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\~~-~-~ --~~- '-- [":,_..,~-- _ ____,-"' <:--.- .... - ~~,- ('----""'""-- --------' - _,_"!1---.J!' .--.. ~(\"-&"'~e Jk~ TÍTULO (Des)Equilíbrios Familiares j 3." edição, Janeiro de 2006 1 AUTORA Madalena Alarcão 1 COLECÇÃO Psicologia Clínica e Psiquiatria ) ISBN 989-558-067-3 1 CAPA Ovni PAGINAÇÃO Paulo Pratas ! IMPRESSÃO Papelmunde - SMG, Lda. DEPÓSITO LEGAL 237849/06 © Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor por OUARTETO, Alameda catouste Gulbenkian, lote s, e. e. Primavera, loja 15, 3000-090 Coimbra 1 Portugal 1 editora@quarteto.pt http:/ / llJ w w.qua rteto.pt É expressamente interdita a reprodução parcial ou Integral desta obra por qualquer processo, incluindo a fotocópia e a tradução e transmissão em formato digital. Exceptua-se a reprodução de pequenos excertos para efeitos de recensão critica ou devidamente autorizada por es<::rito pela QUARTETO. ........ -""" ~ ......... ....... ,._..,. colecção Psicologia Clínica e Psiquiatria coordenada por óscar F. Gonçalves ...... lllf.kJ ~ .'liJ<J ........, (DES)EOUllÍBRIOS FAMILIARES UMA VISÃO SISTÉMICA MADALENA ALARCÃO Glossário Joana Sequeira 3.ª EDIÇÃO ~ QUARTETO ;;ü.! '--~ Índice Nota à 211 edição ········· . ..7 Prefácio ......... . ··············· 9 Nota ao leitor ........... . Introdução ................................................. . 13 15 CAPÍTULO 1 - Família como sistema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 1 - Definição de sistema e propriedades do sistema familiar . . . . . . 39 2 - Estrutura da família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 3 - Commücação na família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 4 - Mecanismos de funcionamento da família . . . . . . . . . . . . 83 5 - Stress e cri·se familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 <r' CAPÍTULO 2 - Desenvolvimento familiar 1 - A formação do casal ..................................... . 2 - Família com filhos pequenos .............................. . 3 - Família com filhos na escola . . . . ......................... . 4 - Família com filhos adolescentes ........................... . 5 - Família com filhos adultos .... 6 - Variações em tomo do ciclo vital .......................... . 6. l. - Famílias reconstituídas ............................ . 6.2. - Famílias monoparentais .. 6.3. - Frunílias adoptivas 6.4. - Famílias de homossexuais 6.5. - Famílias comunitárias .............. . 107 115 131 153 165 185 203 206 214 220 230 233 CAPÍTULO 3 - (Des)Equih"brios familiares ...... . . .......... 237 1 - Família com P.I. toxicodependente ............. . 2 - Família com P.I. delinquente .............................. . 3 - Família com P.I. violento e violência familiar ................ . 4 - Família multiproblemática ou multiassistida .................. . Nota Final ............. ..................................... . Glossário .. . . . . . . . . ............................. - . Bibliografia ... . 253 277 289 317 337 339 361 ···--~---------·-----. --- --._, -~-- -,_- ~ ·- ------- *'----".t" '-----~- '--- -----~--- "----"""'"' "'--...,--- __ ......._ __ . "-.,-""'!L'--- .,_ ----.~ - ',_,_. ---'-_,IA .. ~ ,.... _ _... __ .~ ~ ~ ~~ ~ .._..,. ~ ......... Nota à 2ª edição Dois anos volvidos, (des)Equilíbrios Familiares apresenta-se em 2' edição. Considerando que o seu conteúdo continua a servir os propósitos que presidiram à sua elaboração, a autora entendeu manter, no essencial, a primeira versão desta visão sistémica da vida familiar e das suas relações com outros sistemas, assim como do próprio percurso da Sistémica. No entanto, surge a actual edição numa. outra colecção da Quarteto Editora - Psicologia Clínica e Psiquiatria, coordenada por Óscar F. Gonçalves. Tendo nela já alguma participação e estando programadas ou- tras colaborações, a autora e a editora consideraram interessante e útil nela inserir uma obra que continuará a constituir a base teórica da sua forma actual de pensar a realidade e nela (com ela) intervir. Ao coorde- nador da colecção agradecem a abertura demonstrada. O público, que tão bem acolheu a 1 ª edição desta obra, esperam continuar a servir. Coimbra, Março de 2002 A autora A editora Prefácio Foi em Julho de 1982 que me licenciei em Psicologia. Tinha tido, até então, dois namorados científicos. Nesse momento descobri que um deles tinha sido um devaneio, sério mas adolescente. Por isso ficou pelo caminho. O outro, fruto de uma opção mais adulta, permitiu-me iniciar um caminho de deséoberta e de afirmação pessoal. Foi um casamento interessante. Ele, mais velho, muito c1llto e sábio, teve a inteligência de me cativar sem me abafar. Sempre me abriu horizontes novos e me deixou experimentar outros caminhos. Aconselhou-me e apoiou-me em momentos difíceis e cruciais da minha vida: umas vezes com mais ternura, outras com mais ironia, mas sempre com muito afecto e respeito. Fez-me sentir que gostava que o seguisse nas suas opções científicas. Mas deixou-me escolher o meu próprio caminho. E assim nos separámos, mantendo a amizade, a cooperação e alguns interesses comuns. Entretanto, conheci muita outra gente e fiz novos amigos. Alguns tornaram-se mesmo muito, muito amigos e com eles co-construí novas aprendizagens. Numa co-evolução entre o que vou sendo como pessoa, o que aprendi com os outros e comigo própria, o que faz para mim mais sentido e o que me torna mais feliz. Escolhi novos parceiros para o trabalho clínico. Que se tornou claramente sistémico. Mas no meu referencial teórico nunca abandonei ~~--~~--~~;,.~_ ~ ~·~ '-~· ........,._ -~ - ~- -~ - ....... ...... """"' ..... 10 (Des )Equilíbrios familiares as lentes que primeiro utilizei para compreender o ser humano e para conhecer a realidade, ou para dela ter uma leitura. Tenho-me treinado a usar vários. óculos, u·ns com a marca da slstémica outros com a marca da psicanálise. Com outras pessoas, que também usam o mesmo tipo de óculos, tenho rnetacornunicado sobre as minhas visões e tentado construir a minha própria marca. Será esta urna ambição desmedida? Não sei ... sinto que é minha e que, ao longo da vida, me tem dado forças e me tem feito sofrer, sobretudo por receio de não ser capaz. Na minha vida, a simetria e a complementaridade cornunica- cionais têm andado de mãos dadas, facilitando um percurso que, corno não podia deixar de ser, tem tido os seus escolhos mas tem .... tido, tam- bém, muitas coisas boas. Com esta minha "família" tenho tentado manter sempre uma comunicação funcional, metacomunicando, sobre- tudo, sobre sentimentos e vivências menos positivas e alimentando-me das gratificações que a relação permite. Penso que ternos tido a inteligência de não rigidificar a complementaridade nem de entrar em escalada simétrica. Já nos têm tentado armadilhar o percurso mas espero que o nosso afecto e a nossa inteligência nos deixem continuar a caminhar durante um longo futuro. "Quase-filhos" tenho tido bastantes. Sobretudo em regime de colocação. Uns mais cordatos, outros mais traquinas; uns mais inteligentes e perspicazes, outros mais limitados; uns mais autónomos, outros mais dependentes; uns mais afectuosos, outros mais distantes. É uma prol que me tem gratificado muito e que me tem nutrido ao longo destes quase vinte anos. Os amigos, os colegas e algumas instituições, ou partes delas, têm constituído uma boa rede de apoio. Sinto que sem ela a vida ter-se-ia complicado muito mais e, por isso, tudo tenho feito e continuarei a fazer para poder contar com o seu apoio. Se possível, procurarei alargá-la ainda mais. A vida, particularmente as pessoas que têm sido significativas para mim, tem-me permitido experienciar a gratidão, sentimento que nutre e embeleza. A elas devo, pois, parte do melhor que tenho e por isso lhes quero agradecer do fundo do coração. \..,,...~_:- -~"""' """'> """ ........ ...,,. ......,. ........ .....,. -~ II Prefácio Ao chegar aos quarenta anos tive uma alegria muito especial. Alguém muito meigo e carinhoso, trabalhador e inteligente, autónomo, receptivo e disponível aceitou partilhar comigo, entre outras coisas, o projecto de construir este livro. A ela devo a leitura atenta de todas estas páginas, assim corno a construção ü1tegral do glossário. Pela enorme alegria que a Joana me dá, de querer ser minha amiga e de querer trabalhar comigo, obrigada. Urna recente editora, arrojada e entusiasta, igualmente disponível e confiante permitiu.me, através de uma das suas linhas editoriais, dar à luz urna ideia que já vinha alimentando há alguns anos. A história deste livro conta-se rapidamente. A vontade de escrevê- -lo decorre da interacção de três grandes necessidades: a de fazer um balanço reflexivo do meu próprio saber, aproveitando a oportunidade para o alargar; a de dar a conhecer uma versão escrita dessa reflexão, habitualmente divulgada de forma verbal, em contexto de sala de aula ou em espaço mais alargado de formação; e a de facultar a alunos da licenciatura e da pós-graduação um instrumento de trabalho que lhes pudesse ser útil. Os dois primeiros objectivos estão em grande parte preenchidos. Em relação ao terceiro o futuro responder-me-á ... Com tão claras intenções auto e hetero-didácticas, este livro não podia deixar de ter a forma de manual. Criado no contexto da literatu- ra que tenho vindo a consultar e das práticas terapêutica e pedagógica que tenho desenvolvido, ele pretende reflectir a forma corno entendo a sistémica, a(s) farnília(s) e os seus indivíduos, os seus movimentos de co-evolução com os contextos em que se movem, os seus múltiplos equilíbrios, as suas principais dificuldades e competências. Esquema- ticamente estes são os diferentes capítulos do livro, a que se sorna um glossário final. Mas, sistemicarnente, todos têm um pouco de tudo e, por isso, cada capítulo alimenta-se, recursivamente, da informação existente nos restantes. Assim, cada parte