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As Duas Faces da Morte Léo Matos Copyright by Léo Matos 1995 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida em qualquer forma ou meios, eletronicamente ou mecanicamente, inclusive tirando fotocópias, gravando ou por qualquer sistema de armazenamento de informações sem permissão por escrito do autor exceto no caso de cotações breves (citando a fonte) em publicações científicas. As Duas Faces da Morte Léo Matos O MISTÉRIO DA MORTE O mistério da morte tem surpreendido o homem desde tempos imemoriais e o homem tem tentado vários meios para descobrir o que é a morte e possíveis estados de consciência pós-morte. Morte é a passagem do estado da chamada vida, onde funções vitais específicas operam dentro de um organismo (que é composto de órgãos funcionando de uma forma organizada específica), para outro estado de ser, onde essas funções deixam de operar naquele mesmo organismo, que agora ficará "desorganizado" entrando num estado de trans-formação. Essa é a morte biológica física. Morte sendo, então, igualada à transformação pode ser aplicada não apenas à um contexto físico da existência mas também à um contexto psicológico. Nesse sentido veremos que não apenas nossas células do corpo morrem aqui e agora e outras células nascem ou renascem, mas que também nossas emoções e pensamentos existem dentro deste contexto de transformação constante a que chamamos morte. Geralmente uma pessoa é considerada morta quando seu coração parou de bater e a respiração cessou 1 . Quando pensamos sobre morte é sempre em conecção com a imagem de algo ou alguém que morreu: um parente próximo, alguém que conhecemos ou mesmo um animal ou planta. Em nossa mente aparece a figura de um acontecimento físico, biológico, com uma conotação emocional consciente ou inconsciente. Essa conotação freqüentemente implica distância, rejeição ou indiferença (a qual é uma forma suave de rejeição). A raiz inconsciente dessas atitudes é nosso medo da morte. O ingrediente básico que torna qualquer dos nossos problemas difíceis demais, complicados e preocupantes é o medo. O MEDO E AS DUAS FACES DA MORTE Medo é uma emoção humana de suma importância; e o medo da morte é um de nossos instintos mais importantes o qual nos permite sobreviver. Entretanto, com relação à morte podemos observar claramente dois tipos básicos de medo os quais são duas faces da morte: o medo da morte física atual, que é um medo necessário e saudável, pois esse medo funciona como um poderoso mecanismo de defesa (ou instinto de sobrevivência), o qual nos ajuda a manter nossos corpos longe da morte ou possível destruição; e o medo psicológico da morte, o qual na realidade é um medo produzido por uma morte projetada no futuro. Esse medo vem a ser um 1 Em termos médicos é imprescindível que o EEG apresente a linha isoelétrica para que a pessoa seja considerada morta. medo nascido de uma fantasia auto-criada, com efeitos psicológicos prejudiciais para a própria pessoa assim como para seu ambiente. Esse medo psicológico da morte (que costuma existir em um nível inconsciente) produzirá na pessoa diferentes tipos de sintomas, como por exemplo, falta de auto-confiança, alienação, depressão, falta de iniciativa, pessimismo, nervosismo e agressividade, tensão física e psicológica, doenças psicossomáticas, falta de coragem e entusiasmo, incapacidade de experienciar alegria e freqüente tendência consciente assim como inconsciente para auto sabotagem e suicídio (Matos, 1980). Todos esses sintomas aparecem porque o que realmente tememos em relação à morte (no caso do medo psicológico) não é a morte do nosso corpo físico, mas a destruição, morte e transformação de nossa auto-imagem (ou ego) a qual nós projetamos no futuro em uma situação de "perigo". Faremos tudo para manter essa auto-imagem, pois não tornamos claro e consciente para nós mesmos o que é nossa imagem e o que somos nós