Buscar

Prévia do material em texto

1 
FACULDADE PAULISTA DE ARTES 
LICENCIATURA EM DANÇA 
 
 
 
 
 
ANA CAROLINE CABRAL ASSUNCION RECALDE 
 
 
 
 
 
 
 
CORPO-ESPAÇO-IDENTIDADE 
Lugares-não-lugares sob uma perspectiva de improvisação 
em dança 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SÃO PAULO 
2019 
 
 2 
ANA CAROLINE CABRAL ASSUNCION RECALDE 
 
 
 
 
 
 
 
CORPO-ESPAÇO-IDENTIDADE 
Lugares-não-lugares sob uma perspectiva de improvisação 
em dança 
 
 
 
Trabalho de conclusão de curso apresentado à 
Faculdade Paulista de Artes para obtenção do 
grau de Licenciatura do curso de Dança. 
Orientador: Prof.a Ma. Paula Salles 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SÃO PAULO 
2019 
 3 
RESUMO 
O trabalho trata-se de um processo de pesquisa originado em reflexões acerca 
da relação corpo-espaço, em uma exploração do corpo a partir das construções 
arquitetônicas, como interferência de movimento, possibilidades de 
reconfiguração desse espaço físico e a relação eu-outro influenciada pelas 
disposições do meio urbano. Trazendo pensamentos a partir da ideia de lugares 
não-civis e sob a perspectiva da imprevisibilidade e pluralidade do espaço, do 
qual surge a composição em tempo real pautada na transformação de um 
espaço líquido em um lugar de diálogo entre corpos. 
 
Palavras-chave: Espaço. Improvisação. Dança. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 5 
1 CORPO, IDENTIDADE, GESTO E MOVIMENTO ............................................ 7 
1.1 Composição em tempo real ......................................................................... 9 
2 ESPAÇO SOCIOLÓGICO, DANÇANTE, ERRANTE ..................................... 10 
2.1 Espaço sob uma perspectiva sociológica ................................................. 10 
2.2 Espaço sob uma perspectiva de dança .................................................... 15 
3 PROCESSO DE CRIAÇÃO ............................................................................. 17 
3.1 Lugares outros: vivências e apreciações .................................................. 17 
3.2 Processos da composição ......................................................................... 19 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 24 
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 25 
 
 
 5 
INTRODUÇÃO 
 
O trabalho parte da ideia da relação do corpo com o espaço que habita, o 
ato de criar e recriar diálogos, significações de lugar e sua relação com o 
indivíduo e seu gesto dançado. Uma ideia de exploração de identidade que está 
em constantes cruzamentos de informação, corporalmente em conexão com o 
espaço. 
Chegando no mapeamento dos dispositivos denominados permanência-
passagem-diálogo, numa exploração de contextualização da vivência individual 
de mundo, dentro e fora do conceito metafórico dessas palavras. Buscando a 
ressignificação de gestos e movimentos, a partir do mapeamento de espaços 
ocupados por esse indivíduo e a relação de interferência entre um e outro que 
geram estas respostas corporais. Um mapeamento que parte de dois pontos 
chaves: interferência do espaço do mundo no corpo e interferência do espaço 
pessoal do corpo no espaço do mundo. 
As ações de um corpo são influenciadas pelo espaço que ele circula e 
pelos lugares em que passa, permanece e dialoga. Os lugares onde o corpo se 
faz presente interferem e são interferidos, os corpos circulantes são 
estímulo/reação ao mesmo tempo, tanto na relação corpo/espaço quanto na 
relação corpo/corpo. A percepção corporal parte daquilo que o corpo já possui 
enquanto memória de uso daquela estrutura física e transforma o simples 
estímulo/resposta em um leque maior de possibilidades, deixando o movimento 
ser explorado em extensões e diminuições de movimento, fazendo ele se 
ressignificar nele mesmo ou gerar outros. 
Foi pensado um corpo que se compreende como elemento de um espaço 
e componente da significação de um lugar, ações que fazem o espaço modificar-
se e significar-se, pensando o diálogo entre o indivíduo e a arquitetura, um corpo 
que se relaciona com outro corpo e ambos interferem e são interferidos pelo 
ambiente. 
Utilizando artifícios da composição em tempo real, surge a composição 
Lugar-não-lugar, em que uma construção arquitetônica interfere nas escolhas de 
comportamento e nas relações entre os indivíduos que dançam, sob uma 
perspectiva do movimento a partir dos lugares não-civis, onde os corpos traçam 
um caminho de construção de movimento até chegar em um diálogo criando um 
 6 
espaço de permanência com um toque de liquidez em suas reconfigurações, 
ressignificando não-lugares e transformando as configurações para a qual a 
estrutura física foi construída. 
 
