições socioeconômicas de vida, tais como ocupação e nível de escolaridade. No entanto, segundo Vendramini (2005), os índices de avaliação de condições de vida podem variar entre si conforme os fatores que consideram, gerando quadros, até certo ponto, diversos sobre as reais condições de vida da população e certos instrumentos podem ser construídos de modo a se observar taxas maiores de desenvolvimento nos níveis socioeconômicos mais baixos em comparação com outros índices. No que concerne à saúde no Brasil, um exemplo da necessidade de correlação de dados epidemiológicos aos contextos sociais, nos quais ocorrem, pode ser encontrado no perfil epidemiológico brasileiro, em que doenças relacionadas à pobreza convivem com aquelas típicas das sociedades industrializadas e desenvolvidas. Entre as primeiras, pode-se citar as chamadas doenças tropicais, associadas às condições de higiene, infraestrutura e controle ambiental, tais como esquistossomose,malária, dengue, doença de Chagas, febre amarela, verminoses, bem como aquelas cujo controle é relacionado à implementação de políticas sociais e de saúde pública (campanhas informativas e de vacinação, por exemplo), como sarampo e hanseníase. Todas essas doenças, bem como a fome/desnutrição e as doenças delas decorrentes, dependem de ações em políticas públicas, voltadas à melhoria do contexto social e da qualidade de vida da população para que sua frequencia endêmica seja diminuída ou erradicada. Entre as doenças relacionadas ao desenvolvimento econômico, encontram-se aquelas de forte influência cultural do capitalismo tardio, como obesidade, AIDS, doenças profissionais, psicoses, neuroses, acidentes de trânsito, doenças cardiovasculares, ou problemas de saúde decorrentes da violência urbana. Esse perfil epidemiológico diversificado, ao mesmo tempo em que revela as condições de desigualdade presentes no contexto social, demonstra a grande influência de fatores econômicos, ecológicos, culturais, educacionais, de hábitos sociais, de distribuição de renda, entre outros, construindo uma rede complexa de interações. Um exemplo dessa mútua influência pode ser encontrado em estudos sobre a vulnerabilidade (risco de infecção) ao HIV. Além da vulnerabilidade biológica, há uma importante realidade epidemiológica relacionada às ações/comportamentos adotados pelos indivíduos que possuem caráter Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 5 determinante do risco de infecção pelo HIV. Tais comportamentos estão fundamentalmente inseridos numa rede social: neste contexto, exercem grande influência fatores como o acesso às informações sobre a contaminação, a percepção do risco por parte do indivíduo, a acessibilidade do indivíduo a serviços, suprimentos e equipamentos necessários à prevenção e controle do risco (tais como exames, preservativos, seringas, etc.), e a segurança social do indivíduo nas diferentes situações de risco para assumir comportamentos seguros. Assim, cenários sociais relacionados ao sentimento individual de degradação (como a ausência de moradia), à humilhação social (como a prostituição) ou à dificuldade de percepção de risco (como no uso de drogas) podem dificultar para o indivíduo a assunção de comportamentos seguros. Neste contexto, pode-se ainda articular a ocorrência de muitas demandas em saúde mental na infância e na adolescência à convivência em ambientes extremamente inóspitos (favelas, cortiços, rua, etc.), dificuldades econômicas (desemprego, falta de dinheiro para medicação regular), alcoolismo, drogadicção e problemas e sofrimentos relativos aos demais membros da família, ausência de perspectiva de vida, de infraestrutura de lazer e de acesso a atividades profissionalizantes ou de reabilitação, atendimento médico, social e psicológico nos ambulatórios, Hospitais e Centros de Convivência que contemplem as necessidades dessa população. Assim, a ação terapêutica deve também voltar-se para a assistência no tocante aos direitos constitucionais, aos serviços públicos de promoção do bem-estar da população, e aos momentos nos quais se deflagra a necessidade de seguridade social, tais como falecimento, adoecimento, etc. Além disso, é preciso atentar para a educação em saúde, considerando que são frequentes, no atendimento, situações de desinformação e dificuldades referentes ao acesso a direitos e recursos públicos. As aparentes contradições nos quadros expostos – a combinação de doenças do atraso e do desenvolvimento no perfil epidemiológico brasileiro, o panorama de infecção pelo HIV e o cenário da saúde mental na infância – podem ser analisadas de modo mais amplo e aprofundado por meio do entendimento dos processos de saúde e doença como historicamente determinados. Pires e Demo (2006) ilustram a vinculação dessas condições à concepção adotada sobre as políticas sociais. Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 6 Ressaltando a relação entre essas políticas e a dinâmica econômica, os autores afirmam que: as contradições inerentes ao conflito entre capital e trabalho, as múltiplas correlações de forças e as determinações estruturais que permeiam a luta política constituem elementos centrais para a análise das políticas sociais. Este é um campo onde se torna necessário considerar a conjuntura em que são produzidas as relações sociais produtivas, tendo em vista sua intrínseca dinamicidade. Longe do extremismo recorrente em considerar as políticas sociais como expedientes da acumulação capitalista, ou como direito redistributivo conquistado pelos trabalhadores, cabe reafirmar que é na totalidade desses processos que as realidades sociais e econômicas se fundem. As políticas sociais sintetizam a contradição entre modo e relações de produção nas sociedades capitalistas, conformando-se historicamente a partir das correlações de forças estabelecidas na arena política. Considerando as ações em saúde, enquanto políticas sociais, podemos inseri-las no contexto do processo político pelo qual tais programas e ações são produzidos. Assim, o panorama social não apenas influi nos processos de saúde/doença, mas também na formulação de ações promotoras de saúde na forma de políticas sociais. Desse modo, a vulnerabilidade em saúde se relaciona, em geral, à própria vulnerabilidade social de indivíduos, grupos sociais e países. Como apontam Palma e Matos (2001, p. 577): uma rede de interações entre pobreza, saúde e educação se inter- relacionam de tal modo que os baixos salários, a má educação, a dieta pobre, a habitação e as condições de higiene insalubres e o vestuário inadequado se influenciam mutuamente. As ideias de vulnerabilidade em saúde e vulnerabilidade social se encontram, desse modo, relacionadas à noção de “exclusão social”. Embora essa noção esteja fortemente vinculada à ideia de exclusão econômica e pobreza, e as condições econômicas sejam um fator de grande influência no fenômeno da exclusão social, destaca-se o aspecto político e social do problema, marcado pela perda do senso de pertencimento e das condições mínimas de cidadania, que possibilitam até mesmo reivindicar melhores condições de vida. Arendt (1998) denomina essa perda das condições de cidadania como perda do “direito a ter direitos”, denotando a incapacidade do indivíduo para reagir em tais condições, demonstrando que a perda de legitimidade política e social ocorre nesse processo. Essa perda de legitimidade pode ocorrer tanto pela exclusão à cidadania (no caso, por exemplo, de refugiados Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 7 que assumem a condição de expatriados, fato comum no Oriente Médio nas últimas décadas), quanto pela degradação da imagem e do espaço social de determinados grupos (como ocorre, por exemplo, na criminalização de certos movimentos sociais que, ao serem considerados ilegítimos, perdem o direito de reivindicar), além de outros meios de deslegitimação de grupos sociais.Assim, como apontam Palma e Mattos (2001, p.574) “O cerne da questão passa pela precariedade