mesmos. A AUTO-IMAGEM Para sobreviver neste mundo como seres humanos nós precisamos ter uma identidade. Em nossa sociedade moderna e sofisticada essa identidade, a qual é uma imagem de nós mesmos (isto é, a pessoa que imaginamos e cremos que somos), se torna muito importante. Nós certamente precisamos saber quem somos nesta sociedade na qual vivemos e quais são os papéis e comportamentos esperados de nós. Nesse caso criamos uma imagem de nós mesmos, a auto-imagem ou ego 2 . Nesse sentido, a auto-imagem é um instrumento sabiamente concebido pela sociedade para funcionar como um espelho, para funcionar como um protetor ou guardião. Acontece que esse guardião, com o passar do tempo, se torna um guarda. Um guardião tem mente aberta e é protetor. O guarda tem usualmente a mente estreita, é restritivo e eventualmente manterá seu prisioneiro encarcerado para sempre; e aqui parece que é isso o que acontece à maioria das pessoas no que diz respeito à suas auto-imagens. Elas esquecem que a imagem é apenas uma imagem e acabam acreditando que as auto-imagens são realmente elas próprias. É aqui que começa o problema porque a pessoa se enganou ao tomar um espelho social, uma simples identidade social impermanente, como sendo uma identidade definitiva, e passa a crer que ele próprio é uma imagem. Então a pessoa começa a viver a maior parte da sua vida apenas em um mundo de imaginação. Isso pode (e freqüentemente acontece) se tornar um jogo social coletivo que resultará numa "verdade" consensual. Quando isso acontece as pessoas que vivem em tal sociedade, onde predomina essa "verdade" consensual, se sentirão cada vez mais alienadas de si e da natureza, ficarão amedrontadas (com medo e suspeita uns dos outros), agressivos e especialmente com um forte e inconsciente medo da morte. De alguma forma nós perdemos nossa identidade mais profunda e agora cremos que somos o que não somos, isso é, uma imagem. E para 2 Ego aqui significa a concepção individual de si próprio, o modo como ele imagina que ele é, isto é, a auto-imagem. salvar essa imagem, que agora tomamos como sendo nosso "eu real" nós, inconscientemente, criamos uma poderosa barreira de auto-defesa baseada nos conteúdos do medo. Como esse medo está mais em um nível inconsciente e não é expressado, ele se torna auto-destrutivo, emergindo então como sintomas individuais e coletivos. O sintoma coletivo mais conhecido é o que chamamos tabu da morte (ver: Matos, 1987). O NASCIMENTO DO TABU DA MORTE Esse tabu pode nos parecer um mistério. Quando e como nós criamos um tabu sobre algo tão natural e inevitável como a morte? Somos nós seres humanos "naturalmente loucos" e criadores potenciais de auto-sofrimento? Por que ao invés de encarar diretamente esses problemas criados por uma "futura morte do ego" nós criamos um tabu da morte? Exatamente agora nós estamos vivos e teoricamente sabemos que vamos morrer um dia, mas nós não sabemos o que a morte é realmente, porque geralmente ninguém que conhecemos jamais voltou da morte para nos contar o que ela é. Por causa disso fazemos uma fantasia consciente ou inconsciente do que a morte é. Nós imaginamos o que ela poderia ser. Há dois tipos básicos de fantasias que podemos fazer sobre o que é a morte, ou melhor, o que virá após a morte física: uma é que não há nada após a morte e outra é que há alguma coisa após a morte. Nós jamais seremos capazes de saber, com certeza, o que é. Você pode ter uma formação cristã e acreditar que você irá para o inferno ou para o céu (sendo católico você terá uma alternativa a mais: o purgatório). Como um hindu ou um budista a pessoa acreditará em muitas vidas passadas e futuras; e como Marxista você acreditará que acreditanão haver nada após a morte. Seja qual for a crença pessoal de alguém, haverá sempre uma dúvida, à menos que a pessoa tenha morrido para descobrir o que há depois da morte. Aqui é interessante lembrar que a Psicologia Tibetana