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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Flávio Alves de Paula Lima TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO: DA LÓGICA ARISTOTÉLICA À RACIONALIDADE JURÍDICA DO SÉCULO XX Belo Horizonte 2015 Flávio Alves de Paula Lima TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO: DA LÓGICA ARISTOTÉLICA À RACIONALIDADE JURÍDICA DO SÉCULO XX Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Lucas de Alvarenga Gontijo Belo Horizonte 2015 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Lima, Flávio Alves de Paula L732t Teoria da argumentação: da lógica aristotélica à racionalidade jurídica do século XX / Flávio Alves de Paula Lima. Belo Horizonte, 2017. 77 f. Orientador: Lucas de Alvarenga Gontijo Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito 1. Aristóteles - Crítica e interpretação. 2. Silogismo. 3. Lógica. 4. Argumentação jurídica. 5. Direito - Filosofia. I. Gontijo, Lucas de Alvarenga. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 340.12 Flávio Alves de Paula Lima TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO: DA LÓGICA ARISTOTÉLICA À RACIONALIDADE JURÍDICA DO SÉCULO XX Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Lucas de Alvarenga Gontijo (Orientador) – PUC Minas Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno – PUC Minas Marco Antônio Sousa Alves – Universidade Federal de Minas Gerais Fernando José Armando Ribeiro (Suplente) – PUC Minas Belo Horizonte, 20 de maio de 2015 RESUMO Esta dissertação tem por objetivo investigar o desenvolvimento da Lógica, desde Aristóteles, na Antiguidade, até a sua aplicação no raciocínio jurídico atual. Os pontos norteadores são: explicitar como mito a noção de que o direito pode ser aplicado como subsunção; analisar a lógica silogística aristotélica e a sua divisão em silogismo analítico e dialético; analisar a mudança de paradigma da razão que se operou após o tempo de Aristóteles e até o séc. XIX; e verificar como se operou o resgate de uma concepção de Lógica mais adequada à prática jurídica, principalmente a partir da segunda metade do séc. XX com o desenvolvimento da Tópica de Viehweg e a Nova Retórica de Perelman, bem como os desenvolvimentos posteriores, dentre eles Kelsen, Alexy e Müller. Palavras-chave: Aristóteles. Silogismo analítico. Silogismo Dialético. Teoria da Argumentação. Lógica. ABSTRACT The goal of this dissertation is to investigate the development of Logic, from the studies of Aristotle in the Ancient Era to its use in modern day legal reasoning. The main directives are: to characterize as a myth the notion that Law can be applied as a mere subsumption; to analyze Aristotle’s syllogistical logic and its division in analytical and dialectical logic; to analyze paradigm shift that occurred in Logic after Aristotle’s time and up to the 19th Century; to verify how the second half of the 20th century witnessed a revisited concept of Logic, more attuned to legal reasoning and legal practices, especially with the development of Viehweg’s Topics and Perelman’s New Rhetoric, as well as later developments of other authors, such as Kelsen, Alexy and Müller. Keywords: Aristotle. Analytic syllogism. Dialectical syllogism. Theory of Argumentation. Logic. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 6 2 O MITO DO DIREITO COMO SUBSUNÇÃO .......................................................... 8 3 A TEORIA DA RACIONALIDADE ARISTOTÉLICA.............................................. 11 3.1 Silogismo Analítico .................................................................................... 13 3.1.1 O silogismo analítico aristotélico e o silogismo analítico moderno ...... 20 3.2 Phrónesis e silogismo prático ................................................................... 21 3.3 Silogismo dialético ..................................................................................... 25 4 A MUDANÇA DE PARADIGMA NO DIREITO ...................................................... 33 5 A REABILITAÇÃO DA LÓGICA INDUTIVA ARISTOTÉLICA .............................. 39 5.1 Viehweg e a Tópica ..................................................................................... 39 5.1.1 Vico .............................................................................................................. 39 5.2 Perelman e a Nova Retórica ...................................................................... 40 5.3 O raciocínio judiciário ................................................................................ 43 6 DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES .............................................................. 47 6.1 Kelsen .......................................................................................................... 47 6.1.1 O conceito de norma .................................................................................. 48 6.1.2 Distinção entre norma e enunciado .......................................................... 49 6.1.3 Lógica jurídica ............................................................................................ 53 6.1.3.1 Conflito de normas ........................................................................................ 55 6.1.3.2 Verdade da afirmação X observância da norma ........................................... 58 6.1.3.3 Norma geral como fundamentação da norma individual ............................... 60 6.1.3.4 Relações lógicas entre normas .................................................................... 61 6.1.3.5 Sobre uma possível Lógica jurídica específica ............................................. 62 6.2 A Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy .......................................... 64 6.2.1 Alexy e a Nova Retórica de Perelman ....................................................... 66 6.2.1.1 O auditório universal ..................................................................................... 67 6.2.1.2 Persuasão e convencimento ........................................................................ 70 6.2.1.3 A estrutura da argumentação ....................................................................... 72 7 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 73 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 75 6 1 INTRODUÇÃO No capítulo 2 desta dissertação, expõe-se como, durante o século XVII até o século XIX, teve grande notoriedade no mundo jurídico a noção de que a prática jurídica poderia se desenvolver por meio de deduções. Da mesma forma que um matemático é capaz de deduzir um axioma de outro, os operadores do direito seriam capazes de deduzir consequências de fatos e leis. Tal noção já foi claramente superada nos dias de hoje, mas julga-se ser importanteperscrutar como se chegou a esta noção e como ela foi afastada. Para cumprir esta tarefa, analisa-se no capítulo 3 os primeiros escritos sobre lógica de que se tem notícia, de autoria de Aristóteles. O filósofo estagirita foi provavelmente o primeiro a criar uma completa teoria da racionalidade, e é de especial interesse o tratamento que dispensou aos silogismos. A divisão feita por ele de silogismo analítico (aquele em que há dedução e conclusão necessária) e silogismo dialético (aquele em que há argumentação para orientar uma decisão) é fundamental para o entendimento de como se desenvolveu o que se entende ser uma má apropriação da lógica pela prática jurídica durante determinado período histórico. Esta má apropriação é analisada no capítulo 4. Passado o tempo de Aristóteles, os estudos sobre diferentes tipos de raciocínio ficaram de certo modo abandonados durante vários séculos. Até então, os raciocínios dialéticos ainda eram estudados, mas apenas no domínio da Retórica - aqui entendida no sentido de Oratória, ou seja, a arte de falar bem e com desenvoltura para defender determinado ponto de vista. Por este motivo, tais silogismos deixaram de interessar aos lógicos e aos cientistas, inclusive ao jurista moderno. O capítulo 5 é dedicado à retomada dos estudos da lógica dialética aristotélica no século XX, principalmente com os trabalhos de Chaïm Perelman. Também serão expostos brevemente e a título introdutório o trabalho de Viehweg, que foi um dos primeiros autores a retomar com expressividade os topoi, além de uma breve análise do raciocínio judiciário, com o intuito de situar na pratica jurídica atual os conceitos aristotélicos desenvolvidos anteriormente. O capítulo 6 trata de vários desenvolvimentos posteriores à retomada da Nova Retórica de Perelman e como a Lógica Jurídica e a Teoria da Argumentação foram se aprimorando progressivamente. 7 Finalmente, a conclusão (item 7) expressa que, embora já não exista mais dúvida de que a atividade jurídica é argumentativa, rememorar o trajeto aqui traçado é de grande valia para por em perspectiva a lógica jurídica como exercício prático, mas não por isso menos racional do que as ciências exatas, por exemplo. 