está no todo e o todo está também em cada parte. Nesta caminhada pela sistémica tenho tido encontros muito fru- tuosos: de alguns tenho a alegria de guardar, para além das ideias, o som, a cor e o cheiro das pessoas, dos vários lugares onde nos ternos encontrado e das diversas histórias que ternos contado e imaginado; de ~- 12 (Des )Equilíbrios familiares muitos mais só conheço o saber escrito. Há, entre todos, uma colega com quem tenho feito uma aprendizagem muito especial. Na reflexão e no trabalho sistémicos seriamos hoje, provavelmente, bem diferentes se os nossos caminhos não se viessem cruzando tanto nem tivessem ainda tanto para percorrer. À Paula, minha leitora critica, agradeço, sobretudo, o quotidiano que me tem ajudado a construir. Ao António e à Joaninha, que me vêem passar horas agarrada ao computador, às folhas brancas e às folhas impressas, qt1e se afastam para eu poder chegar ao fim, à Adília, que até faz férias com a neta para eu poder ter mais umas horas, e a toda a restante família a ternura de quem é feliz por tê-los. Coimbra, Setembro de 1999 ~ ----- Nota ao leitor As notas são, para mim, quase um vício. Mas sinto-as necessárias, quase sempre imprescindíveis. Ou porque acrescentam urna infor- mação que considero importante mas que, ao ser introduzida no corpo do texto, perturbaria a lógica da sua construção, ou porque re-orientam o leitor em relação ao texto global, ou porque traduzem um aponta- mento de réflexão que me pareceu interessante mas apenas comple- mentar. Desta forma, as notas acabain por ser, na sua maioria, tão importantes como o próprio texto. Desculpar-me-á o leitor estes desvios a que o obrigo. Desejo-lhe que consiga encontrar uma forma pessoal, satisfatória, de percorrer estas diversas ruelas do meu pensa- mento sem perder de vista as ruas principais. Estou consciente de que a arquitectura do meu pensamento tem muito da topografia medieval, em que ruas, n1elas e becos se entrecruzam para conduzir à praça prin- cipal. A topografia ortogonal romana é bem mais clara, organizada e linear mas também é a linearidade do pensamento que a sistémica quer ultrapassar, para aceder à complexidade do ser humano e da vida familiar e social... Pensando poder dessa forma clarificar mais facilmente as ideias apresentadas, recorri, com alguma frequência, à descrição e leitura de situações com as quais me tenho deparado no meu quotidiano pessoal e profissional. Obviamente que alterei, naquilo que não transformava a leitura c a compreensão que fiz dos casos relatados, os dados que mais facilmente podiam identificar as pessoas ou as situações referi- das. i!"'-_.Af .,,~ ~~ ·.~ ... ___ - --· -- ~~ ~.--- ~~ -- ~ ·~ Introdução ~ ~ ......, __ Ler sistemicamente é um exercício complexo, circular e permanentemente recursivo. Na década de quarenta, Ludwig von Bertalanffy, autor da Teoria Geral dos Sistemas, formulava um conjunto de princípios válidos para diferentes sistemas, fossem eles biológicos, físico-químicos ou sociais e, em 1948, Norbert Wiener publicava o seu trabalho sobre cibernéti- ca. O conhecimento que a teoria dos sistemas e a cibernética permiti- ram inspirou diversos investigadores que, unanimemente, aceitaram aquilo que pode ser considerado o primeiro axioma sistémico - que o todo é mais do que a soma das partes. Na década de 50, a terapia familiar começava a dar os primeiros passos, rompendo com o modelo psiquiátrico tradicional, excessiva- mente organicista e ü1dividualista. Partindo do contexto clínico, nomeadamente da intervenção com esquizofrénicos e delinquentes e das insuficiências sentidas na aplicação do modelo psicanalítico ao seu tratamento, alguns clínicos e investigadores começaram a focalizar a atenção na vida familiar, elegendo como unidade de análise as relações interpessoais e já não a realidade intra-psíquica nem o indivíduo iso- ladamente considerado. Nos Estados Unidos, mais concretamente em ~ 16 (Des)Equilíbrios farniliares Palo Alto, Gregory Bateson, Dom Jackson, John Weakland, Jay Haley e, mais tarde, Paul Watzlawiclc, investigavam no sentido de compreen- der os processos de comunicação nas :famílias com um membro esquizofrénico. CJhernéHcu(s} Assimilando o sistema familiar a uma máquina cibernética, a pers- pectiva sistémica começon por interessar-se mais pela estabilidade do que pela mudança. Inicialmente tinha como referência o modelo de funcionamento dos sistemas abertos, em equilíbrio, e o seu conceito chave era o de horneostasia. O estudo dos sistemas auto-regulados tinha permitido compreen- der que era por retroacção negativa que eles reduziam, ao mínimo, as perturbações exercidas pelo meio. O exemplo clássico utilizado pelos primeiros cibernetistas foi o do termóstato. Regulado para urna deter- minada temperatura, ele repõe a temperatura prevista todas as vezes que as condições térmicas do meio ambiente se modificam. E fá-lo reduzindo ao mínimo as suas variações. Por outras palavras, se o ter- móstato está regulado para os vinte graus não é necessário esperar que chegue aos quinze graus para que ele reponha a temperatura inicial: aos dezanove graus acciona o funcionamento do sistema de modo a que, rapidamente, o ambiente retorne os vinte graus. A regulação pos- sibilitada pela retroacção negativa constitui, então, a ideia fundamen- tal do que posteriormente se designou por primeira cibernética'. Aplicado este princípio ao sistema familiar, a observação centra- va-se nas redundâncias (i.é, nos comportamentos repetidos) e nas regras que conduziam à estabilidade do sistema. Simultaneamente, e até porqne as famílias estudadas eram as sintomátícas e era necessário É importante não esquecer que a teoria cibernética se desenvolveu, durante a Segunda Guerra Mundial, com objectivos bélicos: pretendia criar armas de guerra auto-reguladas que, partindo de um ponto distante (sistemasde apontamento anti- -aéreo), chegassem ao alvo com o máximo de precisão. Dois aspectos eram, então, fundamentais: por um lado, os erros da mira tinham que ser mínimos (daí a importân- cia da retroacção negativa) e, por outro lado, era necessário poder prever, com o má- ximo de exactidão, o local em que se encontraria um móvel, veloz, guiado por um ser inteligente capaz de encontrar caminhos de fuga (Boscolo e Bertrando, 1996; Foerster, 1996). 17 Introdução ajudá-las a funcionar de urna forma não perturbada, a investígação procurava compreender também os comportamentos ou aspectos per- turbadores, aqueles que provocavam instabilidade e crise. Se o feed- -back2 negativo era considerado responsável pela reintrodução, no sis- tema, de informação auto-correctiva conducente à estabilização do mesmo, o feed-back positivo era visto corno responsável pelo desen- volvimento de um conjunto de modificações que conduziriam o sis- tema à sua transformação3 • No quadro de uma concepção que definia o sistema como o "con- junto de elementos em interacção de tal forma que urna modificação num deles provoca urna modificação de todos os outros" (Marc e Picard, 1984, 21) e que o concebia corno regido pelo princípio da esta- bilidade, em que a morfogénese provocada pelo feed-back positivo era considerada como um mal necessário à obtenção de novo equilíbrio, o sintoma era visto corno um sinal de disfuncionamento de todo o sis- tema, como uma forma de o mesmo comunicar com o seu interior e com o seu exterior. Sendo-lhe conferido um valor comunicacional, a ênfase da análise familiar era colocada nas comunicações intra-fami- liares a partir das quais podia inferir-se a relação existente. E o sin- toma, na sua vertente paradoxal de "pedido de mudança para a não mudança", era entendido como um alarme do sistema, face ao meio e a ele próprio, e como urna porta de entrada para o terapeuta e para o movimento de morfogénese. Não esqueçamos que, nesta primeira etapa, considerava-se como fundamentat para a sobrevivência dos sis- temas, que os mesmos fossem capazes de, integrando a informação recebida do exterior (o feed-back), corrigir rapidamente os desvios de forma a retomar a situação original de estabilidade. No caso da família sintomática, pensava-se que ela tinha rigidificado o seu funcionamen- to homeostático, i.é, não tinha aceite a informação transmitida pelo feed-back positivo e, dessa forma, nunca mais conseguia reencontrar urna estabilidade funcional. A estabilidade em que permanecia ameaçava a integridade do próprio sistema pois este só conseguia 2 J?eed-back é habitualniente traduzido por retroacção. Dada a ampla utilização da palavra inglesa em textos científicos, utilizaremos indistintamente os dois termos. 1 Na sua aplicação à família este assunto será desenvolvido no capítulo l. -·~ --'-- ---~ ~ -/ .......... ~ ·-~ _.,... -----~ <-""----.---~ --.,,.d.____., ..,___ ___ _ ____ __.__._,. ---- ~-_,,,_____,- ---~~ ~- ~ --.-....--- ~~-~ J:..~.uC- '--,..-4.,. '-- '--v'- .. 18 (Des)Equilíbrios familiares operar pequenos ajustamentos que se revelavani ineficazes para a transformação necessária naquele momento da sua vida. Com efeito, é importante não esquecer que nos sistemas vivos, como é o caso da família, a evolução (de cada um dos seus elementos e do sistema total) implica, por um lado, que nunca é possível voltar ao ponto inicial e, por outro lado, que há momentos de crise em que uma mudança na estrutura do sistema é necessária. O sintoma podia ser então visto corno u1na resposta relativamente criativa de um sistema incapaz de realizar o movimento de morfogénese exigido pela crise (natural ou acidental)', dado que tinha rigidificado o seu funcionamento homeos- tático. Criativa na medida em que permitia ao sistema conciliar dois aspectos aparentemente inconciliáveis: a afirmação da manutenção e a solicitação da mudança. Ao focalizar o pedido de mudança num pro- blema concreto e num indivíduo singular, o sistema pretendia ignorar uma informação que ameaçava o seu funcionruncnto homeostático. Por isso o desaparecimento daquele sintoma, ou a sua melhoria, era fre- q1ientemente seguido pelo aparecimento de um outro sintoma, even- tualmente noutro elemento, ou por um agravamento do primeiro. Mas, enquanto sinal de alarme, o sintoma permitia também que a mudança fosse exteriormente oferecida ao seu portador. O que os terapeutas fa- miliares procuravam fazer, nessa altura, era compreender o valor homeostático do problema apresentado e reenquadrá-lo no contexto do funcionamento familiar. Conotando positivamente o comportamento de todos os elementos da família, i.