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Prévia do material em texto

Coleção 
Educação: Experiência e Sentido 
Jorge Larrosa 
Tremores 
Escritos sobre experiência 
Troduçõo 
Cristina Antunes 
João Wanderley Geraldi 
autêntica 
 
Copyright © 2014 Jorge larrosa 
Copyright © 2014 Autêntica Editora 
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicaç�o poderá ser 
reproduzida, seja por meios mecanicos, eletrOnicos, se1a via cópia xerográfica, sem a autorizaçao 
prévia da Editora. 
COORDENADORES DA COLEÇÃO 
EDUCAÇÃO: EXPERitNCIA E SENTIDO 
Jorge Larrosa 
Walter Kohan 
EDITORA RESPONSÁVEL 
Rejane Dias 
REVISÃO 
Dila Bragança de Mendonça 
Lívia Martins 
CAPA 
Alberto Bittencourt 
DIAGRAMAÇÃO 
Jairo Alvarenga Fonseca 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil) 
Larrosa, Jorge 
Tremores : escritos sobre experiência I Jorge Larrosa ; traduçao 
Cristina Antunes, Joao Wanderley Geraldi. .. 1. ed. -·Belo Horizonte : 
Autêntica Editora, 2014.-(Coleçao Educaçao: Experiência e Sentido) 
ISBN 978·85-8217-437-1 
1. Educaçao • Filosofia 2. Educadores • Formaç�o 3. Experiências 
4. Pedagogia 5. Professores • Formaçao I. Titulo. 11. Série. 
14-06641 
CDD-370.7 
lndices para catálogo sistemático: 
1. Educadores : Experiências : Educaç�o 370.7 
GRUPO AUT�NTICA Ô 
Belo Horizonte 
Rua Aimorés, 981, 8° andar . Funcionários 
30140-071 . Belo Horizonte . MG 
Tel.: (55 31) 3214-5700 
Televendas: 0800 283 13 22 
www.grupoautentica.com.br 
São Paulo 
Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, 
Horsa I . 23° andar, Conj. 2301 . Cerqueira 
César . 01311-940. sao Paulo . SP 
Tel.: (55 11) 3034-4468 
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO 
A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escri­
tura. Digamos, com Foucault, que escrevemos para transformar 
o que sabemos e não para transmitir o já sabido. Se alguma 
coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de 
escritura, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos 
de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos 
para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo. 
Também a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido 
à educação. Educamos para transformar o que sabemos, não para 
transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a educar é a 
possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em 
gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a 
deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além 
do que vimos sendo. 
A coleção Educação: Experiência e Sentido propõe-se a tes­
temunhar experiências de escrever na educação, de educar na 
escritura. Essa coleção não é animada por nenhum propósito 
revelador, convertedor ou doutrinário: defmitivamente, nada a 
revelar, ninguém a converter, nenhuma doutrina a transmitir. 
 
(ouç.lo ·�: ExPw!NcJA E Se<roo• 
que em filosofia, e não só em filosofia, quando a questão é estar 
bem informado sobre o caráter sensível da língua, quando se 
trata de considerar a língua a partir de sua relação com o corpo e 
com a subjetividade, frequentemente se apela a noções que têm 
a ver com a oralidade, com a boca e com a língua, com o ouvido 
e com a orelha, com a voz. E aí não se trata da diferença entre 
fala e escrita, mas sim da diferença entre distintas experiências 
da língua, incluindo o ler e o escrever. A oralidade a que me 
refiro não se opõe à escrita, mas, ao contrário, atravessa toda a 
linguagem, como se a escrita tivesse sua própria oralidade, como 
se fosse possível traçar diferenças entre tipos de escrita segundo 
suas diversas formas de oralidade. A voz é a marca da subjetividade 
na experiência da linguagem, também na experiência da leitura e 
da escrita. Na voz, o que está em jogo é o sujeito que fala e que 
escuta, que lê e que escreve. A partir daqui se poderia estabelecer 
um contraste entre uma língua com voz, com tom, com ritmo, 
com corpo, com subjetividade, uma língua para a conversação ... e 
uma língua sem voz, afônica, átona ou monótona, arrítmica, uma 
língua dos que não têm língua, uma língua de ninguém e para 
ninguém, que seria, talvez, essa língua que aspira a objetividade, 
a neutralidade e a universalidade e que tenta, portanto, o que foi 
apagado de todo traço subjetivo, a indiferença tanto no que se 
refere ao falante/escritor quanto no que se refere ao ouvinte/leitor. 
E o que quero dizer a você, por último, é que necessitamos 
de uma língua na qual falar e escutar, ler e escrever seja uma ex­
periência. Singular e singularizadora, plural e pluralizadora, ativa, 
mas também pessoal, na qual algo nos aconteça, incerta, que não 
esteja normatizada por nosso saber, nem por nosso poder, nem por 
nossa vontade, que nunca saibamos de antemão aonde nos leva. 
Gostaria de conversar com você. 
72 
CAPITUL04 
Ferido de realidade e em busca 
de realidade. Notas sobre as 
linguagens da experiência1 
Tradução de Cristina Antunes 
Isso é só o que hoje podemos te dizer, 
o que �1ão somos, o que não queremos. 
Eugenio Montale 
Mas o que 
mas como 
mas de que outro modo 
com que cara 
continuar vivo 
prosseguir. 
Idea Vilariõo 
Há só cada um de nós, como uma cave. 
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora: 
e um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse 
que nunca é o que se vê quando se abre a janela. 
Fernando Pessoa 
1 Publicado em: CONTRERAS, José; LARA, Nuria Pérez de (Eds). Investi­
gar la experienda educativa. Madrid: Mora ta, 2010. 
73 
 
Cafç.l,o •Eooo.ç.lo: �E S<Nroo• 
O não e o talvez 
A palavra "experiência" serviu a muitos de nós para 
elaborar uma distância a respeito do que poderíamos chamar 
de "a ordem do discurso pedagógico", esta ordem que está 
feita de modos de dizer e de pensar (e de olhar e de escutar, 
e de ler e de escrever, e de fazer e de querer) nos quais não 
podemos nos reconhecer. A palavra "experiência" nos serviu 
e nos serve para nos situar num lugar, ou numa intempérie, a 
partir da qual se pode dizer não: o que não somos, o que não 
queremos. Mas nos serviu também para afirmar nossa vontade 
de viver. Porque se a experiência é o que nos acontece, o que 
é a vida senão o passar do que nos acontece e nossas torpes, 
inúteis e sempre provisórias tentativas de elaborar seu sentido, 
ou sua falta de sentido? A vida, como a experiência, é relação: 
com o mundo, com a linguagem, com o pensamento, com os 
outros, com nós mesmos, com o que se diz e o que se pensa, 
com o que dizemos e o que pensamos, com o que somos e o 
que fazemos, com o que já estamos deixando de ser. A vida 
é a experiência da vida, nossa forma singular de vivê-la. Por 
isso, colocar a relação educativa sob a tutela da experiência (e 
não da técnica, por exemplo, ou da prática) não é outra coisa 
que enfatizar sua implicação com a vida, sua vitalidade. Mas 
como? E sobretudo de que outro modo? 
Fazer soar a palavra "experiência" em educação tem 
a ver, então, com um não e com uma pergunta. Com um 
não a isso que nos é apresentado como necessário e como 
obrigatório, e que já não admitimos. E com uma pergunta 
que se refere ao outro, que encaminha e aponta em direção 
ao outro (para outros modos de pensamento, e da lingua­
gem, e da sensibilidade, e da ação, e da vontade), porém, 
sem dúvida, sem determiná-lo. Só porque ainda queremos 
continuar vivos, prosseguir. E porque ainda intuímos, ou 
acreditamos intuir, um além de. Um além desse sótão que 
nos aprisiona, mas do qual sabemos que não será nunca o que 
74 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
acreditamos que poderia ser. É preciso abrir a janela. Porém, 
sabendo que o que se vê quando a janela se abre nunca é o 
que havíamos pensado, ou sonhado, nunca é da ordem do 
"pre-visto". Por isso a pergunta sobre "de que outro modo" 
não pode ser outra coisa que uma abertura. Para o que não 
sabemos. Para o que não depende de nosso saber nem de 
nosso poder, nem de nossa vontade. Para o que só pode se 
indeterminar como um quem sabe, como um talvez. 
Deixar que a palavra "experiência" nosvenha à boca (que 
tutele nossa voz, nossa escrita) não é usar um instrumento, 
e sim se colocar no caminho, ou melhor, no espaço que ela 
abre. Um espaço para o pensamento, para a linguagem, para a 
sensibilidade e para a ação (e sobretudo para a paixão). Porque 
as palavras, algumas palavras, antes que se desgastem ou se fos­
silizem para nós, antes de permanecerem capturadas, também 
elas, pelas normas do saber e pelas disciplinas do pensar, antes 
que nos convertam, ou as convertamos em parte de uma dou­
trina ou de uma metodologia, antes que nos subordinem, ou 
as subordinemos a esse dispositivo de controle do pensamento 
que chamamos "investigação", ainda podem conter um gesto 
de rebeldia, um não, e ainda podem ser perguntas, aberturas, 
inícios, janelas abertas, modos de continuar vivos, de prosseguir, 
caminhos de vida, possibilidades do que não se sabe, talvez. 
Com que cara 
O poema da Idea Vilariiio não só se interroga por quê, 
como ou de que outro modo (continuar vivo, prosseguir) 
como também se pergunta com que cara. Porque, como 
disse Ferlosio, a cara é o espelho da alma se não é, clara e 
simplesmente, a alma, ou para dizer ainda mais claramente, 
a pessoa.2 E como nos ensinou Gombrowicz, as caras se con­
vertem muito rapidamente em aparências, fachadas, em caras 
1 FERLOSIO, R. S. E/ alma y la vergiiwza. Barcelona: Destino, 2000. 
75 
 