8 2 O MITO DO DIREITO COMO SUBSUNÇÃO Durante o século XIX, teve significativo destaque no mundo jurídico europeu um movimento teórico chamado Escola da Exegese. Entre os partidários desta escola vigorava, dentre outras, a noção de que a atividade jurídica deveria ser pautada pela interpretação estrita do texto legal. Norberto Bobbio (1995, p. 87) afirma que “segundo a escola da exegese, a lei não deve ser interpretada segundo a razão e os critérios valorativos daquele que deve aplicá-la, mas, ao contrário, este deve submeter-se completamente à razão expressa na própria lei.” Assim, caberia ao operador do direito a tarefa de, uma vez conhecendo o ordenamento jurídico, relacionar certo acontecimento ocorrido no mundo fático com determinada norma. Desta relação, o operador deveria ser capaz de afirmar se deve haver ou não uma consequência jurídica para aquele fato e qual será esta consequência. Se um indivíduo matou outro, deve ser preso. Se matou, mas agindo em legítima defesa, não deve ser preso porque há exclusão de ilicitude (BRASIL, 1940). A preocupação da Escola da Exegese com a literalidade da lei gerou uma noção de que o direito e o raciocínio jurídico poderiam ser entendidos como uma subsunção da norma ao fato. Por “subsunção” refere-se ao ato de amoldar determinadas situações fáticas aos termos previstos na lei, como exemplificado no parágrafo acima. Entende-se que até hoje subjazem, de modo um tanto quanto obscuro, resquícios desta noção no meio jurídico. A subsunção pode ser verificada na prática jurídica atual na petição inicial, cuja estrutura é dividida, basicamente, em fatos, direito e pedidos. Como os fatos e o direito podem ser considerados como premissas e os pedidos podem ser considerados como a conclusão, não seria absurdo, pela ótica exegética, estruturar uma petição de forma silogística, sendo o direito a premissa maior; os fatos, a premissa menor; e os pedidos, a conclusão, que seria deduzida das premissas. Da forma como foi expressa, esta operação é um exemplo de lógica dedutiva. Este é o tipo de lógica majoritariamente empregado nas chamadas ciências necessárias, que são aquelas cujas atividades primárias levam a conclusões de caráter apodítico ou evidente, como é o caso das ciências exatas. Os saberes desta área do conhecimento se ocupam principalmente de desenvolver e comprovar proposições com caráter de necessidade e formalmente corretas. 9 Entretanto, é evidente que o direito não é uma ciência necessária, mas sim uma ciência social aplicada, e as atividades ordinariamente desenvolvidas nesta área do conhecimento não são dotadas de caráter dedutivo. Que se pretende dizer, então, ao afirmar que ainda há resquícios da noção exegética na prática jurídica atual? Não há dúvidas de que a subsunção do fato à norma é uma operação lógica, mas não é esta a lógica que ordinariamente utilizam os juízes e os advogados no seu dia a dia. Enquanto as atividades rotineiramente empreendidas pelos operadores do direito envolvem uma grande carga argumentativa, um astrônomo, em contrapartida, não lança mão destes mesmos exercícios lógicos ao tentar prever a rota de um asteroide, por exemplo. Por isso, é precipitado falar-se na existência de uma lógica que governa todas as expressões de racionalidade que o homem é capaz de desenvolver. Para cogitar-se a existência de apenas uma lógica, é preciso não identifica-la à Lógica Formal, como pretenderam os partidários da Escola da Exegese, mas sim entendê-la como gênero que contém espécies, sendo a Lógica Formal uma delas. O conhecimento pode ser produzido de diversas maneiras, e não é a sua conformidade com uma determinada espécie de lógica que o torna válido ou racional. Resumidamente, defende-se aqui o posicionamento de que o raciocínio jurídico não pode ser reduzido à mera subsunção do caso concreto à norma abstrata. Apesar de ser exigido do operador do direito saber relacionar certas condutas a determinadas normas e prever as consequências desta relação, esta é apenas uma das etapas finais do extenso processo de raciocínio jurídico. Não é senão após um longo encadeamento de argumentos que resultem em uma decisão que se pode sistematizar de forma silogística o raciocínio que levou àquela conclusão. É verdade que mesmo antes da tomada da decisão (ou conclusão), o raciocínio já poderia ser construído em forma de silogismo. Contudo, nesta etapa são incontáveis os silogismos possíveis e não há como garantir que um ou outro serão utilizados no caso concreto. Dentre os vários silogismos apresentados, o juiz escolherá os que julgar serem mais adequados e/ou mais plausíveis para compor o silogismo final, que é a sentença. É possível, ainda, que o juiz escolha apenas alguns elementos de alguns silogismos na composição da sentença. 10 As noções da insuficiência do modelo silogístico para a prática jurídica já não são mais novidade para a Teoria do Direito do século XXI, mas é necessário traçar, em linhas gerais, os desenvolvimentos teóricos que partiram da teoria da racionalidade aristotélica e que culminaram na noção atual de racionalidade jurídica. 11 3 A TEORIA DA RACIONALIDADE ARISTOTÉLICA A análise da obra de Aristóteles, pelo menos daqueles escritos que sobreviveram até os dias atuais, deixa clara a intenção do filósofo de desenvolver uma teoria da racionalidade, principalmente no âmbito de uma das suas obras mais completas: o Órganon. Pode-se dizer que este é o primeiro tratado conhecido a abordar a lógica e os diferentes tipos de raciocínio empregados em diferentes situações. Esta, aliás, é outra característica do autor– a aplicação de métodos diferentes para solucionar problemas diferentes. O estagirita demonstra notável percepção para diferentes manifestações da razão (logos), caracterizadas por modos de pensar que variam de acordo com o objeto analisado e com o domínio de investigação. Estas diferentes formas de manifestação da razão podem ser consideradas razões diferentes, ou logoi, pelo que se diz que a teoria aristotélica abarca a diversidade ou multiplicidade das formas de raciocínio. O Órganon é composto de seis livros concebidos separadamente por Aristóteles: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores (também chamado de Primeiros Analíticos), Analíticos Posteriores (também chamado de Segundos Analíticos), Tópicos e Refutações Sofísticas. Existem algumas variações com relação à ordem dos livros no tratado e mesmo dos próprios livros que o compõem. Ao longo da história, outras obras foram incluídas na compilação, como o Isagoge de Porfírio, que é uma introdução ao Categorias e já foi posicionado antes deste em algumas edições do Órganon. Retórica e Poética, ambas obras de Aristóteles, também já foram incluídas no conjunto, principalmente por siríacos e árabes. Outras obras chegaram a ser excluídas por alguns compiladores que julgaram serem as mesmas inautênticas, como fez Andrônico de Rodes com Da Interpretação. Não há, contudo, qualquer indicação de que Aristóteles tivesse a intenção de separar estes seis livros dos demais e reuni-los em um tratado sobre a racionalidade. Não é claro quem foi o responsável pela compilação, mas dois prováveis organizadores da obra como é conhecida hoje são Boécio e o próprio Andrônico de Rodes, que teriam também dado a ela o nome de Órganon. Giovanni Reale (1990) aponta Andrônico como o responsável não só por apresentar uma versão inteligível dos escritos de Aristóteles, mas também por ter agrupado sua obra por assunto e reordenado a mesma de acordo com o conteúdo de modo a facilitar a leitura. Ele teria feito isso não apenas com o Órganon, mas com o Corpus Aristotelicum em geral: 12 É bastante provável, por exemplo, que a organização de todas as obras lógicas em um único corpo remonte precisamente a ele [Andrônico]. E procedeu de modo análogo com os vários escritos de caráter físico, metafísico, ético, político, estético e retórico. A organização geral e particular que Andrônico imprimiu ao Corpus Aristotelicum tornou-se definitiva. Ela iria condicionar toda a tradição posterior, inclusive as edições modernas. Em suma: a edição realizada por Andrônico estava verdadeiramente destinada a “fazer época” em todos os sentidos [...] (REALE, 1990, p. 323-324). Embora a lógica aristotélica seja hoje considerada lógica antiga, a obra do estagirita foi, sem dúvida, o alicerce que permitiu a construção e o desenvolvimento do intelecto humano, a permitir o florescimento da Lógica moderna. Os princípios do pensamento aristotélico permeiam até hoje o modo como a civilização ocidental pensa e raciocina. Ainda é interessante notar que, mesmo tendo sido Aristóteles o primeiro teórico da racionalidade, este demonstrava uma aguda consciência das limitações desta, como será explicado mais abaixo. O aspecto da racionalidade que será abordado nesta dissertação está eminentemente presente nos Analíticos Anteriores e Analíticos Posteriores, que tratam principalmente dos silogismos analíticos, e no quinto livro do Órganon, Tópicos, que trata dos silogismos dialéticos. Nos Analíticos Anteriores, Aristóteles trata de definir o conceito de silogismo: O silogismo é uma locução em que, uma vez certas suposições sejam feitas, alguma coisa distinta delas se segue necessariamente devido à mera presença das suposições como tais. Por “devido à mera presença das suposições como tais” entendo que é por causa delas que resulta a conclusão, e por isso quero dizer que não há necessidade de qualquer termo adicional para tornar a conclusão necessária. (ARISTÓTELES, Analíticos Anteriores I 1, 24b19). Silogismo é, então, uma operação pela qual são enunciadas algumas suposições que levam a uma conclusão. Caracteriza-se pela natureza dos elementos que o integram e pela relação que guardam entre si. Colocados os elementos básicos que constituem as premissas, um outro elemento – a conclusão – se segue necessariamente. O silogismo, portanto, contém simultaneamente uma afirmação sobre a validade da inferência (a passagem das premissas à conclusão) e uma afirmação sobre a veracidade das premissas (ALVES; LIMA, 2011b, p. 4). 