Budista tem elegantes e sofisticados manuais da morte e do processo de morrer, da existência entre uma vida e outra e do renascimento. Podemos perguntar onde e como os tibetanos encontraram esta cartografia que usualmente não encontramos no Ocidente? A resposta é simples, Lamas tibetanos e yogues, estudando através de milênia os mistérios da morte, não apenas intelectualmente mas experiencialmente (através de práticas e meditações extremamente complexas e sofisticadas), pesquisaram (dentro de um contexto científico existindo num paradigma diferente do nosso) e descobriram o que para nós ainda é um mistério. Uma das afirmações é que alguns lamas e yogues do Tibete conseguem não apenas lembrar as suas vidas passadas, mas exatamente aquele caminho (em Tibetano: Bardo) que existe entre uma vida e outra. Eles têm seus sofisticados livros da morte (Bardo Thödol), parte dos quais foi traduzido para línguas ocidentais (Evans-Wentz, 1968). Os antigos egípcios tiveram também o seu manual sobre a morte, o Livro Egípcio da Morte, mas infelizmente o que chegou a nós foram apenas alguns pergaminhos desta coleção de escritos e somente a tradição escrita. Os tibetanos nos oferecem ainda esta tradição viva, e certamente é possível aprender estes métodos (Veja: "Debate com o Dalai Lama: o budismo diante da ciência", em Thot # 58, 1992) Na tradição ocidental Apuleius 3 , o filósofo platônico, menciona sobre o antigo manual usado pela igreja cristã Ars Moriendi (um guia que o sacerdote usava para guiar o indivíduo na sua viagem pos mortem) e afirma em sua Metamorphoses (XI, 23): Eu fui para os confins da morte. Eu caminhei o umbral de Proserpine [na dimensão dos mortos]. Eu nasci através de todos os elementos, e retornei à Terra outra vez. No entretanto, os antigos manuais ocidentais, a maioria perdidos atualmente, pouco ou quase nada oferecem sobre os caminhos práticos da morte e estados de consciência experienciados durante e após a morte. No momento atual as informações práticas sobre morte, morrer e pós- morte, são praticamente desconhecidas pelo homem ocidental. Uma pessoa pode tentar descobrir o que é morte de várias maneiras. Alguns procurarão na filosofia, religião, ler artigos e livros específicos e até farão perguntas. A ciência ocidental ainda não tem uma resposta sobre o que são exatamente os estados de consciência experienciados durante o momento da morte, e o que há depois da morte. Como a pessoa não pode encontrar uma resposta satisfatória, ela se fecha para esse assunto. Em um nível consciente ou semi-consciente a pessoa começa a fazer uma fantasia negativa sobre o que vem após a morte. Por certas razões específicas as fantasias que desenvolvemos são negativas e não positivas. Estamos vivos agora. Eu estou aqui, você está aqui e quando estamos em uma comunidade (família, amigos, sociedade) onde vivemos, isto e as 3 Citado em Evans-Wentz (1968) cf. tradução para o inglês de H. E. Butler (Oxford, Clarendon Press, 1910). pessoas à volta nos dá uma espécie de segurança. De repente, nesse ambiente humano alguém (mãe, pai, amigo, etc) morre. Normalmente nos apegamos às pessoas e as coisas. Isto, automaticamente produz o medo de perda. Se pudéssemos ser mais realistas e lembrar que nada é eterno, então em vez de nos apegarmos e termos medo de perder aquilo ou aquele(a), usaríamos toda a nossa energia para estar aqui no presente desfrutando plenamente o que temos agora e nos dedicando com amor e sem apego às pessoas. Buda falou que "todo encontro é o começo de uma separação." Mas preferimos esquecer esta verdade e desfrutar a nossa ilusão nos protegendo com outra ilusão, o apego. Este apego nos faz criar, num nível semi-consciente a fantasia que aquele objeto, situação ou pessoa, é eterno. Então a chegada da morte faz essa pessoa desaparecer de nossa proximidade e nós sentimos sua falta. Podemos perguntar: onde está essa pessoa? - "A morte a levou!" E como