 
 7 
1 CORPO, IDENTIDADE, GESTO E MOVIMENTO 
 
 O corpo é entendido como um sistema vivendo em contínuos 
correlacionamentos com os ambientes por onde circula e, nesse 
correlacionamento formula constantes hipóteses sobre este mundo (BANANA, 
2012, p. 24). De acordo com Adriana Banana (2012) o corpo está em constante 
processo de construção de pensamento a partir das hipóteses geradas pelo 
contato estabelecido com o mundo. Essas hipóteses são testadas a todo 
momento enquanto vivência do corpo em tempo real, onde pode-se fazer um 
paralelo ao pensamento do educador somático Moshe Feldenkrais (1977) sobre 
autoeducação, partindo dos três pilares da autoimagem, tratando-se da 
capacidade autônoma de explorar as possibilidades a partir de informações 
adquiridas pela educação – conjunto de aprendizados adquiridos por um 
indivíduo enquanto parte de um contexto social, cultural e político. 
A teoria corpomídia citada por Banana (2012) a partir de Helena Katz, 
entende o corpo como uma mídia de si mesmo, onde o corpo não é apenas um 
processador de informações externas que apenas passam. Em corpomídia 
existe um cruzamento de informações entre o que já está e o que chega, 
trazendo um corpo compartilhado formado por redes, trata-se de um processo 
contaminatório. O corpo que produz dança na contemporaneidade apropria-se 
de várias fontes de saberes, apreendidos a cada experiência (ARAÚJO e 
PORPINO, 2018, p. 325). 
De acordo com Louppe (2012) recorremos a dois tipos de movimento na 
vida: os movimentos fundamentais, que dizem respeito aos atos universais 
necessários a conduta de animais, como, por exemplo, andar, abaixar, levantar, 
deitar e assim por diante. Podendo ser executados em conjunto ou expandidos 
por movimentos menos “naturais”, comuns à memória corporal de bailarinos. 
Os movimentos fundamentais são especificamente objeto de uma 
investigação profunda, uma vez que se encontram ligados ao que temos de mais 
antigo na filogenia dos nossos comportamentos (LOUPPE, 2012, p. 122). A 
autora abre para pensamento os movimentos fundamentais como algo fornecido 
pelo corpo e aberto a possibilidades de experimentação, trazendo ampliações 
de movimentações e intensões em múltiplas ações que se constroem e 
reconstroem. A exploração contínua desses recursos ainda traz o domínio das 
 8 
ações transformando as maneiras como as intenções são mobilizadas no corpo, 
pensando ainda na forma como Feldenkrais (2012) evidencia a repetição de 
movimento entendendo que a cada recomeço trata-se de um novo movimento. 
Para Louppe (2012) os movimentos fundamentais são carregados de símbolos 
e a investigação deles faz com que possam acontecer reconfigurações. 
Louppe (2012) ainda categoriza os movimentos fundamentais como algo 
comum a qualquer contexto coreográfico, em uma amplitude “natural”, e, ainda, 
acrescenta que há ausência de acentuação, transformando-os em algo discreto, 
os quais têm a intensão de apresentar na dança, investigando outras qualidadesa partir dessa base, saindo do lugar funcional que carregam. A autora ainda 
apresenta o caráter mimético do gesto cotidiano e a acentuação deste, 
destacando a intenção, também o pensando como um movimento fragmentado 
no corpo, um tipo de movimento que pensa predominantemente em seu objetivo 
final, em sua característica utilitária. 
Neste trabalho, o gesto cotidiano é pensado como movimento aprendido 
pelo corpo - pertencente a um determinado contexto, levando em considerações 
gestos e significados a partir de onde o indivíduo se encontra, variando a 
intenção e a forma deste movimento. Traz também um pensamento sobre o fato 
de que um grupo reconhecer a valorização da força simbólica pela linguagem 
corporal individual (LOUPPE, 2012). 
O movimento dançado desconhece limites, quer na forma, quer na 
organização ou escala (LOUPPE, 2012). A autora também abre o entendimento 
para a exploração do gesto cotidiano em si ou em seu caráter utilitário, pensando 
também na investigação não mimética dos movimentos fundamentais, sem 
acentuar maneira teatral. Neste trabalho a ideia é trazer a movimentação 
expressiva e não expressiva a partir do movimento fundamental e do gesto 
cotidiano, em uma construção de ressignificações e reconfigurações contínuas 
a partir da memória enquanto um corpo pertencente a determinado contexto, 
carregado pelos símbolos do gesto nas fases da educação, pensando na relação 
com a autoeducação. 
 
 
 
 
 9 
1.1 Composição em tempo real 
 
Os gestos aparecem neste trabalho como ponto de partida para 
investigação a partir da potência utilitário da arquitetura do espaço, sempre em 
forma de composição em tempo real onde, de acordo com Mundim (2012), 
reúne-se o vocabulário corporal e conectar-se com o entorno e dialogar com o 
que é oferecido por ele e perceber o outro por inteiro, tornando-se uma escritura 
poética em movimento. Assim como os gestos preenchem um indivíduo a partir 
de seu contexto e os movimentos são comuns a qualquer contexto e são 
carregados enquanto uma base fundamental de comportamento, Mundim (2012) 
destaca que a composição em tempo real exige a investigação e a experiência 
para adquirir saberes que deflagram em cena gerando as descobertas de 
combinações que ocorrem em tempo real a partir dos saberes, gerando 
situações, imagens e sensações. Repara ainda a necessidade e disponibilidade 
para arriscar-se e lançar-se em campos desconhecidos, também podendo dizer-
se que o cruzamento de informações apresentado por Banana (2012) se faz 
importante nas percepções necessárias a composição em tempo real. 
 