13 Aristóteles lista uma série de tipos de silogismos, mas os que se mostram mais interessantes para o propósito desta dissertação são examinados pelo autor em Tópicos: O silogismo é um discurso argumentativo no qual, uma vez formuladas certas coisas, alguma coisa distinta destas coisas resulta necessariamente através delas pura e simplesmente. O silogismo é demonstração quando procede de premissas verdadeiras e primárias ou tais que tenhamos extraído o nosso conhecimento original delas através de premissas primárias e verdadeiras. O silogismo dialético é aquele no qual se raciocina a partir de opiniões de aceitação geral. São verdadeiras e primárias as coisas que geram convicção através de si mesmas e não através de qualquer outra coisa, pois, no que toca aos primeiros princípios da ciência, faz-se desnecessário propor qualquer questão adicional quanto ao por que [motivo], devendo cada princípio por si mesmo gerar convicção. Opiniões de aceitação geral, por outro lado, são aquelas que se baseiam no que pensam todos, a maioria ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a maioria deles, ou os mais renomados e ilustres entre eles. (ARISTÓTELES, Tópicos I 1, 100a25-100b23, grifou-se). O autor, didaticamente, repete o conceito genérico de silogismo enunciado nos Analíticos Anteriores e subdivide-o em dois tipos diferentes: o silogismo analítico (que também pode ser chamado de silogismo demonstrativo, demonstração, silogismo formal ou dedução); e o silogismo dialético (que também pode ser chamado de silogismo argumentativo, argumentação, entimema ou indução). É importante salientar, contudo, que aqui, quando se utiliza os vocábulos “dedução” e “indução”, não se trata de uma passagem do geral para o particular e nem do particular para o geral, respectivamente. Com efeito, esta dicotomia possui dois significados distintos, sendo que o que é empregado aqui se refere, no caso da dedução, à inferência apodítica que se opera nos silogismos analíticos, passando-se necessariamente das premissas à conclusão. No caso da indução, refere-se à exposição de premissas que levam à tomada de uma decisão de caráter dialético (não necessária, não obrigatória). Serão analisados, agora, os dois tipos de silogismo em maior profundidade. 3.1 Silogismo Analítico O silogismo analítico, que será analisado neste item, é mais comumente associado a uma forma de ciência denominada demonstrativa ou apodítica. Esta, aliás, foi durante muito tempo a única forma de racionalidade levada em 14 consideração pelos estudiosos de Aristóteles, não obstante o fato de o Órganon, o mesmo tratado que contém a teorização da ciência demonstrativa (nos Analíticos Anteriores e Analíticos Posteriores) encerrar também uma análise minuciosa da argumentação ou do raciocínio dialético (nos Tópicos). A ciência apodítica ou demonstrativa é teorizada por Aristóteles nos Analíticos Posteriores, onde, na segunda parte do Livro I, o filósofo afirma que temos conhecimento científico (em oposição ao conhecimento contingencial) de um fato quando: (a) conhecemos a causa deste fato e; (b) sabemos que o fato não poderia ser diferente, dada a causa que o originou (Analíticos Posteriores I 2, 71b8). Em outras palavras, fazer ciência de uma coisa é investigar sua causa e obter conhecimento suficiente sobre ela ao pontode se poder afirmar que aquela causa não poderia ter originado outro resultado senão aquele sob análise. Enrico Berti analisa as causas com mais profundidade, afirmando que a causa do fato deve ser entendida num sentido amplo, como a razão ou explicação para a concretização daquele resultado, enquanto a impossibilidade de o fato ter sido diferente (ou seu caráter de necessidade) é equivalente a dizer que não é possível que “quando se tem ciência de um certo estado de coisas, as coisas sejam diversamente de como se sabe que são” (BERTI, 1998, p. 4). Em conclusão: A demonstração entendia no sentido mais próprio é aquela que procede de premissas universais para conclusões particulares, isto é, a dedução; ela, portanto, é o que confere à ciência o caráter de conhecimento da causa e o caráter de conhecimento dotado de necessidade. (BERTI, 1998, p. 6). Segundo o mesmo autor, é fácil perceber que este é um conceito de ciência muito diferente daquele que se tem atualmente, uma vez que a ciência moderna é pautada principalmente pelos conceitos de hipótese e probabilidade. Conhecer as causas de um determinado fato constatável na realidade equivale a conhecer as premissas que levaram àquela conclusão. Realizar esta atividade relativamente a um determinado fato é “ter ciência” deste fato, nas palavras de Berti (BERTI, 1998, p. 4). Prosseguindo na análise da definição de Aristóteles, o silogismo analítico, também chamado de demonstração, é aquele que “procede de premissas verdadeiras e primárias ou tais que tenhamos extraído o nosso conhecimento original delas através de premissas primárias e verdadeiras.” (ARISTÓTELES, 15 Tópicos I 1, 100a26). Berti (1998, p. 5) aprofunda esta definição afirmando que o silogismo científico deve conter premissas que expressem como os fatos são na verdade, não sendo possível que se produza conhecimento científico sobre fatos que não existem ou não são verdadeiros. Tão importante quanto isso é o fato de que, ao afirmar que as premissas devem ser primárias, Aristóteles está a dizer que elas devem ser imediatas ou indemonstráveis. O que quer dizer com isso é que as premissas de um silogismo analítico não podem ser a conclusão de outro silogismo. Caso contrário não seriam primárias, mas sim derivadas de outras premissas, que poderiam, por sua vez, derivar de outras premissas até que se atingisse determinadas premissas que seriam, estas sim, primárias e indemonstráveis, a constituir o real início de toda a cadeia de deduções. Como conclui o autor italiano: “[...] se as premissas devessem ser sempre demonstradas, isto é, se derivassem sempre de outras, ao infinito, não se teria nunca ciência” (BERTI, 1998, p. 6). Ainda é preciso diferenciar “ter ciência” de algo de “ter qualquer ciência”. A diferença entre um e outro equivale à diferença entre conhecer uma ciência em particular e conhecer as ciências em geral. Em qualquer um dos casos, é preciso partir de premissas, como já se viu. Entretanto, para que se conheça uma ciência demonstrativa em particular, é preciso partir de premissas com determinadas características. Nas palavras do próprio Aristóteles (Analíticos Posteriores, I 2, 71b1): [...] o conhecimento demonstrativo tem que proceder de premissas que sejam verdadeiras, primárias, imediatas, melhor conhecidas e anteriores à conclusão e que sejam causa desta. Somente sob estas condições os primeiros princípios podem ser corretamente aplicados ao fato a ser demonstrado. O silogismo enquanto tal será possível sem tais condições, mas não é a demonstração, pois o resultado não será conhecimento. Uma delas, já explicada acima, é que as premissas sejam indemonstráveis ou derivadas de premissas indemonstráveis, sob pena de se desaguar na via do regresso ao infinito de derivações sucessivas de outras premissas e assim inviabilizar a ciência. Em virtude desta mesma característica (indemonstrabilidade), as premissas também podem ser chamadas de primeiras ou imediatas; as premissas também devem ser verdadeiras, pois não podem exprimir situações fictícias; devem expor uma relação de causalidade com a conclusão, pois sem nexo causal não há que se falar em dedução; para que sejam causa da conclusão, devem 16 ser anteriores a esta, não do ponto de vista temporal, mas do ponto de vista lógico; devem, por fim, ser mais conhecidas do que a própria conclusão, tanto no sentido de serem mais conhecidas a nós, através dos nossos sentidos, quanto no sentido de serem mais conhecidas por natureza, ou seja, de um ponto de vista lógico, longe das sensações, pelo que se passa de premissas universais para conclusões particulares (BERTI, 1998, p. 5-6). As premissas dotadas de todas as características apontadas no parágrafo anterior são chamadas por Aristóteles de princípios próprios. Isso significa que são princípios próprios de uma determinada ciência e que podem dizer o que alguma coisa é e se uma coisa é ou não, dentro do campo da ciência própria em questão. No diapasão do silogismo analítico, Berti afirma que, dentro de uma ciência em particular, “os princípios próprios são premissas que devem ser postas explicitamente e são exatamente aquilo a partir do que se deduz, isto é, se extrai a conclusão.” (1998, p. 7). É isso, portanto, que significa “ter (uma) ciência”. Na esteira do que se disse anteriormente, existem princípios que são necessários não apenas para se ter ciência de uma área específica, como a geometria ou a física, mas para várias (ou todas) as ciências: são os princípios comuns, que na linguagem matemática também são chamados de axiomas. Berti ensina que axiomas são “literalmente ‘dignidade’, isto é, proposições dignas de ser admitidas por causa de sua evidência intrínseca” (1998, p. 7). Alguns desses princípios são próprios de um grupo de ciências, como as ciências matemáticas. Outros são comuns a todas as ciências por se tratarem de regras lógicas que, caso violadas, impossibilitam um conhecimento racional do objeto em análise, como é o caso do princípio da não-contradição, segundo o qual algo não pode ter e não ter a mesma característica ao mesmo tempo. Os princípios comuns, portanto, são tão importantes para uma dedução formalmente correta que se afiguram mais como regras ou leis que devem ser observadas para possibilitar uma demonstração exata (BERTI, 1998, p. 7-8). Pelas observações feitas acerca da necessidade de as ciências demonstrativas possuírem princípios próprios, Berti conclui pela absoluta