sentimos falta dessa pessoa e sabemos que ela nunca poderá voltar, então nós, semi-conscientemente ou inconscientemente, começamos a igualar morte com algo desagradável. Algo que traz sofrimento (a desagradável sensação da falta de um ente querido). Então começamos a fazer fantasias negativas sobre a morte. À essa altura consideramos a morte como algo ruim, como um inimigo, pois sem aviso prévio ela pode levar uma pessoa amada, um amigo, um parente... Até mesmo nós à qualquer momento!! Dessa maneira começamos então a classificar a morte como um acontecimento negativo. Quando não somos capazes de entender e compreender essa morte no nosso contexto de vida diária (num nível comum de realidade ordinária) começamos a afastar essas idéias para longe de nossa mente consciente (isto é, reprimir). E é assim que nasce um tabu. CRISE EXISTENCIAL E PSICOSE SENIL O tabu nos encoraja a evitar o assunto da morte e a agarrar aquilo que cremos ser vida. Nos apegamos cada vez mais aos bens materiais e nos ligamos às situações emocionais. Tentamos reter e eternizar um mundo que é impermanente; tentamos fazê-lo estático e previsível de acordo com nossas expectativas, um universo que é essencialmente dinâmico. Isso, naturalmente, trará cada vez mais frustrações e aumentará nossos sofrimentos. Tentaremos cada vez mais negar a existência da morte, armazenando então dores e sofrimentos psicológicos futuros. Isso porque igualamos o que acreditamos ser morte biológica com destruição e total desaparecimento; e como não queremos desaparecer no vácuo porque não queremos perder nossa auto-imagem, então rejeitamos a morte, criando um tabu. O tabu se torna nossa "proteção contra morte". Sufocando o pensamento de nossa morte, com o passar dos anos, chegará uma idade em que esse se tornará um problema sério. O medo que estava bloqueado (reprimido) dentro de nós começa a emergir pois, com a idade, não se pode escapar do fato de se estar, devagar e sempre, aproximando do dia dessa conseqüência final. Aqui nós precisaremos não apenas deixar o nosso tão amado corpo mas tudo de material e emocional que colecionamos durante toda a nossa vida. Podem surgir dois problemas devido a negação da morte: entre os 35 e 50 anos pode acontecer uma crise existencial (ela também pode acontecer mais cedo). Isto significa o momento na sua vida em que tudo o que você fez e adquiriu no passado, e aquilo que você irá fazer no futuro, não tem nenhum significado. Você se sente alienado. Coisas que anteriormente significaram algo para você perdem sua importância e você começa a se sentir como um robô. A psicose senil é outro problema produzido por esta negação da existência da morte. Isso não é tão incomum como pode parecer. Quando o ser humano começa a se aproximar de uma certa idade, o que depende da cultura, a pessoa pode começar a ter idéias e formas de comportamento rígidos não conseguindo se adaptar à evolução natural de sua sociedade e, algumas vezes, até regredindo ao nível psicológico de uma criança pequena. Têm sido realizadas várias pesquisas dessa síndrome (psicose senil) e sua causa parece ser o medo da morte (Eissler, 1955; Christ, 1961; Gillespie, 1963). Se você pergunta a alguma pessoa se ela tem medo da morte, freqüentemente ela lhe dirá que não. Entretanto, aprofundando no assunto, descobrimos que a maioria das pessoas comuns temem a morte. E esse medo oculto é uma razão básica de muitos problemas ou sintomas que mencionamos aqui. Quando temos medo, nós retrocedemos e nos fechamos. Fechar-nos, significa que de alguma forma nos desligamosdo mundo ao nosso redor. Nós ficamos bloqueados e, mais cedo ou mais tarde, vários problemas começam a emergir em nossas vidas. Carregando em si o fantasma do medo da morte, a pessoa é sempre cautelosa demais. Isto não significa que esta pessoa está pensando na morte e a temendo o tempo todo. Bem ao contrário. Em um nível consciente, raramente aparece o pensamento