Cot.eç.i.o •EDUCAÇÃO: � E SENTOO• 
de pau, em caras duras, em máscaras rígidas, de papier machê, 
congeladas em uma careta i móvel e grotesca. 3 Sabemos com 
que facilidade as relações inter-humanas (essas que se dão, ou 
deveriam se dar, cara a cara) se transformam em mascaradas 
quando as caras se acartonam em posições mais ou menos 
institucionalizadas. Além disso, tanto Ferlosio quanto Gom­
browicz, ainda que em registros muito diferentes, insistiram em 
assinalar a voz, junto com o rosto, como os lugares essenciais 
de singularização humana. E também da experiência humana, 
porque às vezes a nossa voz falha ou nossa cara se decompõe. 
Os pedagogos, os que falam ou escrevem sobre educa­
ção, fizeram cara de especialistas, de experts, de sacerdotes, de 
políticos, de técnicos, de pregadores, de professores, de pes­
quisadores, de funcionários, ou de uma mistura de tudo isso. 
Por isso falam (e escutam, e leem, e escrevem) na qualidade 
de especialistas, ou experts, ou sacerdotes, ou políticos ... sem 
mostrar a cara. Ou seja, impostando uma voz de técnicos, 
ou de pregadores, ou de professores, ou de pesquisadores, 
ou de funcionários ... que nunca treme. 
Por isso, nosso não às formas que configuram "a ordem 
do discurso pedagógico" é também um não a todas essas 
caras acartonadas, a todas essas vozes impostadas. Porque não 
queremos fazer caras como essas, não queremos que saiam de 
nós essas vozes. Então, com que cara vamos seguir adiante? 
Qual é a cara viva, estremecida, com a qual possamos aftrmar 
a vida? Com que cara encarar o que nos acontece? Qual é a 
voz viva, trêmula, balbuciante que corresponde a essa cara, 
qual é a língua que lhe convêm? 
Ferlosiana 
Falava Ferlosio do indigno comércio psicológico entre 
padres e professores sobre a alma dos meninos. E dizia que 
' Ver, por exemplo, GOMBOWICZ, W. Ferdydurke. Barcelona: Edhasa, 1984. 
76 
Ferido de reolidode e em busca de reolidode 
ficava arrepiado só de imaginar uma mãe dizendo a uma 
professora: "é que meu Luisito é muito introvertido".4 E isso 
porque o bom Rafael não havia assistido nunca ao opressivo 
espetáculo de uma professora dissertando, numa reunião de 
pais, sobre "a criança nesta idade". Pois bem, outro dia, em 
uma reportagem sobre as reformas universitárias, aparecia 
um grupo de estudantes de psicologia de uma célebre uni­
versidade catalã interpretando desenhos de crianças. Desses 
em que as crianças têm de desenhar sua família. E no limbo5 
nos perguntamos por que tanto empenho em que essas po­
bres crianças indefesas desenhem sua família. Que tipo de 
curiosidade mórbida inspirará uma petição semelhante. Mas 
ali estão eles, aprendendo a arrogância e a estupidez própria 
de seu grêmio, olhando atentamente os desenhos que seu 
professor projetava para eles, impostando a voz, compondo a 
cara, dando-se importância, dogmatizando descaradamente 
e sem nenhum pudor sobre qual era o significado das cores, 
dos tamanhos, das roupas, das cabeças e das extremidades das 
crianças, de seus pais e de seus irmãos. E vai saber que tipo 
de diagnósticos eles fazem e como os usam para aborrecer 
impunemente, por seu próprio bem, as crianças e muitas 
vezes também os pais. Além do mais, são tão covardes que 
só se atrevem a fazer essas patifarias com as crianças e com 
outros seres precários, dependentes, vulneráveis e, certa­
mente, desafortunados. Sobre os quais se pode discursar com 
toda tranquilidade e com total impunidade. E aos que, sem 
dúvida, não se atreveriam a lhes dizer essas coisas na cara. 
Sua cara deveria cair de vergonha, se tivessem vergonha. 
Deveriam aparecer bolhas na sua língua, se tivessem língua. 
' FERLOSIO, R. S. Pedagogos pasan, ai infierno vamos. ln: La !rija de la 
guerra y la madre de la pátria. Bercelona: Destino, 2002, p. 115. 
1 Esta Ferlosiana foi escrita para um programa de rádio que se chamava "Pa­
lavras desde o limbo", concretamente para uma seção intitulada "Esta nossa 
civilização é de assustar, cara". 
77 
 
Úllf(ÃO ·�:�e SeNroo" 
E o fato é que antes as crianças eram mo
lestadas pelos padres, 
que tinham muito poder e que se acr
editavam possuidores 
da verdade. Mas agora são molestados 
pelos psicólogos, que 
também têm muito poder e também 
se creem na posse da 
verdade, porém são muito mais traiç
oeiros. E esta nossa 
civilização é de assustar, cara. 
O corpo docente segundo Gombrowicz 
Quando o diretor da escola escolhe um corpo para fazer 
parte do corpo docente toma muito cuidado para que não seja 
um corpo simpático, normal e humano, mas sim um corpo 
pedagógico, quer dizer, profunda e perfeitamente enfadonho, 
estéril, obediente e abstrato. Embora, sem dúvida, o corpo 
docente dessa escola esteja coroado pelas melhores cabeças 
da capital: nenhuma delas tem um só pensamento próprio. 
E se o tivesse, tanto o pensamento quanto o pensador seriam 
imediatamente validados. Esses mestres são perfeitos alunos 
e por isso são altamente eficazes em seu ofício de "alunizar" 
a qualquer um que lhes apareça pela frente.6 
Animais 
O enorme rinoceronte se detém. Levanta a cabeça. 
Recua um pouco. Vira para um lado e investe como um 
aríete, com um só chifre de touro blindado, enraivecido e 
cego, em arranque total de investigador positivista. Nunca 
acerta o alvo, mas sempre fica muito satisfeito com sua razão, 
com sua metodologia, com seus resultados e com sua força.7 
• Elaborado para o limbo a partir do
 capítulo segundo do Ftrdydurkt, de 
GOMBROWlCZ (1984). 
' Também para o limbo, trata-se de um
a variação a partir de uma das peças 
do Bestiário, de Juan José ARREOLA. M
éxico: Joaquim Mariz, 1972. 
78 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
Palavras vazias 
É um tempo em que no espaço, no 'éter', só se ouve 
o zumbido, o silvo, o troar dos diáJogos. Em todos os 
canais se ouve continuamente o estampido da palavra 
"diálogo". Segundo as últimas pesquisas da pesquisa 
dialogal, uma disciplina que acaba de receber certidão 
de naturalização e que se vangloria de haver adquirido 
com muita rapidez uma multidão de seguidores, a pa­
lavra "diálogo", e não só nos meios de comunicação, 
nos sínodos interconfessionais e nas sínteses filosóficas, 
nesses momentos é mais frequente que "sou", "hoje", 
"vida" (ou "morte), "montanha" (ou "vale"), "pão" (ou 
"vinho"). Inclusive nos passeios dos presidiários pelo 
pátio da cadeia, com frequência "diálogo" é menciona­
do mais vezes do que, por exemplo, "merda", " foder" 
ou "a buceta de sua mãe". E, do mesmo modo, nos 
passeios vigiados dos internos em um manicômio, ou 
dos idiotas, está comprovado que "diálogo" é uma 
palavra pelo menos dez vezesmais frequente do que, 
por exemplo, "homem da lua", "maçã" (ou "pera"), 
"Deus" (ou "Satanás"), "medo" (ou "comprimidos"). 
Em um contínuo diálogo estão inclusos os três ou 
quatro camponeses que ainda restam, separados sempre 
por um dia de viagem, ou pelo menos são apresenta­
dos dialogando sem parar. E dialogando também são 
apresentadas as crianças, até na última imagem dos 
livros ilustrados que foram avaliados pelas autoridades 
competentes para fazer parte da biblioteca da escola.8 
Porém, no limbo, o zumbido estrondoso e mentiroso 
do diálogo ainda não conseguiu acabar com o murmúrio 
vivo e verdadeiro da conversação. 
8 HANDKE, P. La perdida de la imageu, o por la sitrra de Credos. Madrid: Alian­
za, 2003, p. 108-109. 
79 
 
CoiKJ.o "Eouc:Aç.i.O: fmRJ!NO>. E 5ENmo" 
Mais animais 
Fiéis ao espírito de toda aristocracia em d
ecadência, as 
aves de rapina enjauladas ou encurraladas 
observam, a todo 
o momento, o protocolo. No registro d
os poleiros notur­
nos, como em qualquer organismo ofic
ial ou extraoficial, 
cada qual ocupa seu posto por rigorosa
 hierarquia. No alto, 
as águias tortas e de asas quebradas. Um
 pouco abaixo, os 
falcões de bicos sem corte e garras embot
adas. Em seguida, 
os gaviões tristes e desplumados. E abaixo 
de tudo os abutres 
imundos rodeados de moscas. O mesmo que em qu
alquer 
grêmio ou corporação, seja de índole loca
l, nacional, estatal 
ou internacional. Incluídas, naturalmente
, as que têm a ver 
com isso que agora se chama "conhecime
nto".9 
Cantilenas 
Nunca mais voltei a me encontrar com os ho
mens me­
nos possuídos por aquilo que levavam entre 
as mãos do 
que aqueles catedráticos e professores da Un
iversidade; 
qualquer empregado de banco, sim, qualque
r um con­
tando as cédulas, umas cédulas que, além do 
mais, não 
eram suas, qualquer operário que estivesse 
asfaltando 
uma rua, em um espaço quente que havia en
tre o sol, 
acima, e o fervor do alcatrão, abaixo, davam
 a impres­
são de estar mais no que faziam. Pareciam 
dignitários 
cheios de serragem a quem nem a admiração
( ... ], nem 
o entusiasmo, nem o afeto, nem atitude int
errogativa 
alguma, nem a veneração, nem a ira, nem a i
ndignação, 
nem a consciência de estar ignorando algo ja
mais lhes 
fazia tremer a voz, porque, melhor dizendo
, se limita­
vam a ir soltando uma cantilena, a ir cumpr
indo com 
distintos expedientes, a ir medindo frases n
o tom de 
alguém que está antecipando um exame ( ... ]
 enquanto 
9 Ver nota 7. 
80 
Ferido de realidade e em busca de realidade 
lá fora, diante das janelas, se viam tons verdes e azuis, 
e depois escurecia: até que o cansaço do ouvinte, de 
um modo repentino, se convertia em relutância, e a 
relutância em hostilidade.10 
Zambraniana 
Em um texto menor, mas muito formoso, que se chama 
A mediação do mestre, María Zambrano se refere ao instante 
que antecede o gesto de começar a falar em uma sala de aula. 
O mestre, diz Zambrano, ocupa seu lugar, pega talvez alguns 
livros da bolsa e os coloca diante de si e, justamente aí, antes 
de pronunciar qualquer palavra, o mestre percebe o silêncio 
e a quietude da classe, o que esse silêncio e essa quietude têm 
de interrogação e de espera, e também de exigência. Nesse 
momento, o mestre cala um instante e oferece sua presença 
ainda antes de sua palavra. E aí María Zambrano diz o seguin­
te: "Poder-se-ia medir, talvez, a autenticidade de um mestre 
por esse instante de silêncio que precede a sua palavra, por 
esse ter-se presente, por essa apresentação de sua pessoa antes 
de começar a dá-la de modo ativo. E ainda pelo imperceptível 
tremor que o sacode. Sem eles, o mestre não chega a sê-lo 
por maior que seja a sua ciência".11 Antes de começar a falar, 
o mestre tremia. E esse tremor se deriva de sua presença. De 
sua presença silenciosa, nesse momento, e da iminência de sua 
presença no que vai dizer. Isso é, certamente, a voz, a presença 
no que se diz, a presença de um sujeito que treme no que diz. 
E por isso as aulas são, ou foram às vezes, ou poderiam ter 
sido, lugares da voz, porque nelas os alunos e os professores 
tinham que estar presentes. Tanto em suas palavras como em 
seus silêncios. Talvez sobretudo em seus silêncios. 
10 HANDKE, P. Ensaio sobre e/ caiiSando. Madrid: Alianza, 2009, p. 13-14. 
"ZAMBRANO, María. La mediación dei maestro. ln: LARROSA, J.; 
FENOY, S. (Eds.), María ZAMBR.ANO: L'arl deles mediacions (Textos peda­
gogics). Barcelona: Publicacions de la Universitat de Barcelona, 2002, p. 112. 
81 
 