da cidadania (...) os ‘excluídos’ são tratados como estranhos, aos quais foram negados os recursos de contrução da identidade e, por conseguinte, os instrumentos da cidadania”. Abordando a relação entre cidadania e exclusão no contexto contemporâneo, Bauman (2001) aborda as transformações estruturais do capitalismo tardio ou capitalismo financeiro, comparando-as com o capitalismo industrial anterior à década de 80. Enquanto a preocupação desse período era com o desemprego, que denotava, portanto, uma situação transitória, a crescente preocupação com os excluídos já desvela uma dificuldade estrutural do sistema capitalista atual em abranger todos os grupos sociais na condição de cidadania. Dessa maneira, as alterações ocorridas na economia internacional nas últimas décadas, que aumentaram os índices de desemprego estrutural, estão fortemente associadas aos atuais processos de exclusão social. Parece haver certo consenso na literatura que o Estado de bem-estar social instalou-se nos países de capitalismo central após a Segunda Guerra Mundial. O Estado de bem-estar não se tratava de assistência individual, mas de direitos de cidadania que constituíam uma forma de “seguro coletivo”, que se articulava ao poder econômico do chamado “capitalismo fordista”, baseado na produção industrial em fábricas e empresas associadas a determinados territórios. A partir, principalmente, da década de 80, uma nova organização do capitalismo, que pode ser denominada, conforme Harvey (1992), de “acumulação flexível” ou, segundo Bauman (2001), “modernidade líquida”, passa a se organizar a partir de uma diretriz neoliberal, que considera o Estado e suas intervenções como obstáculo à economia e ao desenvolvimento social. Para os autores, citados anteriormente, essa nova organização do capitalismo reestrutura os processos de produção, de informação e de consumo e cria novos setores e serviços financeiros, tornando o jogo econômico cada vez mais rápido, intensificando a inovação Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 8 tecnológica e desestabilizando os antigos regimes e contratos de trabalho que se tornam mais instáveis, trazendo menos garantias aos cidadãos quanto a seu futuro. É no contexto dessas transformações, no regime de acumulação capitalista, que se insere o processo de globalização, marcado pela desregulação dos mercados financeiros, pelo aumento do fluxo de comércio internacional, pela diminuição do poder do Estado e das barreiras protecionistas, pelo deslocamento da produção, pelas empresas transnacionais para locais onde haja maiores vantagens comparativas e por rápidas transformações nos valores socioculturais. De acordo com Bauman (2001) e Dupas (1999), o processo de globalização vem sendo apontado como importante condutor da maior vulnerabilidade dos grupos desprivilegiados, pois funciona como agente de concentração do poder econômico. Além disso, é um agente de influência para o descomprometimento do Estado com o bem-estar social, já que reorienta a função do Estado para a regulamentação do mercado e diminui seu poder de ação em nível local, visto que, os Estados muitas vezes fazem concessões em relação aos aspectos sociais para conservar as unidades de empresas transnacionais em seus territórios. Diante disso, as situações de exclusão e vulnerabilidade estão articuladas à dependência crescente dos indivíduos em relação ao poder econômico, com poucas garantias em relação à estabilidade futura. Tais situações não podem ser solucionadas apenas pelo fornecimento de meios econômicos ou de implementação de políticas de “tolerância” que permitem o convívio temporário, mas não legitimam as reivindicações, necessidades e posições dos grupos excluídos no espaço social. Como afirmam Palma e Mattos (2001), “Tolerar significa expressar que o outro está em desacordo, equivocado, mas permite aceitá-lo por um determinado tempo”. Destarte, a intervenção nas atuais situações de exclusão deve considerá-las a partir do processo social no qual foi gerada, permitindo a conscientização, pelos grupos excluídos, de que sua situação foi gerada num processo de injustiça social. Desse modo, a diminuição da vulnerabilidade e a possibilidade de emancipação dos excluídos não passa apenas pelo caminho da política e da economia, mas está inserida no jogo de tensões, alianças e articulações entre grupos sociais, perfazendo um caminho que é também individual, social e cultural. A vulnerabilidade se relaciona, nesse contexto, tanto com as chances de ocorrência de um evento, Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 9 quanto inversamente, com a capacidade de informação, comunicação e reação de um grupo social. A partir dessa nova perspectiva, o papel da saúde pública e dos profissionais de saúde também necessita ser ampliado, abrangendo as funções histórico-políticas de resgatar os processos de construção social da saúde, de promover a educação em saúde pela produção e transmissão de conhecimento científico-tecnológico e ainda de favorecer as ações de luta pela cidadania entre os grupos sociais em que atuam. A utilização do conhecimento como instrumento de denúncia articula a promoção da saúde ao exercício da cidadania, promovendo a mobilização social para a transformação das condições de vida em direção à saúde. Assim, a incorporação da sociedade na pauta das discussões sobre saúde pública, a implementação de políticas de equidade e a superação do discurso exclusivamente biológico em favor de uma compreensão biopsicossocial dos processos de saúde e doença configuram os aspectos de destaque para a gestão em saúde. Por outro lado, as ideias de saúde e doença também devem ser consideradas a partir do processo histórico, social e cultural no qual estão inseridas. Nesse sentido, as representações sociais e percepções sobre saúde e doença se transformam de acordo com o contexto histórico e social, estando vinculadas aos valores, aos diferentes grupos sociais, às ideias dominantes e ao modo de organização de uma sociedade em uma determinada época. No panorama atual, as transformações ocorridas com a globalização geraram, na esfera internacional, uma série de mudanças nas organizações e agências internacionais de saúde. Considerar esse pano de fundo é fundamental para uma análise abrangente do contexto da saúde no Brasil. Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 10 UNIDADE 2 - A SAÚDE NO CENÁRIO GLOBALIZADO: TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS E OS ORGANISMOS INTERNACIONAIS A partir da compreensão da relação entre saúde e sociedade, têm sido desenvolvidas as linhas estratégicas de ação de saúde, desde a formulação do Estado de bem-estar social, na Europa no período do pós-guerra, até o estabelecimento de parâmetros internacionais de saúde em nossos dias. A reorganização econômica, no setor da saúde, foi ainda influenciadapor três fatores estruturais. Em primeiro lugar, as mudanças demográficas demonstravam um envelhecimento da população e perspectiva de diminuição da população economicamente ativa, demandando o aumento da utilização dos serviços de saúde e do seguro social. Nesse aspecto, mesmo nos países como o Brasil, em que a população passa a se inserir na faixa adulta, e não idosa, ocorre um aumento de gastos médicos, já que o aumento do desemprego e subemprego e das condições de trabalho insalubres impostas pela flexibilidade e instabilidade das vagas oferecidas com a reestruturação capitalista tendem a piorar a saúde física e mental da população. Em segundo lugar, os ajustes financeiros macroeconômicos gerados pela fase pós-industrial do capitalismo vêm determinando cortes no financiamento e a redução da capacidade de intervenção estatal, diminuindo a oferta de condições de vida para a população, principalmente em países do capitalismo periférico, de acordo com Silva: submetidas a um passado inflacionário desastroso que, a despeito de terem obtido condições de estabilidade da moeda, o fizeram através de estratégias macroeconômicas antagônicas à viabilização de etapas posteriores de desenvolvimento econômico sustentado, dificultando as condições de ajuste do setor público e com custos sociais elevados. (SILVA, 2003) Finalmente, o desenvolvimento de novas tecnologias para a saúde tem disponibilizados novos cuidados na área, porém tem também aumentado significativamente seu custo. Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 11 As transformações decorrentes dessa nova ordem econômico-social podem ser observadas nas diretrizes de ação da Organização Mundial de Saúde (OMS), em que se observa um processo de “globalização da saúde pública”, no qual as ações em saúde também passam por transformações oriundas do processo de globalização. Ao analisar os termos “saúde internacional”, utilizado preferencialmente pela OMS, até meados da década de 80, e “saúde global”, que vem ganhando espaço crescente desde os anos 90, Brown, Cueto e Fee (2006, p.624) afirmam que: Saúde 'internacional' era um termo usado com considerável frequência já no final do século XIX e no início do século XX, e referia-se especialmente a um foco no controle de epidemias ultrapassando fronteiras entre nações, ou seja, 'internacionalmente'. 'Intergovernamental' se refere às relações entre governos de nações soberanas, neste caso, com relação às políticas e práticas de saúde pública. Saúde 'global', em geral, indica a consideração das necessidades de saúde da população de todo o planeta, acima dos interesses de nações em particular. O termo 'global' também é associado à crescente importância de atores para além de agências e organizações governamentais e intergovernamentais – por exemplo, a mídia, fundações influentes internacionalmente, corporações transnacionais. Desse modo, pode-se perceber uma reformulação do conceito de saúde e do próprio papel da Organização Mundial de Saúde por meio de uma redefinição da inserção da saúde frente a um novo contexto social, no qual o Estado deixa de ser o agente hegemônico do controle e cuidado social dos processos de saúde e passa a sofrer maior influência de instituições e organizações transnacionais, como organismos de mídia, empresas multinacionais de medicamentos, rápida divulgação de descobertas científicas, entre outros, além de haver maior interdependência em relação a outros países, por exemplo, com a disseminação mundial facilitada de doenças infecciosas. Considerando a saúde como “responsabilidade compartilhada que pressupõe um acesso equitativo aos cuidados essenciais e a defesa coletiva contra as ameaças transnacionais”, a Organização Mundial de Saúde estabelece um programa que considera o desenvolvimento, a infraestrutura – por meio da segurança sanitária – e a informação como pontos essenciais para a promoção da saúde nos diferentes contextos sociais. Tal abordagem expressa a relação entre saúde, dinâmica econômica e desenvolvimento social em um contexto capitalista, Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 12 como é o caso de nossa sociedade. Ao considerar o desenvolvimento econômico como força motriz das ações sociais, inclusive das ações em saúde, esta diretriz privilegia a ação e a organização econômica, procurando se alinhar às transformações estruturais de diretriz neoliberal que ocorreram no sistema social, principalmente, a partir de meados da década de 80. Tais transformações assinalaram um papel cada vez maior do Banco Mundial para o financiamento de Ações Internacionais em Saúde, o que significou uma dispersão dos recursos em áreas de interesse dos grupos financiadores (países doadores de recursos, empresas multinacionais em saúde, entre outros) em detrimento de áreas de interesse social ou áreas mais necessitadas. Compreender a conjuntura dos processos de gestão ocorridos no interior da Organização Mundial de Saúde, é importante para aprofundar o entendimento da gestão em saúde brasileira, já que esse panorama nos oferece tanto as diretrizes de influência sobre o cenário brasileiro quanto o pano de fundo socioeconômico sobre o qual as ações em saúde foram forjadas, tanto em nível local quanto em nível global. Nesse contexto, é importante ressaltar que o processo de globalização, já analisado anteriormente, representou também um realinhamento das agendas de ação dos estados em nível global. Desse modo, as ações dos Estados seguem cada vez mais uma mesma diretriz, marcada pelo capital internacional, de privatização de todos os serviços, no qual o Estado não garante direitos essenciais à população, mas apenas regula relações privadas de interesse econômico. As transformações na agenda dos organismos internacionais, notadamente, da Organização Mundial de saúde, nos servirá como parâmetro para a compreensão dessas mudanças globais. Nesse resgate histórico, observa-se que, segundo Bhagwait (1977) e Rothstein (1979), durante as décadas de 1960 e 1970, as ações da OMS foram bastante influenciadas por um contexto político, no qual as nações africanas recém- descolonizadas, a disseminação de movimentos nacionalistas e socialistas e as teorias de desenvolvimento pressionavam por um direcionamento das intervenções voltado à equidade social, enfatizando o crescimento socioeconômico integral de longo prazo em detrimento da intervenção tecnológica de curto prazo. Essas pressões ocorreram por meio de organizações, tais como o Movimento dos Países Não-Alinhados e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 13 Desenvolvimento – Unctad, e mobilizavam-se para a adoção de condições mais justas no comércio e por financiamentos mais generosos para o desenvolvimento. Conforme relatam Brown, Cueto e Fee (2006, p. 628): (...) Esse contexto político em transformação refletiu-se em mudanças correspondentes no interiorda OMS. Nos anos 60, a OMS reconheceu que a criação e a melhoria na infra-estrutura de saúde, especialmente no campo, era pré-requisito para o sucesso dos programas de controle da malária, especialmente na África. Essa visão da saúde voltada a uma atenção integral e articulada às condições de desenvolvimento social, em geral, perdurou até o final da década de 70, estabelecendo alguns dos parâmetros relativos à articulação saúde-sociedade, como o conceito de atenção primária em saúde, que buscava privilegiar a prevenção, a educação, e o favorecimento de condições mínimas de higiene, infraestrutura e desenvolvimento social, como formas de promoção de saúde, bem como as noções de desenvolvimento intersetorial e “tecnologia apropriada” que buscavam articular uma abordagem transdisciplinar voltada para a universalização das ações em saúde. Conforme Brown, Cueto e Fee (2006, p.629): A "Declaração de Atenção Primária à Saúde" e a meta "Saúde para todos no ano 2000" defendiam uma abordagem "intersetorial" e multidimensional para a saúde e o desenvolvimento socioeconômico, enfatizavam o uso de "tecnologia apropriada", quer dizer, não custosa e adaptada ao meio social onde seria implementada, e instavam pela ativa participação comunitária no atendimento à saúde e na educação de saúde em todos os níveis. De acordo com o World Bank (1987), é a partir da década de 1980, que a crescente influência do Banco Mundial passa a interferir nas diretrizes e ações da OMS. Essa instituição criada, em 1946, para apoiar a reconstrução da Europa, posteriormente, expandiu seu mandato para oferecer empréstimos, subvenções e assistência técnica a países em desenvolvimento. O Banco favorecia mercados livres e minimizava o papel dos governos nacionais. Tal abordagem do Banco mundial, alinhada com uma concepção neoliberal de desenvolvimento, que desprivilegiava a equidade social, passou a direcionar diversas ações no âmbito da saúde internacional, baseadas em empréstimos oferecidos de forma direta aos países e instituições. Assim, o Banco Mundial promovia ações em saúde de modo Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 14 disperso e local, desprivilegiando uma visão articulada e integral, voltada à