da morte. No entanto isso é mostrado na vida de uma pessoa de várias maneiras. A pessoa perde sua criatividade, sua espontaneidade e se separa a si mesma de si e dos outros, tornando-se alienada. E um sintoma mais comum é ter medo de seres humanos. Este fenômeno de ter medo de outros seres humanos é pouco conhecido na América Latina, exceto talvez em metrópoles bastante grandes; mas relativamente comum em grandes cidades da Europa. Na Finlândia, por exemplo, é um fenômeno tão comum em todo o país que na língua finlandesa existe uma palavra especial ("ihmispelko") para designar a experiência de ter medo de seu semelhante (independentemente se o mesmo é um membro de sua sociedade, um colega de trabalho, e, às vezes, até mesmo da própria família). Isto parece ser um efeito colateral negativo das sociedades super industrializadas da Europa, o que certamente, acontece por causa dos meta- modelos (filosofias) de realidade usados por estas sociedades. Meta-modelos existindo dentro de um quadro de referência materialista. Em Tóquio, que é uma das maiores cidades do mundo, num país super-industrializado, não constatei nas pessoas o síndrome de "ihmispelko" (medo de seres humanos). Isto se deve possivelmente a que os meta- modelos usados no Japão vem de religiões (v.g. Budismo) que têm técnicas práticas e efetivas para lidar com a existência da morte. A OUTRA FACE DA MORTE Quando pensamos em morte, sempre pensamos em seu oposto: a vida. A vida para mim significa que eu estou aqui agora respirando e consciente do meu corpo e sentidos, e não estou morto. O que é vida para mim? Bem, é minha vida. O modo como pessoas no ocidente usualmente pensam da vida é de uma forma linear bi-dimensional: VIDA MORTE nascimento_ __ _ _ _ agora _ _ _ _ _ /..... morte.... Eu nasci um dia, e esse dia é o começo da minha vida. Eu vivi tantos e tantos anos e estou com tal idade agora. Eu acho que vou viver mais 50 ou 60 anos e depois eu vou morrer. Essa linha que se estende do meu nascimento até minha morte é minha vida. Uma maneira simples mas bem inadequada de conceituar vida. A vida se torna algo consciente para você com o que você experiencia e se torna consciente; o que você basicamente classifica de bom ou mau. De alguma forma você tem um certo controle da vida. Mas não há um controle seguro da morte. Isso o deixa impotente diante da morte. Por isso, sem nenhuma saída, nós escolhemos rejeitar e deixar para amanhã a existência da morte. Aqui, de uma maneira subconsciente, começamos a criar fantasias negativas sobre a morte. Porque de alguma forma consideramos que nossa vida não é uma linha se estendendo do nascimento até a morte mas ela certamente se estende além do nascimento (nós enterramos no nosso inconsciente nossas memórias perinatais) e morte. Muitas vezes isto nos faz ficar com medo da morte a qual agora para nós existe no futuro. Esse medo começa a afetar nossa vida. Se você olhar para o que é realmente a morte em relação à nós seres humanos, você acabará perguntando o que é o ser humano. E, para usar um modelo muito simples, podemos dizer que para ser um ser humano você precisa ter um corpo humano, sentimentos (emoções) e uma mente. Desse modelo simples olharemos para um ser humano em relação à morte e morrer. O nível físico: Onde está a morte? Aqui e agora! Podemos verificar sua presença aqui e agora, porque sabemos que nosso corpo é composto de células, e, cientificamente, sabemos que agora mesmo essas células estão morrendo e novas células estão nascendo continuamente. Nesse caso, a morte não está no futuro mas aqui e agora; e sua presença em realidade faz a essência da vida, que é a transformação contínua de nosso corpo neste contexto de vida, morte e renascimento. Milhões de células morrem e outras nascem o tempo todo. Aqui nós damos conta de que a morte não está no futuro, mas aqui e agora. Dessa forma, a morte não é um inimigo. Se as células não regenerassem