é, mostrando a sua positividade para o funcionamento familiar, o terapeuta procurava, pela via da mor- fogénese gradual' ou pela via da homeostase", reconduzir o sistema a 4 Este assunto será igualmente abordado no capítulo 1, ponto 5. j A escola estrutural é, sem dúvida, um bom exemplo de uma mudança gradual da estrutura da família pela introdução da morfogése. Pense-se como as sondagens são habitualmente utilizadas para avaliar a capacidade do sistema para aceitar a proposta de mudança. Ou como as prescrições são utilizadas para a fomentar (prescrições de reestruturação sistémica) ou refOrçar (prescrições de reforço). Para um 1nelhor co- nhecimento do tipo e funções das prescrições aconselhamos a leitura de Andolfi (1981, 139-199). 6 Inscrevem-se, aqui, os modelos de intervenção que utiliza1n o contra-paradoxo terapêutico. Entre outros, Palazzoli e a escola de :i\1ilâo desenvolveram aprofundada- mente este tipo de intervenção (Palazzoli et ai., 1978). 19 Introdução um novo período de estabilidade q11e, pela evolução então operada no jogo interaccional e nos padrões transaccionais do sistema, lhe possi- bilitasse um funcionamento homeostático não sintomático. Ana tinha 9 anos e ·frequentava o 4° ano de escolaridade. O seu rendimento escolar era muito oscilante e os resultados insuficientes na matemática prenunciavam uma reprovação e deixavam os pais, -sobretu- do a mãe_, ·muito ansiosos. Na família de Ana o pai tinha, claramente, um papel maternal e à mãe_ competia a definição e imposição das regras. A sua relação com a filha era notoriamente viabilizada pelo acompanhamento que Céu fazia das aprendizagens escolares de Ana. Fora da temática escolar nem Céu sabia como aproximar-se da filha nem esta sabia ligar-se à mãe. Na escola, Ana tinha wn professor muito seu amigo que tinha feito nela um forte investimento, deslocando um afecto paternal que tinha fica- do sem objecto (já que o filho o tinha desiludido e abandonado). Considerando que a mãe de Ana a superprotegia e pretendendo ser ele o único mentor escolar da criança; o professor _dizia a Ana para fazer ostra- balhos de casa sozinha. Se não soubesse fazê-los, ou se se enganasse, ele ensiná-la-ia e corrigi-la-ia no dia seguinte. Céu e Ivo, por seu turno, consideravam que o professor era uma pes- soa muito autoritária e Céu entendia que ele era o responsável pelas difi- culdades da filha, já que ora a discri1ninava ora a superprotegia. Co1no a matemática era o ponto fraco de Ana e o ponto forte de Céu, esta aproveitava a "deixa,, para estudar com a filha e assim aproximar-se dela. Presa de um double-bind imposto por duas injunções paradoxais prove- nientes de pessoas que estimava e considerava co_mo autoridades (o pro- fessor que lhe dízia para não aceitar a ajuda da mãe e a mãe que lhe dizia para não ligar ao -que o professor -afmnava e -aprender com ela), Ana procurou ·manter a estabilidade dos sistemas a que.pertencia mostrando à mãe que precisava dela-e dizendo ao professor que tinha razão. E te-lo não ameaçando integralmente a sua autowestima. Assim, ora falhava claramente na matemática, obtendo um dois ou um três ;nas provas rea- lizadas, ora atingia, noutras provas da mesma disciplina, um .quinze ou um dezassete. Face a este problema os pais pediram ajuda para a Ana. Os terapeu- tas reenquadraram,primeiro, o sintoma no contexto do sistema famíliar, propondo um conjunto de alterações na estrutura-familiar, e, num segun- do tempo, reenquadraram o problema no contexto do -triângulo Ana- - ..L._ 20 (Des )Equilíbrios familiares pais( mãe )-professor, provocando o sistema familiar no sentido de este reequacionar a sua comunicação com o sistema escolar. Finalizadas estas transformações, a família prosseguiu o seu desenvolvimento e o sintoma desapareceu. Sendo um caso bem sucedido, os terapeutas sentiram, muitas vezes, alguma dificuldade em implementar as transformações que o diagnóstico da sih1ação lhes tinha sugerido. Por vezes consideravam que a família lhes estava homeostaticarnente a resistir. Mas iam co-construindo um per- curso que se foi afirmando pela mudança. Diríamos que eles estavam na cibernética de primeira ordem mas com um pé a sair para o que depois descobriram que era a cibernética de segunda ordern7! No tempo da primeira cibernética e dos sistemas exteriormente auto-regulados, a família era, então, considerada como uma realidade objectivável e o seu observador era entendido como uma entidade neu- tra, capaz de, com perícia e atenção, descortinar as razões do seu dis- funcionamento e provocar a mudança necessária para que o sistema pudesse retomar um desenvolvimento que a crise tinha parado. Em- bora os primeiros ciben1etistas soubessem que, nos sist~:mas-..YiY~Q§., o proce_s~()JnióadCl pela mudança.l'Ia.5rre.versível (já quení\Q.é-Jlossível voltar exactamente ao estado in.!cial) o seu o_bjeçtivg.fixava-se, por um fado; ria previsão' cuidádosa-da forma como um sistema poderia opor- -se à mudança e, por outro lado, na avaliação das probabilidades de que a mudança fosse anulada. Estavam criadas as condições para uma leitura mecanicista, ainda que circular, do funcionamento do sistema. Em síntese, podemos dizer que: "A primeira cibernética conside- rava a família como um sistema que, sujeito a perturbação, modifica- va as suas condições o mais possível para torná-las semelhantes à sua condição inicial, mediante um conjunto de retroacções negativas. As novas condições da família eram interpretadas como sinais de uma possível mudança face à qual ela reagia reduzindo-a ao mínimo. Um sintoma num membro de uma família evitava uma mudança maior ao sistema familiar" (Boscolo e Bertrando, 1996, 70), embora, como vimos anteriormente, constituísse, também, uma forma de, indirecta- 7 Para um conhecimento mais aprofundado deste caso veja-se Alarcão (1998a, 113-119). 21 .Introdução mente, solicitar ao meio ajuda para mudar. Ou, pelo menos, o meio (técnico) assim o entendeu. A dimensão homeostática do sintoma era reafirmada pelo comentário da família - "de que estava tudo bem com ela e de que o único problema era o que o sujeito sintomático apresen- tava" - e pelo seu pedido - "de que o terapeuta mudasse o sintoma mas deixasse a família na mesma". Em 1968, Maruyama insiste, no campo da cibernética, na diferença entre sistemas vivos e sistemas não vivos. Enquanto que nestes pre- domina a mosfostase (funcionamento produzido mediante retroacções negativas) nos sistemas vivos predomina a morfogénese (resultante de um domínio das retroacções positivas sobre as retroacções negativas). Também, na prática, os clínicos compreendiam que a estabilidade familiar era feita de pequenas mudanças' e que os movimentos de mor- fogénese eram não tanto um mal menor mas uma condição necessária ao seu pleno desenvolvimento. Neste período, também conhecido por segm1da cibernética ou segunda vaga, o observad~JLd~J:.nfatizar as_ retr{)_ac_ç_õ~s_negativ:1s_para _ _passar ·ª· çaptar. .. a_interacçi\o .entre r~Jroacções_ ;negatiy_ªs ___ e __ p9si_tiva.s, i.é, entre as tendências __ do ._sistema s Estas irão ser chamadas mudanças de tipo 1, ou de primeira ordem, enquanto que as outras serão apelidadas de mudanças de tipo 2, ou de segunda ordem. Este assunto será mais desenvolvido no ponto 4 do capítulo 1. Wiener, ao estudar os sistemas regulados por retroacção negativa, tinha encon- trado uma dificuldade: as máquinas corrigiam o seu funcionamento de acordo com a retroacção recebida mas, em vez de se ajustarem progressivamente à meta-proposta, oscilavam em torno dela. A introdução da noção de circularidade permitiu-lhe explicar este acontecimento: quando o sistema é estimulado (ou perturbado) exteriormente, o processo que se desenvolve depende não somente daquilo que o estímulo gera nos seus componentes e na interacção entre A e B, B e C, ... mas também daquilo que o sistema tem como finalidade ou propósito, o que cria uma endocausalidade ou causalidade própria. A introdução da noção de informação (elemento fundamental para a regulação dos sistemas) e a noção de totalidade sistémica (princípio axiomático da sua própria existência), acabaram por mostrar que: "Regular é gerar níveis de meta-estabilidade mais além de, e produto de, uma mudança cofistante em outros níveis do funciona- mento do sistema" (Pakman, in Foerster 1996, 21). Foi este tipo de mudança, que não altera a estrutura do sistema, que ficou designada por mudança de tipo l. Como se compreende, as famílias têm, também, necessidade dela no seu quotidiano . "--- Cibernética de!.' ordem ,....___ --- --- ~- ,,_ __ ...,._ 22 (Des)Equilíbrios familiares para a morfostase ou para a morfogénese. Dá-se, assim, o reconheci- mento das potencialidades evolutivas do sistema: "Um mesmo acon- tecimento, nrun mesmo sistema, terá consequências diversas depen- dendo do facto de ocorrer num período de máxima retroacção negati- va (máxima estabilidade) ou num período em que é máxima a retroacção positiva (máxima instabilidade).