independência de uma em relação às outras, no sentido de que “nenhuma demonstração possa passar de certo gênero de objetos, próprios de uma certa ciência, a outro gênero de objetos, próprios de uma ciência diversa” (1998, p. 8). A consequência lógica disso é a impossibilidade de uma ciência universal, ou seja, um 17 único método para se apreender todas as realidades demonstrativas existentes no universo, inclusive demonstrando os princípios próprios de todas as ciências particulares e os princípios comuns de todas as ciências. “As ciências demonstrativas são todas, portanto, sempre e somente ciências particulares.” (BERTI, 1998, p. 9). Exemplificando o que foi dito até agora sobre a demonstração, suponha-se um silogismo analítico: Todos os belorizontinos são mineiros; José é belorizontino; logo, José é mineiro. Tem-se, pois, que, elencadas algumas suposições (premissas), chegou-se a uma suposição diferente delas (conclusão), pura e simplesmente. A passagem das premissas à conclusão é necessária, ou, como afirma Aristóteles, sendo as premissas verdadeiras e primárias (ou tendo o conhecimento delas derivado de outras premissas com estas mesmas características), a conclusão será inescapavelmente verdadeira. A necessidade reside no fato de que nenhuma outra conclusão pode ser cogitada. Tampouco pode-se dizer que a conclusão seja nova, considerando queestá implicitamente contida nas premissas. Caso se afirme que todos os belorizontinos são mineiros e que José é belorizontino, está-se automaticamente afirmando que José é mineiro. Atienza conclui: [...] se quiséssemos representar também a informação da conclusão, perceberíamos que não precisaríamos acrescentar nada: a informação da conclusão já estava incluída nas premissas, o que explica termos podido dizer que a passagem de umas para a outra é necessária; ou seja, não é possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão não seja. (ATIENZA, 2006, p. 25). No exemplo de José pode-se perceber o caráter dedutivo do silogismo. Os dois primeiros enunciados são as premissas. A primeira delas, a premissa maior, é a mais genérica de todas. Nesta premissa, um elemento médio (belorizontinos) é situado dentro de um elemento mais abrangente (mineiros): “todos os belorizontinos são mineiros”; a segunda proposição é a premissa menor, que é logicamente encampada pela premissa maior e na qual um elemento novo e mais particular (José) é inserido dentro do elemento médio da premissa maior (belorizontinos): “José é belorizontino”. Por fim, na conclusão é demonstrado que, como o elemento mais universal (mineiros) engloba o elemento médio (belorizontinos), e este último abrange um terceiro elemento, que é o mais particular e mais restrito de todos 18 (José), então daí decorre que o elemento particular (José) esteja contido no mais universal de todos (mineiros): “José é mineiro”. Desnecessário dizer, ainda, que nenhuma outra premissa se faz necessária para que se chegue à conclusão. As premissas já contêm em si a ideia da conclusão. Tampouco é possível que ali se incluam mais do que três elementos ou termos (José, belorizontinos e mineiros), pois, como ensina Margutti Pinto (2015): O silogismo completo deve ter exatamente três termos. O menor é ligado ao maior através do médio. Apenas dois termos, maior e menor, sem termo médio, não permitem a construção da conclusão. Quatro ou mais termos pecam por excesso e às vezes produzem confusão. Suponhamos o argumento: ‘O cão ladra (premissa maior). Aquele grupo de estrelas é o cão (premissa menor). Logo, aquele grupo de estrelas ladra (conclusão)’. Este silogismo, embora aparente possuir apenas três termos, tem de fato quatro termos. Na premissa maior, o termo ‘cão’ foi tomado no sentido do animal que todos conhecemos. Na menor, o mesmo termo foi tomado no sentido do nome duma constelação. Assim, embora o termo ‘cão’ seja o mesmo, os sentidos em que foi tomado são diferentes, o que aumentou o número de termos do argumento de três para quatro. A conclusão é incorreta e o silogismo não é válido porque possui quatro têrmos. Um silogismo analítico ainda pode apresentar defeitos mesmo contendo três termos. Suponha-se o seguinte silogismo: todos os patos têm dois pés; Percival tem dois pés; logo, Percival é um pato. Tem-se aqui três termos: a totalidade dos seres com dois pés; os patos; e Percival. Como é facilmente perceptível, contudo, o equivoco formal do silogismo acima reside no fato de incluir Percival dentro de um grupo ao qual não pertence (o dos patos), exclusivamente porque tem com ele uma característica em comum (o fato de ter dois pés). Poder-se-ia afirmar que, dentro do grupo de todos os seres com dois pés, um deles é Percival e alguns são patos, mas não afirmar que Percival está dentro do subgrupo dos patos. O principal defeito do silogismo de Percival, portanto, é que o termo médio (patos) não faz a ligação entre o termo particular (Percival) e o universal (seres com dois pés). Ao contrário, tem-se o termo universal contendo dois termos particulares que não possuem ligação alguma entre si, muito embora pareça verossímil que os 19 patos, por constituírem um grupo, possam representar o termo médio em que Percival estaria contido. Perceba-se, contudo, que a incorreção a que aqui se refere é meramente formal. Muito embora seja claro que das premissas apresentadas não se possa deduzir a conclusão a que se chegou, nada impede que as premissas sejam verdadeiras e, mesmo assim, a conclusão (embora também verdadeira) não decorra necessariamente destas. Isso equivale a dizer que, num silogismo analítico, não basta que as premissas sejam verdadeiras para que a conclusão também o seja: é preciso que haja uma inferência válida, ou seja, é preciso que haja uma relação de englobamento entre os três termos, como explicado acima: termo universal engloba termo médio; se termo particular está contido em termo médio, então termo particular também está contido em termo universal. O silogismo de Percival pode ser adaptado, portanto, para ilustrar melhor como é possível que não haja uma inferência válida mesmo com premissas e conclusão verdadeiras: Todos os patos têm dois pés; Donald tem dois pés; logo, Donald é um pato. Mesmo que se saiba ser verdadeira a existência de um pato chamado Donald e que ele e todos os patos têm dois pés, ainda assim não é possível afirmar que o silogismo acima seja formalmente correto. Mesmo porque os termos ali utilizados violam as condições estabelecidas por Aristóteles, para quem o silogismo analítico deve ser composto “de premissas verdadeiras e primárias ou tais que tenhamos extraído o nosso conhecimento original delas através de premissas primárias e verdadeiras” (ARISTÓTELES, Tópicos I 1, 100a25). Ora, a existência de um pato chamado Donald não é um dado primário e verdadeiro. Por isso há um evidente vício formal neste silogismo. Quanto à correção material (ou seja, quanto à veracidade do conteúdo presente nas premissas e na conclusão), a Lógica Formal não é capaz de garanti-la. É preciso verificar a realidade fática para averiguar se as premissas e a conclusão são verdadeiras ou não. Se o silogismo se apresentou como materialmente correto em todos os três elementos, foi apenas por mera coincidência, pois a lógica dedutiva não se atém às questões materiais. Estas questões são, obviamente, de grande relevância em âmbitos argumentativos alheios às ciências formais (ATIENZA, 2006, p 28). 20 3.1.1 O silogismo analítico aristotélico e o silogismo analítico moderno No que tange aos silogismos analíticos e correção formal, faz-se necessário evidenciar uma distinção muito importante entre duas espécies diferentes deste silogismo. Há uma diferença entre aquilo que Aristóteles chama de raciocínio analítico ou de demonstração e aquilo que é objeto de estudo da Lógica Formal moderna, que reside justamente na natureza das premissas. Segundo Aristóteles, a demonstração parte de premissas que são necessariamente verdadeiras e universalmente aceitas como tal; já a Lógica Formal moderna é indiferente à verdade das premissas e se preocupa apenas com a validade da inferência das mesmas (se das premissas, sendo elas verdadeiras ou não, decorre a conclusão). Em outras palavras, a Lógica Formal afirma que se determinadas proposições forem verdadeiras, então infere-se logicamente que outras proposições também serão. Para a Lógica Formal, escolha das premissas pode até mesmo ser arbitrária. Segundo Aristóteles (Tópicos I 1, 100a28), “O silogismo é demonstração quando procede de premissas verdadeiras e primárias ou tais que tenhamos extraído o nosso conhecimento original delas através de premissas primárias e verdadeiras”. Conclui-se com isso que, para o filósofo estagirita, só se pode efetivamente falar em demonstração quando não só o silogismo é formalmente correto, mas também quando suas premissas são universal e logicamente verdadeiras. Atienza analisa as consequências de se raciocinar com silogismos incorretos do ponto de vista formal: [...] a partir de premissas falsas pode-se argumentar corretamente do ponto de vista lógico; e, por outro lado, é possível que um argumento seja incorreto do ponto de vista lógico,embora a conclusão e as premissas sejam verdadeiras, ou pelo menos altamente plausíveis. Em alguns casos a lógica aparece como um instrumento necessário, mas insuficiente, para o controle dos argumentos (um bom argumento deve sê-lo tanto do ponto de vista formal quanto do material). Em outros casos é possível que a lógica (lógica dedutiva) não permita nem sequer estabelecer requisitos necessários com relação ao que deve ser um bom