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Critica e Crise (Reinhart Koselleck)

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KOSELLECK, Reinhart. Introdução. In: Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 2016. 
“A crise política (que, uma vez deflagrada, exige uma decisão) e as respectivas filosofias da história (em cujo nome tenta-se antecipar esta decisão, influenciá-la, orientá-la ou, em caso de catástrofe, evita-la) formam um único fenômeno histórico, cuja raiz deve ser procurada no século XVIII” (p. 9).
“A sociedade burguesa que se desenvolveu no século XVIII entendia-se como um mundo novo: reclamava intelectualmente o mundo inteiro e negava o mundo antigo. Cresceu a partir do espaço político europeu e, na medida em que se desligava dele, desenvolveu uma filosofia do progresso que correspondia a esse processo. O sujeito desta filosofia era humanidade inteira que, unificada e pacificada pelo centro europeu, deveria ser conduzida em direção a um futuro melhor. Hoje, seu campo de ação, o globo terrestre, é reivindicado ao mesmo tempo por grandes potências, em nome de filosofias da história análogas. Esta concepção da unidade do mundo, de caráter histórico-filosófico, revela-se – e nisto aparece seu caráter fictício – como uma unidade política partida. Cada lado, tão comprometido com o progresso quanto o outro, vive do pretenso retrocesso do outro. Cada lado, cria obstáculos ao caminho do outro; paradoxalmente, nisto reside sua certeza. Distinguem-se um do outro para criar a ilusão de uma evidência que não existe, a não ser pelo medo e o terror. A unidade utópica do mundo reproduz sua própria dicotomia” (p. 9-10).
“No século XVIII, o planejamento utópico do futuro já tinha uma função histórica específica. Em nome de uma humanidade única, a burguesia europeia abarcava externamente o mundo inteiro e, ao mesmo tempo, em nome deste mesmo argumento, minava internamente a ordem do sistema absolutista. A filosofia da história forneceu os conceitos que justificam a ascensão da burguesia. O século XVIII é a antecâmara da época atual [...]. Este trabalho pretende lançar luz sobre essa antecâmara e, assim, trazer à tona a relação entre a formação da moderna filosofia da história e o início da crise que desde 1789 – a princípio, na Europa – tem determinado os eventos políticos” (p. 10).
“A pergunta foi delimitada e definida historicamente da seguinte maneira: não interrogamos o conteúdo e as metas utópicas das filosofias da história da época, e tampouco sua estrutura ideológica, por exemplo, em relação à ascensão da burguesia: procuramos entender a consciência histórico-filosófica dessa época para elucidar a conexão, que se estabelece em sua origem, com o início da crise política, a partir da situação da burguesia no interior do Estado absolutista. Deixamos as filosofias da história, enquanto tais, de lado – salvo exceções exemplares – e examinamos a função política que o pensamento e as aspirações da burguesia tiveram no âmbito do Estado absolutista. Para elaborar o significado político do Iluminismo é preciso indagar sobre a estrutura da primeira vítima da Grande Revolução, o Estado absolutista, cujo desaparecimento possibilitou o desdobramento da modernidade utópica” (p. 10-11).
“As análises concentram-se no presente que passou, e não em seu passado. O passado ‘anterior’ só será considerado se nele residirem elementos significativos para tratar da nossa pergunta sobre o século XVIII. Nosso tema é a gênese da utopia em um contexto funcional historicamente determinado: o século XVIII. Por isto, a história política pregressa só será tratada na medida em que ela seja necessária para transmitir o valor que a consciência dos cidadãos tinha durante a vigência do sistema absolutista. Isto também traz à tona o outro lado da nossa pergunta, que diz respeito à crise política que se enunciava. A consciência histórica e filosófica dos iluministas – queira-se ou não- só adquire sentido político como uma resposta à política absolutista. O Estado, tal como era, exigia uma resposta, tal como seria então encontrada. Portanto, renuncia-se conscientemente a considerações sobre a história das ideias. O patrimônio de ideias herdado, que já se encontrava quase completo, à disposição dos iluministas, só foi retomado em uma situação determinada e – nisto reside seu aspecto especificamente novo – interpretado do ponto de vista da filosofia da história” (p. 11).