justiça social e à igualdade de acesso. Conforme World Bank (1987), na medida em que o Banco Mundial começou a fazer empréstimos diretos para serviços de saúde, fez também exigências em relação ao uso eficaz dos recursos disponíveis. Com suas requisições, o Banco Mundial acabou por levar parâmetros empresariais de funcionamento aos serviços financiados e levantou a discussão sobre o papel dos setores público e privado no financiamento do atendimento à saúde. O Banco Mundial buscava, assim, responder à nova política econômica internacional estruturada em torno de abordagens neoliberais quanto à economia, comércio e política, o que significava uma maior abertura ao capital e aos interesses privados, desprivilegiando da ação do Estado na promoção de direitos básicos de cidadania. Nessa perspectiva, o Banco Mundial argumentava que os sistemas de saúde existentes, frequentemente, causavam desperdício de recursos financeiros e humanos, eram ineficientes e ineficazes. Em nome desta suposta ineficiência do Estado, o Banco defendia uma maior presença do setor privado na provisão de atenção à saúde, com a redução do envolvimento público no oferecimento de serviços de saúde, privilegiando assim aqueles que poderiam pagar pelos serviços prestados. Com as subvenções do Banco Mundial realizadas diretamente a serviços de saúde, essa instituição passou a ser um grande ator das ações em saúde no cenário internacional. Por outro lado, uma mudança estrutural semelhante acabou ocorrendo na Organização Mundial de Saúde, na década de 80. O orçamento da organização era composto por dois fundos: o fundo regular – obtido da contribuição dos Estados membros, baseada em tamanho da população e PIB – e os fundos extraorçamentários – resultantes de doações de agências multilaterais ou países 'doadores' para programas específicos. Nessa época, o orçamento passou a depender cada vez mais do segundo tipo de recursos, que vinha crescendo significativamente, fragmentando a ação da OMS. Como observam Walt (1993), Em 1986 e 1987, fundos extra-orçamentários de 437 milhões de dólares quase haviam atingido o montante do orçamento regular, de 543 milhões de dólares. No início da década de 1990, fundos extra-orçamentários haviam ultrapassado em 21 milhões de dólares o orçamento regular, contribuindo assim com 54 por cento do orçamento total da OMS. Imensos problemas surgiram para a Organização em virtude dessa mudança orçamentária. Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 15 Prioridades e políticas eram pretensamente definidas pela Assembléia Mundial da Saúde, composta por todos os países membros, mas esta, então numericamente dominada por países pobres e em desenvolvimento, tinha autoridade somente sobre o orçamento regular, congelado desde o início dos anos 80. Países doadores ricos e agências multilaterais, como o Banco Mundial, podiam ter amplo controle sobre o uso dos fundos extra- orçamentários com os quais contribuíam. Assim, com efeito, estes últimos criaram vários programas 'verticais' mais ou menos independentes do restante dos programas da OMS e da estrutura de tomada de decisões. Desse modo, os fundos extra-orçamentários, embora ampliassem o orçamento da OMS, não permitiam uma ação coordenada e conjunta, provocando uma submissão dos projetos da organização Mundial de Saúde a organismos e países que possuíam seus próprios interesses. Como analisou Walt (1993, p. 129) sobre esses fundos: "eles aumentam as dificuldades de coordenação e continuidade, causam imprevisibilidade financeira, e uma grande dependência da satisfação de doadores específicos". Nesse contexto, segundo Stenson & Sterky (1994, p. 242), a OMS começou a remodelar-se na coordenação, no planejamento estratégico e na liderança de iniciativas de 'saúde global'. No início de 1992, a Assembléia Mundial da Saúde decidiu nomear um "grupo de trabalho" com o objetivo de sugerir estratégias para que a OMS fosse mais eficaz no trabalho de saúde internacional à luz da "mudança global" que rapidamente tomava conta do mundo. O relatório foi finalizado em 1993, e recomendou algumas estratégias centrais: 1) que a OMS reformulasse sua gestão dos programas global, regional e por país, fragmentária até então; 2) que a Organização diminuísse a competição entre programas do orçamento regular e extra-orçamentários; 3) principalmente, que a OMS, aumentasse a ênfase nos temas de saúde global e no papel da OMS de coordenador nesse âmbito. No período anterior à confecção do relatório de 1993, havia poucas utilizações da expressão 'saúde global'. Ainda assim, essa expressão ocorria mais em meios exteriores à OMS e se relacionava ao ambiente acadêmico, principalmente de orientação política esquerdista. Por exemplo, alguns artigos científicos, do início da década de 90, apresentaram o tema da saúde global. Em 1990, G. A. Gellert abordava em seu artigo a interdependência global em saúde e Milton e Ruth Roemer apud Brow, Cueto e Fee (2006) defendiam em seu artigo a expansão de serviços em saúde para a conquistade avanços na “saúde global”. Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 16 Além disso, a expressão “saúde global” vinha sendo disseminada pelo movimento ambientalista, que correlacionava a degradação ambiental mundial e o aquecimento global a diversos problemas de saúde, como a epidemia pelo vírus Ebola e os casos de tuberculose ressurgente e resistente aos medicamentos tradicionais, argumentando sobre a existência de uma ameaça concreta de doença global. Segundo Brow, Cueto e Fee (2006), a partir desse redirecionamento que buscava ampliar a influência da OMS e reposicionar seu papel como protagonista das decisões e do monitoramento de ações no panorama global, houve também a mudança de gestão da OMS, em 1998, buscando “restaurar a credibilidade da organização e trazer-lhe uma nova visão”. Nessa gestão, algumas medidas transformaram profundamente a ação da OMS. Entre elas, figurou a criação da Comissão sobre Macroeconomia e Saúde, que incluía, de acordo com os mesmos autores, “ex-ministros de finanças e funcionários do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, assim como lideranças da saúde pública”, que publicou um relatório, argumentando ser essencial a melhoria da saúde para o crescimento econômico dos países em desenvolvimento e identificando um conjunto de prioridades relativas a doenças que requeriam intervenção específica. Essa articulação entre saúde e desenvolvimento econômico marca mudanças na compreensão das relações entre saúde e contexto social. Se nos anos 60 este vínculo havia sido abordado com ênfase na igualdade social e garantia coletiva de condições mínimas de vida, a OMS agora privilegiava cada vez mais o aspecto econômico da estrutura social, com uma ênfase maior no montante de recursos do que em sua distribuição. Essa ênfase, que permanece até hoje, tende a diminuir a importância dos aspectos políticos para atrelar todas as ações às decisões econômicas, desprivilegiando os argumentos e prioridades dos países menos desenvolvidos. Outra importante mudança de gestão se referiu à organização financeira da OMS. Por meio do estabelecimento de parcerias em projetos específicos que reuniam ‘cotistas’ (doadores privados, governos e agências nacionais e internacionais), a OMS buscou ampliar os fundos com os quais atuava. Se, por um lado, esta ação representou um aumento substancial do montante financeiro gerido Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 17 pela OMS, ela também representou a legitimação de ações fragmentadas e desvinculadas de um projeto integrado e igualitário de saúde. Em poucos anos, foram criadas por volta de 70 ‘parcerias de saúde global’ e essa solução foi adotada amplamente no mundo, inclusive no Brasil. Tais parcerias, segundo Brow, Cueto e Fee (2006, 629), “eram programas semi-autônomos, aportando fundos externos substanciais, frequentemente na forma de parcerias público-privadas”. Assim, os autores complementam que: (...) os