nesse contexto fluente de morte-renascimento (o que acontece em nosso corpo agora mesmo), agora mesmo não estaríamos aqui. Pelo menos não nessa forma humana! No nível emocional vemos que a morte está aqui agora e não no futuro. Nossos sentimentos mudam o tempo todo. Eles morrem e renascem. Lembre como seu sentimento era ontem à noite, ou essa manhã durante o café. Eles certamente mudaram e novos sentimentos nasceram de novo. No nível intelectual, quando você pensa sobre suas idéias e ideais você nota que eles também mudam. Olhe seus ideais: Quais eram seus ideais 10 ou 5 anos atrás, e quais são agora. Eles devem ter mudado de algum modo. Os pensamentos estão mudando quase constantemente, e sua mente experiencia um fluir de trans-formação de morte e re-nascimento. Dessa forma você pode notar que no nível intelectual a morte está aqui e agora, tanto quanto nos outros níveis. O CASO DE SAMUEL Samuel é um homem de negócios, de 34 anos, que participou de uma workshop de três dias que dei na Venezuela. Durante este evento ele não falou uma única palavra, e após a workshop me solicitou uma sessão de terapia individual. Fico sabendo que ele tem medo da morte, medo de pessoas desconhecidas, é alcoólatra e que o seu médico o diagnosticou com cirrose, informando-o que se ele continuar bebendo ele viverá no máximo mais seis mêses. Ao mesmo tempo Samuel apresenta um comportamento que aparentemente é paradoxal, ele tem fortes tendências suicidas. Aqui decido usar com ele a técnica de Sonho Catártico Dirigido (DDC = Day Dream Catharsis). Esta é uma técnica que desenvolvi nos últimos quinze anos a qual leva a pessoa rapidamente às regiões mais profundas de seu inconsciente, facilitando, num espaço de tempo relativamente curto, descobrir as raízes de problemas importantes, que muitas vezes se situam num nível perinatal e transpessoal. O aspecto catártico desta técnica tem mostrado ser de grande benefício no processo de cura de problemas relacionados com morte, suicídio, severos casos de depressão e 'borderline' (veja: Matos, 1993). A sessão acontece na casa de Samuel e peço à ele para deitar num sofá, fechar os olhos, e me contar sobre o seu medo da morte. S(amuel): Eu não sei o que falar... mas eu tenho medo de morrer. Meu medo de morrer é tanto que passo noites e noites com insônia. Eu tenho uma dificuldade muito grande para dormir. L(eo): Eu quero que você me fale mais sobre isto. S: Às vezes eu bebo um pouco mais e... ao mesmo tempo que tenho muito medo da morte sinto atração por ela. L: Quero que você me conte uma situação específica que ocorreu com você onde você sentiu medo da morte e ao mesmo tempo vontade de morrer. S: Eu não consigo me relacionar bem com os outros. Tenho muitos poucos amigos e o único lugar em que sinto alguma satisfação é em meu escritório fazendo os meus negócios e os meus projetos. Mas mesmo tudo isto, muitas vezes, me parece vazio demais. Na semana passada dei uma festa no meu apartamento, e para me sentir mais à vontade comecei a beber, uma vez mais, a beber excessivamente. Depois de várias doses de whisky e de conversar com várias pessoas, comecei a sentir vontade de morrer. Meu apartamento é um triplex no vigésimo quinto andar, e estávamos bebendo no terraço. Então, como já fiz antes, deitei na amurada esperando talvez que algo acontecesse e eu caísse lá embaixo. L: E o que aconteceu? S: Nada. É sempre assim, eu nãoentendo, ao mesmo tempo que tenho muito medo da morte é como se algo me atraísse para morrer. L: Agora eu quero que você descreva para mim no tempo presente o que você acaba de me contar. Samuel descreveu novamente a sua experiência da festa e quando chegou ao ponto em que estava deitado na amurada, bêbado, lhe instruí: L: Agora, eu quero que você faça a fantasia que você não volta à festa mais que algo acontece e você realmente cai desta amurada. S: Meus amigos estão conversando em voz alta, ouço o som da música, e me