Couç.i.o 'EillJCAC}.o: EXPERJ!NOA E SEN1100' 
É isso 
Entende-se agora que situar o educativo no lugar da 
experiência supõe um não e uma pergunta que é, ao mesmo 
tempo, uma abertura? Entende-se "o que não somos e o 
que não queremos"? E entende-se "com que cara continuar 
vivo"? Soa-lhes familiar isso de falar impunemente do que se 
ignora? Vocês já sabem que as posições discursivas do saber 
e do poder garantem a impunidade e também a imunidade. 
Carlos Skliar escrevia sobre isso dessa forma: "De certo modo 
somos impunes ao falar do outro e imunes quando o outro 
nos fala".12 Lembra-lhes algo isso de falar sem uma só palavra 
ou um só pensamento próprio? O que seria dos professores, 
dos experts e dos pesquisadores se lhes pedissem que dissessem 
o que aprenderam, o que viveram, o que pensaram, e não o 
que lhes foi ensinado? Vocês sabem quem são esses que nunca 
acertam o alvo (como se houvesse um alvo), mas que, sem 
dúvida, estão tão satisfeitos com sua força? E as aves de rapina 
que guardam rigorosamente a hierarquia, vocês sabem onde 
elas habitam? e que linguagem falam (ou grasnam)? Já não 
estão fartos de palavras vazias, de palavras fetiche, de palavras 
palavreadas repetidamente, usadas como moedas falsas, até 
esvaziar seu sentido? Juan Gelman escrevia assim sobre isso: 
[ ... ] "não queremos outros mundos que o da liberdade e esta 
palavra não a palavreamos porque sabemos, depois de muita 
morte, que se fala enamorado e não do amor, se fala claro, 
não da claridade, se fala livre, não da liberdade.''13 Vocês 
escutaram alguma vez esses que falam como que antecipando 
um exame? esses aos quais a voz nunca muda e que nunca 
ficam de cara no chão? Vocês estiveram alguma vez numa 
12SKLIAR, C. Fragmentos de experiencia y alteridade. ln: LARROSA, J.; 
SKLIAR, C. (Eds.). Experiencia y alteridad w ed11cación. RosarioJ Argentina: 
Homo Sapiens, 2009, p. 147. 
"GELMAN,J. Bajo la lluvia ajena (notas ai pie de uma derrota). ln: GELMAN, 
J.; BAY ER, O. Exllios. Buenos Aires: Legasa, 1984, p. 15. 
82 
Ferido de reolidode e em busca de realidode 
classe ou numa conferência na qual nem o que fala, nem os 
que escutam estão presentes? É isso. 
César Vallejo dizia assim: "Quero escrever, mas me sai 
espuma, I quero dizer muitíssimo e me atolo. I [ ... ] Quero 
escrever, mas me sinto puma; I quero me laurear, mas me ace­
bolo".14 E nisso estamos entre o laurel e a cebola, entre o puma 
e a espuma, entre o quero e o porém, nesse entre, nesse atoleiro. 
Falar contra as palavras 
Um dos textos fundadores do que poderíamos chamar 
de a crítica da linguagem é a Carta de Lord Chandos, de Hugo 
Von Hofmmansthal, publicada em 1902. A carta está data­
da de 22 de agosto de 1603, e nela Lord Chandos descreve 
a seu amigo Francis Bacon os sintomas de uma estranha 
enfermidade: "as palavras abstratas, das quais a língua por 
lei natural deve fazer uso para trazer à luz do dia juízos de 
qualquer espécie, se decompunham na boca como fungos 
apodrecidos".15 Porém, o rastro dessa enfermidade atravessa o 
século XX e alcança dimensões de pandemia nessa sociedade 
que chama a si mesma do conhecimento, da informação e 
da comunicação. O que ocorre é que são poucos os que 
perceberam. E é a esses poucos a quem temos de escutar. 
Na mesma cidade e na mesma época em que viveu 
Hofmannsthal, Karl Kraus também se havia dado conta de 
que a linguagem estava enferma, e de que sua podridão não 
14VALLEJO, C. Poemas póstumos. ln: Obra poética. Madrid:Archivos, 1988, 
p. 400. 
"VON HOFMANNSTHAL, H. Una carta (De Lord Plrilip Clrandosa Sir 
Francis Bacon). Valencia: Pre-Textos, 2008, p. 126. A edição que cito, mui­
to formosa, contém seis respostas à carta (de José Luís PARDO, Stefan 
HERTMANS, Clément ROSSET, Esperanza LÓ PEZ PARADA, Higp 
MÚGlCA e Abraham GRAGErtA), além de um prólogo de Claudio 
MAGRIS, um ensaio de Juan NAVARRO BALDEWEG e uma introdu­
ção de José MUNOZ MILLANES. 
83 
 
� •Eruo.ç.�.o: �E SeNroo• 
era diferente da podridão geral. A corrupção linguística, 
pensava Kraus, está relacionada com a corrupção dos pen­
samentos e das consciências e, certamente, com a corrup­
ção da sociedade e da cultura. E foi ele, que se considerava 
um continuador, um epígono, o herdeiro de uma fortuna 
destruída e dissipada, o habitante crepuscular da velha e 
arruinada casa da linguagem, o que "descobriu os vínculos 
entre um falso imperfeito de subjuntivo e uma mentalidade 
ignóbil, entre uma falsa sintaxe e a estrutura deficiente de 
uma sociedade, entre a grande frase oca e o assassinato or­
ganizado".16 Em 1929, um jovem poeta comunista, Francis 
Ponge, percebeu, quando expôs suas razões para escrever: 
"Nosso primeiro estímulo foi, sem dúvida, o asco pelo que 
somos obrigados a pensar e a dizer, por aquilo no qual nos­
sa natureza de homens nos obriga a tomar parte [ ... ]. Uma 
única saída: falar contra as palavras". Em 1958, em relação 
com a aniquilação da linguagem produzida pelo nazismo, 
outro poeta, Paul Celan, um dos maiores, disse: "Restava a 
língua, sim, salvaguardada apesar de tudo. Pois teve então que 
atravessar sua própria falta de respostas, atravessar um terrível 
mutismo, atravessar as mil trevas profundas de um discurso 
homicida".17 Em 1982, e depois de toda uma vida dedicada 
a combater a linguagem automática e automatizada do que 
nos faz dizer e do que nos faz pensar, Peter Handke escreveu 
assim: "De cada frase que passe por sua mente, pergunta­
te: é esta realmente a minha linguagem".18 Ao longo de sua 
obra, e falando do nacional-catolicismo espanhol, disse, de 
16 A citação, de Erich HELLER, é tirada de um texto do poeta venezuelano 
Rafael CADENAS, intitulado "Karl Kraus" e incluído em sua Obra entera. 
México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 594. 
11Tanto a citação de PONGE como a de CELAN foram tiradas do magnífico 
texto de Miguel CASADO, "Hablar contra las pala bras. Notas sobre poesia 
y política" . ln: Deseo de realidad. Oviedo: Ediciones de la Universidad de 
Oviedo, 2006. 
18HANDKE, P. Historia del lápiz. Barcelona: Península, 1991, p. 50. 
84 
Ferido de realidade e em busco do realidade 
muitas maneiras e em muitos lugares, Juan Goytisolo: "A 
negação de um sistema intelectualmente opressor começa 
necessariamente pela negação de sua estrutura semântica", 
ou "Todo espanhol se viu obrigado a pensar ou pelo menos 
a falar e escrever conforme certas fórmulas e princípios es­
tabelecidos [ .. .]. A linguagem deverá ser recunhada e polida 
antes que possa circular como moeda genuína", ou "Cada 
palavra de teu idioma te estende uma armadilha: adiante 
aprenderás a pensar contra tua própria língua".19 Também 
Antonio Gamoneda havia notado a corrupção linguística do 
franquismo e disse em 1977: "Quem fala ainda ao coração 
abrasado quando a covardia pôs nome a todas as coisas?".20 
Em 1988, e em um romance que, como a maioria dos seus, 
descreve a aniquilação linguística e cultural produzida pelo 
totalitarismo comunista, o escritor albanês Ismail Kadaré 
estabeleceu assim as fases da destruição: "A primeira, a elimi­
nação material da rebelião; a segunda, a eliminação da ideia 
de rebelião; a terceira, a erradicação da cultura, da arte e dos 
costumes; a quarta, a extinção ou mutilação da língua, e a 
quinta, a extinção ou debilitação da memória". 21 Em relação 
a essa redução da linguagem a instrumento de comunicação, 
junto com seus ideais de eficácia e de transparência, o filósofo 
José Luís Pardo disse em 1996 que 
[ . . . ] há uma tentativa em marcha para livrar a lingua­
gem de sua incômoda densidade, uma tentativa de 
apagar das palavras todo sabor e toda ressonância, a 
tentativa de impor pela violência uma linguagem lisa, 
sem manchas, sem sombras, sem rugas, sem corpo, 
a língua dos deslinguados, uma língua sem outro na 
19 As citações são do livro de CA RRIÓN, J. Viaje contra espacio. ]11an Goytisolo 
y W. C. Sebald. Madrid: lberoamericana, 2009. 
20GAMONEDA, A. Lápidas. ln: Esta l11z. Poesia Re11nida. Barcelona: Galaxia 
Gutemberg, 2004, p. 293. 
21KADARÉ, I. E/nicho de la verg11enza. Madrid: Alianza, 2001, p. 145. 
85 
 