 
 10 
2 ESPAÇO SOCIOLÓGICO, DANÇANTE, ERRANTE 
 
No dicionário, espaço é definido como extensão ilimitada que possui todos 
os seres e coisas e é o campo de todos os eventos; ou uma extensão limitada a 
partir de distância, área e volume; ou um intervalo entre um ponto e outro; 
distância percorrida por um ponto e outro. Enquanto lugar é tido como um espaço 
para fins determinados. Ponto em que se reside ou se supõe residir algo; Posição 
determinada por circunstâncias; Posição relativa em uma escala. 
O conceito de uma cinesfera que inclui todos os movimentos 
possíveis – o espaço que o corpo transporta consigo, ou melhor, 
onde ele se constrói e se constitui – é a reunião de todos os 
acontecimentos motores possíveis, nos quais se distinguem os 
modos de transferência de peso e as qualidades ou orientações 
tensionais (LOUPPE, 2012, p. 121) 
 
Ao pensar em cinesfera, Louppe (2012) apresenta a ideia pela qual Laban 
reconhece dois arquétipos dos quais a articulação da movimentação humana 
teria surgido: o movimento de aproximar e o de afastar algo, originando, assim, 
uma primeira noção de cinesfera. Corpo é um espaço que se constrói de maneira 
contínua, configurado por sua motricidade, expande e diminui, desloca-se. Se 
espaço possui todas as coisas, o corpo possui todas as condições de 
movimento; se lugar é um espaço para determinados fins, o corpo o faz pela 
intenção da ação e pela transformação de sua cinesfera. 
 
2.1 Espaço sociológico e geográfico 
 
Em seu artigo no livro Corpo-Espaço e Territorialidade (MUNDIM, 2012), 
Emiliano Alves de Freitas Nogueira (2012) cita Ching (2008) para apresentar 
elementos primários da construção arquitetônica, onde um espaço físico é 
construído a partir de delimitações de formas bidimensionais e tridimensionais, 
partindo de um ponto que se expande em linhas até chegar em volumes. Uma 
vez construído, um espaço ganha significações tornando-se um lugar, e interfere 
diretamente nas relações (NOGUEIRA, 2012, p. 39) e, como principal interesse 
da pesquisa, movimento. No trabalho, uma das principais abordagens se trata 
do movimento que nasce a partir do diálogo entre indivíduos, a partir da 
interferência da arquitetura do espaço, transformando-se em inúmeras 
significações de lugar. 
 11 
 
[...] a forma como o lugar construído interfere diretamente nas 
relações sociais, fazendo com que, muitas vezes, o usuário 
tenha que se adaptar ao desenho racional do espaço, é fonte de 
constantes investigações de movimentos (NOGUEIRA, 2012, p. 
39). 
 
Em Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman (2001) analisa situações 
relacionais a partir da configuração social dada pela construção de espaços 
públicos caracterizados como não-civis, em contraponto à noção de “civil" do 
meio urbano, onde as pessoas exercem civilidade, que se trata, primeiramente, 
de espaços onde elas possam compartilhar personalidades a partir de máscaras 
baseadas em códigos de convivência coletiva, sem expressar aspectos mais 
íntimos, como sentimentos e angústias; ao mesmo tempo em que se trata de um 
bem comum, que não pode ser reduzido a propósitos individuais, sendo uma 
espécie de tarefa compartilhada que não pode ser carregada de inúmeros 
desejos individuais (BAUMAN, 2001, p. 123). 
Louppe (2012) reflete sobre a maneira como o social interfere na inibição 
e regulação do movimento. Feldenkrais (1977) também levanta esta questão ao 
destacar o fato de que o indivíduo se preocupa em pautar sua construção 
pessoal a partir de expectativas externas, não fazendo o que lhe traria real 
satisfação. 
 
É certo que, para a dança como arte do movimento, a génese 
do material singular do artista apresenta problemas diferentes, 
mais profundos e também mais arriscados de produzir e de 
contestar, no sentido em que o movimento, ligado à história do 
sujeito, à sua própria identidade, retira a sua liberdade e a sua 
independência à instituição social do corpo (LOUPPE, 2012, p. 
117). 
 