sinto muito cansado de minha vida. Tudo é tão vazio! Nada me traz alegria ou felicidade. Mesmo tendo e ganhando muito dinheiro isto não me dá mais nenhuma satisfação. Eu gostaria de morrer... Agora eu sinto que estou perdendo o equilíbrio aqui no alto desta amurada e, agora... estou caindo no espaço! Samuel se vê chocando contra o asfalto e experienciando sua própria morte. Ele se sente agora flutuando acima de seu corpo, começando lentamente a flutuar para cima. Quando no ar, vendo a cidade de Caracas lá embaixo iluminada, ele olha para cima e vê uma estrela muito grande e se sente atraído por esta luz brilhante. Em seguida sente que está voando com uma velocidade muito grande em direção à esta estrela dourada. Ele está se aproximando cada vez mais desta estrela, e se transformando a si mesmo nesta luz. Após aproximadamente um minuto peço a Samuel para fazer a fantasia que ele se transforma num raio de luz desta estrela. Samuel sente que agora ele é um raio de luz dourada neste espaço infinito. Samuel diz que agora se sente leve e feliz sendo um raio de luz. Esta experiência de morte-e-renascimento psicológico do ego é uma experiência que leva a pessoa à um espaço transpessoal de grande poder. Samuel agora deixou de existir como uma pessoa (ego) e seu medo de morte agora desapareceu; ele é simplesmente um raio dourado de luz no espaço. Samuel se sente bem agora porque psicologicamente morreu para seu antigo ego (auto-imagem) que era o agente principal criando aquela situação específica de medo da morte, e renasceu como este raio de luz. A tendência suicida era uma forma inconsciente que Samuel usava para matar o seu ego e renascer psicologicamente como uma nova pessoa. A estrela (que é um sol) representa na simbologia do inconsciente coletivo transpessoal a vida, o pai, o elemento masculino de poder. Samuel morreu psicologicamente e agora está retornando à vida (a estrela, o sol), e quando peço a ele para se transformar neste raio de luz da estrela, é para Samuel transcender o dualismo entre ele mesmo (sua auto imagem) e a vida, uma nova vida de luz e calor. Esta luz é em seguida integrada ao corpo e à esta existência pessoal de Samuel. A parte mais importante é a integração da experiência transpessoal aqui e agora, neste corpo onde Samuel existe nesta vida específica, nesta realidade ordinária e social de cada dia. O objetivo desta integração é duplo. Primeiro, ele representa o fechamento de um círculo ou gestalt muito importante na vida de Samuel. Isto o levará à um sentimento de bem estar, de equilíbrio psicológico. Segundo, o objetivo da experiência transpessoal deve ser o de enriquecer nossa vida, integrando o nível transpessoal ao nível pessoal. L: Sendo este raio de luz dourada você pode viajar para qualquer parte do universo, e agora você está viajando a uma grande velocidade para o planeta Terra. Você está se aproximando da Terra e agora está entrando no topo desta cabeça (aqui, suavemente coloco a mão no topo da cabeça de Samuel para que ele possa outra vez se conscientizar de seu corpo aqui e agora). Você entra na cabeça e lentamente vai enchendo o corpo com esta luz muito bonita.(...) Você sente o corpo agora cheio com esta luz dourada? S: Sim. L: Como você se sente agora quando o seu corpo está cheio com esta luz dourada. S: Muito bem. L: Agora quero que você, lentamente, abra os olhos e olhe aqui para mim. Como você se sente agora? S: Muito bem. L: O que você sente pela morte agora? S: Bem. Em seguida Samuel fechou os olhos e dormiu profundamente por aproximadamente uma hora. Eu me mantive sentado ali ao lado de Samuel, e, quando ele, naturalmente acordou, me disse que fazia anos que não tinha um sono tão profundo e reparador como aquele. Na semana seguinte Samuel viajou para Helsinki, onde ficou durante um mês se submetendo à um tratamento psicoterapêutico transpessoal intensivo comigo. Ele se mostrou um cliente extremamente dedicado