argumento; [...] um argumento não lógico – no sentido de não dedutivo – pode ser, contudo, um bom argumento. (ATIENZA, 2006, p. 28). Sendo assim, mesmo considerando que os silogismos materialmente incorretos são de pouca utilidade para a maioria das ciências, eles ainda são de interesse para a Lógica Formal, desde que sejam formalmente válidos. A incorreção 21 formal de um silogismo analítico torna-o praticamente inútil para qualquer ciência, a não ser pelo conteúdo de suas proposições considerados isoladamente, que pode ser de interesse para as ciências argumentativas. Concluindo essa explanação sobre o silogismo analítico, as observações de Berti são ao mesmo tempo didáticas e reveladoras: A situação concreta na qual pensa Aristóteles, ao teorizar a ciência apodíctica, é aquela constituída por um cientista, por exemplo um cultor de geometria que, já estando de posse da ciência em questão, se propõe a expô-la a outros, isto é, a ensiná-la. O discurso de tal cientista é, na essência, um monólogo, ainda que se volte aos ouvintes, porque estes últimos não têm nada a dizer e devem somente aprender, isto é, ser ajudados a ver com clareza o que lhes é ainda obscuro, por exemplo a verdade de determinado teorema. Demonstrar significa, com efeito, essencialmente mostrar a verdade de alguma coisa a quem a ignora, a partir da premissa segundo a qual a verdade é, ao contrário, já conhecida a quem a escuta; isto é, significa ensinar, no sentido mais rigoroso do termo. (BERTI, 1998, p.11. Grifou-se). 3.2 Phrónesis e silogismo prático Antes da análise da contraparte do silogismo analítico, que é o silogismo dialético, convém perscrutar a phrónesis aristotélica e como ela se desenvolve até culminar no silogismo dialético. A phrónesis, que pode ser traduzida como "sabedoria" ou "prudência" (phrónimos é aquele que domina a phrónesis - um sábio ou prudente), já foi considerada equivocadamente por alguns autores como a única forma de racionalidade prática contida no corpus aristotelicum e, consequentemente, a contraparte das ciências demonstrativas. Contudo, ao lado da phrónesis há também a filosofia prática, segundo afirma Berti (1998, p. 115 e seguintes). O mesmo autor (1998, p. 143-144) ainda assevera que, apesar de as duas formas de racionalidade possuírem muitos pontos em comum (e que, até Platão, uma se confundia com a outra), a distinção entre as duas só surgiu com Aristóteles. A análise da phrónesis é um tópico que pode provocar certa confusão, dada a classificação das virtudes da razão explanadas por Aristóteles em Ética a Nicômaco. Berti ensina que a phrónesis é descrita por Aristóteles no Livro VI de Ética a Nicômaco, onde o filósofo estagirita explica a classificação da alma e suas subdivisões. Passa-se agora a analisar cada uma delas para em seguida situar a phrónesis. 22 A parte racional da alma (diánoia) se subdivide em duas outras partes: a primeira, chamada científica ou epistemonikón é a que trabalha com princípios necessários e busca a verdade pura e simples. Além de abarcar, naturalmente, as ciências teoréticas, é curioso notar que esta divisão da razão também lida com as ciências práticas (BERTI,1998, p. 144). Apesar de aqui parecer haver uma incongruência, já que a teoria aristotélica tende a expor theoria e práxis como instâncias antagônicas (ou, no mínimo, diversas), o filósofo italiano explica esta aparente inconsistência afirmando que, enquanto as ciências teoréticas tratam de objetos necessários ou com princípios necessários, as ciências práticas tratam de princípios "geralmente" necessários (1998, p. 144). Aqui se deve dar menos atenção à dicotomia theoria X práxis e mais atenção ao ponto em comum de que são ambas ciências. Isto autoriza o leitor a equiparar as ciências práticas às teoréticas no nível epistemológico, pelo menos no que diz respeito à instância da razão que cuida de ambas. Considerando que a razão científica abrange as ciências, pode-se afirmar que o produto desta parte da alma racional é a verdade, pura e simples, quando corretamente empregada. Evidentemente, seu mau uso produz falsidades. A segunda divisão da alma racional (ou da razão, simplesmente), é chamada calculadora ou logistikón. Neste âmbito da razão se encontram as atividades deliberativas da ação humana. Como já se disse antes, se há espaço para a deliberação, não há necessidade, mas sim contingência. Aqui há mais uma fonte de possível confusão: o aspecto "calculador" desta divisão da razão a que se refere Aristóteles não se trata de um cálculo matemático, com números e operações aritméticas (o que estaria abarcado pela razão científica, a outra parte da alma racional), mas sim da avaliação de que medidas tomar para atingir um objetivo determinado. O caminho percorrido entre o desejo de se fazer algo e a ação propriamente dita é fornecido por Aristóteles, aqui explicado por Berti: [...] Aristóteles explica que a ação (práxis) tem como princípio a "escolha" (proháiresis), a qual é o resultado do encontro entre o desejo de chegar a certo fim e o cálculo dos meios necessários para alcançá-lo, ou "deliberação". Quando do desejo é reto, isto é, é voltado para um fim bom, e o cálculo verdadeiro, quer dizer, quando indica os meios realmente necessários, tem-se a "verdade prática." (BERTI, 1998, p. 144-145. Grifou- se). 23 Assim, tem-se que o desejo é o que impulsiona o indivíduo a raciocinar com um fim em vista, ou seja, sobre o que deve fazer para atingir seu objetivo. Esta etapa do raciocínio envolve o intelecto e justamente a razão em sua parte calculadora, no sentido de que o indivíduo deve calcular as medidas que deve tomar para alcançar seu propósito final. A etapa seguinte consiste na deliberação, ou seja, a escolha de uma providência a ser tomada conforme se mostre a mais adequada para o escopo em questão. É exatamente aqui que se observa o caráter deliberativo deste âmbito da razão, uma vez que atua num ambiente de princípios contingentes, ou seja, que poderiam ser de outra forma. O indivíduo deve então fazer uma escolha (proháiresis) acerca de uma das providências possíveis e somente então proceder para a ação (práxis) propriamente dita. Quando a finalidade que o indivíduo busca é boa em si mesma e quando a deliberação que faz para alcançá-la é correta, o resultado final deste exercício é chamado de "verdade prática", um conceito que Berti afirma ser "de todo estranho tanto à ciência como à ética modernas e contemporâneas" (1998, p. 145). Explorada a subdivisão da razão realizada por Aristóteles, cabe agora analisar a relação da phrónesis propriamente dita com o que foi afirmado sobre as partes da alma racional. Como é fácil perceber, a phrónesis identifica-se com a razão deliberativa, pois consiste justamente na "[...] capacidade de deliberar bem, ou seja, de calcular exatamente os meios necessários para alcançar um fim bom." (BERTI, 1998, p. 146). É um phrónimos (sábio ou prudente) aquele que emprega bem a razão deliberativa ou calculadora. A phrónesis revela-se, assim, como a virtude mais elevada da logistikón, ou seja, a faculdade mais nobre da parte deliberativa da alma racional. Como ela integra a razão e visa a uma finalidade boa em si mesma, é ao mesmo tempo uma capacidade racional e uma virtude moral, dado que é preciso ser bom (ou pelo menos tentar sê-lo) para buscar o bem. Como consequência disso, Berti afirma que "a phrónesis não admiteque haja uma virtude dela, isto é, o seu aperfeiçoamento, na medida em que já é perfeição ela mesma" (1998, p. 148). Esta forma da racionalidade, portanto, é perfeita em si mesma na medida que nada mais é do que a busca da verdade prática, que é a verdade de acordo com o desejo reto (BERTI, 1998, p. 144). Para que se busque uma verdade prática utilizando-se da phrónesis, é preciso que o indivíduo já esteja imbuído de uma motivação moralmente boa e justa para alcançar um fim bom. Berti conclui afirmando que "na phrónesis o momento cognitivo e o prático estão íntima e 24 reciprocamente vinculados" (1998, p. 148). Isso se dá pelo fato de que ela agrega o intelecto (no momento do cálculo, ou deliberação, das providências a serem tomadas para que o fim seja atingido), e a prática (no momento da tomada de decisão e execução das medidas que resultarão na concretização do objetivo final). Não obstante o fato de pertencerem a diferentes âmbitos da razão, phrónesis e filosofia prática possuem diversas características em comum. Esta pertence à parte científica e não contingente da razão, enquanto aquela pertence ao âmbito deliberativo e contingente da razão. Como pertence à parte calculadora da razão, a phrónesis não é uma ciência (pois estas pertencem à parte científica), ao contrário da filosofia prática. Não obstante, é possível afirmar que a phrónesis possui um caráter político assim como filosofia prática (que não por acaso também pode ser chamada de ciência política), já que ambas tratam daquilo que é o bem último para o homem ou para a cidade. Também é possível afirmar que ambas necessitam de comedimento ou temperança por parte daquele que a exerce, uma vez que as paixões podem influenciar o raciocínio que leva à práxis, como explica Berti (1998, p. 148): "[...] o prazer pode corromper os juízos que se referem às ações, justamente por poder induzir a escolher as ações que levem a ele". Tanto a filosofia prática quanto a phrónesis requerem daquele que as pretende empregar uma certa experiência de vida, já que lidam com casos particulares (BERTI, 1998, p. 148). A ação só pode se concretizar em instâncias individuais (em oposição a conhecimentos universais, tratados pela razão científica). Ambas requerem a vivência de muitas experiências individuais, e isso é algo que demanda tempo, razão pela qual é pouco provável que exista um phrónimos jovem. Estas inter-relações são bem explicadas por Berti: O caráter prático, isto é, concernente á ação, próprio da phrónesis exige, portanto, que ela possua o conhecimento dos casos individuais, pois a ação se produz sempre em situações individuais: por isso a phrónesis requer certa experiência, que é justamente o conhecimento dos particulares. A phrónesis, contudo, inclui, em alguma medida, também o conhecimento do universal, no sentido de que deve saber aplicar ao caso individual uma característica geral [...]