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NOITE NA TAVERNA para o podcast Literatura Oral

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Noite na taverna #21
Olá ! Você está no Literatura Oral, podcast de leitura comentada e sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira, jornalista com doutorado em literatura.
No último episódio, li o conto de fadas Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault. Hoje, na esteira do Halloween que vem aí dia 31 de outubro, escolhi uma leitura com repertório de terror. Hoje eu trago Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo.
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Tá difícil pro Halloween este ano. Além de 2020 ter sido um ano assustador, com mortes de muitas pessoas que até outro dia estavam saudáveis, especificamente no Brasil a gente tá vivendo o terror de um governo federal perverso, autoritário. 
O Halloween remonta a uma celebração celta anual pelas colheitas do verão, no hemisfério norte. O povo celta era muito integrado à natureza e conservava certo misticismo, acreditando em espíritos da floresta e na possibilidade da interferência de outras dimensões no plano físico. Na crença desse povo, o dia 31 de outubro abre um portal pelo qual espíritos maus tomam a terra. Por isso, usavam máscaras retorcidas para confundir esses espíritos e não sofrer seus malefícios. No dia 1º de novembro, outro portal permite a entrada de espíritos superiores na nossa dimensão. E do embate entre forças negativas e positivas resultam mortos, numa simbologia de que um ciclo morre para dar espaço a outro ciclo. Então dia 2 de novembro eles homenageavam os mortos. A crença católica aproveitou o dia 1º como dia de todos os santos e dia 2 como dia de finados. E os EUA fizeram do dia 31 de outubro uma festa comercial em que pessoas compram fantasias nas cores roxo, laranja e preto, e decoram as casas com morcegos, aranhas, abóboras. E a TV mostra uma série de filmes de terror.
Mas com tanta coisa macabra que a gente vive fica difícil uma obra literária ou filmes de terror competirem com a realidade no quesito assustar. Quer ver como acontecem eventos aterrorizantes que deixam a ficção no chinelo? No plano do esporte, por exemplo, tivemos um goleiro chamado Bruno que pode ter assassinado a mãe do filho dele e que até hoje não encontraram o corpo. Um primo do então goleiro do Flamengo, que presenciou a tortura que precedeu a morte de Eliza, disse que o corpo poderia ter sido esquartejado, a mando de Bruno, e dado de comer aos cães. Quando saiu da cadeia, ele foi imediatamente contratado por um time de futebol e recebido no clube por fãs. Ainda no universo futebol, neste outubro de 2020, o jogador Robinho foi contratado pelo clube Santos depois de condenado na Itália por violência sexual em grupo. Vazou um áudio dele dizendo que não estava nem aí, porque a mulher violentada estava bêbada, e que seu único erro foi ter traído a esposa. Diante desses dois casos, não vi nenhuma manifestação da Comissão Disciplinar da justiça desportiva, a mesma comissão que penalizou Carol Solberg, atleta de vôlei de praia, por gritar, em quadra, fora bolsonaro. Por falar nisso, fora bolsonaro! Não sei se a repreensão foi porque ela é mulher ou se porque o esquartejamento e a violência sexual em grupo não aconteceram em campo. Ironia à parte, cadê os atletas se posicionando a favor da Carol pela liberdade de expressão? Parece que tá surgindo um, e do futebol: Romário, ex-jogador de futebol e senador, apresentou um projeto para adicionar um artigo à Lei Pelé, para dar mais liberdade de expressão aos atletas durante as competições. Nos EUA, a lei de tolerância zero com imigrantes na fronteira sul do país, do presidente laranja Trump, separou famílias em 2018 e até hoje, dia da gravação deste episódio, ainda são 545 crianças imigrantes retidas separadas dos pais, sendo que alguns pais foram deportados há muito tempo e não estão sendo localizados. Podem ter morrido e essas crianças estão abandonadas. Tu ficou assustado ao longo deste ano com a pandemia e com a possibilidade de morrer ou