A civilidade como característica da vivência humana implica na influência 
de um comportamento coletivo que molda a individualidade, guia os movimentos 
pelo ambiente, estabelece acordos implícitos entre corpos que se encontram e 
se perdem em não-lugares que ocupa cada vez mais espaço, movimentos que 
ficam à mercê de uma arquitetura construída semelhante a molde de movimento, 
geradora de sequenciamentos fechados. 
Nogueira (2012) cita duas etapas da contribuição no processo de criação 
do trabalho “Sobre pontos e retas”, no qual – além da apresentação de 
 12 
elementos primários de arquitetura – houve a investigação da interpretação de 
diferentes espaços, pelo qual é possível fazer uma comparação com o conceito 
de lugares êmicos e fágicos, não-lugar e espaços vazios apresentados por 
Bauman (2001). 
Ao falar sobre a relação usuário-espaço, usuário-usuário e espaço-
espaço, Nogueira (2012) abre a possibilidade de aproximação com o 
pensamento Bauman (2001) sobre relações através dos espaços públicos não-
civis. Começando pelo lugar êmico, onde existe o afastamento entre o eu-outro, 
o objetivo de excluir do “meu espaço” aquilo que não tem ligação comigo e não 
entra na minha linha de interesse, evitar um indivíduo como um todo. Uma 
passagem, como os corredores de uma estação de trem, é um espaço não 
habitado, onde as pessoas não criam relaçõesde permanência, trata-se de um 
lugar onde não se exerce a chamada civilidade, estranhos vem e vão sem criar 
nenhum tipo de relação de proximidade. 
Chegando no lugar fágico, que tem proximidade com o que é 
denominado como “templos de consumo”, lugares com regras de conduta 
implícitas e objetivos ligados a noções capitalistas. As regras desses lugares 
fazem com que os indivíduos, por um instante, façam parte de uma espécie de 
coletivo, onde entra o “fágico”, que se trata da noção de “ingerir” um indivíduo e 
transformá-lo à maneira de quem o ingere. Qualquer pessoa fora deste acordo 
e das regras de funcionamento do lugar desperta o estranhamento. 
Em contraponto, Adriana Banana (2012) trata o espaço a partir de 
previsões meteorológicas, onde deve-se levar em consideração a permanência 
de padrões não repetitivos e em situações onde ínfimas diferenças levam a 
resultados distintos, abrindo um leque de possibilidades, tratando o espaço como 
imprevisível, possível e provável. 
Para Banana (2012), o espaço é regido por leis em ordens desordenadas, 
onde a lei se configura pelas transformações ocorridas em regularidade. 
Regularidade esta que não se trata de um espaço determinista, absoluto, 
pensado a partir da causa-efeito mas em uma linha de crescimento contínuo que 
se prolifera em variações, é aberto, dinâmico e fluído. Neste trabalho, pode ser 
vista como uma linha se disseminando em outras linhas. Voltando a noção 
arquitetônica sobre pontos, retas e planos, é possível pensar, para este contexto, 
 13 
um ponto que se transforma em retas, que seguem em outras retas, chegando 
em planos que vão para outros planos e outras retas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao analisar a linha de comportamento em lugares não-civis, Bauman 
(2001) acaba entrando no mérito da configuração única do espaço – não 
excluindo a possibilidade de existir a quebra de comportamento, mas também 
assumindo o estranhamento gerado a partir de tal – onde a construção 
arquitetônica e as convenções implícitas do contexto daquele lugar ditam as 
“regras” gerando um comportamento massivo. Banana (2001) abre um olhar de 
reconfiguração espacial para além de um objetivo categórico, aberto a 
possibilidades, podendo ser de vários modos. 
 
É um entendimento de que sua existência, a do espaço, 
configurou-se e continua ao longo do tempo como possibilidade 
a posteriori. Ou seja, o espaço não é de um único modo, nem 
é algo pronto, existindo antes de tudo, imutável, pronto para ser 
habitado (BANANA, 2012, p. 82). 
 
Partindo do pensamento de informações cruzadas apresentado por 
Banana (2012), faz-se um paralelo ao conceito de não-lugar de Bauman (2001). 
Não-lugares não requerem domínio da civilidade, o comportamento em público 
é reduzido a preceitos simples, destitui-se de expressões de identidade, relações 
e história (BAUMAN, 2001), ocupando cada vez mais espaços como transporte 
público, estradas, estações de trem, calçadas... Esta classificação de lugar não 
civil – bem próxima na noção de lugar êmico – induz o corpo a este espaço 
absoluto em um movimento fundamental contínuo esvaziado de investigações e 
entendimentos conscientes. Esses lugares encorajam a ação e não a interação 
(BAUMAN, 2001). 
Fonte: Acervo pessoal. 
 14 
Janine Leal Araújo (2018) e Karenine de Oliveira Porpino (2018), 
apresentam em seu artigo a relação entre o termo arquitetônico “errância”, ideia 
de caminhar sem rumo e metas definidas, tratando-se de um deslocamento 
ocorrido em espaços vazios com a premissa da construção de um lugar. Araújo 
e Porpino (2018) tratam “lugar” como organização de significados atribuídos ao 
espaço. Bauman (2001) traz o espaço vazio em duas instâncias: uma onde este 
trata-se de lugares não reservados à colonização ou “sobras” de reestruturações 
de lugares em superposições no desenho do mundo; outra onde o espaço vazio 
sai da condição de ser um resíduo inevitável e excluído da visão do urbanista e 
torna-se peça do mapeamento de um espaço partilhado por indivíduos 
diferentes. 
Pensando a partir do conceito de um trajeto, pode-se dizer que a vivência 
individual pelo meio urbano constrói um mapeamento único e o que está fora 
disso acaba se tornando um espaço vazio, pelo fato de que, considerando a não 
experiência dele, não foi “arquivado”. Logo, a errância se torna uma experiência 
individual e que pode conter um cruzamento de informações, pensando na 
possibilidade do diálogo entre indivíduos, criando um espaço compartilhável e 
mutável. 
 
Sabemos que cada ser humano percebe o mundo por meio de 
lentes únicas, dependendo de suas sensações, inserções 
sociais, pertencimento cultural, informação e acuidade do seu 
próprio olhar para “ver”. O campo de conhecimento e o propósito 
do olhar mudam o que se vê, ou seja, a perspectiva transforma 
aquilo que é visto (MIRANDA, 2003, p. 18). 
 