CooçJ.o 'EDUCAÇÃO: ExPERI�NC"- E SENllOO' 
qual ninguém escute a si mesmo quando fala, uma 
língua despovoadaY 
Outro ftlósofo, Miguel Morey, disse em 2001 numa carta que 
dedicou a sua fLlha e a todos os que, como ela, completaram 
18 anos nesse ano: 
( ... ] ninguém pode se pôr a salvo do modo como a 
linguagem nos desenha os contornos de tudo aquilo 
do qual podemos ter experiência. Vivemos segundo a 
linguagem que temos a nossa disposição ( . . .] . Por isso é 
tão terrível que as palavras morram, que as matem, que 
pertençam cada vez mais a um inimigo cego, surdo e 
mudo diante do peso do mundo, como se fossem um 
território ocupado. Porque quando as palavras morrem, 
irremediavelmente, os homens adoecem.23 
E poderíamos multiplicar os dados, os testemunhos, 
os matizes. 
Mas sempre o mesmo motivo: a linguagem recebida é 
impronunciável, e o mundo que nos apresenta é inabitável, 
e uma coisa não vai sem a outra, e só uma consciência des­
prezível e submissa pode falar essa linguagem e habitar esse 
mundo sem problemas. Uma linguagem podre é o sintoma de 
um mundo podre e de umas formas de vida podres. Porém, a 
nós essa linguagem nos provoca asco e a sentimos como uma 
armadilha, e sabemos que é o que impõem os poderosos, os 
opressores e os covardes, a linguagem do inimigo. E por isso 
não podemos senti-la como nossa, porque foi arrasada, aplai­
nada, alisada, mutilada, simplificada, desumanizada, porque 
foi convertida em uma linguagem de deslinguados, em uma 
linguagem de ninguém e sem ninguém e para ninguém. E 
22PARDO,J. L. Carne de palabras. ln: FERNÁNDEZ QUESADA, N. (Ed.); 
VALENTE,]. A. Arwwmfa de la palabra. Valencia: Pre-Textos, 2000, p. 190. 
2lMOREY, M. Carta a uma princesa. ln: Pequenas doctrinas de la sociedad. Mé­
xico: Sexto Piso, 2007, p. 433-434. 
86 
Ferido de realidade e em bv= de reolidode 
por isso sentimos que ficamos sem palavras, e nos sentimos 
mudos. E para imaginar a possibilidade de falar, temos que 
reinventá-la, ressemantizá-la, dar-lhe um novo rigor, um 
novo sentido, para que possa continuar dizendo, dizendo-nos. 
Entre o já não e o ainda não 
A carta de Lord Chandos termina assim: 
[ . . . ] porque a língua em que talvez me fosse dado 
não só escrever, mas também pensar, não é o latim, 
nem o inglês, nem o italiano, ou o espanhol, e sim 
uma língua de cujas palavras nem sequer uma só me 
é conhecida; uma língua na qual as coisas mudas me 
falam e na qual, talvez um dia na tumba, terei que 
prestar contas a um juiz desconhecido.24 
A língua recebida já não nos serve, nos provoca nojo, 
e aquela na qual talvez pudéssemos dizer alguma coisa, não 
a temos ainda. Porém aí estamos, nesse intervalo, e conti­
nuamos insistindo. 
Uma estranha enfermidade 
A enfermidade de Lord Chandos é, na realidade, uma 
enfermidade da linguagem. As palavras apodrecem. Quando 
nos vêm à boca, antes de dizê-las, as tocamos com a ponta 
da língua e elas se decompõem como fungos apodrecidos, 
e já não podemos pronunciá-las sem asco. E aí começa a es­
tranheza, nessa sensação de repugnância por uma linguagem 
que é a nossa, a que existe, a única que temos. Porque, para 
sentir que a linguagem está podre, ou que a apodreceram, 
é preciso ter língua. Por isso Lord Chandos se sente doente: 
2'VON HOFMANNSTHAL, H. Una carta (De Lord Phi/ip Clrandos a Sir 
Fraruis Bacon). Valencia: Pre-Textos, 2008, p, 135. 
87 
 
li 
IÚllfÇ,IO •EoucAç.J,o: Ela>mrNoA E Sooro" 
porque ainda tem língua, porque ainda é capaz de sentir, 
em sua língua, o sabor apodrecido da língua, porque ainda 
tem uma língua com a qual saboreia as palavras e as frases 
antes de dizê-las, porque ainda tem uma língua com a qual 
sentir asco. Como diz José Luís Pardo: 
Para ter acesso à linguagem, temos que falar uma 
língua, e falá-la a partir de dentro, com nossa própria 
voz e com nossa própria língua. E ela faz com que as 
palavras nos deixem um resíduo na ponta da língua, 
um sabor de boca (doce ou amargo, bom ou mau), o 
que elas nos fazem saber (nos dão a saborear). 25 
Por isso, embora a linguagem tenha apodrecido, a maioria 
das pessoas não se dá conta, não sente náuseas e não se sente 
doente: porque perderam a língua, porque não têm, ou nunca 
tiveram uma voz própria, uma língua própria, porque só assim, 
sem língua, podem falar sem nojo uma língua apodrecida. 
Repassemos os sintomas e o progresso dessa enfermida­
de. Para Lord Chandos, primeiro se tornam impossíveis as 
grandes palavras, essas que são tão abstratas, tão gerais, tão so­
lenes, tão mentirosas, tão grandiloquentes e tão vazias. Talvez 
perceba que já não querem dizer nada, de tão vaidosas e de 
tão soberbas. Em segundo lugar, se tornam impossíveis para 
ele os juízos sobre temas gerais, sobre os assuntos da corte e 
do parlamento, sobre tudo aquilo que, segundo essa artificio­
sa construção chamada "atualidade", deveria ser importante. 
Talvez perceba o que esses julgamentos e essas opiniões têm 
de precipitados, de artificiais, de convencionais. Talvez sinta 
aí a língua sem língua dos jornalistas, dos experts, dos políticos 
e dos funcionários, dos que fabricam o presente, dos "atuais", 
dos donos da "atualidade". Em terceiro lugar, se tornam 
impossíveis para ele também os juízos banais, esses que se 
acontecem automaticamente e sem pensar na'S conversações 
"PARDO. J. L. La i11timidad. Valencia: Pre-Textos, 1996, p. 52-53. 
88 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
de todos os dias. Tudo isso lhe produz mal-estar, nojo, cólera, 
ansiedade, angústia. Porque lhe parece falso, oco e sobretu­
do simplificador. O real é infinito e, sobretudo dinâmico, 
caótico e fragmentado, e sempre inunda qualquer pretensão 
da linguagem em abarcá-lo, unificá-lo, fixá-lo, simplificá-lo, 
compreendê-lo e ordená-lo. 
A enfermidade de Lord Chandos consiste em ele sentir que 
a linguagem apenas é capaz de captar o real. Mas o que ocorre 
é que essa linguagem, em sua arrogância e sua autossuficiência, 
não sabe disso. E por isso se separou irremediavelmente do real, 
já não serve para nomear o que somos nem o que nos acontece, 
já não nos permite distinguir, ordenar, classificar e determinar 
o que há, já não é capaz de dar conta de nossas relações com 
os demais, com nós mesmos e com o mundo em que vivemos, 
já não é capaz, definitivamente, de dizer a verdade. Então, a 
linguagem fabrica um mundo a sua medida, um mundo que 
já não é um mundo, e sim uma armação, ou uma jaula, ou um 
armário, ou um esquema ao qual tudo o que existe se submete 
ou deveria se submeter. Por essa razão, quando isso ocorre, 
quando Lord Chandos toca com a ponta de sua língua essa 
falsidade da linguagem habitual, da linguagem costumeira, as 
palavras se libertam, ganham vida própria e se tornam perigo­
sas: "As palavras, uma a uma, flutuavam livres ao meu redor: 
se coagulavam em olhos que me fitavam ftxamente e aos quais 
eu devo devolver o mesmo olhar fixo: são redemoinhos que me 
dão vertigem ao contemplá-los, que giram sem cessar e através 
dos quais se alcança o vazio".26 
Descrevendo a seu amigo Francis Bacon os sintomas de sua 
enfermidade, Lord Chandon conta um episódio especialmente 
significativo. A ponto de repreender uma mentira de sua 
filha de quatro anos, a ponto de dizer a ela que é preci­
so falar seinpre a verdade, Lord Chandos não pode evitar 
parar para pensar no que vai dizer. Então, todo um fluxo de 
26VON HOFMANNSTHAL, 2008, p. 128. 
89 
 
ÚXfÇk) •Eouc:AçAo: � E SENroo• 
ideias lhe passa instantaneamente pela cabeça, e, do mesmo 
modo que lhe acontece com as palavras, que se automatizam 
e se tornam quase físicas, as ideias se fundem umas com as 
outras de maneira que se torna impossível para ele terminar 
a frase. Como se um gesto aparentemente tão simples, o de 
dizer a uma menina que é preciso ser sempre verdadeira, se 
tornasse de repente tão complexo, tão infinito, tão cheio de 
matizes, que a proposição se torna impronunciável. E isso 
simplesmente porque se pensa. Quem poderia dizer, se pensa 
por um momento, que é preciso ser sempre verdadeiro? O 
que quer dizer "verdadeiro"? E sobretudo o que quer dizer 
"sempre"? É possível a verdade? É possível um mundo, uma 
convivência na qual sempre se diga a verdade? As ideias 
começam a fluir, a se associar, a proliferar, a se contradizer. 
E não nos resta outro remédio, como acontecia com Lord 
Chandos, do que sair a cavalo para acalmar a angústia, para 
tratar de voltar a esse mundo singelo e habitual no qual frases 
como essas podem ser ditas automaticamente, sem pensar. O 
problema de Lord Chandos não é dizer o que pensa (esse é 
o problema banal da liberdade de expressão, da "opinioni­
tis" generalizada, da conversação e do tumulto universais, 
o problema, definitivamente, dos deslinguados), e sim algo 
muito mais complicado: pensar o que diz. Ou, em outras 
palavras, sentir que pode estar presente no que diz. 
Talvez por isso, o que ocorre a Lord Chandos não é 
que não entenda as palavras ou as ideias (seu problema não 
é, de modo algum, o da compreensão), e sim que não pode 
situá-las em relação a si mesmo: 
Compreendia bem os conceitos: via alçar-se dian­
te de mim suas combinações maravilhosas como 
majestosos mananciais que jogam com bolas de ouro. 
Podia lhes dar a volta e ver como jogavam entre si; 
mas estavam relacionadas apenas umas às outras, e o 
mais profundo, o pessoal de meu pensamento, ficava 
90 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
excluído de seu círculo. Sobreveio-me entre elas um 
sentimento de espantosa solidãoY 
Lord Chandos compreende a linguagem, compreende 
o pensamento, é capaz, inclusive, de admirá-lo, mas o sente 
alheio, como um jogo elegante, vazio e autocontido, como 
se não tivessem relação com ele, com o que há nele de mais 
profundo e de mais pessoal E então se sente só. Separa-se desse 
mundo normalizado do social, do coletivo, do habitual e do 
acostumado no qual se pode falar e pensar automaticamente, ou 
seja, no qual se pode falar sem língua e pensar sem pensamento. 
O normal e o patológico 
A enfermidade de Lord Chandos se deriva daí: de que 
ainda tem língua com a qual tocar e saborear as palavras antes 
de dizê-las (e por isso elas se decompõem em sua boca como 
fungos apodrecidos), de que ainda pensa no que diz e trata de 
estar presente nisso (e por isso, as ideias se interrompem, se 
quebram e se desordenam nele, antes que consiga terminar 
de formulá-las) e de que já abandonou, irremediavelmente, 
qualquer forma de comunidade (e por isso ficou excluído 
do círculo). Os aparentemente sãos, portanto, os normais e 
normalizados, serão deslinguados, os que não param para 
pensar, os que falam e pensam automaticamente, gregaria­
mente, os homens e as mulheres do rebanho, os que não 
podem viver senão no asilo das corporações, dos agrupa­
mentos, das instituições, dos coletivos. 
Textos transpassados por outros textos 
Há uma curiosa versão contemporânea da enfermidade 
de Lord Chandos.28 Seu protagonista é Simon, um psicólogo 
27VON HOFMANNSTHAL, 2008, p. 128. 
28EMMANUEL, F. La cutstión lumrana. Madrid: Losada, 2002. Levado ao 
cinema em 2007, com o mesmo título, por Nicholas Klotz, com roteiro de 
Elisabeth Perceval. 
9 1 
 