de perder familiares? Imagina como ficaram assustadas essas crianças. Sério, este ano vão ser os espíritos maus que vão se assustar com a humanidade, e não o contrário. Aliás, se eu fosse eles, nem viria. Uma série de filmes de terror que repetem nessa época de Halloween tem como vilão um homem deformado que carrega uma motossera, apesar do nome da série ser “O massacre da serra elétrica”. Quanta inocência desse roteirista, o deformado consegue o quê? Mutila uma pessoa aqui, mata outra ali, mas sempre uma de cada vez. Quer ver vilão assustador mesmo? O presidente bolso narrow, com uma caneta bic, consegue massacrar milhares de brasileiros por vez, só com uma assinatura. E isso vem se repetindo desde janeiro do ano passado. Quer me assustar de verdade? Aparece com uma caneta bic! Eu corro igual aquela ema que fugiu desesperada da caixa de cloroquina que esse capitão acho que queria que ela comesse. Sério, a bic vai ter que investir em uma campanha poderosa de revitalização da marca, porque tá dando medo. E isso ainda não é o mais assustador. O mais assustador é a passividade das pessoas diante de tudo que esse desgoverno faz, incentiva queimadas no Pantanal e na Amazônia, afirma que não vai comprar vacina contra covid, e algumas pessoas seguem apoiando e prometendo reeleger esse insano. Isso sim é assustador!
Mas vamos ao Álvares de Azevedo e seu Noite na taverna, obra de 1855. 
Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo, em 12 de setembro de 1831, segundo dizem na biblioteca do avô (porque naquele tempo os partos aconteciam em casa), e faleceu no RJ, em 1852, aos 20 anos. A causa da morte segundo alguns foi tuberculose, segundo outros foram complicações de um tumor decorrente de uma queda a cavalo, mas pode ter sido um combo de tudo isso! Foi contista, dramaturgo, poeta e ensaísta. Durante o curso de Direito traduziu o 5º ato de Otelo, de Shakespeare, e Parisina, de Lord Byron. Tinha o apelido de “Maneco”. Fundou a revista da Sociedade Ensaio Filosófico Paulistano, em 1849, e fez parte da Sociedade Epicuréia. Que que é isso? Epícuro foi um filósofo grego cuja obra estabelece o conceito de gozar os bens materiais e espirituais com ponderação e medida. Mas o Epicurismo fez uma leitura um pouco diversa desse conceito e se tornou sinônimo de busca por prazeres terrenos. A Sociedade Epicuréia paulista foi criada em 1845 e teve Álvares de Azevedo como um de seus fundadores. O grupo escandalizava as famílias tradicionais paulistanas ao promover orgias nas necrópoles da cidade. Em Noite na Taverna, o escritor evoca um ambiente semelhante ao dessas cerimônias, que incluíam muito vinho! Mas apesar disso e da ambiência de seus contos, ao que tudo indica, Azevedo teve uma juventude caseira e casta. 
Eu hesitei em fazer a leitura de Noite na taverna em função de que a obra me incomoda pela forma como aborda o feminino e pelas sugestões de estupro e misoginia, ainda que na época em que foram escritas essas cenas não fossem vistas necessariamente sob esse ângulo. Por outro lado, eu acho que as obras que trazem temas politicamente incorretos ou moralmente inadequados não devem ser banidas, porque isso seria censura, e eu sou contra censura. Então o que se deve fazer em relação a essa obras de literatura ou cinema é abordá-las sob uma perspectiva crítica, utilizando os temas desconfortáveis para debater o porquê deles serem errados, ou da contrapartida no real dessas ações não ser aceitável. Aliás, essa perspectiva crítica, a gente deve ter com toda e qualquer obra ou discurso ou fala, principalmente falas de políticos em campanha, hein! Até porque, a arte não precisa ter nenhum comprometimento com o real e pode estabelecer seu próprio repertório do que é ético e aceitável, dentro da perspectiva da narrativa. E lançando sobre a obra um olhar crítico, ela ainda nos permite refletir eticamente sobre o que, na narrativa, é estética e o que é licença poética do escritor de abordar os temas como quiser. E aí então é perguntar o que essa obra nos diz hoje? O que ela provoca aos leitores de 2020, um ano mais assustador que muito livro de terror.