Espaço não é independente de ações, as relações entre os vários modos 
de ser o constituem, mantendo-o em transformação contínua. Banana (2012) faz 
um paralelo entre o espaço absoluto/individual com o espaço 
plural/compartilhado, onde parte-se da perspectiva que o espaço não é passivo, 
nem um receptáculo onde o corpo se coloca para apresentar, salientando que o 
contexto do “onde” é muito importante. Espaço se constrói por suas ações e pelo 
que há nele fisicamente, ele significa-se em lugar a partir daquilo que o compõe 
e que o transforma. 
Araújo e Porpino (2018) aprofundam-se no entendimento da arquitetura 
para falar do espaço em dança, ainda pensando na relação de afetação entre o 
 15 
espaço físico e o comportamento individual, elas pensam na construção física 
do espaço, onde se prioriza a funcionalidade espacial, o uso do espaço absoluto 
como visto nos termos de Banana (2012), e a construção simbólica do espaço, 
onde se preenchem significados, percursos capazes de modificar espaços 
urbanos para além da utilidade. 
 
Dentro das cidades, o nômade pode colocar-se enquanto 
urbanista errante, aquele que faz prevalecer as vivências e 
apropriações dos seus devidos atalhos para criação de um 
espaço novo, mesmo que este permaneça fisicamente intacto 
(ARAÚJO e PORPINO, 2018, p. 327). 
 
Se, segundo Bauman (2001), espaço vazio é um espaço sem significados 
– não se tratando de ser vazio por não ter significado – e por ser resistente a isso 
não existe a necessidade de negociar as diferenças fora dos acordos, estes 
podem ser espaços de errância, espaços de investigação. Araújo e Porpino 
(2018) tratam a construção física de acordo com o sedentarismo, como algo 
“cheio”, um espaço absoluto e fechado em si, e a construção simbólica de acordo 
ao nomadismo, como algo “vazio” a quem está enraizado no conceito do 
sedentarismo. Neste trabalho, espaço vazio acaba fazendo-se importante por 
ser a zona onde desconstrói-se o espaço absoluto e abre-se a proposta de 
investigação para além de uma funcionalidade. 
 
Sabemos que cada ser humano percebe o mundo por meio de 
lentes únicas, dependendo de suas sensações, inserções 
sociais, pertencimento cultural, informação e acuidade do seu 
próprio olhar para “ver”. O campo de conhecimento e o propósito 
do olhar mudam o que se vê, ou seja, a perspectiva transforma 
aquilo que é visto (MIRANDA, 2003, p. 18). 
 
2.2 Espaço em uma concepção de dança 
 
 A partir de uma perspectiva pelos estudos de Laban, no que é considerada 
a categoria espaço, Miranda (2003) explica: 
 
[...] Nela, encontra-se a investigação da arquitetura móvel do 
corpo em associaçãoàs numerosas tensões espaciais, entre as 
quais: as tensões das linhas unidimensionais; as tensões 
bidimensionais, que combinam uma tensão espacial 
predominante e uma secundária, formando planos; as 
espiraladas, que no cubo, por exemplo, aglutinam três tensões 
 16 
esforço-espaciais diferentes em proporções iguais; e os feixes 
de inclinações em outros poliedros, como no icosaedro e no 
dodecaedro. (MIRANDA, 2003, p. 25) 
 
A partir da referência citada, compreende-se o corpo enquanto um suporte 
de possibilidades de movimento que se configura e reconfigura a todo instante, 
enquanto um espaço próprio e como interferência nos lugares que habita. Um 
corpo que estabelece uma relação de troca com o ambiente. Banana (2001) traz 
as palavras “potência”, que se trata da condição pré-estabelecida e imutável de 
algo ser, uma noção de que aquilo tem todas as condições para tornar-se 
determinada coisa e a partir desta etapa é o que se tornou e pode existir 
usufruindo daquilo que está ali; e “possibilidade”, trazendo a abertura que este 
termo já implica por si só, deixando espaço para ressignificações. 
Espaço não é independente de suas ações, as relações entre os vários 
modos de ser o constituem, mantendo-o em transformação contínua. Banana 
(2012) faz paralelo entre o espaço absoluto/individual com o espaço 
plural/compartilhado, o qual parte da perspectiva de que o espaço não é passivo, 
nem um receptáculo onde o corpo se coloca para apresentar, salientando que o 
contexto do “onde” é muito importante. Espaço se constrói por suas ações e pelo 
que há nele fisicamente, ele significa-se em lugar a partir daquilo que o compõe 
e que o transforma. 
Um espaço não se trata de uma potência, não é caracterizado pela 
capacidade do devir, é aberto a possibilidades, configura-se pela ação/ intenção, 
é mutável e imprevisível. As ações corporais criam rotas e figuras no espaço, 
ressignificando a funcionalidade da arquitetura (ARAÚJO; PORPINO, 2018). A 
memória corporal entra em diálogo com o gesto despertado pelo espaço utilitário, 
criando um repertório de movimentos expandido. 
 
 
 17 
3 PROCESSO DE CRIAÇÃO 
 
 O processo de criação prática deste trabalho começou com 
procedimentos de experimentação pré-estabelecidos a partir de palavras-chave 
e conceitos sucintos da análise sobre lugar êmico, lugar fágico, não-lugar e 
espaço vazio trazidos por Bauman (2001). Todos com investigações a partir da 
composição em tempo real, com estruturas de orientação mínima e sob 
condições específicas para a escolha e execução no espaço físico, atento para 
a escuta da arquitetura e da relação eu-outro em cena e fora dela. 
 