ColeçAo .EOUCAcAo: Exi'€RiENc1A E SEN1100. 
do departamento de recursos humanos na sede francesa de 
uma multinacional alemã. Suas tarefas são a motivação dos 
empregados e a seleção de pessoal ou,em outras palavras, o 
ajuste ótimo entre os trabalhadores e a produção. Um dos altos 
executivos da empresa o encarrega de uma pesquisa de caráter 
profissional sobre a "saúde mental" do diretor-geral, um tal de 
Mathias Jüst. A partir dai Simon irá averiguando coisas sobre 
a relação que os alto executivos tiveram com o nazismo (todos 
eles viram ou ouviram contar algo que, de alguma maneira, 
implicava seus pais com o maquinário da morte) e sobretudo 
será testemunha e vítima de uma enfermidade da linguagem 
que solapa a segurança, as certezas e a estabilidade intelectual 
e emocional de todos os que são contagiados por ela. 
As manifestações da enfermidade consistem em uma 
sensibilidade aguçada em relação ao modo como a linguagem 
técnica da empresa está contaminada pela linguagem técnica 
do nazismo ou, mais precisamente, com o modo como a 
própria definição dos "problemas" e das "soluções" que têm 
a ver com a otimização da produtividade da empresa (a forma 
de conjugar o fator humano com as necessidades econômicas) 
exige o uso de um vocabulário e de uma gramática tomados 
do tratamento nazi do "problema judeu" e da "solução final". 
Existe, primeiro, um informe técnico sobre as cifras 
de produção, dados de pessoal e projetos de futuro em que 
faltam algumas palavras. Como se seu redator, Matias Jüst, 
houvesse lutado contra a emergência de uma série de termos 
técnicos dos quais só ele percebia a origem, e isso tivesse 
dado como resultado um texto perfurado, transpassado, cheio 
de espaços em branco deixados pela ausência das palavras 
impronunciadas ou impronunciáveis. 
Além do mais, há cinco cartas anônimas encontradas na 
caixa forte do senhor Jüst. A primeira delas é um fac-símile 
de uma nota técnica sobre o funcionamento e as possíveis 
modificações dos caminhões especiais desenhados para ma­
tar os j udeus durante o transporte, utilizando dióxido de 
92 
Ferido de realidade e em busca de realidade 
carbono produzido pelo motor do caminhão. Na segunda 
delas o documento anterior está sobreimpresso em uma série 
de fragmentos cortados e desordenados de notas técnicas da 
empresa. Na terceira carta, os dois textos anteriores têm o 
mesmo valor tipográfico e estão estranhamente mesclados 
produzindo um texto absurdo mas gramaticalmente correto. 
Quando Simon isola as passagens intrusas, percebe que não 
pertencem à linguagem tecnológica da engenharia, e sim 
àquela que se emprega nos serviços de pessoal e de orga­
nismos diretivos da empresa. Na quarta, alguns fragmentos 
do texto inicial estão colocados em uma partitura musical, 
concretamente a do segundo movimento de um quarteto de 
cordas de César Frank. A quinta e última carta contém um 
texto apagado, exceto algumas palavras como instruções, 
segurança, funcionamento, limpeza, observação, avaliação, 
etc. e a seguinte anotação introduzida à mão: "Não ouvir. 
Não ver. Lavar infinitamente a sujeira humana. Pronunciar 
palavras limpas. Que não manchem. Expulsão. Reestrutu­
ração. Reinstalação. Reconversão. Deslocalização. Seleção. 
Evacuação. Despedida técnica. Solução definitiva. A máquina 
de morte está em 1narcha".29 
Por último, há duas cartas enviadas a Simon. A pri­
meira está construída com frases extraídas de um manual de 
psicologia laboral, mas cujos termos técnicos, em sua nova 
organização, revelam outra procedência muito mais maligna. 
Na segunda, esse primeiro texto aparece como invadido e 
devorado por fragmentos tomados de um programa nazista 
de erradicação de doentes mentais. 
Ao longo do relato, a enfermidade do senhor Jüst, essa 
enfermidade produzida pela sensibilidade à contaminação 
nazista da linguagem (ao modo como essa língua apodre­
cida pela violência e pelo assassinato atravessa as formas de 
racionalidade da biopolítica contemporânea, a linguagem 
29EMMANUEL, 2002, p. 68. 
93 
 
Cooc.i.o •EDUCA(:).o: EmRI!NaA E 5a<noo• 
da gestão racional dos indivíduos e das populações no 
capitalismo pós-industrial) da qual pouco a pouco Simon 
vai se contagiando. E isso até fazê-lo duvidar das palavras 
que antes lhe eram familiares e que usava sem problemas, 
de sua escolha profissional e, em geral, no sentido de seu 
trabalho. Simon se percebe incapaz de terminar um dossiê 
rotineiro de seleção, já não suporta os seminários com os 
empregados, perde a capacidade de intervir com natu­
ralidade nas discussões. E isso, como em Lord Chandos, 
acompanhado de uma turbação, um mal-estar e uma an­
gústia físicas, corporais. 
Como diz Arie Neuman no monólogo final do filme, 
a linguagem é o método mais eficaz de propaganda porque 
se introduz em nossa carne e em nosso sangue. E assim 
funciona a linguagem dos especialistas, decompondo o real 
em temas, convertendo-o em uma série de problemas téc­
nicos, de fórmulas fragmentadas e neutras, de maneira que 
se possam obter soluções eficientes. E assim vai se formando 
uma linguagem feita de "palavras vazias de significado, uma 
linguagem neutra, neutral, invadida por palavras técnicas que 
gradualmente absorvem sua humanidade". E isso é precisa­
mente o que, em sua progressiva inquietação, vai aprendendo 
Simon. Pouco a pouco, sua língua se torna capaz de sentir 
o cheiro da violência e do assassinato que tem a linguagem 
que, antes, manejava com total naturalidade. Pouco a pouco 
se vê obrigado a pensar no que diz, em cada palavra, em cada 
frase, e isso faz com que perca a fluidez, que não seja capaz 
de terminar seus relatórios, seus argumentos, suas teses, que 
já não sinta suas ideias tão seguras e asseguradas como as 
sentia antes. Além disso, na medida em que a enfermidade 
avança, Simon vai se sentindo cada vez mais só. 
Mas não só a linguagem está contaminada. O horror 
nazista contamina também as artes. A mesma música está man­
chada, e a sala de concertos não pode manter fechada a porta 
atrás da qual a máquina da morte funciona a pleno vapor. Por 
94 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
isso Jüst, que havia sido um violinista aficionado e obsessivo, 
não só não suporta a linguagem da racionalidade empresarial, 
como também se tornou incapaz de suportar a música. 
Uma vez que a enfermidade ataca a linguagem, e esta 
perde sua antiga segurança, já não se pode continuar falando 
com o automatismo do hábito e do costume, uma vez qu_e as 
palavras limpas e neutras deixam de sê-Jo e se decompõem 
em sua boca como fungos apodrecidos, nada pode nos manter 
a salvo. E a sociedade se apodera delas. 
O pai de Mathias Jüst infligia a seu filho uma só palavra, 
Arbeit, que significa trabalho, mas também função, atividade, 
dever. Porém, quando as palavras ligadas à função deixam de 
protegê-la, aparece outra palavra, Schmutz, que significa sujei­
ra, mancha, imundície, mas também merda, como a merda a 
cuja rápida, cômoda e eficaz limpeza se refere a epígrafe 4 do 
relatório sobre os caminhões. Jüst não pode se manter distante 
da merda, desse resto humano do assassinato. Do mesmo modo 
que Simon tampouco pode se manter a salvo desses sonhos 
nos quais alguém abre a porta da sala de concertos e aí, fora 
dela, aparece o montão de cadáveres emaranhados, mesclados 
com essas palavras neutralizadas e esvaziadas de humanidade 
que os tornaram possíveis. E, ao final, tanto Jüst como Simon 
ficam isolados, separados do círculo, em uma espantosa solidão. 
Jüst internado em um sanatório psiquiátrico, e Simon, como 
ele mesmo diz, "nas margens do mundo", trabalhando em um 
estabelecimento para meninos autistas. 
Problemas e soluções 
As artes modernas do Governo e da Administração 
fabricam o real a partir do par problema/solução. Cons­
troem o social como o lugar dos problemas e o político 
como o lugar das soluções. E assim distribuem os papéis 
entre a sociedade e a política. Qualquer coisa que acon­
tece na sociedade deve ser convertida em problema que 
95 
 
Couç;.o ·�: EXPERttNa.t. E SENroo. 
os políticos têm que resolver, com a ajuda, naturalmente, 
dos experts e dos funcionários. A obrigação mais calorosa 
dos políticos, dos experts edos funcionários é, sem dúvida, 
resolver os problemas que a sociedade lhes delineia. Basta 
abrir os jornais para encontrar essa linguagem: o problema 
das jubilações, o problema do desemprego, o problema 
da insegurança, o problema da emigração, o problema da 
infância em perigo social, e a lista é infinita. O exemplo 
paradigmático de uma gestão racional do social é, certa­
mente, o que aconteceu entre a delimitação do "problema 
judeu" e o desenho e a aplicação da "solução final". O pior 
é que é impossível sustentar esse esquema falaz e perverso. 
Não passamos a vida assinalando problemas e pedindo 
soluções. Não nos damos conta de que, muitas vezes, nós 
mesmos somos o problema. E aí estamos: completamente 
capturados. E esta nossa civilização é desprezível, cara. E 
esta nossa civilização é uma merda, cara.30 
Dicionário do limbo31 
Academia. Originalmente, um bosquezinho no qual os 
filósofos tratavam de entender a vida. Hoje em dia, uma es­
cola onde alguns imbecis passam a vida tratando de entender 
os ftlósofos. A classe mais degradada desses imbecis já não 
lê os filósofos e sequer trata de entender nada. São os novos 
amos, trabalham para o governo e chamam a si mesmos de 
experts e investigadores. 
Cfnico. Sem-vergonha cuja visão defeituosa o faz ver as 
coisas como são e não como as pintam. Por isso, antes de se 
dedicar à investigação ou ao ensino é conveniente arrancar­
lhes os olhos. 
lOEJaborado no limbo a partir de MILNER,]. C. Las indinaciones criminales de 
la Europa democrárica. Buenos Aires: Manantial, 2007. 
"Elaborado a partir do Dicionário do diabo, de Ambrose Bierce. 
96 
Ferido de reolidode e em busco de realidade 
Conhecimento. Tipo de ignorância de que as raças civi­
lizadas e altamente escolarizadas gostam. Em nossa época 
tecnológica e mercantilizada, a esse tipo de ignorância se dá 
o nome específico de informação. 
Erudição. Nas épocas remotas em que ainda se lia, a 
erudição era um pó fino e pegajoso que se levantava dos 
livros e que os professores introduziam nos crânios ocos 
dos estudantes. Agora que não se lê, chamamos a esse pó 
viscoso de informação. Seus produtores máximos, como 
vocês sabem, são os experts e os pesquisadores. 
Fadiga. Estado de alunos e professores depois de haverem 
feito todos os deveres. A fadiga se converte em mau humor 
quando, graças às refonnas educativas locais, autónomas, nacio­
nais e internacionais, cresce o volume, a inutilidade e a estupidez 
dos referidos deveres. Por isso a fadiga se estende, oceânica, 
desde o jardim da infància até a pós-graduação e mais além. 
Fé. Crença em que os políticos, os experts, os poli­
ciais, os professores, os jornalistas, os pesquisadores e os 
funcionários estão aí para melhorar nossas vidas Por isso se 
diz que a fé é cega. 
Filisteu. Indivíduo que segue a moda no pensamento, 
na linguagem, nas emoções e nos sentimentos. Costuma ser 
próspero, limpo, exibido, educado e quase sempre solene. 
Costuma fazer carreira como jornalista, como político, como 
expert, professor ou como funcionário. 
A força do real 
Porém h á algo mais nessa estranha anomalia de Lord 
Chandos, uma consequência talvez inevitável de seu afasta­
mento radical da linguagem dos deslinguados: uma extrema 
sensibilidade às manifestações da vida. Qualquer coisa que 
passaria normalmente ignorada e despercebida, que apenas 
chamaria a atenção, se apresenta a ele com uma força terrível. 
Um cachorro ao sol, um ancinho esquecido podem ser origem 
97 
 