críticos das parcerias público-privadas argumentavam que as colaborações com o setor comercial poderiam subordinar os valores e a missão da OMS, modificar as prioridades organizacionais, recriar programas verticais desarticulados entre si em meio a sistemas de saúde fragmentados e afastar-se da abordagem compreensiva dos serviços de saúde, caminhando para um foco mais restrito em "doenças prioritárias" (...). Outra crítica à proliferação das parcerias público-privadas era que elas tendiam a fragmentar a estrutura financeira e de governança da saúde internacional, criando duplicação em determinadas áreas e nenhuma atenção em outras. (BROW, CUETO e FEE, 2006, p. 630). No atual programa de ação da Organização Mundial de Saúde, pode-se observar o direcionamento das políticas a partir desse contexto de transformação das forças socioeconômicas do cenário internacional. Assim, o programa ressalta a ação da OMS “em um contexto cada vez mais complexo e em rápida transformação". Por um lado, a OMS reconhece a organização sistêmica das questões de saúde, relacionando-as a outros setores da sociedade, que teriam “uma incidência sobre as possibilidades e os resultados sanitários”. Por outro lado, o programa em seis pontos formulado pela instituição ressalta a promoção do desenvolvimento econômico como agente de melhoria da saúde. Segundo a OMS, os seis pontos do programa se referem “a dois objetivos sanitários, duas necessidades estratégicas e duas abordagens operacionais” sendo eles: promover o desenvolvimento, favorecer a segurança sanitária, reforçar os sistemas de saúde, explorar a pesquisa, a informação e os dados factuais, reforçar as parcerias e melhorar o desempenho. Além da promoção do desenvolvimento figurar como primeiro item do programa da OMS, tanto a priorização das parcerias com “organizações internacionais, doadores, a sociedade civil e o setor privado” quanto “o aprimoramento do desempenho, no qual a OMS prevê seu orçamento e suas Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 18 atividades no contexto de uma gestão fundada nos resultados”, demonstram o direcionamento da organização para uma lógica econômico-empresarial. Assim, a OMS descreve suas relações com as parcerias através da oferta de ideias, na qual os dados factuais são utilizados para o apoio dos “parceiros” na elaboração e execução de projetos no interior dos países, ressaltando o aspecto técnico das intervenções em detrimento do aspecto político, embora considere também “as prioridades estabelecidas pelos países”. Esse destaque ao desenvolvimento econômico, em detrimento das ideias anteriores de justiça social, está alinhado com as influências do Banco Mundial e das pressões econômicas sofridas pela agência. Embora a OMS ressalte a promoção da saúde da mulher e da saúde na África como suas prioridades, os modos de organização das políticas descrevem uma compreensão da relação entre saúde e sociedade, na qual preponderam os fatores de ordem econômica, com a influência cada vez maior do setor privado e dos países de maior poder econômico no direcionamento das políticas públicas em nível mundial. Por outro lado, a formulação das políticas centra-se nos dados gerados em pesquisas, a partir das quais instituições como a OMS e o Banco Mundial realizam prescrições de ordem generalizante sobre as políticas de saúde em diferentes países, por vezes desconsiderando os contextos locais e frequentemente condicionando o financiamento à adoção do modelo prescrito. Nessa conjuntura, é preciso analisar com Sá (2001) que: (...) sem desconhecer a importância do instrumental teórico-metodológico disponível no campo da saúde pública, o que é preciso reconhecer é a insuficiência das propostas prescritivas que costumam ser formuladas com o objetivo de mudar a realidade de nossos serviços de saúde, calcadas exclusivamente na racionalidade técnico-científica da epidemiologiae das teorias sistêmico-estratégicas de planejamento e gestão. Nenhuma dessas abordagens é suficiente, isoladamente, para fazer face, por exemplo, ao cinismo generalizado contido no tratamento do outro como um evento estatístico ou burocrático e no predomínio da racionalidade instrumental na relação entre os sujeitos no interior dos serviços de saúde. Desse modo, o contexto socioeconômico mais amplo de desregulamentação do mercado, de privatizações em nível mundial e da absoluta falta de estabilidade econômica e social decorrentes desses processos, se reflete, na saúde, pelo direcionamento das ações de agências internacionais como a OMS e o Banco Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 19 Mundial para uma lógica do mercado privado em saúde. Essa mesma lógica influencia as ações públicas dos países, tanto pelos processos sociais de enfraquecimento da dimensão política e fortalecimento dos grandes agentes econômicos quanto pela ação dessas próprias agências, que muitas vezes condicionam empréstimos e programas nos países à adoção de uma política pública alinhada com o pensamento neoliberal. No caso do Brasil, esse projeto voltado à privatização da saúde contradiz em muitos aspectos aos princípios do SUS, estabelecidos na constituição de 1988, com base em uma ampla discussão da sociedade no contexto do processo de redemocratização do país. Tais princípios, que se norteiam pela ideia de que a saúde é “direito de todos e dever do estado”, colocam o Estado, e não agências privadas ou pequenos núcleos da sociedade civil, como ator central das ações de saúde, cuja regulamentação caberia à sociedade por meio dos Conselhos de Saúde, do qual participariam representantes das comunidades locais. Em contrapartida, o modelo de gestão destacado internacionalmente pela OMS e pelo Banco Mundial coloca a saúde a cargo da iniciativa privada, delegando ao Estado apenas as áreas em que os tratamentos não seriam rentáveis. Nesse modelo de gestão, o Estado assumiria o papel de regulamentação e a sociedade não participaria de forma direta, mas por meio dos agentes de Estado eleitos (prefeitos, governadores, presidentes, vereadores, deputados, etc). Frente às diferenças entre esses dois modelos, o Estado Brasileiro acaba por situar-se em uma posição ambígua: por um lado, não pode distanciar-se de um modelo estabelecido em sua constituição. Por outro lado, não pode ignorar as pressões e influências do capital internacional e das agências internacionais. Assim, ao mesmo tempo em que impõe, sobre as organizações públicas, um projeto de reforma administrativa cujos eixos centrais são a privatização e a modernização gerencial, o Estado acaba por não garantir as condições suficientes de financiamento e operação para as suas organizações. Assim, de acordo com Sá: (...) nossas organizações públicas vivem processos de angústia e sofrimento derivados da alta incerteza quanto às suas possibilidades de sobrevivência. Ao lado de questões de ordem política e social mais ampla - como a inegável contradição entre os princípios da reforma sanitária e o avanço do projeto neoliberal no dia-a-dia das ações governamentais - colocam-se limites de ordem teórico-técnica, como a insuficiência dos Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 20 conhecimentos acumulados sobre o planejamento e a gestão em saúde para dar conta das múltiplas dimensões e contradições determinantes da atual situação dos serviços de saúde no país. (SÁ, 2001, p.) Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 21 UNIDADE 3 - O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO CONTEXTO ATUAL: AVANÇOS E PERCALÇOS Como abordado anteriormente, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, as políticas sociais foram tomadas como síntese do conflito entre capital e trabalho nos países centrais, em especial na Europa, e se operacionalizam a partir das ideias e práticas do capitalismo monopolista de Estado. Como apontam Pires & Demo (2006), isso significava a adoção das chamadas políticas keynesianas, que se pautavam pela intervenção do Estado na produção e reprodução das relações sociais capitalistas em prol da cidadania, ou seja, o controle e regulação da economia, das leis trabalhistas, das garantias sociais de direitos e a ação estatal dominante nas áreas sociais, tais como saúde, educação, habitação, previdência, etc. Essas ações promoveram a implantação do Estado de Bem-Estar Social, que se estendeu até a década de 70. De acordo com Behring (2002), fatores como a crise do petróleo, a reestruturação e maquinização da produção de modo a diminuir a necessidade de trabalhadores, a transnacionalização dos mercados e desregulamentação das garantias sociais esgotaram o Estado de Bem-Estar Social e conduziram à fase atual do capitalismo, denominado avançado, financeiro ou tardio. Assim, segundo Pires e Demo (2006), “para entender a discussão sobre crise do Estado de Bem- Estar, cabe um aprofundamento sobre a conformação das políticas sociais no estado capitalista, tendo como palco privilegiado a arena política do Estado, tensa em disputas entre o mercado e a sociedade organizada (cidadania)”. É no contexto de transformações nas relações econômicas, políticas e institucionais, nacionais e internacionais, ocorridas a partir do final da década de 80, rumo ao enfraquecimento do Estado de Bem-Estar Social, que devemos situar as ações do governo brasileiro na gestão das políticas públicas, inclusive no setor de saúde. Nesse sentido, a compreensão dos temas que dizem respeito aos problemas e desafios atuais do SUS e aos avanços conceituais e metodológicos na área passa pelo conhecimento histórico-social da formulação das políticas de saúde brasileiras e da constituição do SUS. No que se refere a esse tema, cabe ressaltar que, apesar dos esforços galgados no sentido da democratização da saúde, o Estado Brasileiro tem privilegiado intervenções marcadas pela o modelo médico-clínico com medidas Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 22 puramente assistenciais, mostrando um direcionamento político atrelado à compreensão do processo saúde-doença como determinado hegemonicamente por aspectos biológicos que devem ser abordados sob uma ótica curativa. Tal acepção, que desprivilegia a prevenção e desconsidera a importância de fatores do desenvolvimento social (tais como habitação, educação e saneamento), tem estado presente como política de saúde desde a criação das caixas de Aposentadorias e Pensão, em 1923, mantidas por empresas a seus funcionários, passando pela criação dos I.A.P.S. (Institutos de Aposentadorias de Pensão), na década de 30, até constituição do M.P.A.S. ,em1974, e a unificação dos serviços de seguridade social através do INPS (Instituto Nacional da Previdência social), em 1967. Na década de 70, essa tendência se intensificou e se agregaram a ela diretrizes de articulação das ações públicas com o setor privado, que se evidenciam pelas novas características no perfil das Políticas de Saúde dominantes até os anos 80. Nesse período, a criação do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), em 1978, privilegiou políticas como a compra de serviços e a reserva de ações não lucrativas ao setor público, como as de cunho preventivo, concorreram para uma organização dos serviços que fortaleceu o setor privado. O INAMPS era marcado pela centralização das ações na esfera federal, que privilegiava ações hospitalares em detrimento de ações integradas, inseridas no contexto social e que considerassem aspectos como a prevenção, educação e promoção da saúde. A organização do sistema de saúde era fragmentada, não havendo integração das intervenções promovidas por federação, estados e municípios, ou das assistências prestadas pelo governo e por instituições privadas ou filantrópicas conveniadas ao sistema público, configurando dimensões de assistência sem comunicação entre si. Não havia mecanismos de controle social e de participação da população no financiamento, gestão e controle de qualidade do sistema, tampouco preocupação com a regionalização do sistema e a consideração das condições locais. Além disso, a assistência ocorria de forma desigual, pois o atendimento prestado pelo INAMPS destinava-se aos trabalhadores com vínculo empregatício formal, não abrangendo a totalidade da população e os serviços concentravam-se em certas regiões (grandes cidades, Sul e Sudeste do país), com baixa ou nenhuma Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 23 oferta em outras (pequenas e médias cidades, Norte e Nordeste). Por fim, a assistência ocorria de forma fragmentada entre vários sub-setores e instituições, o que impedia o funcionamento em rede do sistema, o que impedia um bom aproveitamento, tanto dos recursos financeiros, quanto das ofertas de assistência do próprio sistema. Em consequência desse quadro, uma crise generalizada no setor de saúde caracterizou no final dos anos 70, intensificada pela crise política e econômica gerada pela ditadura militar (1964-1985). Essa crise, que ocorria tanto no aspecto financeiro dos altos custos no setor, quanto na falta de eficácia do sistema, que não contemplava grande parte dos problemas de saúde da população, gerou iniciativas de reforma no sistema. Primeiramente, surge a proposta do PIASS (Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento), a qual formulou como diretrizes a hierarquização, regionalização, integração dos serviços e participação comunitária. Esse projeto não avançou, pois, entre outras razões, possuía um caráter verticalizante e abrigava contradições entre a proposta de regionalização e a persistência da centralização, além de conceber a participação comunitária como elemento meramente formal. Porém, no interior do PIASS, e paralelo a este, inicia-se um movimento de oposição que defende um projeto voltado para a efetiva descentralização dos serviços e a inclusão dos usuários na definição das políticas, buscando combater a mercantilização pelo fortalecimento do setor público e por meio de ações vinculadas às reais necessidades da população. Esse movimento se dissemina na área de saúde e lança as bases precursoras do SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde). O SUDS não promoveu a efetiva descentralização administrativa para os municípios e desconsiderou a questão da participação popular, elemento imprescindível para o sucesso das reformas propostas. Porém, ainda que não provocasse mudanças radicais de serviços, nem no modelo assistencial, em razão da conjuntura em que foi constituído e dos entraves políticos, burocráticos e financeiros de governo, o SUDS já incorporava o pensamento do Projeto da Reforma Sanitária, elaborado na VIII Conferência Nacional de Saúde de Brasília, em 1986, que apontava para um Sistema Único de Saúde e foi um importante passo para a construção do SUS. Isso porque o movimento social gerado na luta pela Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 24 Reforma Sanitária influenciou a aprovação do capítulo da saúde na Nova Constituição, na qual se introduz um conceito ampliado de saúde garantido por Políticas Sociais e Econômicas e se contemplam os princípios defendidos na VIII Conferência de Saúde para a construção de um Sistema Único, regionalizado, e hierarquizado com acesso universal igualitário, organizado de acordo com as diretrizes de descentralização com direção em cada esfera de governo, atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e participação da comunidade. Superaram-se, assim, no plano jurídico, os principais entraves ao enfrentamento dos problemas de saúde de uma forma abrangente, contemplando ações preventivas, curativas e de promoção de saúde, garantindo a participação de representantes dos usuários na elaboração das políticas de saúde. Esses pontos foram detalhados na Lei Orgânica da Saúde 8.080 de 10/9/90 e Lei N° 8.149 de 28/12/90 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS. A participação social ocorreria através das Conferências Nacionais de Saúde, que congrega os diversos setores (governos, profissionais