3.1 Lugares outros: vivências e apreciações 
 
Residência Núcleo Mirada 
 
Na residência Cidades Coreográficas, oferecida pelo Núcleo Mirada, a fim 
de fornecer ferramentas para os participantes a partir de procedimentos de 
criação do espetáculo Resquícios Brutos. A primeira parte da aula vinha com 
procedimentos com danças e balanço que em determinado ponto chegava em 
um ritmo coletivo, despertando o máximo de movimento e deixando o olha e a 
escuta para o outro ativa. Na etapa de investigação das articulações começamos 
a partir desses movimentos para ocupar espaços em um fluxo contínuo e 
coletivo, entendendo estas passagens por entre corpos, através do toque 
deveríamos levar uma parte do corpo de alguém ao chão, a pessoa, por sua vez, 
voltava ao nível alto de imediato, sempre mantendo o fluxo e ativando as 
percepções. 
Essa etapa se reverberou até que estivéssemos distribuído em trios, onde 
a dinâmica permanecia, criando um lugar de diálogo mais íntimo, estabelecido 
pelo contato e pela escuta ativa. Chegando ao momento em que, ao voltar para 
o coletivo, a ideia era tentar trocar alguém, que deveria desviar, e deixar o 
movimento seguir a mesma direção, “contentando-se” com a frustração de não 
alcançar, até o momento em que o procedimento avançava ao “sucesso" do 
toque no qual uma pressão deveria ser gerada. Entre esses procedimentos 
houve uma etapa de afastamento entre o grupo, onde toques eram estímulos 
que reverberavam em movimentos fortes e expansivos. 
 18 
No segundo dia de residência, logo após as preparações de corpo, 
tínhamos a tarefa de, em trios novamente, “derivar" no espaço interno ou externo 
ao local em que estávamos, criando um procedimento de base e colocando em 
prática abertos à imprevisibilidade do ambiente. No trio em que estive, 
caminhamos pelas ruas próximas ao teatro e uma pessoa deveria escolher um 
lugar para se posicionar e fechar os olhos, a segunda descreveria o ambiente ao 
redor e a terceira observaria. 
Essa vivência enriqueceu muito meu trabalho de corpo para o 
entendimento do processo do espaço coletivo e entendimento de maneiras de 
investigar a partir da reverberação do que é viver no contexto de uma grande 
cidade, com atravessamentos de corpos que não criam um lugar de permanência 
ou que estabelecem relações que ressignificam a noção do civil no espaço 
compartilhado. 
 
Objetos coreográficos 
 
A exposição Objetos Coreográficos que esteve no Sesc Pompeia, com 
curadoria da Forsythe Produções e colaboração de Veronica Stigger, apresentou 
instalações feitas a partir do trabalho de Willian Forsythe, unindo elementos de 
artes visuais e dança, que convocavam o público a mover-se, funcionando como 
modelos para o aumento da percepção da mobilidade do corpo (STIGGER, 
2019). Pude observar a construção de objetos e trajetos pelo movimento, 
estabelecendo articulações e membros relacionados a estruturas para traçar 
pontos, linhas e retas independentes da arquitetura do ambiente. 
 
Desvios tático-estratégicos para sobreviver à vida urbana 
 
Ao apreciar o espetáculo Desvios tático-estratégicos para sobreviver à 
vida urbana do Grupo Três em Cena, que acontece em espaços públicos 
refazendo o uso deles, a partir da investigação da escada pela característica 
utilitária de deslocamento entre planaltos. Observação esta que se fez 
importante para entender a reconfiguração da utilidade do espaço e a técnica de 
transição entre os suportes com estruturas semelhantes à escada, além do 
entendimento entre níveis. 
 19 
 
3.2 Processos de criação: composição e construção da cena 
 
A base da criação e composição do trabalho se pauta, principalmente, na 
composição em tempo real e na disposição e imprevisibilidade do espaço. 
 
Espaço líquido e lugar êmico: residência CRD 
 
Durante o primeiro semestre de 2019, fui residente no Centro de 
Referência da Dança da cidade de São Paulo, onde durante cinco meses pude 
trabalhar sozinha em cima dos meus processos criativos. Diante da dificuldade 
de trazer um trabalho de corpo através de referências onde predominavam 
espaços compartilhados e análise a partir da relação entre indivíduo/espaço/ 
indivíduo, surgiu a necessidade de trazer outra pessoa para a composição. Esse 
lugar foi preenchido pelo bailarino Vitor Silva Luciano, também aluno da 
Faculdade Paulista de Artes. 
 
Fonte: acervo pessoal. 
 
Procedimento: Os procedimentos iniciais pautaram-se, principalmente, nas 
palavras “passagem” e “permanência”. O termo permanência surgiu para tratar 
do espaço em que se habita, partindo da memória corporal de gestos em lugares 
por mim habitados, durante as primeiras experimentações eram utilizados 
círculos de papelão para predefinir esses espaços de permanência. Com as 
delimitações feitas, tudo fora delas eram eixos de circulação, onde aparecia a 
palavra passagem. 
 20 
A proposta inicial era que, nos eixos de circulação, o trajeto fosse feito por 
uma caminhada onde o espaço entre os corpos começaria a diminuir até abrir a 
possibilidade para que acontecessem esbarrões. Estes iniciaram a partir do 
gesto, como ele é e como reverberaria em movimentos expandidos trazendo a 
reconfiguração em um andar dançante. Os espaços delimitados pelo círculo 
deveriam ser ocupadosde forma a explorar gestos presentes na memória 
corporal a partir do que fosse remetido pela condição física do espaço, como 
círculos pequenos e grandes, ocupados com uma cadeira ou algum objeto 
pequeno. 
 