( ... ) Os processos supostos por Maruyama são tais que os efeitos de um acontecimento inicial de menor importância (kick) podem ver-se reduzidos, ou anulados, ou, antes, ampliados pelo predomínio de retroacções positivas, conduzin- do a uma divergência crescente das condições iniciais. Uma pequena ou insignificante diferença entre dois membros de uma família, por exemplo entre duas crianças, pode representar o começo, o kick, de um aumento da diferença( ... ) que pode levar ao desenvolvimento de duas histórias, de dois destinos, completamente divergentes" {Boscolo e Bertrando, 1996, 71-72). No entanto, será necessário esperar por Prigogine para que a imprevisibilidade da direcção da mudança seja explicitada e teorizada. Como será necessário aguardar por Maturaua e Varela para que a dimensão auto-organizativa dos sistemas e a sua autonomia.reabilitem a importância de uma propriedade dos sistemas que a cibernética de primeira ordem acabou por esquecer - a da equi- finalidade'. Finalmente, será necessário que chegue Heinz von Foerster para que, ao falar dos sistemas observantes e da recursividade esta- belecida entre o sistema observador e o sistema observado, se recupere a ideia de co-evolução, tão cara a Bateson'". Durante a cibernética de primeira ordem, o indivíduo foi esqueci- do, em favor do sistema total, a história foi posta entre parêntesis, em favor da importância das interacções presentes (desenvolvidas no "aqui e agora" de cada contexto), e o mndelo da circuli!Ji<ill.de._(respon- ~Aplicadas à família, as propriedades dos sistemas serão abordadas no ponto 1 do capítulo 1. 10 De acordo com Bateson (1987), a co-evolução é um processo de crescimento conjunto em que a evolução, crescimento e mudança de dois sujeitos em interacção (ou de um sujeito e do seu meio) se interpenetram mutuamente. Constitui, pois, um sis- tema de mudança evolutiva. ,.,_....,.._ __ --~~ ~ - _/'!fllh,t) """" ·· ...u· ·-Lh -· li<V. --vo -· UY --bl .. 23 Introdução ... __ _ __ ····- sável pela compreensão do conjunto das interacções) soçobrotl à ideia de causalidade linear, identificando um novo responsável pela pertur- baçãÜSl~âtiêa'~ a família ou, mais propriamente, a homeostasia familiar. Será, pois, necessário entrar mais profundamente num para- digmãâa complexidadepara que a perspectiva sistémica se enriqueça e reintegr.e a di!11e11s1ip histórica d()_.8-is\ema, a dimensão i11djyicjua1d,()S se,;:s-c;;mponentes, a ideia de si-,.;gularidade, de auto-organização e d.t; outras que adiante referiremos. Apesar do sistemismo redutor de que hoje acusamos (e com razão) a cibernética de primeira ordem, é importante acentuar que ela criou uma verdadeira ruptura com a epistemologia vigente e toda a terapia familiar desenvolvida até aos anos oitenta obrigou a uma clara alte- ração na forma de equacionar os problemas apresentados pelos indiví- duos. Com efeito, a~g!_;~5!: ... ª1:ª!~.miça_r.~,X.1!.sg, desde a sua origem, v<Jr 0 slljeito comg_ç:;1usa.dªs. S\l,!\S .. clific11.ldades .. ou_p_ermtlwgQ~s ... 'LQ.. próprio espaço de expressão dessas dificuldadesalarga.cs.e.para.integrar ()SCOlltíi~(õ~·-~~ ___ que o _.sintoma_ --~grge,11 • Estes são, então, considerados cómo entidades que co-e,;oluem con:; o sujeito sintomático, conferindo um significado e uma função comum ao problema apresentado que, por isso mesmo, se perpetua. Por outro lado, e essa é a nossa convicção quando lemos os clínicos e quando pensamos no nosso próprio per- curso, a prática da terapia familiar era menos redutora do que a sua teorização", razão pela qual temos hoje muita dificuldade em situar certos autores num ou noutro destes dois períodos de evolução da 11 É necessário referir que, numa primeira etapa, os terapeutas familiares sistémi- cos centram-se excessivamente no sistema familiar, esquecendo os sistemas que com ele estão em relação. Numa segunda fase, e ainda no quadro da cibernética de primeira ordem, alargam a sua observação e intervenção de modo a poder integrar sistemas como, p.e., o hospital, a escola, a fábrica. Neste movimento tiveram inegável importância os trabalhos desenvolvidos pela escola de Milão (Palazzoli et al., 1984, 1987). Evéquoz (1987, 1987/88) estudou, particularmente, as relações entre o sistema escolar e o sistema familiar e Benoit (1984, 1986) deu um importante contributo para o estudo das relações com o sistema institucional. 12 Pode compreender-se que, num período de afirmação, os apresentadores do novo modelo sentissem necessidade de enfatizar os elementos que mais o distinguiam dos modelos vigentes, nomeadamente do psicanalítico de onde provinham muitos dos primeiros terapeutas familiares. ......_ Ciherné1ica de 2." ordem 24 (Des)Equilíbrios familiares própria sistémica ou razão ainda pela qual continuamos a usar muitas da suas propostas de intervenção e de organização do próprio proces- so terapêutico. No fundo, para que uma possível nova evolução con- ceptual não nos acuse (e com razão) de novo reducionismo, é impor- tante que as nossas construções da realidade, nomeadamente as relati- vas ao sistema familiar, integrem vários pontos de vista, resultem de questionamentos diversos e de níveis diferentes de análise e não es- queçam que têm autores, seus pais mas não deuses, e, como tal, cons- trutores de realidades não absolutas e, de alguma forma, imperfeitas. O nosso saber e o nosso sentir não são lineares mas alimentam-se, recur- sivamente, de vários componentes, situados em vários patamares. A nossa riqueza estará, então, na sua integração e não na sua clivagem. Mas voltemos um pouco atrás e situemo-nos no universo científi- co em que a teoria geral dos sistemas e a cibernética se desenvolve- ram: nessa altura o destino estava fixado por leis, o acaso não tinha lugar no espectro científico e o determinismo impunha o seu domínio; o mundo regia-se por uma dinâmica de causa-efeito, apesar da causa- lidade circular que se afirmava (Droeven e Najmanovich, 1997). Neste quadro, as singularidades do sistema (Elkalm, 1990), enquanto particularidades específicas do mesmo, essencialmente expressas ao nível da comunicação analógica e da metáfora, não eram valorizadas nem utilizadas como forma de amplificar as flutuações do sistema e conduzi-lo ao ponto de bifurcação de que Prigogine irá falar~......, -nos. Como não fazia igualmente sentido pensar que o observador era também um participante que interferia na realidade que observava. Por isso Heinz von F oerster apelidou esta cibernética de cibernética de ; primeira ordem ou cibernética dos sistemas observados. _ _ _ j "'------· ---~--·-~------·"·-,,.,._.__ ---·-. No início dos anos 70, von Foerster refere-se, pela primeira vez, à cibernética de segunda ordem, ou cibernética dos. sistemas obser- va11te_s, que, como o próprio nome indica:-se-·dif~~~Cla-··aa-·a:ritêfior, desde logo, pela inclusão do observador nos sistemas estudados. No fundo, o que ela visa é, basicamente, a aplicação a si própria dos princípios da cibernética. Por outras palavras, enquanto que a ciber- 25 Introdução nética de primeira ordem pretendia descrever os sistemas, a cibernéti- ca de segunda ordem procura, para além desse objectivo, descrever aquele que os descreve. Na base da mudança operada está a ideia de que não há um observado sem um observador e de que o resultado da observação é sempre uma construção resultante da interacção recursi- va entre o que observa e o que é observado (F oerster, 1996). Não tendo em conta os processos mentais e separando o sistema observado do sistema observador, a cibernética de primeira ordem caiu, corno já afirmámos, numa postura demasiado mecanicista. C"om efeito, os sistemas humanos ficaram demasiado semelhantes aos sis- temas não humanos e despossuidos de algo que é essencial à sua existência e que define a sua própria complexidade - os significados da acção. Como afirma Ugazio (1991), o aspecto semântico não foi con- siderado, dada a ênfase colocada no aspecto pragmático. Como já ante- riormente referimos, o domínio do modelo psicanalítico, que então se fazia sentir, levou estes primeiros terapeutas, sobretudo os mais li- gados ao estudo dos aspectos comunicacionais na sua vertente pra- gmática13, a considerar a família como urna caixa negra, i.é, como um 1J Com o desenvolvimento da terapia familiar foram surgindo divérsas escolas e modelos de intervenção. Enraizando-se mais profundamente nos contributos da teoria geral dos sistemas e nos conceitos a partir dela desenvolvidos (tais como, as noções de sistema, finalidade de sistema, hierarquia sistémica, regulação do sistema), a escola estrutural de Salvador Minuchin enfatiza a ideia de organização estrutural do sistema familiar e sublinha a necessidade de reestruturação do sistema através da realização de operações de reestruturação da sua estrutura. Integrando as noções de mudança de 1 ª e de 2ª ordem, desenvolvidas por Watzlawick e colaboradores (1975), e a ideia de evolução temporal (particularmente ligada ao ciclo vital), a escola estrutural chama claramente a nossa atenção para a importância de considerarmos a etapa de desen- volvimento familiar na avaliação da funcionalidade familiar (Minuchin, 1979; Minuchin e Fishman, 1988). Muito ligados ao estudo da pragmática da comunicação humana, os autores estratégicos centram-se nos aspectos relacionais/comunicacionais do "aqui e agora" da interacção, procurando mudar os círculos viciosos da comuni- cação disfhncional. As suas intervenções são, pois, essencialmente centradas nos pro- blemas apresentados e na transformação das redundâncias disfuncionais (Watzlawick Weak:land e Fish., 1975; Fisch, Weakland e Segai, 1994; Nardone tt Watzlawick, 1995; Palazzoli et ai., 1978). Haley (1994) associa-lhes a ideia da escola estrutural sobre a / --~---"'' \_ Aufo- -organfaaçílo ~~-·,_, ·---~---- .,______ --"""'"~ -- .,_ __ __,, ___ _ 26 (Des )Equilíbrios familiares sistema em que as entradas e as saídas de informação são estudadas enq11anto comportamentos-comunicação sem que o funcionamento intra-psíquico do indivíduo tenha que ser equacionado para que o sin- toma possa ser compreendido. De acordo com Onnis (1991), é possí- vel que o facto de Watzlawick e colaboradores terem estudado famílias muito disfuncionais,com uma tendência