COLEÇ}.o ·e�: Em•� , SENnoo. 
de uma revelação. Uns ratos que morrem envenenados na 
adega de sua casa penetram em seu espírito com tal intensi­
dade que sente, não só piedade e compaixão, sentimentos que 
ainda o manteriam em uma relação de exterioridade com elas, 
mas sim uma verdadeira participação em sua agonia e em sua 
morte. Um escaravelho em um regador lhe causa os maiores 
estremecimentos. Não só os animais mais insignificantes, 
como também as coisas mais ordinárias "se elevam até mim 
com uma plenitude tal, com uma presença de amor tal, que 
meus olhos ditosos são incapazes de detectar nenhum ponto 
morto ao meu redor [ ... ] e não há nenhuma só entre as maté­
rias que o compõe na qual não seja capaz de me transvasar".32 
Tudo está vivo para Lord Chandos e, ainda mais, em 
tudo se sente partícipe, como se pudesse identificar sua pró­
pria vida com a vida de tudo o que existe, como se tudo 
pudesse entrar nele e ele mesmo pudesse entrar em tudo, 
confundir-se com tudo. Como se, ao abandonar essa lin­
guagem que coisifica e separa, essa linguagem que nos faz 
sujeitos na medida em que converte em objetos a tudo o 
que nos rodeia, essa linguagem que só nos permite ser nós 
mesmos ao preço de nos arrancar do mundo, Lord Chandos 
tivesse perdido essa distância que protege e assegura, essa 
distância que nos dá um lugar confortável, um lugar onde o 
real foi, por fim, dominado e domesticado, mas ao preço da 
indiferença, de que nada nos toque. E o que ocorre a Lord 
Chandos é que o real o ataca, e aborda, e alcança, e penetra. 
E não pode dominá-lo de tão presente, de tão vivo. E nada 
pode protegê-lo do êxtase, da queda fora de si. As palavras 
não lhe dizem nada, não penetram em seu interior, se man­
têm alheias, mas a terrível presença do real lhe fala com uma 
linguagem que não é uma linguagem e que lhe penetra e lhe 
coloca em contato com a vida até dissolvê-lo nela. 
"VON HOFMANNSTHAL, 2008, p. 131-132. 
98 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
Experiência 
Fazer uma experiência com algo - seja uma coi­
sa, um ser humano, um deus - significa que algo 
nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, 
que nos derruba e nos transforma. Quando fala­
mos de "fazer" uma experiência, isto não significa 
exatamente que nós a façamos acontecer, "fazer" 
significa aqui: sofrer, padecer, agarrar o que nos 
alcança receptivamente, aceitar, na medida em que 
nos submetemos a issoY 
Cair no rio 
J. M. Coetzee termina um de seus romances com ou­
tra carta, a que Lady Elizabeth, esposa de Lord Chandos, 
escreve a Francis Bacon umas semanas depois da de seu 
marido. Nessa carta, a podridão da linguagem e o êxtase 
da vida são contados com outra alegoria: num moinho em 
desuso, as palavras são como as tábuas sob as quais passa 
a água, as que permitem nos mantermos em outro nível, 
seguro e garantido, enquanto o rio ruge e se encrespa sob 
nossos pés. Mas quando as tábuas apodrecem, se destroem 
e desmoronam, caímos irremediavelmente no abismo onde 
nos mesclamos com mil outras criaturas em uma corrente 
indiferenciada, móvel e caótica na qual estamos a ponto de 
nos afogarmos. Lady Chandos, contagiada pelo infortúnio 
de seu esposo, se pergunta como fazer para "viver com ratos 
e cachorros e escaravelhos correndo por minha pele dia e 
noite, afogando-me e arfando, arranhando-me, tirando de 
mim, pressionando-me cada vez mais . . . ". 34 
33HEIDEGGER, M. La esencia dei habla. ln: De cami11ilo a/ ilabla. Barcelona: 
Serbal, 1987, p. 143. 
3'COTZEE, J. M. Carta de Elizabeth, Lady Chandos a Francis Bacon. Epí­
logo a Elizabetil Costeio. Barcelona: Debolsillo, 2005, p. 233. 
99 
 
ÚliEÇ.iO "EoucAç.i.o: ExJ>MNOA E 5ENnoo" 
Talvez seja também isso, que existe uma linguagem que 
é feita para que não caiamos, para que nos mantenhamos 
afastados, para que possamos permanecer tranquilamente 
em um lugar a salvo, no qual. 
os ratos e os cachorros e os 
escaravelhos, e a morte e a desolação e a falta de sentido não 
nos toquem, não nos derrubem, não ponham em perigo 
nossas pequenas certezas, nossas míseras seguranças, nossos 
esquemas medíocres, esses que nos dão a vida ordenada, 
classificada, simplificada, desativada, desvitalizada, dissecada 
e, no fundo, inofensiva. 
Por isso a enfermidade de Lord Chandos supõe também 
que o que poderíamos chamar de "ex-posição", outro nome 
para a experiência, para o sujeito da experiência. A falência 
da linguagem implica para ele a falência de qualquer posição 
na qual poderia se manter a salvo,na qual poderia falar e 
pensar sem perigo, a partir da qual poderia se opor ou se 
impor a uma realidade distinta. E ao perder essa posição, ao 
perder o pé, o real o afeta de uma forma terrível, se converte 
em uma inevitável doença. 
Colado à linguagem 
Além disso, na carta, Elizabeth constantemente co­
loca entre aspas o que acaba de dizer porque supõe que a 
linguagem com a qual ela, em sua carta, como também 
seu marido na dele, tentam explicar a Francis Bacon sobre 
sua anomalia e sobre sua desventura, é uma linguagem 
inevitavelmente alegórica, uma linguagem que lhes faz 
dizer sempre uma coisa em lugar de outra: "As palavras se 
desmoronam sob os pés de uma pessoa como tábuas podres 
('como tábuas podres', digo outra vez, não posso evitar, 
não sei se quero fazê-lo entender minha preocupação e 
a de meu marido: digo 'fazê-lo entender', mas o que é 
100 
Ferido de realidade e em busca de realidade 
entender, o que quer dizer?".35 Porque Lady Chandos sabe 
muito bem que a experiência, a experiência real e viva, 
isso que José Luís Pardo chamou de "intimidade", sempre 
é outra coisa, sempre está em outro lugar, sempre é algo 
diferente do que dizemos ou do que somos capazes de dizer, 
é, de alguma maneira, intraduzível à linguagem. Mas isso 
não significa que não a digamos, que não está, de alguma 
maneira, na linguagem. O que acontece é que a intimi­
dade (a maneira singular como Elizabeth vive ou sente ou 
experimenta essa particular estranheza que é ela própria) 
não está no explícito ou no informativo da linguagem (aí 
sempre é outra coisa), embora isso não signifique que seja 
indescritível ou incomunicável. 
A linguagem, como disse Pardo, comunica a intimi­
dade em 
[ . . . ] uma conversação na qual o importante não é o 
que se diz (ou o que se faz ao dizer) e sim o que se 
quer dizer, não o poder das palavras e sim sua impo­
tência. Que isso não seja informação (nem possa sê-lo) 
não significa que não seja linguagem; ao contrário, 
isso que não se pode - e sim que se quer - dizer 
é precisamente o que se comunica implicitamente 
quando se fala [ .. .]. A conversação íntima é aquela na 
qual alguém participa não para se informar de algo 
que outro sabe ou para fazer algo a outro, e sim para 
ouvir como soa o que outro diz, para escutar mais 
a música do que a letra, para saborear sua língua. 36 
Por isso a experiência de Lord Chandos (essa à qual 
deveríamos prestar atenção) não está no que diz, e sim está 
"COTZEE, 2005, p. 232. 
"PARDO, 1996, p. 117-118. 
101 
 