A minha decisão foi então de não fazer a leiturana íntegra, apesar do livro estar em domínio público, mas fazer comentários, destacando alguns pontos. Até porque, como a obra é antiga, têm bastantes palavras que caíram em desuso, e me pareceu que a leitura em voz alta ia ficar estranha. Mas recomendo que tu leias, que não te deixe travar pelo vocabulário diferente e conheça a obra de Álvares de Azevedo. A minha escolha por Noite na taverna foi por ser um texto de teor macabro, e ter sido escrito no Brasil numa época em que talvez essa temática do horror não fosse muito explorada. Mas ela casa perfeitamente com a influência que os escritores da segunda geração do romantismo recebiam da Europa, durante o que a gente conheceu como geração do ultrarromantismo ou do mal do século. 
Lembra quando a gente estuda que o romantismo no Brasil se divide em 3 gerações, os indianistas, que escrevem sobre os índios e a natureza brasileira de forma idealizada, a segunda geração de ultrarromantismo, com escritores que em geral morreram muito jovens, de tuberculose, mergulhados em depressão (ainda que não se usasse esse termo na época), e a terceira geração a condoreira, que abordou causas sociais e teve como principal expoente Castro Alves. Álvares de Azevedo fez parte da segunda geração e Noite na taverna traz todas as características dessa fase. 
Noite na taverna foi publicado postumamente, como todas as obras de Álvares de Azevedo. Ele assina o livro de contos com o pseudônimo Job Stern. São 7 contos ambientados à noite, em lugares lúgubres. Inicia com um diálogo entre a personagem Macário e Satan. Macário é também personagem título de um romance de Álvares de Azevedo. Ele pergunta a Satan “onde me levas?” e Satan responde “A uma orgia. Vais ler uma página da vida, cheia de sangue e de vinho”. E Macário responde que vê uma sala fumacenta, com 5 homens ébrios sentados em uma mesa redonda e muitas pessoas pelo chão, alguns homens se contorcendo e mulheres dormindo. A imagem de mulheres dormindo é acionada constantemente nessa narrativa, assim como o ambiente turvo, coberto de névoa. E aí vem uma epígrafe em Inglês do ato I de Hamlet, de Shakespeare, bem do início da peça, quando o fantasma do rei havia aparecido pela primeira vez aos amigos de Hamlet que estão de guarda e Bernardo questiona Horácio: “Horácio, e então! Você treme, parece pálido. E então, isso tudo é só mera fantasia? Que acha disso?”. Horácio é o amigo cético de Hamlet, ele reflete a visão do protestantismo de que fantasmas não existem. Horácio alimenta a dúvida sobre o fantasma na peça. Ele é o intelectual, e essa passagem é de quando ele vê o fantasma e então tem de aceitar a aparição apesar de suas convicções intelectuais. A intenção de Álvares de Azevedo, abrindo o livro de contos com essa epígrafe, é cutucar o leitor cético, convidar os leitores a admitirem uma possibilidade de fantasmagoria, adentrar uma esfera em que a realidade narrativa admite o insólito, onde nem tudo pode ser explicado pela razão. Nesse primeiro momento, os leitores são como Horácio e Azevedo nos incita a aceitar o sobrenatural assim como Horácio teve de engolir o fantasma de Hamlet pai. 