e sociedade civil) e dos Conselhos Nacionais de Saúde, instâncias colegiadas que fariam a avaliação da situação de saúde e a proposição das diretrizes para formulação de políticas de saúde É neste contexto jurídico-político que acontece a IX Conferência Nacional de Saúde, no momento em que o processo de municipalização se debate com inúmeros obstáculos. A questão do financiamento do SUS que exige melhor definição e direcionamento e a participação popular é dificultada pela crise econômico-financeira. Essa participação é mais do que nunca necessária para garantir a concretização dos avanços inscritos na lei e no plano do discurso teórico e da vontade do chamado Partido Sanitário. Segundo Macedo (2005), no início dos anos 90, proliferaram-se Conselhos de Saúde no país, sendo criados dois mil, entre 1991 e 1993. Pela avaliação da descentralização do SUS, a IX Conferência Nacional de Saúde, de 1992, buscou ampliar a descentralização para além do repasse de verbas pela gestão municipal da saúde, visando a participação social e o respeito a diferenças regionais. A reforma do sistema público e a constituição do SUS, formulada nesse contexto, estruturou-se por eixos alinhados com as concepções democráticas Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 25 presentes nesses movimentos sociais, configurados nos princípios de universalidade no atendimento, descentralização, participação da sociedade, equidade no custeio e uniformidadede benefícios. No entanto, sua implementação vem enfrentando diversos dilemas e obstáculos. Em primeiro lugar, há as dificuldades provenientes das transformações rumo ao capitalismo financeiro, que orienta as ações sociais para o mercado e não se mostra favorável à democratização e fortalecimento público do sistema de saúde. Em seguida, ocorrem dificuldades provenientes do próprio processo histórico e cultural das políticas brasileiras, no qual práticas como o clientelismo e o autoritarismo continuam presentes em diversas regiões. Como apontam Pires e Demo: o cenário econômico mundial transnacionalizado, com a consequente exigência de flexibilização das garantias sociais que o capital financeiro vem impondo aos Estados-nações, traz sérias repercussões estruturais para países em desenvolvimento ou periféricos, como o Brasil, pondo em risco a implementação dos princípios e diretrizes do SUS. (PIRES e DEMO, 2006). Por outro lado, as condições político-sociais próprias do país também são determinantes na má qualidade de vida e de saúde da população, já que o panorama da saúde se vincula aos modos de organização social, incluindo fatores como depende a forma de produção e distribuição da riqueza, as condições desenvolvimento social e as condições de vida. É importante destacar que os determinantes sociais têm forte inter-relação, uma vez que são produto da estrutura social e nela se reforçam, mantém as relações de propriedade, garantem a acumulação e produzem a desigualdade. Assim, a compreensão das especificidades da sociedade brasileira amplia a compreensão sobre a pertinência e a organização das ações em saúde no país. No Brasil, fatores como os diferentes níveis de desenvolvimento regional, o confisco salarial das classes trabalhadoras e a concentração de terra, uma das mais aviltantes entre países de potencialidade e tradição agrícolas da população, interferem negativamente nas condições de saúde. No contexto do quadro epidemiológico brasileiro, analisamos anteriormente a complexidade das ações de saúde num contexto que articula doenças relacionadas à pobreza e falta de condições mínimas para a qualidade de vida da população e doenças relacionadas ao desenvolvimento econômico-industrial. Este cenário gera uma demanda diversificada junto aos serviços de saúde, que se volta para a Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 26 prevenção, tratamento e recuperação tanto de problemas de saúde como parasitoses e desnutrição quanto obesidade e diabetes. A concentração da terra em grandes latifúndios e a escassez de incentivos agrícolas aos pequenos produtores acaba por provocar o êxodo rural, com o consequente crescimento desordenado da cidade e a instalação de condições precárias de habitação para grande parte da população. A ausência de saneamento, educação, infraestrutura nas residências, acesso à água potável, entre outros, gera uma perda da qualidade de vida, comprometendo as condições de saúde. Por outro lado, os migrantes encontram nas cidades a forte presença do desemprego estrutural, em que a oferta de mão-de-obra é muito superior à oferta de empregos. Além disso, há uma grande parcela de subempregos, em que os baixos salários e as precárias condições de trabalho podem muitas vezes contribuir para o agravamento das condições de saúde. Mesmo para aqueles que conseguem empregos no mercado formal, o arrocho salarial, ou seja, o aumento dos salários frequentemente inferior a inflação, que acaba reduzindo o poder de compra dos trabalhadores no longo prazo, pode impedir ou limitar o acesso a muitos bens essenciais ou a melhorias concretas nas condições de vida. Nas regiões Norte e Nordeste, muitas vezes, esses problemas se agravam, pois a maior desigualdade social num quadro de menor desenvolvimento econômico eleva ainda mais o nível de corrosão salarial e subemprego, e dificulta ainda mais o acesso a direitos sociais mínimos, tais como saneamento e educação. Tais fatores levam a piores condições de saúde, o que pode ser demonstrado pelos indicadores dessas regiões: no Norte e no Nordeste, os índices de desnutrição e de mortalidade infantil são em média, duas vezes maiores do que os índices verificados no Sul e no Sudeste do país. Em algumas localidades das regiões Norte e Nordeste, a esperança de vida ao nascer pode chegar a ser trinta anos inferior àquela encontrada em certos locais do Sul e do Sudeste. Assim, a conjuntura brasileira em saúde guarda contradições, tanto em sua epidemiologia, decorrente de um processo social desigual, que combina alta tecnologia em determinados setores e escassez de recursos em outros, quanto em sua conjuntura político-econômica de gestão, na qual diretrizes democratizantes galgadas pelos movimentos sociais e estabelecidas na formulação do SUS, desde o Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 27 final dos anos 70 até o final da década de 80, têm convivido com direcionamentos voltados para os interesses do poder econômico e do setor privado, principalmente a partir da década de 90, influenciados tanto por agentes internacionais quanto por agentes nacionais de grande poder econômico. Essas contradições do próprio país, aliadas às contradições nos rumos das políticas de saúde, ajudam a compreender os obstáculos e insucessos das políticas de saúde implantadas no Brasil. Assim, por um lado, os temas que vêm sendo abordados nas nas Conferências Nacionais de Saúde, realizadas durante os últimos 10 anos (1992, 1996 e 2000), demonstram um prosseguimento das discussões caras à implementação do SUS, no sentido de buscar uma prática de saúde que se configure como “direito de todos e dever do Estado”. Alguns desses temas demonstram a preocupação com a transparência e o controle social do sistema, bem como com a manutenção de uma organização participativa e socialmente vinculada: a descentralização da gestão do SUS e redefinição das competências de cada esfera de governo; o financiamento, as fontes de recursos e mecanismos de transferências intergovernamentais; a mudança dos modelos de atenção à saúde, visando à consolidação de modelos de gestão alternativos aos hegemônicos; a implantação de sistemas de auditoria, controle e avaliação dos serviços de saúde; os mecanismos de controle social sobre a gestão do sistema de saúde; o gerenciamento de sistemas de informação como suporte ao processo de tomada de decisões em saúde e como garantia do acesso público às informações referentes à gestão e ao financiamento do sistema. Na perspectiva de desenvolver os