Ao contrário da visão difundida da dança enquanto arte que 
implica maior movimento do que actos da vida quotidiana, de 
acordo com as leis da tradição, trata-se, inversamente, de uma 
arte da subtracção que oferece um leque restritivo de motivos 
autorizados, como afirma Laban (LOUPPE, 2012, p. 119). 
 
Dentro da experiência de compor em tempo real, regras foram se 
configurando organicamente. As regras mais evidentes foram a repetição e os 
sequenciamentos de gestos, ambas surgiam em uma correlação entre si, onde 
a primeira se fazia necessária para explorar o maior número de possibilidades 
possível e, como consequência, sequenciamentos surgiam sem 
necessariamente tornar-se uma ordem específica de movimentos, criando uma 
desordem contínua e transformando gesto em movimento, estes que podiam 
retornar ao lugar de origem ou não. 
No decorrer da experiência os corpos começaram a se tornar interferência 
entre si, ocupando as delimitações de permanência e criando uma interação que 
ia desde composições dependentes exclusivamente do olhar para perceber as 
mudanças de movimentação do outro até o contato físico, que podia ir desde os 
esbarrões iniciais ao ato de segurar e manter um toque mais denso. 
 
Como agentes de composição e leitura de um projeto 
arquitetônico, foram analisados como esses elementos são 
definidores espaciais, podendo marcar acessos, delimitar 
lugares, interferir na escala (visual e humana) e ditar 
ordenamentos (eixo, simetria, hierarquia, ritmo, repetição, 
transformação) (NOGUEIRA, 2012, p. 32). 
 
A escolha de pensar esta etapa como lugar êmico parte da percepção do 
esvaziamento de identidade e o propósito de evitar estranhos, como Bauman 
 21 
(2001) traz. Transforma-se em espaço líquido pelo fato das investigações de 
permanência possuírem essa característica não fechada que se transforma a 
todo instante. 
 
Espaço físico: integração e escuta 
 
A ideia da exploração do espaço físico partiu da noção do espaço absoluto 
a partir da sensação do estado de corpo que gerava uma relação de 
movimentações pela cinesfera reduzida, pautado nos lugares habitados, sendo 
escolhido para este momento a vivência em transporte público. 
Ainda com o auxílio das bolinhas, foram feitas alguns círculos de 
delimitação com extensão reduzida, em cada espaço em que me posicionasse 
deveria escolher um gesto a partir da memória corporal gerada pela vivência no 
transporte público cheio de outros indivíduos, onde a relação espacial diminuta 
interferia na tensão e intenção de corpo, esse gesto seria explorado para além 
de sua execução pura e podendo ser intercalado com os outros gestos na 
medida em que eu fosse transitando pelas delimitações. 
 
Procedimento: Proposto pela professora Paula Salles, a partir da ideia anterior, 
o procedimento de integração ao espaço físico deu-se pela escolha de um canto 
da arquitetura do prédio da faculdade. O final de um corredor onde, além da 
parede no limite dele, em uma lateral havia um armário de metal e na outra o 
final do batente de uma porta. Ao iniciar a investigação de corpo nesta 
delimitação o contato total com o espaço foi inevitável e, assim, surge o 
mapeamento pelo corpo: utilizando a extensão dos membros e as articulações 
para regular os posicionamentos, comecei a mapear a estrutura física do lugar, 
como a distância entre o batente e o armário, a largura do batente, a mobilidade 
da porta do armário mais próxima, a distância do ponto mais alto do meu corpo 
até o chão, e assim por diante. 
De olhos fechados, e contando apenas com o tato, começaram a surgir 
as segmentações de coluna mais acentuadas, que serviam de ponto de partida 
para a transição entre níveis, movimentando a cinesfera pessoal em relação a 
delimitação espacial. 
 
 22 
Lugar fágico: eu-outro, interferências e imprevisibilidade do espaço 
alternativo 
 
 Com a alternativa de diminuir a quantidade de estímulos e delimitar um 
espaço menor – em comparação ao primeiro procedimento, onde uma sala de 
ensaio inteira era usada – a composição começa a moldar suas características 
minimalistas e se consolidar em sua dramaturgia. 
 
Procedimento: Com um canto delimitado de uma sala de ensaio, trago a 
proposta do procedimento lugar fágico, a partir do que fora refletido por Bauman 
(2001), o conceito de mastigar uma parte de um indivíduo para fazê-lo moldar-
se a maneira de quem o mastiga se dá pelo convite do bailarino Vitor a juntar-se 
neste experimento sem dar instruções como nas primeiras investigações, com a 
única orientação de que a cena partiria de uma caminhada. A partir daí ele – 
mesmo sem ter consciência explícita disto – estaria livre para ditar as regras a 
partir da noção de um lugar não-civil, eu deveria aceitar a influência que o corpo 
dele influenciaria, meus movimentos seriam em boa parte pautados na 
interferência dele no espaço e um jogo de repetição de gestos criados a partir 
disso seria iniciado até dar abertura a movimentos expandidos. 
Esse lugar não-civil transformou-se em civil no decorrer do experimento, 
com a criação de um diálogo entre os corpos dando abertura para interações 
que evidenciavam singularidades de cada indivíduo. Chegando a interações com 
contato, passando por investigações de peso e contrapeso, apoios, transição 
entre níveis, suspensões, – tanto entre os corpos quanto entre corpo e estrutura 
física do espaço – transformando as cinesferas individuais e as fazendo cruzar 
entre si. 
Os gestos iniciais nessa improvisação sempre partem da acentuação do 
movimento gerado pela disposição espacial utilitária, reconfigurando-se e se 
acumulando a outros gestos, criando e recriando sequenciamentos que podem 
se repetir ou desmanchar para dar início a um novo. 
 