O primeiro conto é “Uma noite do século” e traz um diálogo entre aqueles 5 homens da mesa. Eles amaldiçoam, gritam por mais vinho à taberneira e usam em seus discursos palavras que auxiliam na construção do imagético que Azevedo quer dar aos contos: falam que as mulheres ali dormem tal qual defuntos, citam repetidamente as palavras raios e relâmpagos, embriaguez, morte, mortalhas, desmaios, cadáver, virgindade, aromas, blasfêmias, orgia, fetichismo, imaterialidade. O primeiro conto traz epígrafe em Português, de José Bonifácio, que diz: “Bebamos! nem um canto de saudade! Morrem na embriaguez da vida as cores! Que importam sonhos, ilusões desfeitas? Fenecem como as flores!”. Mas as próximas epígrafes são em língua estrangeira. Então o livro inicia com essa ideia de pessimismo, de término das esperanças, tão frequente nas obras românticas dessa geração. No final desse conto, que serve pra ambientar o leitor, as personagens fazem silêncio porque um deles, Solfieri, vai contar algo que ele viveu. E a partir daí cada conto, com exceção do último, leva o nome de um deles, narrando algo de macabro de suas vidas marcadas pela boemia e tomadas pela desilusão.
O segundo conto, “Solfieri”, tem epígrafe de Byron, poeta inglês que foi uma influência pra essa geração do romantismo brasileiro, e cujos poemas constroem esse imagético que Álvares de Azevedo busca reproduzir em Noite na Taverna, uma estética gótica e de desilusão com a vida. 
A história que Solfieri narra inicia falando de Roma como a cidade do fanatismo e da perdição. Lá ele segue uma mulher misteriosa, cuja silhueta ele havia visto através de uma janela, à noite, e a mulher vai chorar em um cemitério. As figuras femininas são representadas nesses contos como muito brancas, pálidas, e quase sempre em algum estado de fragilidade, chorando ou doentes. Ele adormece na chuva enquanto a mulher chora no cemitério e quando acorda ela havia partido. Mas ele fica obcecado por rever essa figura. Um ano depois retorna a Roma e... a gente pode pensar que ele vai à procura dela, já que sabe onde ela mora, viu a mulher saindo de casa, mas não. Ele está caminhando pela cidade, à noite, depois de uma orgia, quando se vê em um templo escuro, e percebe que ali está um caixão entreaberto. Segue um fragmento do conto: (p.5)
E o espanto do narrador quando percebe que dentro do caixão tem uma defunta! Pior se fosse um boleto, bobo! Desculpa gente, eu não quero desconstruir o clima terror com uma interpretação humorada, mas o próprio Álvares de Azevedo coloca uma pitada de humor, quando escreve que o narrador tira a defunta do caixão e “pesava como chumbo”! A seguir segue uma cena de necrofilia, ou seja, o narrador se envolve sexualmente com a defunta. Que acorda! Estava passando por uma crise de catalepsia, que é quando a pessoa parece que está sem sinais vitais, mas continua viva. E aí a cena que era de necrofilia vira um caso de estupro. 
Essa cena me lembra um filme espanhol de 2015: “O cadáver de Anna Fritz”, dirigido por Héctor Hernández Vicens. A história é um funcionário de necrotério recebe dois amigos no trabalho pra ver o corpo de uma atriz famosa que está ali e dois deles decidem transar com a defunta. Que acorda durante o ato. E então eles serão acusados de estupro, a não ser que... façam Anna realmente ser um cadáver! Só que um deles é bom caráter, tinha avisado pros amigos não fazerem essa doidice e... não vou contar tudo, até porque não lembro direito! Mas a história é essa. Se tu curte filme bizarro, vai gostar desse! Esse amigo que não participa da necrofilia, que mantém a humanidade enquanto os outros homens se transformam numa horda de monstros, esse foi o que faltou no grupo do Robinho, em Milão.
De volta ao conto “Solfieri”, o narrador decide roubar a moça! E na saída se depara com um corpo adormecido, era o coveiro, bêbado, no chão. Eu to tentando entrar no clima de terror, mas às vezes parece que o Álvares de Azevedo é um pouco ingênuo na construção dessa narrativa, e aí me soa cômico. Textos humorados são assunto que me interessa bastante, foi o tema da minha pesquisa no doutorado. Quando eu vejo eu to fazendo leituras seguindo um rastro do cômico ou irônico. E o macabro, ou o grotesco mais precisamente, flerta muito com o humor. O que é construído pra soar assustador está muito próximo de cair no engraçado, se for submetido ao exame de uma análise mais racional, ou se o leitor não estiver comprometido a entrar no jogo narrativo proposto como terror. Nessa sequência de roubo do corpo da mulher que está acordando, como ele não havia notado um outro ser humano dormindo no mesmo ambiente?