Cruç.lo "EwcAç.i.o: ExPBotNcJA E S&lmo" 
como que costurada ou colada ao que diz, como esse segre­
do que o discurso transmite em seus silêncios (não se trata 
de compreender o que diz e sim o que cala no que diz) e 
em suas alusões (aquilo ao qual enfatiza no que diz). Por 
isso, "cada palavra dita sempre quer dizer mais do que diz 
e nunca pode dizer tudo o que queria".37 Porém, nisso está 
justamente sua força. 
Daí que o importante não seja procurar averiguar o 
que há por trás das palavras de Lord Chandos (que é o que 
significam, a que se referem, a que tipo de enfermidade ou 
de experiência remetem, que estão nos dizendo ou de que 
nos estão informando), mas sim que há adiante, até onde se 
dirigem, de que maneira podem encarnar em nós (que somos 
carne de palavras, também de palavras apodrecidas), o que é 
que podem mover ou mobilizar ou incitar ou suscitar em nós. 
Mais dicionári0'8 
Impostura. Profissão dos políticos, ciência dos experts, 
opinião dos jornal is tas e religião dos pregadores. 
Independente. Pessoa com algum resto de amor próprio. 
Na política, na religião e na universidade, que são ativida­
des corporativas e gregárias, esse é um termo claramente 
depreciativo. 
Lacaio. Em sentido estrito, criado com libré. Aplicar 
essa palavra a políticos, jornalistas, experts, universitários 
e funcionários é um insulto que os honrados serventes 
não merecem. 
Leitura. Conjunto do que se lê. Como na escola e na 
universidade, em vez de ler, se busca a informação, a leitura 
37PARDO, 1996, p. 122. 
38Ver nota 31. 
102 
Ferido de realidode e em busco de reolidode 
ascendeu para a categoria de inútil, passou à clandestinidade, 
e desde logo só se pratica no limbo e seus limites. 
Monólogo. Atividade de uma língua que carece de ou­
vidos. Como a dos jornalistas, dos políticos, dos experts e 
dos funcionários. Ultimamente, também foram detectadas 
muitas línguas sem ouvidos entre as autoridades acadêmicas 
das universidades catalãs. 
Néscio. Pessoa que invade todos os domínios de todas as 
atividades intelectuais e morais. É oniforme, oniperceptivo, 
onisciente e onipotente. Já era visto nos alvores da criação, 
mas desde então não deixou de se divertir. Seus represen­
tantes mais notáveis no mundo de hoje são os políticos, os 
jornalistas, os funcionários e os experts. O pior é que quando 
todos tenhamos nos recolhido na noite do esquecimento, 
ele tomará corpo e escreverá a história da humanidade. E a 
escreverá à sua imagem e semelhança. 
Passado. Mínima fração de uma parte da eternidade da 
qual temos um escasso conhecimento, embora acreditemos 
que o compreendemos todo. Uma linha em movimento per­
pétuo chamada Presente o separa de um período imaginário 
chamado Futuro. Em geral, o Passado está obscurecido pela 
desilusão e pela dor enquanto o Futuro reluz com as cores da 
felicidade e da alegria. Chama-se de progresso essa maneira 
estúpida de pintar o tempo e, na atualidade, é uma merca­
doria de baixo custo que nos vendem os políticos, os experts, 
os jornalistas e os funcionários para justificar sua posição no 
mundo. Porque eles, não esqueçam, são os senhores. 
Afinar o ouvido 
A enfermidade de Lord Chandos é exemplar porque 
nos ajuda a sentir (com nossa língua) as misérias do presente, 
as formas com que neste nosso mundo se procura assegurar 
103 
 
CoocÃO ·�: Elc.omENaA E SENooo• 
uma saúde feita de estupidez e indiferença. Falarei sobre 
isso muito brevemente. Trata-se, em primeiro lugar, de 
todos os dispositivos que nos fazem falar e ler e escrever em 
uma linguagem de ninguém e que a ninguém se dirige: na 
língua dos deslinguados, na língua neutra e neutralizada 
dos que não têm língua, nessa língua na qual é melhor não 
estar presente no que se diz, no que se lê, no que se escreve, 
em uma língua reduzida à informação e à comunicação. 
Trata-se, em segundo lugar, de todos os dispositivos que 
fazem com que seja impossível parar para pensar no que se 
diz, ou no que se lê, ou no que se escreve: os que nos dão 
uma língua sem atenção, sem detenção, sem pensamento, 
uma língua própria, não de indivíduos e sim de grupos, de 
coletivos, de instituições, de corporações, de todos esses 
lugares nos quais só se pode falar como está determinado, a 
língua dos políticos, dos experts, dos jornalistas, dos funcio­
nários, a língua da opinião, do saber e do poder. E trata-se, 
em terceiro lugar, de todos os dispositivos que constroem e 
mantêm os lugares e as posições bem seguros e separados, os 
que tornam impossível a exposição, os que fazem com que 
nada nos afete, com que nada nos aconteça. É essa língua a 
que nos dá nojo. Mas não para apelar a uma renovação, e 
sim para nos manter em suspenso, para tratar de manter o 
ouvido apurado em uma época, como todas, de indigência. 
A inquietude e o desassossego 
O desassossego é uma enfermidade da identidade que 
tem a ver com a alma e com a relação que temos com o 
tempo. A inquietude, contudo, começa no cérebro e mina 
nossa relação com o espaço, destruindo sua familiaridade e 
suas certezas, e convertendo-o em asfixiante. Os místicos 
e os poetas cultivam o desassossego. Mas a inquietude per-
104 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
tence sobretudo às crianças e aos viajantes. Um dos sintomas 
da inquietude poderia se chamar de: nostalgia dos espaços 
abertos. Quando isso ocorre, a pergunta essencial não é a 
inofensiva e narcisista "quem sou?", e sim a perturbadora e 
perigosa "o que faço aqui?"Por isso aqui, no limbo, o prin­
cipal não é interrogar o que somos, e sim onde estamos. E 
isso para partir imediatamente.39 
Respirar 
No Primer Manifiesto Surrealista, o de 1924, André Bre­
ton escreve o seguinte: "a experiência está confinada em 
uma jaula, em cujo interior dá voltas e voltas sobre si mesma, 
e da qual cada vez é mais dificil fazê-la sair . . . ".40 A suspei­
ta, naturalmente, é que nossa experiência do educativo só 
nos acontece mediada ou enquadrada ou enjaulada pelas 
operações de categorização, de tematização, de ordenação, 
de desierarquização, de abstração, etc., que constituem as 
lógicas de nossos saberes e de nossas práticas. Porém há 
algo, seja isso o que for, que está fora da jaula e não po­
demos senti-lo, ou dizê-lo, ou pensá-lo, a partir de uma 
experiência enjaulada. Talvez sejamos nós mesmos os que 
estamos enjaulados junto com nossa experiência, e damos 
voltas e mais voltas sobre nós mesmos, sem nenhum outro, 
sem nenhum exterior, sem nenhum acontecimento, sem 
nenhuma surpresa, sem nada distinto a nós mesmos (ou a 
nossas projeções, ou a nossos desejos, ou ao que já sabemos, 
ao que já pensamos, ao que já queremos . . . ) que nos atinja, 
39Elaborado para o limbo a partir de uma das ideias de Bruce CHATWIN ex­
traída do livro de entrevistas com Antonio GNOLI, La nostalgia de/ tspacio. 
Barcelona, Seix Barrai, 2002. 
40BRETON, A. Mani.fiestos de/ surrealismo. Madrid: Guadarrama, 1969, p. 25. 
105 
 
Cruç.i.o "EDUCAÇÃO: Exi>ERJENaA E SENroo" 
ou que nos aconteça, ou que nos enfrente. E talvez nossa 
vontade de viver tenha a ver às vezes com um desejo de 
tirar a experiência da jaula, de fazê-la sair, de abri-la para 
o lado de fora, com um desejo de sairmos nós mesmos da 
jaula. A pergunta é agora "como sair daqui?" Trata-se de 
liberar a experiência, de fazê-la sair da jaula, de conseguir 
uma forma de liberdade, em suma, que tem a ver com o 
exterior, com o aberto: com o real que sempre é mais e outra 
coisa, que o outro sempre dá. Elías Canetti escreve isso da 
seguinte maneira: "A palavra liberdade serve para expressar 
uma tensão muito importante, talvez a mais importante de 
todas. Alguém quer sempre partir, e quando o lugar aonde 
quer ir não tem nome, quando é indeterminado e não se 
vê nas fronteiras, o chamamos de liberdade". E alguém 
quer partir porque se asfixia, porque o lugar em que está se 
torna irrespirável para ele. Por isso, Canetti acrescenta que 
"a origem da liberdade está na respiração".41 
A linguagem e a realidade 
Na enfermidade de Lord Chandos, o desmoronamento 
da linguagem é correlativo à presença terrível e ameaçadora 
da realidade, da vida, da realidade viva. Como se essa lin­
guagem segura e assegurada que para nós já se converteu 
em fórmula e em clichê tivesse como função nos separar 
do real, da vida, e nos dar, em troca, uma realidade disse­
cada, falsificada, inanimada e morta, reduzida também ela 
à fórmula e ao clichê. Talvez por isso a palavra "realidade" 
seja uma das palavras favoritas dessa rede de jornalistas, 
políticos, experts e funcionários que se dedica a administrar 
a vida dos indivíduos e das populações. Como se o real 
" CANETTI, E. LA provi11da de/ !Jombre. Madrid: Taurus, 1982, p. 11-12. 
106 
Ferido de realidade e em busca de realidade 
não fosse outra coisa que o objeto do saber e a presa do 
poder dos dispositivos biopolíticos de governo, ou seja, 
como se o real não fosse outra coisa que aquilo que deve 
ser conhecido e governado, uma projeção de nosso saber, 
de nosso poder e de nossa vontade. Porém, a realidade que 
nos é apresentada na experiência não tem nada a ver com 
isso, e deveríamos situar em outro lugar a relação entre 
língua e realidade. 
Há um aforismo de Peter Handke que diz assim: "A 
transformação de faz necessária quando algo que era válido 
como real deixa de ser real; se se consegue a transformação, 
então outras coisas serão reais; se nenhuma outra coisa se 
torna real, então a pessoa sucumbe"!2 E há um poema de 
Olvido Garcia Valdés que diz o seguinte: "Às vezes me 
acometem crises de irrealidade; não de identidade, e sim 
de irrealidade; não quem sou, e sim se estou. Onde vive­
mos? (O plural acolhe a muitos, mas sozinhos). Não onde 
somos vistos, somos encontrados, e sim onde nos sentimos 
viver"Y O importante, então, não é a natureza do real, ou 
o conhecimento, ou a gestão, ou a transformação do real, e 
sim o que significa que algo seja "válido como real". Porque 
quando nada é válido como real, então é quando temos essa 
sensação de irrealidade sobre a qual escreve Olvido, e não 
só não sabemos onde vivemos como não sabemos sequer 
se vivemos uma vez que não "nos sentimos viver", e então 
"sucumbimos", ainda que continuemos caminhando sobre 
nossas pernas, tão tranquilos. Por isso o real está relacionado 
com a vida. E o sentimento de irrealidade, esse que faz com 
que a pessoa sucumba ou não se sinta viver quando já nada 
"HANDKE, P. Fautas(as de la repeticiórt. Santa Cruz de Tenerife: Prames, 
2000, p. 50. 
"GARCÍA VALDÉS, O. Esa poli/la que de/ame de mi revolotea. Poesia Reu11ida. 
Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2008, p. 433-434 . 
. 
107 
 
