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Freud, S. Sobre o Narcisismo: Uma introdução. (1914). Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (“On Narcissism” em inglês, “Zur Einführung des Narzißmus” em alemão), de 1914, Freud faz um estudo teórico do narcisismo. Apesar de Freud inaugurar sua dissertação atribuindo a Paul Näcke a origem do termo “narcisismo”, segundo Guimarães e Endo (2014): “A primeira referência ao mito de Narciso, no interior de uma problemática psicopatológica, foi feita pelo psicólogo francês Alfred Binet, em 1888, numa nota de rodapé do texto ‘Le fétichisme dans l'amour’; onde Binet conjectura que por trás de alguns objetos-fetiche não se esconde uma relação com o corpo mutilado da mulher, mas sim uma relação com o próprio corpo. Em 1898, Havelock Ellis, no texto ‘Auto-erotism: a study of the spontaneous manifestation of the sexual impulse’, cria a expressão Narcissus-like tendency [tendência a ser como Narciso]; tal tendência é a forma extrema do comportamento autoerótico: onde o outro não está presente no processo de excitação e descarga da energia sexual. A partir desse texto de Ellis, surge uma série de estudos sobre essa tendência a ser como Narciso. Paul Näcke, médico criminologista, em 1899, no texto ‘Kritisches zum Kapitel der normalen und pathologischen Sexualität’, fazendo menção às descrições de Ellis, cria o termo narcisismo e o caracteriza como uma perversão, definida por um olhar que busca - em si e para si - a satisfação sexual.” (Guimarães e Endo, 2014, pp.444-445). Ainda segundo Guimarães e Endo (2014), Freud teria retificado tal equívoco em 1920, na obra "Três ensaios de uma teoria sexual", acrescentando uma nota que destacava a autoria de Ellis na origem do conceito. Contudo, Freud estaria novamente enganado acerca da gênese do termo, visto que “não foi precisamente Havelock Ellis quem inventou a palavra, e sim Paul Näcke; de tal forma que Freud estaria mais correto em 1914 do que na sua retificação de 1920” (Guimarães e Endo, 2014, p.434). Voltando a “Sobre o narcisismo: uma introdução”, após apresentar a definição de Näcke, Freud se ocupa em teorizar acerca de um narcisismo primário e normal, noção essa que advém da tentativa de explicar a esquizofrenia, na época, também denominada dementia preacox, sob a hipótese da teoria da libido. Segundo Freud, a megalomania e o abandono do interesse pelo mundo externo ─ isto é, a retirada da libido de pessoas e coisas ─, ambas próprias ao quadro clínico da esquizofrenia, sugerem que a libido retirada dos objetos é dirigida ao Eu, daí a expressão da megalomania. Entretanto, a megalomania distintiva desses pacientes “não é uma criação nova, mas sim a ampliação e o explicitamento de um estado que já havia existido antes” (Freud, 1914/2010, p.11). Freud postula que todos os seres humanos têm algum nível de narcisismo em seu desenvolvimento, e, a partir disso, propõe a tese de um narcisismo secundário (oriundo da retração dos investimentos objetais), o qual é edificado sobre um narcisismo primário: “Formamos assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam. [...] Notamos apenas as emanações dessa libido, os investimentos de objeto que podem ser avançados e novamente recuados. Enxergamos também, em largos traços, uma oposição entre libido do Eu e libido de objeto. Quanto mais se emprega uma, mais empobrece a outra. A mais elevada fase de desenvolvimento a que chega esta última aparece como estado de enamoramento; ela se nos apresenta como um abandono da própria personalidade em favor do investimento de objeto, e tem seu contrário na fantasia (ou autopercepção) de fim do mundo dos paranóicos.” (Freud, 1914/2010, p.11). É possível observar que a introdução do conceito de narcisismo na teoria freudiana torna confusa a distinção entre pulsões sexuais e pulsões egóicas, visto que o ego também é investido pela libido. Em razão disso, Freud reflete sobre essa possível diferenciação entre pulsões objetais e pulsões do eu nos parágrafos seguintes. Mais adiante no texto, Freud critica duramente C. G. Jung, segundo o qual