Nessa fuga, correndo com o corpo, Solfieri é interpolado por um policial italiano que desconfia que ele seja um ladrão de cadáveres, mas verifica que a mulher está viva “roçando os beiços nos da moça”. Essa cena causa estranhamento pelo inusitado da situação e pela escolha da palavra “beiços”,mas tem que ver de que época é o livro. Nessa fuga, o narrador se refere ao corpo como um fardo. Não existe preocupação em ajudar a mulher, saber quem ela é, nada disso. Ele pensa que pode ser aquela italiana que ele seguiu a um cemitério um ano atrás e decide roubar a mulher. O desrespeito pelo corpo feminino é constante neste conto. Chegando em casa, Solfieri decide manter a mulher em recuperação de uma crise cataléptica em cárcere privado. Quer dizer, ela foi estuprada, roubada, molestada por um policial e agora é refém. Parece que a fórmula a que Álvares de Azevedo recorre pra gerar o macabro é a execução de ações proibidas, ilícitas, pela contravenção das regras sociais, e não pela construção de imagens de fantasmagoria, que ele parecia sugerir no início do conto, quando segue uma figura esvoaçante até um cemitério, no meio de uma madrugada chuvosa. Só que com a descrição dessas ações ilegais, ele aproxima a narrativa do realismo, tira um pouco a aura de texto fantástico que poderia haver, e com isso descamba pro repugnante ou pro humor, pra mim pelo menos. 
Depois de 2 dias sofrendo em delírio, a moça morre. Solfieri deixa o corpo no quarto e vai em busca de um escultor pra fazer a réplica da mulher em cera. Feito isso, ele remove pedras de mármore do chão do quarto e enterra o cadáver embaixo da cama dele. (pág.6). Quando um dos amigos de mesa pergunta quem era essa mulher, o narrador responde: “quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos?”. Reforçando o descaso pelo corpo feminino evocado ao longo do conto. 
O próximo conto é “Bertram”. Esta narrativa se passa parte em diferentes cidades européias, e parte em um navio e numa ilha. Azevedo alinha as vivências macabras das personagens a capitais da Europa Ocidental. Bertram se envolve com uma espanhola que mata o marido e o filho pra poder viver livremente com ele, que culpa a mulher por iniciá-lo nas orgias, que significam no conto passar noites em claro, em bares, bebendo vinho. Eles vivem fugindo, com ela se vestindo de homem pra se disfarçar, até que um dia ela desaparece. Depois disso ele vai morar na casa de um nobre viúvo e foge com a filha adolescente do seu anfitrião. Cansa da garota e a vende pra pagar uma dívida de jogo. Ela, por sua, vez, envenena o homem para quem foi vendida. 
Um dia, entediado de usufruir de vinhos e mulheres, ele tenta o suicídio. O tédio é uma marca das obras dessa geração. Passa a viajar em um navio e tem um caso com a mulher do comandante, que vai a bordo. Enquanto Bertram tá narrando entra na taverna um velho – de quarenta anos – e pede pra beber com eles, dizendo que foi poeta, foi soldado. Esse homem, jovem de 40 anos, tira um embrulho do bolso, um embrulho em pano vermelho, e é uma caveira! O homem carrega uma caveira no bolso! Que bolso! É de um desses que o senador e ex-vice líder do governo bolso narrow, Chico Rodrigues precisa, pra não carregar mais dinheiro na cueca! Bertram segue a sua história contando que o navio encalhou. Quando restam 3 vivos, ele, a mulher e o comandante, e a comida já havia acabado há 2 dias, eles tiram a sorte pra ver quem deve morrer. Adivinha quem perde? O comandante. Então ele e a mulher se alimentam do cadáver do homem. Na sequência do conto, Bertram mata a mulher sufocada depois que ela sugere que morram juntos. Ele fica olhando a defunta seminua pairando no mar e é salvo por um navio Inglês. Via de regra as mulheres aparecem nesses contos seminuas, adormecidas, envoltas em um ambiente nevoento, com pouca luz, fantasmagóricas. É a mulher inatingível, ora santa e casta, ora vítima de uma fatalidade, devassada pelo pecado. 