. (BERTI, 1998, p. 149) Aqui começam a despontar as características do silogismo prático, no sentido de que, para se realizar uma ação (práxis), não basta apenas que se saiba como as coisas em geral funcionam (características universais). É preciso também conhecer 25 os casos particulares e saber aplicar o universal ao particular. Berti conclui explicando como a phrónesis e a filosofia prática operam coordenadamente para criar uma verdade prática: "[...] Aristóteles deixa bem clara a relação entre filosofia prática e phrónesis: a primeira conhece o universal, por isso dá as diretrizes mais gerais, enquanto a segunda conhece o particular, por isso aplica as diretrizes gerais ao caso particular, ou igualmente individual." (BERTI, 1998, p. 149). Percebe-se como existem diversas relações e interpolações entre a as duas formas de racionalidade aqui abordadas. Estas relações são essenciais para entender o raciocínio que decorre da phrónesis, chamado de silogismo prático, e seu uso no direito. Como já se disse anteriormente, o silogismo prático é o resultado do raciocínio realizado pela phrónesis, uma forma de racionalidade que goza de autonomia em relação às ciências teóricas e práticas e à filosofia prática (embora com esta guarde notáveis semelhanças). Fazendo um paralelo entre a phrónesis e o silogismo dialético, Berti (1998, p. 152) afirma que o objetivo último (o bem supremo) da phrónesis é expresso na premissa maior do silogismo, enquanto que o meio para se realizá-lo aparece na premissa menor. A conclusão, obviamente, é a efetiva realização da ação escolhida. Berti conclui esta análise relembrando a pressuposição de uma virtude moral do phrónimos, uma vez que a phrónesis é exatamente a virtude de se saber deliberar sobre os melhores meios para se atingir o bem supremo (1998, p. 153); que não se pode deliberar sobre este bem supremo, apenas sobre os meios para que ele seja alcançado (1998, p. 154); e, por fim, que "[...] para que haja phrónesis, isto é, para ser sábio, não é necessário ser filósofo, nem sequer filósofo prático, mas é necessário como vimos, ser temperante, isto é, bom de caráter." (1998, p. 154). 3.3 Silogismo dialético Rememorando o que foi dito no início do item 3.1 (Silogismo Analítico) quando se analisou brevemente a ciência apodítica, viu-se que o ato de ter ciência de alguma coisa (conhecer algo ou saber de algo) equivale a ser capaz de deduzir conclusões a partir de premissas primárias e indemonstráveis. Essas premissas são denominadas por Aristóteles como princípios (Analíticos Posteriores, I 2, 72a7) e são particulares de cada ciência. Como estes princípios são essenciais para as ciências demonstrativas, Berti (1998, p. 12) supõe que deva haver uma ciência ou forma de 26 conhecimento que tenha por objetivo investigá-los. Consoante o que foi exposto acima, o estudo destes princípios, por não ter a possibilidade de se valer da demonstração para conhecê-los, não pode ser considerado uma ciência propriamente dita. Ao conhecimento destes princípios particulares Aristóteles dá o nome de noûs, que é, mais precisamente, o conhecimento das definições, ou seja, o conhecimento do que as coisas são. Importante lembrar, mais uma vez, que as definições a que aqui se refere são, como já se viu, indemonstráveis. Berti (1998) optou por traduzir noûs como inteligência, o que se considera bastante adequado, uma vez que essa inteligência é um núcleo de conhecimento mínimo, o ponto de partida que permite aos indivíduos estruturar silogismos e chegar a conclusões. Prosseguindo na análise da definição de Aristóteles, tem-se que o segundo tipo de silogismo por ele mencionado é o silogismo dialético ou entimema, que “é aquele no qual se raciocina a partir de opiniões de aceitação geral.” (ARISTÓTELES, Tópicos I 1, 100a30). O mesmo filósofo ainda acrescenta a esta definição (Tópicos I 1, 100b20) a noção de que “opiniões de aceitação geral, por outro lado, são aquelas que se baseiam no que pensam todos, a maioria ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a maioria deles, ou os mais renomados e ilustres entre eles.” Percebe-se que no silogismo dialético, ao contrário do que foi exposto no silogismo analítico, não há o caráter de necessidade que está presente e é essencial ao raciocínio demonstrativo. As premissas que compõem o silogismo dialético, ao contrário do que ocorre na dedução aristotélica, não são axiomas, ou seja, verdades evidentes e independentes de qualquer comprovação, mas nada mais do que pontos de partida (topoi) sobre os quais os indivíduos envolvidos na discussão possuem um mínimo de consenso suficiente para que um debate deles se inicie. E, sobre os assuntos que admitem discussão e debate, as respostas não aparecem revestidas de evidência ou necessidade. A explicação do que são os topoi é feita pelo próprio Aristóteles em Retórica, aqui citado por Viehweg: Falamos de Topoi em relação aos raciocíniosdialéticos e retóricos. Os topoi referem-se indistintamente a diferentes objetos jurídicos, físicos, políticos e a muitos outros de espécie diferente, como por exemplo, o topos do mais e do menos: partindo-se dele, pode-se obter um silogismo ou um entimema sobre objetos do Direito, como sobre outros pertencentes tanto à Física como a qualquer outra Ciência, ainda que estas disciplinas sejam, entre si, 27 de natureza distinta. Os princípios próprios, ao contrário, pertencem ao número de proposições que se incluem dentro de um gênero e espécie particulares; há, por exemplo, em Física, proposições que não permitem nenhum silogismo nem nenhum entimema em questões éticas e, ao contrário, proposições de Ética que não as permitem em questões da Física. (ARISTÓTELES apud VIEWHEG, 1979, p. 26). Como Viehweg sintetiza em seguida, os topoi são, “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade” (VIEHWEG, 1979, p. 27). Utilizando os topoi como um ponto de partida, é possível de desenvolver raciocínios dialéticos. Estas observações são complementadas pelo delineamento que Aristóteles faz da dinâmica da dialética, logo no início do Livro VIII dos Tópicos: Aquele que está prestes a fazer indagações necessita, antes de qualquer coisa, escolher o terreno [topos] do qual deve desferir seu ataque; em segundo lugar, precisa formular suas questões e organizá-las uma a uma em sua própria mente; em terceiro e último lugar, deve proceder a dirigi-las a uma outra pessoa. (ARISTÓTELES, Tópicos VIII 1, 153b4. Grifos no original). Vê-se como a filosofia aristotélica considera a natureza do problema em análise essencial para a determinação do método a ser empregado em sua resolução. Não havendo possibilidade de uma conclusão necessária e evidente, é preciso dar lugar ao debate. E se há lugar para o debate sobre uma determinada questão, não há que se falar em uma única resposta correta. Como sintetiza Perelman (2005, p 1) “[...] não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência”. Fica clara, então, a diferença entre a apodítica e a dialética: na apodítica tem-se apenas um monólogo, típico de situações de ensino em que o professor demonstra algo que cabe ao aluno apenas entender; na dialética, por outro lado, pressupõe-se um debate (BERTI, 1998, p. 19). Perelman acrescenta ainda que, para Aristóteles, “no entimema não são enunciadas todas as premissas – subentende-se que são conhecidas ou aceitas pelo auditório – e aquelas em que nos fundamentamos seriam apenas verossímeis ou plausíveis.” (PERELMAN, 2004, p. 2). No âmbito da argumentação, portanto, é inviável enunciar todas as premissas e os termos relacionados à questão sendo discutida. Esta impossibilidade se dá pelo fato de estas premissas e termos serem inúmeros. A mera enumeração de todos eles seria uma tarefa interminável e sempre 28 aberta a reconsiderações. Não obstante, presume-se que o auditório (ou seja, as pessoas que participam do debate e às quais os argumentos são dirigidos) conheçam essas premissas ou que delas tenham uma noção básica. Alves e Lima (2011a, p. 14) exemplificam o silogismo dialético ou entimema: A indústria X possui máquinas que funcionam 24 horas por dia; As máquinas da indústria X produzem barulho ensurdecedor enquanto ligadas; A indústria X fica localizada em zona residencial de determinada cidade; Os vizinhos da indústria X se sentem muito incomodados com o barulho; Logo, a indústria X deve ser desativada. O silogismo acima é estruturado de forma semelhante à do silogismo analítico, no sentido de que é composto de várias premissas que levam a uma conclusão. Entretanto, existem diferenças essenciais, como aquelas apontadas por Margutti Pinto (2015) acima, a saber: o silogismo dialético em análise tem muito mais termos do que os três que essencialmente compõem o silogismo demonstrativo; existem mais premissas envolvidas além de apenas duas; é possível adicionar ou remover premissas de acordo com a necessidade argumentativa; nem todas as premissas guardam relação de subordinação entre si (no sentido de uma estar contida dentro da outra); nenhuma das premissas pode ser considerada evidentemente verdadeira, por não gerar convicção por si própria; por fim, talvez a mais importante distinção presente neste silogismo seja a conclusão, que aqui não possui a mesma obrigatoriedade existente no silogismo que concluiu ser José mineiro. Tem-se, portanto, que a conclusão do silogismo dialético não é consequência direta e necessária da inferência que se faz das premissas, mas sim uma decisão informada (e não determinada) pelas premissas. Perelman (2004, p. 3) sintetiza: Enquanto no silogismo [analítico] a passagem das premissas à conclusão é obrigatória, o mesmo não acontece quando se trata de passar dos argumentos à decisão: tal passagem não é de modo algum obrigatória, pois se o fosse não estaríamos diante de uma decisão, que supõe sempre a possibilidade quer de decidir de outro modo, quer de não decidir de modo algum. 