e no fim deste intensivo período de psicoterapia transpessoal voou para Nova York com sua esposa para passar uma semana de férias antes de retornar a Caracas. Ele se sentia agora livre de seu problema de alcoolismo e vários outros problemas secundários. Samuel foi um caso extremamente interessante, tendo o mesmo experienciado durante um único mês de terapia, o que talvez alguma outra pessoa experienciaria em dez ou quinze anos de terapia convencional. Pedi a ele para me telefonar de Nova York e depois, pelo menos uma vez por semana, de Caracas. Achei importante que ele mantivesse este contato comigo, pois não tinha certeza de que ele seria realmente capaz de se manter totalmente afastado do álcool. Samuel nunca me telefonou, escrevi para ele mas não respondeu. Fiz a fantasia que ele tinha continuado a beber e que o prognóstico de seu médico tinha se materializado. Para minha surpresa, dois anos depois recebi uma longa carta de Samuel me informando que ele não apenas tinha parado de beber mas que havia encontrado um novo significado na sua vida. Ele contava que antes só pensava em ganhar mais e mais dinheiro, e não se interessava pelos outros seres humanos, e que agora ele havia encontrado um caminho espiritual. Muitas vezes, aquilo que tememos é aquilo que desejamos. Como podemos então temer a morte e concomitantemente desejá-la? Uma resposta simples seria porque a morte tem várias faces. E destas faces a que parece mais ameaçadora é a morte psicológica. E, apesar de que isto possa parecer um paradoxo, o que mais desejamos é exatamente esta morte psicológica (Matos, 1980). CONCLUSÃO Existem dois tipos de morte: morte biológica e a que você imagina no futuro e que causa medo da morte, limita você, aliena você e faz você ter medo de outros seres humanos. Você está mais vivo quando está feliz e você está totalmente vivo quando você permite vida e morte fluírem naturalmente em sua sinfonia de ser. Assim você é um ser integrado, mutante e fluindo, que experiencia um estado de harmonia e PAZ. Para que isso possa acontecer, a morte, que tem sido como um inimigo a te esperar numa esquina mais escura da vida, deve se tornar uma amiga. Desta maneira o inimigo que era potencialmente destrutivo agora se torna um amigo e professor. Uma vez no Himalaia, em um lugar de extrema beleza, na vila Tibetana de Dharamsala, eu conversava com alguém sobre morte e vida quando uma criança que estava me ouvindo me disse: "O erro é meu professor a morte minha companhia a vida é meu guru". (S.V.M.) Da sabedoria natural de uma criança podemos re-aprender sobre um aspecto natural da existência: quando você aceita seus erros como professores (ou dádivas) e tem a morte como companhia, então sua vida será integrada (ou re-integrada) e você será capaz de ouvir sua própria sabedoria natural. Tradução: Ilanise Míriam REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHRIST, A. E., Atitudes em Relação à Morte dentro de um Grupo de Pacientes Geriátricos Psiquiátricos. Jornal de Gerontologia, 16, 1961, 56-59. EISSLER, K. R., O Psiquiatra e o Paciente Terminal. Nova Iorque: International University Press, 1955. EVANS-WENT, W. Y., The Tibetan Book of the Dead. Oxford: Oxford University Press, 1968.GILLESPIE, W. H., Alguns Fenômenos Repressivos em Idade Avançada. Jornal Britânico de Medicina e Psicologia, 36, 1966, 203-209. MATOS, L., As Raízes da Depressão em uma crise suicida: Uma Abordagem Transpessoal. Suplemento de Psiquiatria Fênica 1980. Procedimentos do Simpósio pela Secção de Psicopatologia Clínica da Associação Psiquiátrica Mundial. Helsinki, 1980. MATOS, L., Psicologia da Morte: Abordagem Oriental e Ocidental. Em: A morte e seus destinos. Paris: Prajna 1987. MATOS, L., Day Dream Catharsis. Trabalho apresentado no Congresso Internacional do Processo de Cura: Mais Além do Sofrimento e da Morte. Montreal, Junho, 20-23, 1993.
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