Outra perspectiva digna de interesse é encontrada nas 
improvisações de Karine Waehner e implica a desnaturalização 
dos movimentos quotidianos, abrandando-os e conferindo-lhes 
uma resistência no espaço, criando uma experiência diferente e 
não mimética do gesto (LOUPPE, 2012, p. 125). 
 23 
 
Depois de um certo período neste “jogo”, o bailarino utiliza as bolinhas de 
papelão para fazer uma ou mais delimitações, onde fico sozinha para explorar 
os movimentos que surgiram até então e tendo a liberdade de criar novos, 
delimitações essas que se transformam no um espaço líquido pessoal construído 
pela vivência gerada nas investigações do início do processo. 
 
A dança como técnica do corpo, segundo a expressão de Mauss, 
mas também como arte, consiste, segundo a antropóloga Judith 
Lynne Hanna, num sistema de classificação do movimento, num 
conjunto cumulativo de regras ou num leque de motivos 
automotores autorizados (LOUPPE, 2012, p. 119) 
 
Ao apresentar o termo arquitetônico “errância”, Araújo e Porpino (2018) 
interligam-no, de modo que o conceito se relaciona às condições atuais do 
espaço, a noção de que a improvisação em dança ocorre no ato em que se 
apresenta ao público. Ainda explorando o caráter de imprevisibilidade, 
possibilidade e probabilidade do espaço, apresentado por Banana (2012), neste 
trabalho a característica errante da improvisação em dança dialoga com o 
espaço físico que é escolhido para acontecer. Neste ponto surge a escolha de 
não levar a composição para a caixa cênica e sim para espaços alternativos com 
as seguintes condições: espaços abertos à passagem de qualquer indivíduo e 
que possua uma estrutura física vertical e horizontal, esta que possa ser usada 
a partir da relação de base de um apoio ou suporte. 
 
Ana Caroline Recalde e Vitor Luciano na Praça Ramos de 
Azevedo. 
Fotos: L.W Fotos 
 24 
Ainda pela lógica de um jogo, os pontos delimitados pelas bolinhas 
indicam a cinesfera a partir do momento emque o corpo está dentro de um deles: 
em delimitações menores os membros superiores ganham expansividade em 
troca da diminuição da cinesfera dos membros inferiores, em círculos maiores a 
regra inverte. E, além disso, as investigações feitas antes da colocação dos 
pontos aparecem neles dentro de adaptações necessárias construídas em 
tempo real. 
As escolhas finais encaram o espaço público como uma caixa cênico 
aberta, onde os corpos estão à mercê das condições arquitetônicas e das 
interferências imprevisíveis ocorrendo em tempo real onde, a partir da escuta se 
estabelece um relação entre corpo, movimento e espaço. 
 
 25 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Uma construção arquitetônica interfere nas escolhas de comportamento 
e nas relações entre indivíduos, sob uma perspectiva do movimento em lugares 
não-civis os corpos traçam um caminho para construir um espaço que pode não 
ser civil, em uma cinesfera diminuta estabelecendo uma relação com a 
verticalidade, ou construindo um trajeto transformando a utilidade arquitetônica, 
ampliando a cinesfera, criando um lugar de permanência e diálogo, 
ressignificando não-lugares e transformando as configurações para a qual a 
estrutura física foi construída, numa transição entre o que é individual e coletivo. 
A imprevisibilidade do espaço em conjunto com a arquitetura transita entre 
a passagem e a permanência, criando um lugar de composição em tempo real 
onde os combinados são implícitos entre quem está na vivência e estabelece 
uma discussão de relação, troca e escuta. 
 26 
REFERÊNCIAS 
 
ARAÚJO, Janine Leal; PORPINO, Karenine de Oliveira. A construção do 
espaço pelos significados: a improvisação enquanto errância. V Congresso 
Nacional de Pesquisadores em Dança. Manaus: ANDA, 2018. p. 323-334. 
BANANA, Adriana. Trishapensamento: Espaço como uma previsão 
meteorológica. Belo Horizonte: Clube Ur=Hor, 2012. 
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de 
Janeiro: Zahar, 2001. 
FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo movimento. Tradução: Daisy A. C. 
Souza. São Paulo: Summus, 1977. 
LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Tradução: Rute Costa. 
Lisboa: Orfeu Negro, 2012. p. 113-135 
MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Disponível em: 
<https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/>. Acesso em: 01 out. 2019. 
MIRANDA, Regina. Corpo-Espaço: Aspectos de uma geofilosofia do corpo em 
movimento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. 
MUNDIM, Ana Carolina. Dramaturgia do corpo-espaço e territorialidade. 
Uberlândia: Composer, 2012. 
STIGGER, Veronica. Willian Forsythe: objetos coreográficos. São Paulo: Sesc 
Pompéia, 2019.