29 Atienza (2006, p. 32) complementa a ideia e ainda faz um alerta sobre a dicotomia dedução/indução: A esse tipo de argumentos, nos quais a passagem das premissas à conclusão não é necessariamente feita, chama-se às vezes de argumentos indutivos ou não dedutivos. Deve-se ter em conta, no entanto, que por “indução” não se entende aqui a passagem do particular para o geral [...] Além do mais, os argumentos desse tipo são (ou podem ser) bons argumentos, pois há muitas ocasiões em que nos deparamos com a necessidade de argumentar, sem que, no entanto, seja possível utilizar argumentos dedutivos. O mesmo autor apresenta outro exemplo de aplicação de um silogismo não dedutivo: Vejamos este exemplo, extraído de uma sentença recente da Audiência Provincial de Alicante (n. 477/89). A e B são acusados do delito de tráfico de drogas tipificado no art. 433 do Código Penal, com a concorrência da circunstância agravante do art. 344 rep. a) 3.º, pois a quantidade de heroína apreendida com eles (mais de 122 gramas de heroína pura) é considerada – de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal – de “notória importância”. A droga tinha sido encontrada pela polícia numa bolsa, escondida no travesseiro de uma cama de casal, situada no quarto de um apartamento onde – quando a polícia entrou para efetuar a verificação – estavam A e B (um homem e uma mulher respectivamente). Na audiência o advogado de defesa e os acusados, A e B, sustentaram que, embora os dois últimos vivessem juntos no mesmo apartamento, eles não mantinham mais que uma relação de amizade, dormiam em quartos diferentes e, concretamente, B não tinha conhecimento da existência da droga. Em decorrência disso, o advogado de defesa, em suas conclusões definitivas, solicitou a absolvição de B. Entretanto a sentença, num de seus “antecedentes do fato”, considerou “fato provado” que A e B compartilhavam o quarto referido e que, conseqüentemente, B tinha conhecimento e havia participado da atividade de tráfico de drogas, da qual ambos eram acusados. (ATIENZA, 2006, p. 32-33). O caso em análise pode ser esquematizado de forma silogística da seguinte maneira (ATIENZA, 2006, p. 33): Havia apenas uma cama desfeita na casa. Eram 6 horas da manhã quando ocorreu a verificação. Toda a roupa e os objetos pessoais de A e B estavam na mesma habitação em que se encontrava a cama. Meses depois, A se refere a B como “minha mulher”. Logo, na época em que se realizou a verificação, A e B mantinham relações íntimas (e, conseqüentemente, B sabia da existência da droga). 30 Entretanto, como alerta o mesmo autor (2006, p. 33), é necessário fazer a ressalva para o fato de que os argumentos acima apresentados possamestar equivocados. Isso certamente poderia levar a uma conclusão igualmente equivocada do ponto de vista material (condenando um indivíduo inocente ou inocentando um indivíduo culpado): [...] teoricamente é possível que B tivesse acabado de chegar em casa às 6 da manhã, que seus objetos pessoais estivessem na casa de A porque ele pensava em fazer uma limpeza em regra nos armários, e que, depois da detenção de ambos, a amizade existente entre eles tivesse se convertido numa relação mais íntima. É necessário ressaltar, porém, que mesmo havendo algumas premissas falsas, não se segue necessariamente que a conclusão seja também falsa. Haveria apenas uma redução da plausibilidade ou aceitabilidade da conclusão. Num âmbito argumentativo, isso representaria o baixo poder de persuasão ou convencimento da conclusão perante o auditório a que ela é apresentada. Não obstante, se o auditório já se mostrasse inclinado àquela conclusão, é provável que a aceitasse mesmo levando em consideração sua fraca capacidade de persuadir ou convencer. Sumariza Atienza (2006, p 25): [...] o argumento não tem caráter dedutivo, pois a passagem das premissas à conclusão não é necessária, embora altamente provável. Se se aceita a verdade das premissas, então existe uma razão forte para aceitar também a conclusão, embora, é claro, não possa haver certeza absoluta [...] Alves e Lima (2011a, p. 15) concluem, tendo em vista o primeiro exemplo de silogismo dialético (indústria X): Vê-se, com isso, que o entimema ou silogismo prático não é dotado da obrigatoriedade que permeia os raciocínios dedutivos. A decisão (e não a conclusão) de desativar a indústria X pode ser sensata, plausível ou desejável, mas nunca será logicamente obrigatória. Ainda que a indústria X, localizada em zona residencial, tenha maquinários funcionando 24 horas por dia, produzindo barulho ensurdecedor e que isso incomode muito todos os vizinhos, não se pode concluir com absoluta certeza que este quadro levará, inexoravelmente, à desativação da indústria, como foi concluído no exemplo. Muitas outras decisões podem ser tomadas: a indústria pode mudar de endereço, o período de funcionamento dos maquinários pode ser reduzido ao horário comercial, máquinas menos ruidosas podem substituir as que atualmente são empregadas, etc. Seria até mesmo factível que nenhuma providência fosse tomada diante da situação, permanecendo o incômodo dos vizinhos. 31 Segundo Berti (1998, p. 20-21), é possível afirmar que a atividade dialética em geral (e não o silogismo dialético propriamente dito) se origina da formulação de um problema que pode ser expresso em uma pergunta genérica (no sentido de que não se atém às particularidades de uma ciência apodítica, por exemplo). A típica pergunta genérica é aquela que perscruta sobre a essência de algo, ou seja, uma pergunta sobre o que é determinada coisa (por exemplo, “o que é Deus?”), estando a resposta aberta a diversas possibilidades. Como a dialética se desenvolve num âmbito de diálogo entre pelo menos duas pessoas ou dois “lados” defendendo pontos de vista diferentes, esta pergunta sobre a essência é seguida por uma série de respostas possíveis e contestações destas mesmas respostas, de modo a fazer um dos interlocutores entrar em contradição e sua tese ser abandonada. Se o debatedor não se contradiz, não há motivo para que sua tese seja abandonada, mas tampouco implica obrigatoriedade de se adotá-la, uma vez que no âmbito dialético não há resposta necessariamente correta, pois “[...] a discussão será possível só a propósito de possibilidades, ou seja, de hipóteses determinadas.” (BERTI, 1998, p. 21). Toda esta dinâmica da prática dialética pode ser entendida como uma atividade de formação de silogismos dialéticos, no sentido de que a pergunta inicialmente formulada pode ser respondida por uma hipótese, uma afirmativa hipotética. A partir deste ponto, o interlocutor que não formulou a resposta hipotética e que provavelmente tem uma opinião diferente, procura submeter esta hipótese à prova, formulando diversas perguntas sobre esta resposta. Estas perguntas têm a finalidade de se obter premissas que vão fornecer conteúdo para auxiliar a discussão. Em seguida, dá-se lugar ao argumentar, que é a dedução de conclusões das premissas – ou seja, a produção de silogismos, conforme as regras explicitadas nos Analíticos Anteriores. Estes silogismos buscam apontar contradições nas teses do outro interlocutor (ou interlocutores, caso haja mais de um), sendo por isso chamadas de refutações. A refutação, por sua vez, é a melhor forma de por à prova uma tese. Se a tese falha perante a refutação, deve ser abandonada, uma vez que é contraditória. Se é bem sucedida, há fortes motivos para que seja mantida sem que com isso tenha qualquer status de verdade inquestionável, mas apenas de verdade possível (BERTI, 1998, p. 21-22). 