“O método deste trabalho combina análises em história das ideias e análises sociológicas das condições. Estudam-se os movimentos das ideias, mas somente na medida em que eles permitam explicitar seu acento político; examinam-se as situações em que as ideias foram concebidas e sobre as quais repercutiram em seguida, mas somente na medida em que elas permitam destacar o sentido de que as ideias se investiram. Não se trata, portanto, de descrever o desenrolar político, de um lado, e as transformações das ideias, enquanto meras ideias, do outro. As condições gerais que originaram o Iluminismo e às quais ele reagiu não mudaram no decorrer do século XVIII. Mudaram as circunstâncias – de uma maneira, é claro, que acentuou ainda mais as dificuldades básicas do sistema absolutista. Sobretudo o Estado francês perdeu poder e prestígio: com a prosperidade crescente da burguesia, endividava-se cada vez mais: não alcançava mais vitórias claras; perdia guerras e colônias; e, por último, os próprios representantes do Estado foram arrebatados pelo Iluminismo. O Iluminismo tornou-se um “aliado”. Mas, no que diz respeito às condições políticas enquanto tais, não resta dúvida de que a estrutura do próprio Estado não foi alterada. O monarca preservou seu poder soberano [...]. O absolutismo condiciona a gênese do Iluminismo, e o Iluminismo condiciona a gênese da Revolução Francesa. Entre estas duas fases, movimenta-se, grosso modo, o presente trabalho” (p. 11-12).
“Se recorremos a fontes do período anterior a 1789. Não utilizamos nenhum testemunho para fazer declarações sobre a pessoa de cada autor [...]. Nosso tema é a unidade dos eventos do Iluminismo no Estado absolutista. Cada ato de pensamento e cada ação deverão nos remeter a esse acontecimento [...] Daremos a palavra, indistintamente, a grandes pensadores e a panfletos anônimos, pois, na unidade dos eventos do Iluminismo, anonimato e importância política geralmente coincidem” (p. 13).
“A abordagem heurística, que visa a elucidar a ligação entre a utópica filosofia da história e a Revolução desencadeada a partir de 1789, reside na conexão pressuposta entre crítica e crise. O fato de que a conexão entre a crítica praticada e a crise emergente tenha escapado ao século XVIII – não se encontrou nenhuma prova literal de uma consciência dessa conexão – conduziu à presente tese: o processo crítico do Iluminismo conjurou a crise na medida em que o sentido político dessa crise permaneceu encoberto. A crise se agravava na mesma medida em que a filosofia da história a obscurecia. A crise não era concebida politicamente, mas, ao contrário, permanecia oculta pelas imagens histórico-filosóficas do futuro, diante das quais os eventos cotidianos esmoreciam. Assim, a crise encaminhou-se, ainda mais desimpedidamente, em direção a uma decisão inesperada. Esta dialética funda-se no modo específico da crítica que se exercia no século XVIII e que lhe concedeu o seu nome. A crítica praticada pela inteligência burguesa determinou o papel da burguesia ascendente englobou o novo mundo” (p. 14).
“No século XVIII, a intelectualidade burguesa transformou a história em processo, sem tornar-se consciente desta transformação. Este acontecimento, que inaugura os tempos modernos, é idêntico a gênese da filosofia da história [...]. O alto tribunal da razão, entre cujos membros naturais a elite ascendente se inseria, envolveu em seu processo, em diferentes etapas, todas as esferas da vida. Mais cedo ou mais tarde, a teologia, a arte, a história, o direito, o Estado, a política e, finalmente, a própria razão são citados e chamados a prestar contas. Neste comércio jurídico, o espírito burguês desempenhava a função de acusador, de instânciajudicativa suprema e – o que teria uma importância decisiva para a filosofia da história – de partido. Os juízes burgueses estavam sempre do lado do progresso. Ninguém – e nada – podia escapar à nova jurisdição. O que não resistisse ao juízo dos críticos burgueses era entregue à censura moral” (p. 14).