	Em relação à taverneira que serve a mesa dos narradores, ela é sempre tratada a ponta pés. Sempre que querem mais vinho, chamam a mulher com desrespeito e até com raiva. O corpo feminino nessa obra sempre recebe um tratamento perverso. 
	Sempre que Bertram se vê numa situação de morte iminente, ele gargalha. Isso acontece com outras personagens dos contos quando se deparam com a morte ou com um crime hediondo. Esse texto é do século XIX, um tempo sisudo, em que o humor não ocupava lugar de prestígio, ao menos no Ocidente. Os textos de literatura fantástica ou do medo atingem a atmosfera de horror pela evocação de imagens e ações fora do comum, fora da vida cotidiana. O que ajuda a criar o universo do desconhecido é justamente usar o que não é do trato cotidiano. E a gargalhada não era algo bem aceito na sociedade do século XIX, que primava pelo recato e pela seriedade. A gargalhada, nesse tempo, está associada à loucura, à perda da razão, acontece quando o indivíduo não está no controle de suas faculdades mentais ou da sua racionalidade, ou seja, quando ele está flertando com o absurdo e com o desconhecido. Em última análise, flertar com o desconhecido, seja a loucura ou a perda do controle sobre si, é algo que soava assustador naquele momento histórico. Um outro texto desse período, um clássico da literatura inglesa do século XIX que muitas vezes é aproximado ao universo do gótico por trazer alguns elementos dessa estética literária, Jane Eyre, da inglesa Charlote Brönte, também mostra a gargalhada como elemento assustador e fantasmagórico. Na história, Jane Eyre assume seu posto de preceptora na mansão de Mr. Rochester, quer dizer, vai ser professora de uma menina lá. Uma noite, Jane é acordada com uma gargalhada rasgando o breu da madrugada. Não tinha eletricidade e as noites eram de escuridão total, a não ser pelas velas que as pessoas apagavam quando iam dormir. Jane fica com medo, achando que é um fantasma ou algo inexplicável. Depois, ficamos sabendo que as gargalhadas vem de uma louca que mora presa no sótão da mansão. Quer dizer, a gargalhada é uma ação de alguém que não responde por si, que não se contém.
O conto IV é “Gennaro”. O narrador conta uma história de quando era jovem e foi morar com seu mestre de pintura. Ele se envolve com a esposa e com a filha do pintor, provocando a morte dos 3. Azevedo escreve esses contos em um tempo em que os crimes de honra eram resolvidos com morte, que aconteciam duelos, por exemplo. 
	O conto V tem o único narrador com sobrenome: Claudius Hermann. Esse narrador fala de si na terceira pessoa, como se não fosse ele contando. Neste conto, o protagonista compra de um criado a chave da casa de uma duquesa, entra quando ela está dormindo, dopa a mulher com umas gotas de narcótico e a estupra. Em outra noite, ele entra de novo na casa, dopa a mulher e rouba o corpo. Quando a duquesa acorda e pede pra ser libertada, Claudius diz que o marido não vai aceitar ela de volta, vai pensar que ela foi adúltera. Neste conto o corpo feminino passa por violência psicológica!
	O conto VI é narrado por Johann. Ele participa de um duelo com Artur, por uma briga boba num jogo de bilhar. Mata o moço e coloca o anel dele. Encontra no bolso do cadáver uma carta de uma mulher marcando um encontro à uma hora da madrugada, dizendo que a porta vai estar aberta, que é só entrar. Quando ele chega, a moça sente o anel e, como é escuridão total, acredita que seja Artur! Gente, viva a eletricidade! A moça era uma virgem e ele passa a noite com ela, se passando pelo homem que acabou de matar no duelo. Quando vai sair do quarto, tem um vulto na porta dizendo que estava esperando por ele. Eles lutam e Johann sufoca o desconhecido. Quando ele leva o corpo até o lampião da rua para saber quem acabou de matar, descobre que era seu irmão. Nisso, ele prevê o que acabou de acontecer. Volta ao quarto e descobre que a virgem com quem acabou de transar é sua irmã.