32 Neste ponto é importante que se tenha em mente que a dialética não se resume a um exercício fútil em que dois indivíduos se esforçam para refutar um ao outro até a morte. Se a isso se reduzisse, correr-se-ia o risco de que a discussão jamais começasse, uma vez que os interlocutores jamais entrariam em acordo sobre nada, nem mesmo os pressupostos para o início de uma discussão. É por isso que os indivíduos que se propõem a empreender uma discussão racional se submetam a algumas regras básicas. A maioria dessas regras, como exemplifica Berti (1998, p. 22) são regras básicas de lógica formal, como a que afirma que a refutação de uma tese (ou seja, a demonstração de que ela é contraditória consigo mesma ou com outra afirmação feita por quem a utiliza) implica em sua falsidade ou, ao menos, indica que ela não poderá ser usada na discussão e deve ser abandonada. As demais regras a que os interlocutores devem se submeter são na verdade premissas que devem ser conhecidas por todos, chamadas éndoxa (BERTI, 1998, p. 22). Por “conhecidas por todos” quer-se dizer que tanto os interlocutores quanto os seus ouvintes (ou leitores) devem as ter aceitado previamente, implícita ou explicitamente. Essas premissas éndoxa servem então como parâmetro de razoabilidade para uma discussão ou debate, no sentido de que aquele debatedor que recusar ou violar algum éndoxon contradiz-se com o próprio público (ou auditório) a que se dirige e que é de certa forma o juiz do debate. O debatedor que incorre em tal descuido abre-se para uma refutação do seu oponente ou, na pior das hipóteses, acaba fazendo papel de ridículo perante o público por não aceitar aquilo que para este é cediço. Como resume Berti (1998, p. 23): “Para o público, com efeito, o que é éndoxon deve ser aceito, enquanto o que é contraditório deve ser refutado”. Espera-se ter conseguido explicitar a ideia, originalmente exprimida por Aristóteles, de que os dois tipos de silogismo aqui analisados podem ser empregados em diferentes situações para se obter diferentes resultados, e que estes resultados variam de acordo com a natureza do problema colocado em análise. Rememorando o posicionamento de Atienza (2006, p. 32): “há muitas ocasiões em que nos deparamos com a necessidade de argumentar, sem que, no entanto, seja possível utilizar argumentos dedutivos”, pode-se concluir que somente analisando a natureza do problema em questão é que se pode concluir pela necessidade de aplicação de raciocínios demonstrativos ou entimemáticos. 33 4 A MUDANÇA DE PARADIGMA NO DIREITO Uma mudança de paradigmas ocorreu após o tempo de Aristóteles, verificável já no final da Antiguidade. A tradição ocidental, sobretudo na Idade Moderna, interpretou a obra aristotélica no sentido de que o silogismo analítico deveria ser aplicado a todas as ciências (que hoje são entendidas como ciências formais), enquanto o silogismo dialético deveria ser aplicado nas deliberações e debates. Acomplexa teoria da lógica estruturada pelo filósofo, que dispensava igual importância aos silogismos analíticos e dialéticos, passou a ser enxergada quase que exclusivamente pelo ponto de vista demonstrativo científico. As formas argumentativas de racionalidade, como a retórica e a dialética, adquiriram caráter acessório e foram relegadas a um segundo plano, pois não eram mais consideradas como meios seguros para a produção de saber humano. Até o período dos romanos, esta distinção teoria versus prática ainda era entendida em termos relativamente semelhantes aos propostos por Aristóteles: Os romanos, sob influência da filosofia prática de Aristóteles, concebiam a prudentia como essencial ao direito, no moldes da phrónesis (discernimento do certo e do errado, sabedoria prática) e da epieikeia (equidade, justo concreto) aristotélicas, ou seja, como uma virtude moral de equilíbrio e de ponderação nos atos de julgar. O direito antigo é assim uma arte (ars boni et aequi) e não uma ciência, é um saber prático e não teórico. Por isso o saber jurídico romano é transmitido basicamente por meio dos responsa, ou seja, das opiniões dos jurisconsultos a casos específicos, o que ressalta o aspecto prudencial e prático, do saber julgar e discernir o bem e o justo em um caso concreto. (ALVES; LIMA, 2011b, p. 9-10). A partir da Escola de Bolonha ou dos Glosadores, grande precursora do direito erudito, tendeu-se a repensar a atividade jurídica nos moldes da ciência, segundo o que Aristóteles chamou de theoria, alijando-a do seu aspecto de práxis. Muito embora tenham tido grande influência dos romanos, particularmente do Corpus Iuris Civilis, os glosadores se distanciaram das noções romanas que primavam a ética e a prudência como aspectos essenciais do direito. A ideia do direito como uma ciência formal e sistemática ganhou então grande força. Este novo modelo, que considera somente a demonstração apodítica meio idôneo para a obtenção de conhecimento verdadeiro em todas as áreas do saber humano, teve influência direta no direito. A tendência de “cientificização” do direito já é percebida desde o final da Idade Média, aproximando-o da theoria aristotélica. 34 Como explica Enrico Berti, “A única forma de racionalidade atribuída a Aristóteles pela cultura moderna, a partir de Francis Bacon, é a de tipo silogístico- dedutivo, especificada em um Organon praticamente reduzido só aos Analíticos” (1998, p. X). O mesmo autor afirma que a restrição da lógica aristotélica aos raciocínios dedutivos já era prática comum antes do tempo de Bacon, e mesmo aqueles que tinham em conta a importância da indução no pensamento do filósofo consideravam-na uma ferramenta sem regras a ditar o modo de proceder e incapaz de levar o investigador a uma conclusão. Sendo este o modo que pensava Aristóteles na época, não é de se surpreender que à sua teoria tenham sido contrapostas as “experiências sensatas”, derivadas de experimentos, por Galileu, e o método cartesiano da análise matemática (BERTI, 1998, p. XI). Com o passar do tempo, portanto, verificou-se uma tendência no pensamento filosófico ocidental de alinhamento com a racionalidade demonstrativa. Ainda que, como se argumentou anteriormente, o arcabouço lógico aristotélico afirme que a natureza do problema é que dita o método a ser empregado em sua solução, a Modernidade compreendeu que todo o conhecimento poderia ser desvendado de forma demonstrativa. A influência do movimento de formalização e sistematização do Direito foi tamanha, que até mesmo outras áreas do conhecimento de caráter eminentemente argumentativo passaram a adotar estes moldes. Assim, nos séculos XVII e XVIII a dialética foi relegada a um segundo plano, uma vez que não se consideravam as deliberações e debates como ambientes de produção de conhecimento verdadeiro. Ao contrário, eram tidos como uma forma primitiva de obtenção de um conhecimento obscuro, se comparado ao o saber seguro, sólido e claro que a Lógica Formal é capaz de proporcionar. Este período de crise para a dialética está intimamente associado à emergência do novo modelo de saber promovido por Descartes e fundado no método matemático e na evidência como únicos meios aceitáveis para a produção de conhecimento válido. Não sem razão, portanto, a palavra retórica tem conotações negativas até os dias de hoje. A contribuir para a formação deste novo paradigma, alguns pensadores podem ser mencionados: 35 Immanuel Kant, por exemplo, na arquitetônica da Crítica da razão pura 1 , retoma elementos da tradição aristotélica, separando a lógica em analítica e dialética. Entretanto, ele atribui à dialética um sentido negativo, sendo ela uma pretensão ilusória, que não passa de uma arte sofística, procurando fornecer um colorido de verdade à própria ignorância pessoal e embelezando qualquer procedimento vazio. Também em Arthur Schopenhauer encontramos essa mesma deturpação do antigo sentido da dialética: sua única preocupação é com a derrota das teses alheias e com a defesa das próprias afirmações, estando a verdade colocada de lado. 2 Como ao mestre da esgrima, a quem só interessa acertar e defender, também ao dialético pouco importa a razão do litígio, sendo sua atividade uma mera “esgrima intelectual” que não deve aventurar-se na verdade, pois cabe à lógica o estudo da pura verdade objetiva. 3 (ALVES; LIMA, 2011b, p. 9). Não obstante, Descartes é provavelmente o autor que mais contribuiu para a consolidação de uma ideia de razão embasada exclusivamente nos raciocínios apodíticos. Sua posição em Discurso do Método sumariza o pensamento Moderno de forma emblemática: “[...] considerando quantas opiniões diversas pode haver sobre uma mesma matéria, todas sustentadas por pessoas doutas, sem que seja verdadeira, eu reputava quase como falso tudo o que era apenas verossímil.” (DESCARTES, 1996, p. 12, grifou-se). Impossível não notar a dissonância de tal pensamento se comparado à definição de silogismo dialético de Aristóteles. O filósofo antigo admite o raciocínio (dialético) “a partir de opiniões de aceitação geral”, sendo estas “aquelas que se baseiam no que pensam todos, a maioria ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a maioria deles, ou os mais renomados e ilustres entre eles.” (Tópicos I 1, 100b20). Descartes representa, então, a consolidação de um novo modo de pensamento que pretendeu restringir o uso da dialética e da retórica aristotélica ao âmbito das deliberações e dos debates, tornando-as obsoletas enquanto métodos de investigação e de produção de conhecimento científico relevante para as ciências formais. Por ciências formais, refere-se às ciências cujas atividades primordiais 1 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5ª ed. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 96; KANT, Immanuel. Lógica. Editado por Gottlob Benjamin Jäsche. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 16-17. 2 SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. Organização e ensaio de Franco Volpi. Tradução de Alexandre Krug e Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 17. 3 SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão: exposta em 38 estratagemas. Organização e ensaio de Franco Volpi. Tradução de Alexandre Krug e Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 17. 36 envolvem principalmente deduções ou silogismos analíticos (que não garantem a veracidade do conteúdo de suas proposições, mas apenas a validade da inferência, ou seja da passagem das premissas para a conclusão). Aqui, é importante salientar como os discursos de tais atividades são diferentes. Como já se disse anteriormente, o discurso das ciências formais é, primordialmente, um monólogo, pois não presume
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