prevalente para neutralizar toda e qualquer alteração (tetraacção negativa), tenha feito com que a aplicação da cibernética se fizesse na sua dimensão mais mecanicista. Nesta descrição dos sistemas humanos, com circuitos de retroacção negativa, repetitivos e imutáveis, perde-se a noção de te1npo. O sis- tema é sempre igual a si próprio e deixa de ter história, já que o passa- do e o futuro dissolvem-se no presente. Enquanto processo de reflexão sobre o conhecimento ( obser- vador-participante ou sistema observante) do conhecimento (sistema observado), a cibernética de segunda ordem faz da recursividade uma norma, mostrando que a evolução faz-se em espiral e não tanto por um caminho linear. Para estes novos desenvolvimentos muito con- tribuíram, entre outros, os trabalhos de von F oerster, de Maturana e Varela, de Prigogine e de Morin. Vindos de diversas áreas do saber, todos eles ajudaram a abrir a porta da complexidade. Se já na etapa anterior a clínica mostrava que os sistemas abertos, como a família, não são estáticos, conduzindo assim ao desenvolvi- mento das noções de mudança de l' e de 2' ordem, são as ideias de Maturana e Varela que vão dar um contributo decisivo para a com- preensão de como é que os sistemas se transformam (mudam) man- tendo, no entanto, a sua identidade. Definindo organização como "a totalidade das relações que definem uma máquina como uma unidade e que determinam a dinâmica das interacções e das transformações que in1portância do ciclo vital. Murray Bowen (1984), através da noção de triângulo rela- cional, integra os aspectos comunicacionais da interacção mas focaliza a sua atenção na análise das relações intergeracionais, mais particularmente nas dos cônjuges com as suas famílias de origem. As dificuldades do sistema familiar nuclear são, então, entendidas no contexto de déficites de diferenciação familiar relativamente às_gerações anteriores. -~ --~ -~ ~~ ----- _,,.....- ~ ~- ----- 27 Introdução podem sobressair do seu carácter unitário" e estrutura como "a totali- dade das relações efectivas que mantêm os componentes que integram a máquina concreta num espaço determinado" (ín Almeida Costa, 1994, 106), e considerando que a vida é, simultaneamente, intercâm- bio, manutenção e transformação, Maturana e Varela desenvolveram, a propósito dos sistemas biológicos, os conceitos de autopoiése" e de auto-organização. Desta forma puderam Jl.".!18ª1: ... a_ estabilidade. e .a .. mudan9a _~9rg9 soli4árias __ e mostrar7orn_Q-_µrn_sistema .. Jn,uçla, rp_ai1ten- ~~~-~!:~P:~-~:?;~Ç-~-º-- ~ __ transfQ!E?:_~~g-º-ª-~JJª_esJ:rumn1. --~-- - Ao definir sistema como "uma unidade global organizada de inter- -relações entre elementos, acções ou indivíduos", Morin (1987, cit. in Costa, 1999, 56-57) considera que a organização é "a disposição de relações entre componentes ou indivíduos que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidas ao nível dos componentes ou indivíduos". Numa palavra, a organização é o que garante solidez e durabilidade às inter-relações dentro do sistema, ape- sar de todas as perturbações aleatórias que o mesmo possa sofrer. A organização, ao criar uma unidade (sistema) a partir da diversidade (elementos ou componentes do sistema), cria ordem onde há desor- dem; mas origina também entropia, já que toda a organização supõe a desorganização como correlativa. Os sistemas vivos, auto-organiza- dos, são, então, capazes de captar a desordem, de utilizá-la sem se destruírem, de se reorganizarem e de se alimentarem dela, criando a ordem necessária à sua sobrevivência. Nos sistemas vivos, a tendência para uma rápida desordem (entropia) está, pois, inseparavelmente li- gada à sua reorganização (neguentropia). i-1 Maturana distingue dois tipos de sistemas_ dinâmicos: nos sistemas alopoiéticos a organização permanece a mesma mas produz-se algo diferente dos mesn1os; nos sis- temas autopoiéticos a organização permanece igualmente idêntica mas eles são o pro- duto do seu próprio funcionamento (Benoit et al., 1988, 27). De acordo com Maturana, a família, como sistema aberto, corresponde a este segundo tipo de sistemas, embora, na realidade, ele se assemelhe mais aos sistemas fechados. É desta forma que podemos dizer que a noção de autopoiése requer a noção de fecho operacional do sistema. 28 (Des)Equilíbrios familiares Sintetizando, os sistemas a11to-organizados adquirem e/ ou aumen- tam a sua ordem a partir da ordem anterior, dos fenómenos aleatórios e do facto de, a partir da desordem (ruído), seleccionarem eles próprios os elementos que lhes são úteis para a sua estrutura (Pakman, in Foerster, 1996). A ordem assim encontrada possui uma coesão que a toma estável. Aplicando o que dissemos à família podemos entendê-la como um sistema auto-organizado que aceita um conjunto finito de transfor- mações estruturais, conservando sempre a sua organização. As dificul- dades das famílias face às crises e os pedidos de intervenção surgem quando aquela sente ameaçada a sua organização. As implicações práticas desta nova formulação são extraordinárias pois permitem compreender as razões pelas quais as famílias não aceitam todas as propostas de transformação, mesmo que elas pareçam adequadas à sua própria evolução. Durante a cibernética de primeira ordem falava-se de resistência, agora passará a falar-se de autonomia. Decorre do que dissemos que a interacção do sistema com o seu meio é extremamente importante para que ele possa auto-organizar-se. A diferença entre sistemas auto-regulados e sistemas auto-organizados está, então, na capacidade de autonomia do sistema no tratamento da informação que provém desse mesmo meio e no tipo de ligação exis- tente entre ambos. Enquanto na cibernética de primeira ordem o meio informava o sistema, tendo, com ele, uma posição de complementari- dade one-up, na cibernética de segunda ordem considera-se que meio e sistema estão acoplados um ao outro, sendo que os pontos de acoplagem são as perturbações. Nos sistemas autónomos as pertur- bações não são, pois, definidas pelo meio mas é a estrutura do sistema que define as perturbações permitidas. O efeito da perturbação consiste em conduzir o sistema a um novo estado, a urna nova configuração. Um sistema autónomo é, então, um sistema com forte determinação interna pelo que todo o comportamento auto-organizado é desenvolvi- do pela diversidade da coerência interna de um sistema operacional- mente fechado, ainda que informacionalmente aberto. A interacção entre o sistema e o meio faz-se por um processo de co-evolução ou de acoplagem: dois sistemas auto-organizados, autónomos, que se acoplam vão, necessariamente, desencadear modificações mútuas do ·:';! i~ 29 Introdução seu estado interno, podendo criar uma concordância estrutural (acoplagem estrutural). A ideia de que o sistema é operacionalmente fechado, i.é, de que é responsável pelo resultado das suas operações (feitas a partir das per- turbações que realiza com o meio) faz dos sistemas vivos entidades completamente auto-referenciais, dotadas de urna lógica interna. Estes sistemas são, então, autopoiéticos, isto é, são sistemas que se auto-pro- duzem. Desta forma, deixa de ter sentido procurar conhecer um sis- tema para, depois, o modificar e passa a ser adequado interroganno- -nos sobre a forma como o conhecemos. O processo de observação delimita um outro sistema autónomo que inclui o observador e o obser- vado, interactuando num processo circular e auto-referencial que faz com que tudo o que se disser sobre o sistema observado esteja intrin- secamente ligado às características e limitações do observador. Mas voltemos de novo à questão de saber como pode um sistema mudar permanecendo coerente, de türma a melhor compreendermos os contributos de Ilyia Prigogine. Edgar Morin, interrogando-se sobre a noção de sistema, substitui a ideia de que "o todo é mais do que a soma das partes" pela ideia de que ''o todo é, aomesmo tempo, mais e menos do que a soma das partes". Explica esta sua tese dizendo que, se é certo que toda a orga- nização implica o aparecimento de propriedades emergentes no todo e nas partes (propriedades que não estão presentes em cada um dos ele- mentos considerados isoladamente), também ela obriga a constrangi- mentos, a perdas no grau de liberdade das partes, à inibição de certas potencialidades (pelo que a relação constrange alguma propriedade de cada elemento). Desta forma, Morin (in Droeven e Najmanovich, 1997) alerta-nos para que a cegueira reducionista (que só vê os com- ponentes isoladamente) deu lugar a uma cegueira holista (que não vê mais do que o todo). Como já anteriormente afirmámos, se a terapia familiar teve o mérito de fazer-nos recuperar da primeira perturbação oftalmológica, acabou, nos seus primeiros desenvolvimentos, por ficar igualmente cega. É exactamente deste reducionismo que nos fala Palazzoli e a sua equipa quando afirmam: "( ... ) Quer dizer, do reducionismo psicanalítico, -~-:e-'"'~- ~-- ---~.JI'<--- -·~ - __ _...,.