princípios de universalidade e participação social, diversos programas de atenção à saúde, especialmente os programas cujo foco é a atenção primária, ou seja, as ações de prevenção e promoção da saúde, buscam vincular suas práticas e políticas ao contexto social mais amplo. Assim, as ações são desenvolvidas a partir de uma participação dos agentes no cotidiano da população, de modo integrar as ações nas dinâmicas de relações de uma família ou comunidade e a transformar as práticas de saúde em práticas sociais. No plano da gestão, esse direcionamento das políticas se evidencia pelo Piso de Atenção Básica (PAB), criado em 1998. Esse piso tem dois objetivos: em primeiro lugar, garantir um mínimo de recursosdestinados à promoção e prevenção em saúde; em segundo Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 28 lugar, garantir a equidade, já que a transferência de recursos aos municípios passa a ser proporcional à população municipal, permitindo mais estabilidade na elaboração das ações locais de saúde e fortalecendo a vinculação dos programas às especificidades de vida de cada cenário social. Porém, mesmo articulando a descentralização do sistema de saúde aos eixos de integração social, foco na atenção básica e participação da população, os processos de descentralização ocorreram de modo desigual e paulatino. Isso porque tais processos dependeram de negociações e da adesão dos municípios, gerando níveis de gestão heterogêneos. Para que essas negociações ocorressem, cabe destacar o papel das Comissões Ingestores Tripartites e Bipartites, das quais participavam representantes de esferas de governo diversas (municipais, estaduais e federais), permitindo um diálogo e o estabelecimento de acordos no financiamento e gestão do sistema. O processo de descentralização apenas se dinamizou com o final da década de 90, com a X Conferência Nacional de Saúde, na qual a busca de negociações para os conflitos nos vários níveis de gestão possibilitou que, em 2000, 98% dos municípios participassem da gestão descentralizada. Nesse processo, diversos programas passaram a vincular-se aos municípios, acompanhando as mudanças na transferência de recursos. Entre esses programas, observa-se uma ênfase na atenção primária e na saúde integrada, caso dos programas de vigilância sanitária e epidemiológica, de controle de doenças transmissíveis e de ações como o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários (PACS). Esses programas visam também redirecionar o modelo de saúde, saindo do modelo biomédico e assistencialista, centrado na intervenção mecânica para um modelo focado na atenção biopsicossocial, de modo a integrar ações preventivas na relação cotidiana entre agentes de saúde e população. Todavia, segundo Gerschman (2004), esse sistema ainda enfrenta enormes dificuldades no tocante à participação democrática da população, já que os Conselhos de Saúde, órgãos destinados a congregar representantes da população na gestão e controle do financiamento e qualidade de serviços, não possuem orçamento próprio e, em muitas localidades, acabam possuindo um caráter meramente figurativo ou mesmo politicamente influenciado por governantes e representantes do Estado. Além disso, de acordo com Ribeiro (1997), alguns Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 29 municípios formularam leis que retiram o caráter deliberativo dos conselhos de saúde formados pela população, transformando-os em órgãos consultivos ou formais e esvaziando sua capacidade decisória. Como apontam Coelho e Paim: No caso do setor saúde, constata-se uma participação maior do capital financeiro ao tempo em que a descentralização dos serviços permite aos municípios movimentarem fundos e negociarem esquemas com os produtores privados. (...) Dessa maneira, a sociedade perderia a capacidade de influir na definição das políticas de saúde, pois as privatizações ofereceriam uma "livre escolha" condicionada pela oferta e pela capacidade econômica de cada usuário. Parte da negociação torna-se assim, limitada, uma vez que é difícil estabelecer um pacto que inclua a participação dos usuários na tomada de decisões e na gestão de estabelecimentos privados.(COELHO e PAIM, 2005, p.1374). Em meio a essas contradições, a prática de gestão do Sistema Único de Saúde, em qualquer nível do sistema (federal, estadual ou municipal), coloca aos seus participantes a problemática de identificar e selecionar conhecimentos, métodos e instrumentos tecnicamente adequados para a implementação de programas e ações de saúde e ao mesmo tempo analisar a conjuntura político-social para o direcionamento das políticas, de modo a considerar as transformações de longo prazo no campo da saúde, que dependem da vinculação das ações ao conjunto mais amplo das relações e práticas sociais. O enfrentamento dessas dificuldades exige, no processo de gestão, um esforço de articulação entre as informações tecnicamente relevantes e a análise do cenário social no qual serão utilizadas para o desenvolvimento de ações ao mesmo tempo eficazes e pertinentes ao contexto social nas instituições, órgãos e programas em que se efetivam as políticas de saúde. No aperfeiçoamento do processo de planejamento e gestão do sistema, em todos os níveis, é necessário não apenas, segundo Teixeira e Vilasboas (2004), “o acesso a informações de natureza técnico- científica e político-institucional que contribuam para a incorporação de conhecimentos e tecnologias de formulação, implementação e avaliação de políticas, planos, programas, projetos, destinados a intervir sobre o estado de saúde da população e sobre o próprio sistema de serviços de saúde”, como também a compreensão sistêmica no emprego dessas informações, de modo a construir uma visão articulada das diferentes esferas de atuação das ações de saúde, dos diferentes campos com os quais a saúde está articulada – tais como educação, Todos os direitos reservados ao Grupo Prominas de acordo com a convenção internacional de direitos autorais. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou utilizada seja por meios eletrônicos ou mecânicos, inclusive fotocópias ou gravações, ou, por sistemas de armazenagem e recuperação de dados – sem o consentimento por escrito do Grupo Prominas. 30 habitação, saneamento e condições de vida, meio ambiente, organização urbana, entre outros – e dos diversos entrecruzamentos que tornam os programas e ações de governo capazes de promover transformações a longo prazo. Essa perspectiva sistêmica só é possível mediante uma articulação de governo e de uma compreensão histórico-social não apenas dos processos de saúde e doença, mas também do próprio processo de gestão e articulação dos sistemas de saúde. Nesse contexto, os diversos temas de planejamento e gestão são geralmente apresentados como de ordem teórico-metodológica. Embora as informações técnicas sejam relevantes, a perspectiva exclusivamente metodológica possui importantes desdobramentos sociais e políticos que podem incidir negativamente sobre as práticas e programas de saúde, bem como sobre a possibilidade ou não de participação social nas ações de saúde. Assim, alguns temas de gestão serão apresentados e discutidos, visando a compreensão da articulação política e social dos processos de gestão. Em primeiro lugar, a discussão sobre as metodologias para a formulação de ações e programas em saúde pode ser bastante diversificada e está diretamente relacionada à concepção de saúde e ao enfoque dado às políticas. Algumas metodologias empregadas no Brasil focalizaram, por exemplo, o uso eficiente e normativo de recursos (caso do método CENDES), a gestão estratégica de planejamento em saúde, a gestão hospitalar integral, a ideia de planejamento adaptativo (caso do método elaborado pelo CPPS). Tais técnicas de descrição dos perfis epidemiológicos e identificação de necessidades em saúde privilegiam, frequentemente, determinados aspectos dos processos de
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