	Mais uma vez, um conto em que o leitor tem que estar muito comprometido com a licença poética da narrativa pra não se fazer perguntas de base realista como “de que forma ele não reconheceu o endereço?”. Mas também, a obra literária não tem que explicar tudo, porque assim perderia um tanto do seu aspecto de arte. A gente que preencha as lacunas!
	O último conto é “Último beijo de amor”. Todos dormem na taverna. Uma mulher toda de negro entracom uma lanterna e olha um por um dos rostos dos adormecidos como velhos conhecidos. Podemos pensar que essa mulher é a morte. Mas quando ela se depara com Johann, estremece e corta sua garganta com um punhal, limpando o sangue das mãos nos cabelos do morto. Então ela acorda Arnold, um dos homens que dormia no chão e que não havia participado do grupo de narradores. E eles se reconhecem: ela é Giorgia, irmã de Johann, e ele é Artur, que sobreviveu ao tiro, foi levado a um hospital, quando se recuperou mudou de nome e viveu vagando em orgias. 5 anos se passaram e Giorgia virou uma prostituta, depois da noite com o irmão. Pelo olhar de conhecimento que lançou aos outros homens, pode-se pensar que ela passou por todos eles em sua profissão. Arnold pensa que eles vão ficar juntos, mas ela explica que acordou o antigo namorado só pra um beijo de adeus, porque vai se matar. E aí pra mim tá a única parte que é realmente assustadora nesse livro de contos, que é o terror da moralidade do século XIX determinando quem pode ser feliz: Giorgia diz que não há futuro com possibilidade de felicidade pra um libertino e uma prostituta! Ela se mata e em seguida ele pega o punhal da mão dela e perfura o peito, caindo sobre a amada, num final que retoma o texto evocado na epígrafe deste conto: que é Romeu e Julieta, de Shakespeare. 
Karla Niels, na dissertação “Noite fantástica: um percurso pelos estudos críticos e historiográficos sobre a obra Noite na taverna, de Álvares de Azevedo”, defendida à UERJ, em 2013, lembra que os horrores condenáveis das personagens transgressoras do livro não deixam de ser moralizantes, porque eles não escapam a uma distribuição de castigos. Essa pesquisadora explica que os temas da amada adormecida e da necrofilia eram comuns à literatura de cunho fantástico, à qual muitos críticos literários associam a obra. Essa dissertação está disponível a todos no banco de teses e dissertações Capes. Apesar de ser apontada por alguns como precursora do fantástico no Brasil, a obra não narra eventos sobrenaturais. Narra eventos estranhos, grotescos, escatológicos, mas nada de sobrenatural. Não há consenso sobre em qual categoria Noite na taverna pode ser classificado. Alguns estudiosos chamaram literatura fantástica, outros literatura do medo. Eu vou chamar literatura de crimes macabros. É um texto que mais choca do que assusta. Mas talvez assustar passe por chocar, principalmente nos idos do século XIX. 
Um biógrafo de Álvares de Azevedo, João Pedro Veiga Miranda associa Noite na taverna a Decameron, do italiano Giovanni Boccaccio. Em Decameron, escrito entre 1348 e 1353, jovens se refugiam da peste em Florença em uma vila isolada e contam narrativas uns aos outros pra passar o tempo e esquecer a morte que ronda. As duas obras têm contos iniciais e finais que funcionam com funções de situar o cenário e dar fechamento às narrativas dos amigos, o que é chamado narrativa em moldura. 
No episódio de hoje, comentei os contos de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Ótimo Halloweem a todos, com doces pra quem gosta e pode comer doces, porque de travessuras já chegam as que o governo apronta pra gente. Fiquem bem e até o próximo episódio!

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