“No rigoroso processo da crítica – que era, ao mesmo tempo, um processo de efervescência social – formou-se a filosofia da história: todos os domínios tratados pela crítica contribuíram para promover o advento da filosofia burguesa da história [...], o fermento da crítica muda o curso dos eventos políticos. A justiça subjetiva, voltada rigorosamente para si mesma, não conta mais com grandezas dadas, mas transforma tudo que está dado historicamente (e a própria história) em um processo, cujo desenlace, é claro, permanece em aberto, uma vez que as categorias do juízo privado não podem alcançar os acontecimentos que ajudaram a provocar [...]. Como é peculiar à crítica, seja a religião ou a política, ela precisou procurar um apoio que a remeteu para o amanhã, em cujo nome pôde negligenciar o hoje com a consciência tranquila. Para fazer valer seus direitos, a crítica do século XVIII teve que se tornar utópica. Finalmente, o último objeto da crítica, o Estado absolutista, contribui, à sua maneira, para estabelecer a visão utópica que a burguesia tinha da história” (p. 15).
“A ordem política que o Estado produziu ao pacificar o espaço devastado pelas guerras civis religiosas criou a condição necessária ao desenvolvimento do mundo moral. Contudo, na medida em que os indivíduos sem poder político se desvencilham do vínculo com a religião, eles entram em contradição com o Estado, que os emancipa moralmente mas também os priva da responsabilidade, ao reduzi-los a um espaço privado. Os cidadãos entram necessariamente m conflito com um Estado que, pela subordinação da moral à política, entende a esfera política de maneira formal e age sem considerar a vertente própria da emancipação. O objetivo dos cidadãos será aperfeiçoar-se moralmente até o ponto de saber efetivamente, e cada um por si, o que é bom e o que é mau. Assim, cada um torna-se um juiz que, em virtude do esclarecimento alcançado, considera-se autorizado a processar todas as determinações heterônomas que contradizem sua autonomia moral. Assim, a separação, realizada pelo Estado, entre política e moral volta-se contra o próprio Estado, que é obrigado a aceitar um processo moral” (p. 15 – 16).
“Planejar a história torna-se tão importante quanto dominar a natureza. O mal-entendido de que a história seja planificável é favorecido por um Estado tecnicista, incapaz de fazer-se compreender por seus súditos como uma construção política. O cidadão, desprovido de poder político, súdito do senhor soberano, entendia-se de um ponto de vista moral e, na medida em que sentia que a autoridade estabelecida abusava do poder, condenava-a como imoral. Pela separação entre moral e política, a moral forçosamente se aliena da realidade política. A moral, que não pode integrar a política, precisa fazer da necessidade uma virtude, pois encontra-se no vazio. Alheia à realidade, vislumbra no domínio da política uma determinação heterônima, nada além de um estorvo à sua autonomia. Por conseguinte, esta moral acha que, atingindo as alturas de sua própria determinação, poderia varrer do mundo a aporia política. Que a política seja o destino, não exatamente no sentido de tentativa de negar, pela filosofia da história, a facticidade histórica, de “recalcar” o político, tem em sua origem um caráter utópico. Enquanto a história é alienada pela filosofia da história, permanece a crise desencadeada pelo processo que a moral se empenha em mover contra a história” (p. 16).
“O utopismo originou-se de um mal-entendido em relação à política, mal-entendido que foi condicionado historicamente e, em seguida, fixado pela filosofia da história. No fogo cruzado da crítica, não se desmantelou apenas a política de então. Neste mesmo processo, reduziu-se a própria política, enquanto tarefa constante da existência humana, a construções utópicas do futuro. A estrutura política do Estado absolutista e o desenvolvimento do utopismo são um processo complexo, no qual se inicia a crise política do presente” (p. 17).

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