-"_ ----- .,, __ ......,. __ ------· ~---# Fh1!11a~ões e cs!r11t.1r .. s dõssipativa• 30 (Des )Equilíbrios familiares que separava o indivíduo das suas interacções 15 , passou-se ao reducionismo holístico, que separava a família (sistema) dos membros individuais que a compunham. Com efeito, por ter tido medo de ter também em consideração, de forma explícita, os indivíduos, as suas intenções e os seus objectivos, à falta de pessoas vivas e reais vimo- -nos obrigados a personificar o sistema, perdendo flexibilidade mental e poder explicativo" (cil. in Droeven e Najmanovich, 1997, 37-38). No intuito de compreender melhor a mudança, Ilya Prigogine estuda os sistemas afastados do equilíbrio. As descrições termo- dinâmicas clássicas consideravam que o sistema evoluía linearmente até um estado final que era o do equilíbrio. Ora o que Prigogine veio mostrar foi que nos sistemas afastados do equilíbrio não existe uma única trajectória possível para a evolução desse mesmo sistema: pelo contrário, há diversas opções, os caminhos bifurcam-se e o acaso inter- vém inevitavelmente no desenvolvimento dessas bifurcações. Quando amplia as suas flutuações, o sistema entra num período caótico, em que se desorganiza, mas que, longe de ser negàtivo, lhe permitirá desenvolver novas estruturas (as chamadas estruturas dissipativas). É, pois, importante sublinhar que caos não significa mera desordem mas antes possibilidade de criar uma nova ordem 16 • De acordo com o que acabámos de dizer podemos, então, afirmar que, no universo em que vivemos, o acaso e a necessidade conjugam- 1' Embora seja comum, entre os sistémicos, encontrarmos afirmações deste tipo pensamos que as mesmas desconhecem a própria evolução do modelo psicanalítico, na qual é dado rnn realce particular à importância das relações interpessoais no desen- volvimento psico-afectivo do indivíduo. Há, no entanto, diferenças substanciais: por um lado, a psicanálise focaliza a sua atenção na dimensão intra-psíquica da vivência dessas mesmas relações e, por outro lado, sublinha o seu impacto na infância e na ado- lescência, considerando que a partir da construção da identidade pessoal (a que o processo adolescencial vai dar uma organização relativamente definitiva) o sujeito é, em condições de equilíbrio psico-afectivo, relativa1nente autónomo face a essas mes- mas relações. Preocupado com a questão etiopatogénica da perturbação mental e entendendo que a construção do ser humano se joga, fundarnentalmente, até ao final da adolescência, o modelo psicanalítico privilegia a dimensão intra-individual. 16 Aplicada às mudanças no sisten1a fatniliar, as ideias de Prigogine serão retomadas no ponto 4 do capítulo 1. 31 Introdução -se para dar-nos estabilidade e para possibilitar-nos a criatividade. Se a estabilidade é necessária, pois não poderíamos viver num mundo totalmente imprevisível, o acaso é igualmente vital para seres humanos conscientes e autónomos. As implicações práticas destas novas formu- lações são inegáveis: a estabilidade e o equilíbrio deixam de ser vistas como metas e o desequilíbrio passa a ser entendido como parte de um processo de complexificação. Por outro lado, o modo como um sis- tema se estrutura não constitui o único possível mas antes t1rna das possíveis formas que, na sua modelização dinâmica, ele encontrou. Isto não significa que um sistema deixe de desenvolver comportamen- tos reguladores e mudanças auto-correctivas, que o técnico deixe de atender às suas redundâncias e regras sistémicas. O que significa é que o acaso, a instabilidade, o desvio fazem igualmente parte de um processo dinâmico de crescimento e que os sistemas são autónomos na sua forma de amplificar as flutuações. Temos falado recorrentemente de complexidade. Pode ter ficado a ideia de que ela constitui uma nova meta a que nos propomos chegar. Longe disso. A complexidade é uma forma de abordagem, um estilo cognitivo, um projecto permanente. Por isso é dinâmica e multidimen- sional (Droeven e Najmanovicb, 1997). Esta é a história de um sábio que, na presença dos seus discípulos, administrava justiça entre dois queixosos. Um deles queixava-se de que lhe tinham roubado uma vaca e considerava que o ladrão, presente na sala, devia ser castigado. Depois de reflectir·Iongamente sobre o assunto o juiz decidiu que, se era assiin como contava, ele tinha razão. Falou . então o suposto ladrão e explicou que realmente tinha roubado a vaca porque os seus filhos estavam a morrer de fome e ele não encontrava tra- balho, apesar de todos os esforços que tiriha feito para o encontrar. Como o seu vizinho era rico achava que ele podia esperar até que pudesse pagar- -lhe.· Depois de pensar: at.uradamente o juiz deu-lhe razão. Aos discípulos que se admiraram de o mestre ter dado razão a duas versões contraditórias dos mesmos factos o juiz, depois de muito meditar, respondeu que tam- bém eles tinham razão. Complexidade 1 ~ i~ j ~ 1 ~ ....__ 32 (Des)Equilíbrios familiares Este conto tradicional hebraico ilustra a multidimensionalidade que o pensamento complexo comporta e constitui uma metáfora exce- lente da nova forma de estar sistemicamente com os outros, connosco (com a nossa identidade técnica) e com a intervenção. Com efeito, a nova sistémica está a construir um diálogo diferente sobre o indivíduo, sobre a relação entre os indivíduos e sobre os processos mentais. Numa palavra, é uma outra história (de entre várias possíveis) aquela que a sistémica agora conta a propósito das relações que se tecem entre os indivíduos, as famílias e os outros sistemas. De acordo com tudo o que acabámos de dizer, o sistema, e natu- ralmente cada um dos seus elementos, é visto como responsável pelas suas narrações, pelas suas histórias e construções. A realidade, passa, da ou presente, não existe enquanto tal, não é uma sucessão de factos objectivamente relatáveis, mas é, sobretudo, um conjunto de significa- dos que cada um de nós constrói num espaço e num tempo determina- dos, em implícita interacção consigo próprio e com os outros, i.é, com os significados deles17 • Mas se é uma_fonstrução _9-_~--ªigD:iflc<!'lli,1S .. J! .. se o acaso é inerente à vi<fa entllujstcuigniliCa.~.(liiJ; opresente.JJãoé_µma deduÇão lógica do pa_ssado e que outr()_s,_siguificados_Q1Ullitras_cons- tru_yões p-odem ser realizadas. Essa é, sem ClíIVia,[,uma das funções do outr_O_ilãriõSsaVid-ã:·a .. -Je-ãI,rir-nos a novos significados, a novas cons- truções. É óbvio que, para isso, ele tem que partilhar algo connosco, uma parte do nosso ser, já que, caso contrário, ele seria apenas um Outro e não um Outro-em-relação connsi~ceo. Mas não pode ser total- mente como nós pois so aaíferellÇa produz informação (Bateson, 1987), isto é, só da diferença (relativa) surgem as flutuações que nos podem conduzir a um novo significado, a uma nova história. São as várias histórias, nossase dos outros, que vão criando a nossa história; como é ela, também, que nos permite criar aquelas. Na sua inter- venção, um técnico não pode, então, negar a dim~nsão histórica do sis- tema que está a conhecer e com o ql!al vai trabàlhar(s~ja ele indivi- 11 Isto permite-nos compreender a razão pela qual, muitas vezes, :as situações relatadas são diametralmente diferentes ainda que compostas por muitos elementos estritamente iguais. As situações de conflito conjugal são disso um exemplo extraor- dinário. ._ ~-3 __ Introdução dt!llhfamiliar ou institucional). Mas também não pode olhar para a história <losTStemã corno-a'explicação da sua configuração actual, das suas competências e das suas dificuldades. Porque esta é, apenas, uma das suas histórias possíveis. Uma família sintom_fili.f_a_éuma família cuja história está congelada, desvit";liz:lé[a: ~;;:história ofici-;;l; q-;_;;;-;;s~a famÍÜa conta está impedindo a evolução do sistema, o crescimento dos seus membros. O terapeuta não pode apropriar-se dessa história para modificá-la. Tem, apenas, que ocupar um lugar a partir do qual possa a_brir espaçosyara ~-ell1ergªnc};u:\e_.110.vªs JJ'1rraçõ_"s-'1_c.Qill!1ruir..p_cla família" (Droeven e Najmanovich, 1997, 46). A sua função não é, pois, ·;rêscO-b~ir-sintetizar-prescrever (a mudança) mas antes in_yestigar-su_- __gerir-r"2_1:g;'1!1J?'!lr~Jmgi;fiL<le noyo ... até que \l!llª_n()_\'ª_hi2tó_ria11p_ar_<:i,:a. Nem o terapeuta nem· a família podem vangloriar-se da autoria dessa emergência: ela produziu-se nos interstícios que ambos conseguiram criar ... Foi como forma de abrir novos espaços no conhecimento que vamos construindo sobre o sistema familiar que escrevemos os capítu- los que se seguem. """.1 ri t.l > 9 "'d t:l ...,, ... ~ t.l ~ (") o r 9 o o ..... "' ... "' ,..._ (':> s t.l (' (' 1 1 i l ( 1 1 l ( • ) \ J t 1 ·, \ ' 1 1. t 1 { \ f '-:~ ~ -'- É habitual pensarmos na família como o lugar onde naturalmente nascemos, crescemos e morremos, ainda que, nesse longo percurso, possamos ir tendo mais do que uma família 18 • Esta é, então, um espaço privilegiado para a elaboração e apren- dizagem de dimensões significativasdainteracção: os contactos cor- porais, a linguagem, a comunicação, as relaç-ões interpessoais. É, ainda, o espaço de vivência de relações afectivas profundas: a filiação, a fraternidade, o amor, a sexualidade ... numa trama de emoções e afec- tos positivos e negativos·que, na sua elaboração, vão dando corpo ao sentimento de sermos quem somos e de pertencermos àquela e não a outra qualquer família. Mas a família é, também, um grupo institucionalizado, relativa- mente estável, e que constitui uma importante base da vida social. Tudo isto faz da família um objecto de estudo de diferentes disci- plinas científicas e um campo de interessada investigação pessoal". Podendo ser encarada em diversas perspectivas, a família vai ser aqui fundamentalmente compreendida de um ponto de vista sistémico, já i& Referimo-nos, naturalmente, à nossa família de origem, à nossa família nuclear, à família de origem do nosso cônjuge. Hoje em dia, com o aumento das se- parações, divórcios e recasamentos (ou novas uniões), o número de famílias de que vamos fazendo parte pode aumentar consideravelmente. 19 Não é sem razão que, nos díferentes curricula escolares, as disciplinas rela- cionadas com a família despertam um interesse acentuado por parte dos alunos. Hoje em dia todos sentimos necessidade de conhecer e de cooperar com a família. O espaço psicoterapêutico de há muito que a reclama ainda que, de modo mais notório, nas si- tuações em que a dificuldade se cristaliza na criança ou no adolescente. O contexto /ll;..l ~ ~- ··llJ.'!,J ·~· ........... ~·l!'-.J·· '~ • ..... ...,~ ·~- ~ .......... -" ·~j ,. __ .!). __ _ 38 (Des )Equilíbrios familiares que o mesmo se nos afigura como um interessante instrumentQ_ de leitura e reflexãp dessa unidade !otat( a família) e. dessa totalid.ade d~~· unidades (os indivíduo;) que a família constitui, num espaço e num~ tempo determinado~. A çm:r1preensã9 sistémica da família, do seu de- se!J:y_olyim.