Cafç.l.o "EDuc:A<;.iD: Exl'eRIENc:IA E S&nlxl" 
"se torna real", está muito ligado ao sentimento de certa 
desvitalização da vida, a esse sentimento que nos faz dizer 
que esta vida não é vida, ou que a vida está em outra parte. 
Se isso nos acontece não é porque não estamos vivos, mas 
sim porque vivemos uma vida desvitalizada, uma vida à qual 
falta vida. E o que buscamos é algo assim como a vida da 
vida, uma vida que esteja cheia de vida. Se falamos, então, de 
que necessitamos que algo seja válido como real, isso tem a 
ver com a suspeita de que falta algo ao que nos é dado como 
real. Como se o que nos dizem que é, o que nos dizem que 
existe, o que nos dizem que acontece, fosse uma espécie de 
realidade sem realidade, uma realidade, poderíamos dizer, 
des-realizada, como se estivesse inclinada a perder. E bus­
camos então algo assim como a realidade da realidade, esse 
ingrediente, ou essa dimensão, que faz com que algo ou 
alguém seja válido como real, que nos dê certa sensação de 
realidade. Por isso, do mesmo modo que reclamamos que 
a vida esteja viva, reclamamos também que a realidade seja 
real, quer dizer, que tenha a legitimidade, a força, a presença, 
a intensidade e o brilho do real. 
Muros 
Dado que o solo é horizontal, e que a moral do traba­
lho atualmente imperante nos obriga a adotar, muito mais 
do que gostaríamos, posições verticais, entender-se-á que a 
situação do ser humano no mundo não é demasiado cômoda. 
Por isso, precisamos dos muros, para que nos ajudem a nos 
mantermos erguidos. Quando os muros se fecham sobre 
si mesmos, se convertem em guetos e cárceres de diversas 
espécies como as fábricas, as escolas, os manicômios, os 
hospitais, os condomínios geminados e os diversos tipos de 
escritórios. Quando sua altura é excessiva, tornam-se frontei-
108 
Ferido de realidade e em busco de realidade 
ras, obstáculos e barreiras. São muros a metafisica, a ciência, 
a moral, a política, a religião, a arte e as formas consensuais 
da linguagem. Em geral, nos impedem de ver o outro lado, 
transpassar o âmbito do conhecido e aprender outras formas 
de viver, de pensar e de nos relacionarmos. E, o que é pior, 
nos fazem esquecer que alguma vez os construímos.44 
Desejo de realidade 
Podemos dizer que a pedagogia é esse conjunto de dis­
cursos mais ou menos especializados que serve para nomear 
o que há, o que acontece ou o que nos acontece em uma 
série de ambientes vitais ou existenciais determinados, os que 
têm a ver com a educação. E prestem atenção em que digo 
"vitais" e não simplesmente "profissionais". O que acontece 
é que esses discursos (talvez precisamente porque são profis­
sionais e não vitais ou existenciais) raramente surpreendem, 
ou comovem, ou golpeiam com o que antes se chamava "a 
legitimidade, a força, a presença, a intensidadeou o brilho 
do real". Algo que de fato acontece, às vezes, com a lite­
ratura, as artes, o cinema ou a filosofia. Ou ao menos com 
certa literatura, com certas artes, com certo cinema e com 
certa filosofia. Como se o escritor, o artista. o cineasta ou 
o filósofo é que fossem sim, às vezes, capazes dessa relação 
com o real na qual o real está cheio de realidade. E talvez isso 
ocorra, precisamente, porque nem o escritor, nem o artista, 
nem o cineasta, nem o filósofo estão preocupados por isso 
que nos discursos pedagógicos se chama de "conhecimento 
do real" ou "diagnóstico do real" (ou, ao menos, não por 
um conhecimento do mesmo tipo, não por esse tipo de 
"Elaborado para o limbo a panir do prólogo do livro de MAILLARD, C. 
Colllra e/ arte y otras imposturas. Valencia: Pre-Textos, 2008. 
109 
 
ÚllEÇÃO •EDUCAÇÃO: EXPE�!NOA E SENTIDO• 
conhecimento, o da investigação, que talvez pudéssemos 
chamar, provisoriamente, de conhecimento objetivante, ou 
conhecimento crítico), nem estão preocupados, tampouco, 
por isso que na pedagogia se chama de "transformação do 
real" (ou, ao menos, não por uma transformação de tipo 
técnico ou, inclusive, de tipo prático). E se o que eu estou 
chamando de pedagogia (em uma generalização abusiva e 
sem dúvida brutal) não é capaz de nos dar coisas que sejam 
válidas como reais e, inclusive, contribui para a desreali­
zação do real e a correlativa desvitalização da vida, talvez 
fosse preciso começar a problematizar a sério nossas formas 
de olhar, de dizer e de pensar o educativo, nossas formas, 
definitivamente, de habitar esses espaços (não só de estar 
neles). E nos colocarmos no caminho de olhar de outro 
modo (e talvez possamos aprender do cinema, e de outras 
artes do olhar), de dizer de outro modo (aprendendo, talvez, 
da literatura, arte da palavra), e de pensar de outro modo 
(aprendendo aqui da filosofia, arte do pensamento). Para que 
esse modo de olhar, de dizer e de pensar nos faça encontrar 
talvez uma realidade que mereça esse nome e na qual nos 
sintamos viver. 
A desrealização do real 
O real não é coisa, e sim acontecimento. A coisificação 
e a objetivação destroem o real, o põem a perder. Por isso 
o sujeito da experiência não é um sujeito objetivador ou 
coisificador, e sim um sujeito aberto que se deixa afetar 
por acontecimentos. 
O real não é um tema ou um problema, mas sim uma 
questão sempre aberta. Um tema exige um desenvolvimento, 
um problema exige uma solução, mas uma questão exige, por 
acaso, uma resposta. Por isso a tematização ou a problematiza-
110 
ferido de reolidade e em busca de reolidade 
ção também são mecanismos de devastação do real. E o sujeito 
da experiência não é aquele que tematiza ou que problematiza, 
e sim o que pergunta e sobretudo o que se pergunta. 
O real não é representação ou identidade, e sim presen­
ça. A representação e a identificação são essas operações de 
desdobramento ou de duplicação pelas quais algo ou alguém 
real e, portanto, singular, incompreensível, inidentificável e 
irrepresentável se converte em uma espécie de duplo de si 
mesmo enquanto é construído como representante de alguma 
categoria genérica que não é senão a encarnação de um este­
reótipo. Por isso os dispositivos de identificação desrealizam o 
real. E por isso o sujeito da experiência não é aquele obcecado 
pela vontade de identificar, uma vontade que sempre tem algo 
de policial, mas o que trata de estar ele mesmo presente na 
relação que estabelece com aquilo que se lhe apresenta 
O real não é o que deveria ser, e sim o que é. Por isso 
as intenções sobre o real (inclusive as melhores intenções) 
o põem a perder enquanto o constroem à medida de nossa 
vontade, de nossos objetivos, de nossos fins e, definitiva­
mente, de nosso poder. O sujeito da experiência não julga. 
Tampouco é aquele que se pergunta constantemente sobre 
o que poderia fazer para que o real seja outra coisa diferente 
do que é, para que seja, definitivamente, como ele gostaria 
que fosse. Não é um sujeito intencional, nem um sujeito 
jurídico, nem um sujeito crítico, e sim um sujeito atento. 
Et cetera, et cetera, et cetera. 
Desejo de linguagem 
As linguagens da experiência tratam de fazer justiça à 
realidade e à vida. Uma vez que dizem respeito à experiên­
cia, estão feridas de realidade, feridas de vida. Mas também 
querem constituir experiên<;ia. Por isso vão em busca da 
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ÇO!fÇAo "Eouc:A<;k>: � E 5ENIDo" 
realidade e da vida. E isso não quer dizer, certamente, que 
tenham de estar evidenciadas nas diferentes retóricas do 
realismo nem que tenham de responder a pressupostos vi­
talistas. O realismo, na escrita, está muito desprestigiado. E 
os vitalismos, em filosofia, recordam vagamente a primeira 
metade do século passado. Porém, ao mesmo tempo, só nos 
interessam as escrituras que estão atingidas pela realidade, 
e os pensamentos que estão relacionados com a vida. Com 
esse algo que acontece ou que nos acontece, que não é sim­
plesmente uma projeção de nós mesmos, que às vezes pesa, 
e às vezes dói, e às vezes assombra e maravilha, e sempre 
surpreende, e às vezes é incompreensível, e que eu gostaria, 
ao menos aqui e agora, de continuar nomeando com essas 
velhas e arruinadas palavras sem as quais a palavra "expe­
riência" não tem sentido: a palavra "realidade" e a palavra 
"vida". Porque só é real, "válido como real", o que está 
vivo. E só nos sentimos viver se temos um "sentimento de 
realidade", quer dizer, se estamos em conta to com algo que 
mereça ser chamado de "real". Além disso, há muitos âmbi­
tos e muitos tipos e muitas dimensões da realidade, todas as 
que constituem nossa vida, todas as que nos tocam em um 
ponto sensível: o que vemos, o que sentimos, o que existe, 
o que inventamos, o que imaginamos, o que sonhamos, 
o que já não está e de que sentimos falta, o que acontece 
ou o que nos acontece. E é a isso que temos de ser fiéis no 
modo como o dizemos, o nomeamos, o representamos ou, 
em geral, o significamos. Trata-se, então, de problematizar 
o modo como colocamos juntas as palavras e as coisas, a 
linguagem e o mundo, o inteligível e o sensível, o sentido 
e a experiência. Por isso nossa forma de nos situarmos na 
relação ou no interstício entre o real e a linguagem é, li­
teralmente, vital. Essa, e não outra, é a questão do relato e 
do ensaio como linguagens da experiência. As demais são 
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Ferido de reolidode e em busca de reolidode 
técnicas de escrita, ladainhas autojustificativas e banalidades 
metodológicas.45 
Vibrações 
Nada restará de nossos corações. Cada uma de nossas 
partículas retornará a seu elemento. Mas nossas palavras tra­
çaram um rastro, vibraram no ar, tocara1n a outros. E o que 
vibra segue seu caminho, incita, se recarrega, se multiplica, 
cresce e continua. Transforma-se. Somente ouvido irá se 
transformar. O destino da palavra é se desintegrar quando 
chega a tocar o que é mais sólido do que ela: a carne. Ao 
se desintegrar como se desintegra qualquer signo apenas 
cumpre sua incumbência, isto é, ao mostrar aquilo a que se 
dirige. Porém, de novo, a palavra, felizmente, é mais do que 
um signo: é uma força viva que se desfaz quando alcança a 
matéria que há de lhe dar nova fora. A palavra se encarna, 
seu destino é encarnar-se. 
A menina de Barcelona 
A história se situa numa manhã de sábado de outono 
na Plaza Virrey Amat de Barcelona. Havíamos deixado as 
"Sobre o relato e o ensaio como linguagens da experiência pode-se ver os 
textos incluídos em AAVV, Déjame que cueme. Ensayos y •�arrativas y educadón. 
Barcelona: Laertes, 1995 (2' edição em Buenos Aires, 2009). Também os 
trabalhos que há em Jorge LAR ROSA e Carlos SKLIAR (Eds.), Entre pe· 
dagogía y literatura. Buenos Aires: Miiio y Dávila, 2005. E, por exemplo, 
Jorge LARROSA, "El ensayo y la escritura acadêmica" em Propuesta Edu­
cativa no 26. Buenos Aires, 2003. "La operación ensayo. Sobre el ensayar y 
el ensayarse en el pensamiento, en la escritura y en la vida" em Educt1fào 
e Realidade. v. 29. n.

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