a teoria da libido havia fracassado em explicar a deamentia preacox e as neuroses. Inclusive, conforme Mariás Pinto (2007), um dos motivos que levam Freud a escrever “Introdução ao narcisismo” é responder às críticas que Jung lhe fazia, em especial concernentes ao seu rigor em conservar a prevalência dos impulsos sexuais no psiquismo, no âmago de uma polêmica que culminou no rompimento entre ambos. Para Freud, a dementia preacox e a paranoia levariam à compreensão da psicologia do Eu, tal qual as neuroses de transferência possibilitaram o entendimento dos impulsos instintuais. Freud também cita outros caminhos de conhecimento do narcisismo, a saber: a consideração da doença orgânica, da hipocondria e da vida amorosa dos sexos. Por consideração da doença orgânica, Freud assinala o desinteresse pelo mundo externo experenciado por pacientes enfermos, que voltam seus investimentos libidinais para o Eu, enviando-os novamente para fora somente após estarem curados. Freud reconhece que distúrbios físicos poderiam desvanecer mesmo a mais intensa disposição de amar. Também o hipocondríaco “retira interesse e libido dos objetos do mundo exterior e concentra ambos no órgão que ocupa” (Freud, 1914/2010, p.18). No que cabe à vida amorosa, Freud escreve que existem dois tipos de padrões de escolhas objetais: “de apoio”, que tem a mãe nutriz como modelo, e “narcisista”, que toma a si mesmo como objeto amoroso (ex.: homossexualidade). Geralmente, essas duas modalidades de escolhas objetais estão presentes em todos os sujeitos, embora em graus diversos. Freud fornece, inclusive, uma pequena síntese das escolhas de objeto, a saber: “Um breve sumário dos caminhos para a escolha de objeto pode concluir estas observações incipientes. Uma pessoa ama: 1) Conforme o tipo narcísico: a) o que ela mesma é (a si mesma), b) o que ela mesma foi, c) o que ela mesma gostaria de ser, d) a pessoa que foi parte dela mesma. 2) Conforme o tipo “de apoio”: a) a mulher nutriz, b) o homem protetor, e a série de substitutos que deles derivaram.” (Freud, 1914, p.24-25). Freud procede comentando sobre como os pais depositam na criança todas as suas fantasias de onipotência e perfeição, ignorando as “aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados” (Freud, 1914, p.25). Para Freud, o amor parental é o narcisismo dos pais renascido, que “na sua transformação em amor objetal revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora” (Freud, 1914, p.26). Acrescenta também que o narcisismo alheio é atrativo àqueles que renunciaram a uma parte do seu próprio narcisismo, e elucida que, como no homem predomina as escolhas objetais de ligação, estaria explicado seu fascínio por certas mulheres narcisistas. Como assinalado por Araújo (2010), a autoestima é outro aspecto da personalidade derivado do narcisismo e intrinsecamente ligado à evolução das escolhas objetais e das realizações. Freud supõe que a autoestima depende de três aspectos: “o primeiro deles é o resíduo mesmo do narcisismo infantil, o segundo decorre das realizações do ideal do ego que corroboram a onipotência infantil, e o terceiro provém da satisfação da libido objetal, ou seja, de relações amorosas satisfatórias” (Araújo, 2010, p.81). Por fim, Freud termina seu ensaio concluindo que a investigação do constructo do narcisismo e suas derivações ultrapassa o entendimento da psicologia individual, visto que esse se mostra também de grande valia para a compreensão da psicologia das massas. Lista de Referências Araújo, Maria das Graças. (2010). Considerações sobre o narcisismo. Estudos de Psicanálise, n. 34, 79-82. Freud, S. (2010).Introdução ao narcisismo. In Obras completas. (Paulo César de Souza, trad., Vol. 12). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914). Guimarães, Luiz Moreno, & Endo, Paulo Cesar. (2014). A origem da palavra narcisismo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(3), 431-449. Mariás Pinto, Kátia. (2007). Crônica de um fim anunciado: o debate entre Freud e Jung sobre a teoria da libido. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 10(1), 75-88.