~n_to_ ~ __ do seu funcionamento, não é hoje exactamente a mesma que se tinha nos anos cinquenta, sessenta ou mesmo setenta. Numa fase de maturidade, o modelo abriu-se, como vimos, .iL~CD.m plexidade e divei;sidadeda(s) realidade(s) qµe co-constróL É essa teia conceptual que i1os .propomos começar a percorrer com o _leitor. escolar procura, de forma mais ou menos implicada, mobilizar as relações com a família e potenciar uma interacção ou uma comunicação funcional entre os três vér- tices do triângulo inevitavelmente instituído: o aluno - a escola - a família, O próprio contexto organizacional não pode esquecer uma realidade que integra tão forte1nente a identidade de cada indivíduo-trabalhador. Todo o trabalho comunitário é hoje rea- lizado no intuito de activar o potencial desenvolviinental dos sistemas familiares, tomados na sua dimensão singular (a família Silva ou a família Santos, p.e.) ou na sua dimensão interactiva (as várias famílias que fazem parte da comunidade e que podem constituir, para si próprias, uma importante rede social). ·::, __ '\,-~-- '-~JllJ-.-11 __ / --,~ . ./ ~------</' __ ,...____, ---------- / 1 Definição de família e propriedades do sistema familiar Existem, hoje, muitas definições de família mas talvez o mais importante seja vê-la como um todo, como uma emergência dos seus elementos, o que a torna una e única2º . .._,./ Ler sistemicarnente a família implica, então, ter uma visão global da sua estrutura (dimensão espacial) e do seu desenvolvimento (dimensão temporal)". Por isso Sampaio e Gameiro (1985, 11-12) definem-na corno "um sistema, um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior, que mantém o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimen- to percorrido através de estádios de evolução diversificados". iii Já Jackson "(1965), ao definir família como uma- unidade, nos alertava para a necessidade de encontrar medidas que a não reduzissem à soma dos selÍs indivíduos: "Temos necessidade de medii as CaraCterísticas da unidá°de faniíliar -ªupra _individual para as quais não temos actualmente nenhuma terminologia. Podemos fazer apelo· ao bom·- senso:- o -todo é mais do que a soma das suas partes, é tudo o que nos intereSSa'.'. No mesmo ·sentido,_ Gameiro (1992, 187) afirma: "A famíli~ é uma re_de c_o.i;Dpl~xa ·d_e relações e emoções· na qual·se-p·assam sentimentos e--comportamentos que não-são pos- síveis de-- ser peiísados com os instruínéntos criados 'pélo estudo 'dos indivíduos is'ola- dos. Conceitos_ importan~es como o de _personalidade não são aplicâveis ao estudo_ da tamília. A simples· ôescrição dos elementos de uma família não serve para transmitir a riqueza e a complexidade relacional desta estruturau: 21 A apresentação destes dois eixos de análise do sistema familiar ~ o eixo sin- crónico, ou do espaço, e o eixo diacrónico, ou do tempo - será feita no capítulo 3. Sistema r-::o (\,.1\ 40 (Des )Equilíbrios familiares Enfatizando a dimensão holística de que falamos, Andolfi (1981, 19-20) define família co1no um '"sistema de interacção que supera e articula den- tro dela os vários componentes individuais" e acrescenta que "a família é um sistema entre sistemas e que é essencial a exploração das relações interpessoais, e das normas que regulam a vida dos grupos significativos a que o indivíduo pertence, para uma compreensão do comportamento dos membros e para a formulação de intervenções eficazes''. De acordo com Hall e Fagen (cit. in Watzlawick, Beavin e Jackson, 1993, 109-110), um sistema é o "'conjunto de objectos [e das) relações entre os objectos e os atributos', [sendo que] os objectos são os componentes ou partes do sistema, os atributos são as propriedades dos objectos e as relações dão 'coesão ao sistematodo'. ( ... ) enquanto que os 'objectos' podem ser indivíduos humanos, os atributos pelos quais eles são identificados são comportamentos comunicativos (em contraste, digamos, com os atributos intrapsíquicos). Os objectos dos sistemas interaccionfiis são melhor descritos n'ão como indivíduos mas como pessoas-comunicando-com-outras-pessoas. ( ... ) Admitindo que existe sempre alguma espécie de relação, por mais espúria que seja, entre quaisquer objectos, Hall e Fagen são de opinião que 'as relações a ser consideradas no contexto de um dado conjunto de objectos dependem do problema em estudo, sendo incluídas as relações impor- tantes ou interessantes e excluídas as relações triviais ou supérfulas. A decisão sobre quais são as relações importantes e quais as triviais com- pete à pessoa que trata do problema'". Desta forma, a família pode ser considerada como um sistema pois, tal como em qualquer outro, também ela: 1) é composta por objectos e respectivos atributos e relações, 2) contém sub-sistemas e é contida por diversos outros.sistemas, ou supra-sistemas, todos eles li- gados de forma hierarquicamente organizada e 3) possui limites ou fronteiras" que a distinguem do seu meio". n O conceito de fronteira ou limite e a sua importância na organização estrutu- ral do sistema familiar serão abordados no ponto 2 deste capítulo. 'J De acordo com Hall e Fagen (cit. in Watzlawick, Beavin e Jackson, 1993, 110), para um dado sistema, o meio é o conjunto de todos os objectos cuja mudança nos seus :~i 41 p;;ilia como sistema Joaquim Sousa era um homem alto, grande, moreno, simpático e afável. Filho de uma fratria média, com duas irmãs, uma mais velha e outra mais nova, herdara do pai a bonomia e da mãe o pragmatismo. Ao chegar aos trinta- anos casou com Clara Santos, uma mulher mais sisuda mas igualmente pragmática. Filha única e órfã de mãe desde os quinze anos, cedÜ se habituou a lida doméstica de que era eximia executante. Os Sousa/ Santos tiveram dois filhos: primeiro o Carlos e dois anos depois o Ivo. Durante os três primeiros anos- Carlos ficou em casa, com a mãe, que reduziu substanciahnente a sua actividade de psicóloga, e com Luísa, a empregada. Aos quatro começou a frequentar o jardim de infância. N'essa altura, face a novas solicitações profissionais, Clara deixou Ivo entregue aos cuidados de Luísa. A vida em casa dos Sousa/Santos tinha muitas semelhanças com o quotidiano familiar que Joaquim recordava dos seus tempos de criança e adolescente. Os dias corriam cahnamente, o casal era caseiro e as crianças não davam muito trabalho-. Luísa dava mna ajuda preciosa, sobretudo agora que Clara tinha mais solicitações. Havia lll1l princípio que Joaquim e Clara tinham criado: o de reservar uma das tardes do fim de semana só para eles. Nas suas famílias não existia essa prática. Em casa dos Sousa o fim-de-semana era mna quase permanente reunião familiar e de amigos. Que '!!gora continuava com os netos, pois era_ lá que Joaquim e Clara cos- tumavam deixar os filhos- para ir dar uma volta. Em- casa dos Santos, depois da mãe de Clara morrer, o pai saía sozinho e ela costumava ficar em casa, por vezes na companhia de umas, vizinhas amigas. Apesar de ambos trabalharem,- era Clara que se ocupava mais das crianças: dos banhos, do- deitar,. das idas ao médico, da pré-escola. _Ocupava-se.igualmente-das refeições e da casa,_nas horaS_e nos dias em- que Luísa. não estava .. Joaquim, agora mais envolvido com "a sua publi- cidade'~, trabalhava mais horas fora de casa e repartia os seus tempos livres· entre o cuidar do jardim, o brincar com os filhos (sobretudo com Carlos que já o acompanhava) e os· amigos. Excepção feita para a tarde atributos afecta o sistema e de todos os objectos cujos atributos são mudados pelo comportamento do sistema. "Da definição de sistema e de meio deduz-se, claramente, que qualquer sistema pode ser dividido em sub-sistemas. Os objectos pertencentes a um sub-sistema podem muito bem ser considerados parte do meio de um outro sis- tema". \._ '>"\_,~· ·--· ">~ •.. - 42 (Dcs )Equilíbrios familiares do casal. Infe_lizmente Os tempos livres eram cada vez menos e as solici- tações das crianças cresciam a ollios vistos., Desde· que Joaquim tinha podido-entregar-se ao que sempre desejara fazer, animação publicitária, o seu envolvimento_ . profissional triplicara: agora até já sonhava com serviço! Clara e Joaquim tinham escolhido cuidadosamente o jardim de infância de Carlos. Gostaram daquele pelo projecto educativo que tinha, pela postura das educadoras, muito atentas às necessidades: das crianças e dos pais, pelo espaço físico de que desfrutava e pelo horário praticado. Clara sentia ainda uma-outra.atracção: a de poder Hexperimentar" aquilo que- em teoria defendia, ou seja,. a cooperação estrCita entre o sistema escolar e a família. Muito presente, -organizada e clara na-transmissão das ideias e das- sínteses, .rapidamente se transformou na secretária das re1miões formais e informais realizadas no Jardim.-Naquele. ai10 em que· o Carlos ia ·fazer cinco-- anos e estava lá pela -segunda vez, a .escola· tinha corno projecto "'explorar o reino dos nossos sonhos ... " e como pré-texto parte da obra de um conhecido autor plástico. Numa-das reuniões-de_pais, Clara, sObretudO em articulação :com o casal Hipólito -e com -o casal Castro, propôs que os pais, com a ajuda das educadoras e com as suges- tões das crianças, realizassem um CD-Rom didáctico, preferencialmente dirigido a crianças entre os três e_ os -seis anos, alusivo ao _projecto do J ar_dim ·mas-- que pudesse ser explorado .por -outras crianças ·e outros p~s. Na consulta de_profissionais da imagem e da área.da.informática, em que Joaquim se- envolveu mais do que o-ini_ciâlmente.previsto, e nas reuniões: subsequentes, .a catadupa de ideias teve que dar lugar ao-desenhar de _um plano realizável. Ao fim de uns meses o trabalho já não era de ninguém em particular, ·mas de todos em geral, e as educadoras sentiam-se muito envolvidas na sua tarefa de.-estar com crianças que são ainda muito dos seus-pais .. Poi'"isso, não lanientavam ter deixado·de.lado a programação que inicialmente tinham delineado para abordar aquele projecto. Algu- mas.vezes ela tiriha sido útil no ·desenvolvimento das novas estratégias. Em-casa·dos Sousa/Santos, Ltúsa nem .sempre entendia a ·conversa de Carlos que aí continuava "os sonhos'' do Jardim .. Clara e Joaquim ficavam perplexos ao verem Ivo entrar num reino que ninguém lhe tinha especifi- camente apresentado mas que> afmal, era tão somente o de todas. as crian- ças ... 43 pru:;nia como sistema Na família Sousa/Santos, podemos distinguir claramente quatro sub-sistemas: o individual, o conjugal, o parental e o fraternal". Podemos também perceber que a família Sousa/ Santos não nasceu de geração espontânea e não vive isolada. Há toda uma trama relacional que com ela interage e que vai ajudá-la a ganhar forma e identidade: interna e externa. Com efeito, há muita coisa, nos Sousa/Santos, que nos permite reconhecer os Sousa e os Santos. Há, também, peculiari- dades que devem ser apenas dos Sousa/Santos pois não se encontram parecenças em lado nenhum. E há coisas em que os Sousa/Santos são 0 que são pelas solicitações que o exterior (a escola do filho, o traba- lho do pai e o trabalho da mãe) lhes pede. Mas também na escola do Carlos o ano decorreu de forma diferente pela interacção que se foi estabelecendo entre os Sousa/Santos, os Hipólitos, os Castro e as Educadoras". O que define (ou caracteriza) e delimita todos estes sis- temas (família(s), escola, trabalho dos pais, comunidade) e sub-sis- temas são os papéis e funções, as normas e os estatutos ocupados pelos indivíduos. A clara delimitação destes limites interaccionais permite a cada um, em cada momento e em cada espaço, saber o que pode espe- rar de si próprio, o que podem os outros esperar dele e o que pode ele esperar dos restantes. E isto com a margem de variaçãoque a com- plexidade e a tolerância humanas permitem. Os Sousa/Santos mostram-nos, ainda, que, ao desempenhar diferentes papéis, os seus vários elementos participam e pertencem a diferentes sistemas (ou sub- -sistemas). Isto toma, então, evidente que: 1) as fronteiras dos vários sistemas (ou sub-sistemas) são permeáveis, i.é, permitem a passagem selectiva de informação, e 2) a compreensão de cada sistema ou sub- -sistema (desde o individual ao mais alargado) requer o conhecimento dos contextos em que participa, o que obriga não só à análise das relações horizontais (i.é, aquelas que ocorrem dento do mesmo sub- z,i Uma breve análise de cada um destes sub-siste1nas será realizada no ponto 2 deste capítulo. No capítulo seguinte abordaremos a forma como estes diferentes sub- -sistemas vão co-evoluindo ao longo do ciclo vital da família. 25 E todos os outros que dela faziam parte e a constituíam, embora menos visíveis nesta história e nesta realidade. Hierarquia sistémicu 44 ,~ (Des )Equilíbrios familiares ·------------------- c~J '7 -sistema) como das relações verticais (oll seja, as que acontecem entre diferentes sub-sistemas e sistemas). A esta hierarquia de sistemas (ou sub-sistemas) em relação chama-se hierarquia sistémica. -) Como sistema a família goza, naturalmente, das mesmas pro- priedades dos sistemas abertos (Bertalanffy, 1972). '"''""'''" Atendendo à propriedade da totalidade, e de acordo com um dos j se11s corolários - o da não somatividade - não podemos reduzir a · família à soma dos seus elementos (ou componentes) nem dos seus atributos (ou características). A vida da família é algo mais do que a soma das vidas individuais dos seus componentes, pelo que tem senti- ~ •. 1 do observar a lnteracção e equacionar o seu desenvolvimento como sistema 'totaP6• De acordo com outro dos seus corolários - o cl'l impos- sibilidade de estabelecimento de relações 1mjlaterafa ~ o ~ornporta mento de cada um dos seus membros é . iniffsso_ciivel · d~. cornporta- ~ento dos restantes e ~qúiloqúe Ih~ acontece afecta a família no seu/ conjunto (tanto ao nível dos indivíduos como das relações do sistema). . Nesse sentido, toma-se importante analisar o comportamento indivi- l dual no contex. t. o em que o mesmo ocorre, passando o foco. de análise a ser necessaria1nente ecossistérnico. V Afitn>ar que a f~í,li~ •é ;im todo. µão µ()s pode, no entanto,. fazer l esquecer que existem indivíduos. Esse foi o reducionismo da prirneirj cibernética que n;ificou a noção de família-sistema, acabando. por coµ- ferir-lhe uma existência material substituti_va do próprio indivíduo. Dessa forma a ideia de circularidade foi atraiçoada pela preocupação da descoberta de uma causalidade linear tão própria da nossa cultura. Com efeito, o nosso quotidiano está impregnado por urna permanente busca de porquês, de causas explicativas dos comportamentos realiza- dos ou dos fenómenos observados, por uma sistemática tentativa de redução simplificadora da realidade que nos envolve e com a qual interagimos. Já Palazzoli falava do poderoso e inevitável condiciona- mento linguístico que nos aprisiona, i.lizendo que "a linguagem é, com efeito, linear enquanto que a realidade viva é circular". Citando Shands '- 6 A este assunto dedicaremos o próximo capítulo. 45 faIIlília como sistema acrescenta que: "'A linguagem obriga-nos a ordenar dedutivamente os dados de forma linear. Influenciados, sem nos darmos conta, pelo método linguístico aceitamos e, mais ainda, reforçamos a noção de que 0 universo está organizado sob uma base linear e sob um modelo de causa-efeito. Uma vez que a linguagem exige um sujeito e um predi- cado, aquele que realiza a acção e aquele que a ela se submete, acabamos por concluir que essa é a estrutura do mundo'.( ... ) Estamos pois prisioneiros da incompatibilidade absoluta entre os dois sistemas primários em que vive o ser humano: o sistema vivo, dinâmico e cir- cular, e o sistema simbólico (linguagem), descritivo, estático e linear. (. .. ) Dado o carácter descritivo e linear da linguagem, somos obriga- dos, para descrever uma transacção, a efectuar uma dicotomia Olt a introduzir uma série de dicotomias. ( ... ) Esta necessidade ( ... ) exige inevitavelmente um antes e um depois, um sujeito e um objecto ( ... ). Isto comporta um· postulado de causa-efeito e, consequentemente, urna definição moralista" (Palazzoli et ai., 1978, 51-53). Assim, o modelo sistémico acabou por--r--e~lizar um movimento contra o qual inicial- mente se rebelou. Embora tendo possibilitado que o indivíduo deixas- se de ser visto como a causa e a explicação do seu problema, acabou por permitir que se imputasse à família a responsabilidade explicativa do(s) disfuncionamento(s) observado(s). Como adiante (re)explicitare- mos, o equilíbrio homeostático do sistema assi~ _o exigia numa formu- lação que deixava os sujeitos e o próprio sistema presos de um jogo de forças, sem autonomia nem individualidade próprias. A ideia de auto- -organização, hoje vista como uma das propriedades do sistema fami- liar, permitiu-lhe recuperar a autonomia e a capacidade de decisão e chamou de novo a atenção para a importância do sistema individual. Mas a ratoeira linguística e a cultura judaico-cristã continuam a ser uma poderosa arma que nos atraiçoa o pensamento e nos dificulta o acesso à circularidade e à complexidade. .De acordo com a propriedade da equifinalidade, um mesmo objec- E11uifi11alhlllde tivo pode ser atingido a partir de condições iniciais diferentes ou através de caminhos diferentes. Dito de outra forma, a condições ini- ciais idênticas podem corresponder resultados diferentes e vice-versa, dado que as interacções familiares, e a sua evolução ao longo do ciclo vital, são fundamentais para o processo que se organiza em tomo de -= 'éi: z ií,, d ...._ (_ (_ - 46 ~)i: (Des )Equilíbrios familiares -,~'. uma finalidade27 • Em termos práticos, esta propriedade leva-nos a rela- tivizar a noção de risco e a dar particular realçe à noção de resiliência, individual e familiar. Com efeito, o facto de sabermos que, p.e., 0 . alcoolismo de um dos progenitores está, entre outros aspectos, fre- · quentemente associado a situações de negligência e violência em relação ao filhos e ao cônjuge, a situações de dificuldade/insucesso e, por vezes, absentismo escolar dos filhos, a dificuldades económicas da família e a situações de desemprego ou emprego precário do al- coólico, não significa que, em todas as famílias com P.I. alcoólico, esta seja a evolução observada. A propriedade da equifinalidade ajuda-nos, pois, a compreender expressões que usan1os vulgarmente no nosso q11otidiano - "nem sei como é que eles aguentam; noutra família28 já alguém tinha 'pirado': primeiro foi a morte inesperada do pai, depois os problemas das dívidas e a perda da casa, a seguir a ida para outra cidade e o refazer de toda uma vida ... e eles estão sempre bem hu- morados, alegres, disponíveis ... os miúdos estudam bem, a comuni- cação circula facilmente, amigos é o que mais têm ... é uma família que parece que tem mel!" ou, pelo contrário, "uão sei o que se passou com os Silva: parecia correr tudo tão bem ... de um momento para o outro a filha engravidou, a mãe alcoolizou-se e o casal desfez-se"; "já no caso dos Costa, quando a filha apareceu grávida, tudo correu de forma dife- rente: inicialmente as coisas balançaram um bocado mas depois todos se entenderam, a Rita trabalha e estuda ao mesmo tempo, a mãe fica- -lhe com a bebé e o pai ajuda-lhe a cobrir as despesas ... até casa ela conseguiu arranjar. .. é um Tl mas é o suficiente para ela e para a miúda". "º"º"°''" A propriedade da retroacção diz-nos que o comportamento de um elemento não é suficiente para explicar o comportamento de um outro elemento e vice-versa. Assim, para podermos compreender o que 27 Toma-se, pois, evidente que o princípio da equifinalidade enfatiza a importân- cia da estrutura do sistema em detrimento
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