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Mundos possíveis _ Revista Emília

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30/04/2019 Mundos possíveis | Revista Emília
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Leitura e livros para pequenos e grandes leitores
Mundos possíveis
POR YOLANDA REYES | 9 DE ABRIL DE 2013 | FORMAÇÃO DE LEITORES |
“Vou a Espantapájaros1 para morder crianças”, anunciou Elisa, uma menina de
dois anos, a sua assustada mãe. Se vocês estão supondo que se trata de uma
frase inventada para começar algum conto, se equivocam. Elisa é uma menina
absolutamente real, e a cena aconteceu quando sua mãe estava preparando sua
lancheira para retornar à escola, depois das férias. Claro, a mãe ficou
preocupadíssima e me telefonou algumas horas depois para perguntar como sua
filha estava se comportando. Quando lhe respondi que estava muito bem, (que
tinha brincado feliz com as bonecas, preparado comidinhas e corrido com seus
amigos) não parecia convencida, e então me contou a história. Certamente, Elisa
havia mordido uma ou outra bochecha rosada de seus companheiros quando era
menor – quer dizer no semestre anterior – mas isso já era coisa do passado. Agora
usava sua linguagem cada vez mais conotativa, rica e versátil, para treinar-se em
“fazer de conta”. Se anunciou suas intenções para preocupar a mãe, para
expressar a ansiedade do primeiro dia de aula, para exercer algum controle sobre
sus instintos, para dar rédea solta a sua imaginação ou para todos os fins
anteriores, ninguém poderia assegurar com certeza. Mas coloco em pauta a
anedota, como prova irrefutável da coexistência desses dois planos – fantasia e
realidade – nos quais nos movemos, sem limites tão definidos nem tão estritos,
desde a mais tenra infância.
Digamos que por razões de ofício estou familiarizada tanto à literatura como às
crianças, e talvez seja o fato de mover-me nesses âmbitos o que tenha me
vacinado contra a tentação de ser simplesmente uma “pessoa sensata”. Apesar de
que muitas vezes, e por questões de sobrevivência adulta, devo ter os pés muito
bem colocados sobre a terra, sinto que minha vida seria incompleta – além de
estéril e aborrecidíssima – sem essa outra dimensão: a mesma que leva Elisa a
dizer aquela frase, ou a que leva Silvana a dizer em tom de gozação, quando lhe
perguntam sua idade, “tenho dois anos… e medo…¡buuu!”.
No fundo, o germe de toda criação humana – atenção, porque não me refiro
somente à criação artística – é esse jogo, sempre transgressor, sempre renovado e
recém descoberto entre o real e o fantástico. Como as crianças, quando preparam
comida invisível em pratos diminutos de brinquedo e se alimentam desses pratos
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que nós não vemos, o mundo e todos seus inventos foram construídos mediante
esse movimento perpétuo de vaivém entre o visível e o invisível; entre o dado e o
possível. Pensem, por exemplo, em algo tão habitual e ao mesmo tempo tão
misterioso como a Internet. Que nossos filhos nos digam que estavam falando com
um amigo em Tóquio e que os continuemos vendo ao nosso lado, sem terem saído
de casa, parece um ato de magia e, contudo, é parte de sua realidade cotidiana,
impensável uns anos atrás.
Onde se fundem os cabos invisíveis dessa realidade; como chegamos a isso; que
outros mundos possíveis seguiremos descobrindo? A criatividade humana parece
infinita, como o horizonte que vai se distanciando, a medida que caminhamos.
Resulta impossível atrever-se a predizer quais serão os novos produtos. O que
parece uma constante é esse “aperto de parafusos” que leva os seres humanos a
enriquecer a realidade mais do que incentivar a fantasia. Um conto, uma novela,
uma nave espacial, uma sinfonia, uma ponte suspensa sobre o mar, um castelo de
areia ou uma construção de lego compartilham essa arquitetura erigida a meio
caminho entre o tangível e o intangível, entre o real e o sonhado.
Apesar de que o mundo atual parece movido por semelhante alento fantástico tão
próximo do “fazer de conta” infantil, a educação parece não ter tomado consciência
disso. Submetam, se têm dúvidas, os currículos ou as referências de qualquer área
– linguagem, matemáticas, ciências – a uma prova simples: valendo-se de um
processador de palavras, peçam a seus computadores que “busquem palavras”
pertencentes a famílias como “inventar”, “criar”, “imaginar”, “transformar”, “brincar”,
“fantasia”, “fantástico”, etc., nos documentos curriculares. Podem ir mais longe e
valer-se da estatística para contar quantos “identificar” ou “reconhecer” há para
cada “inventar” ou quantos “analisar” há para cada “criar”, e no âmbito específico de
a literatura, quantos “expressar nossas ideias” há em comparação com os
“sintetizar as ideias de outros”. Não é que eu pretenda negar o aporte do “dado”
para construir o “possível” – ao contrário, todo o tempo me referi a essa tensão
permanente entre o conhecido e o por conhecer – pretendo, simplesmente,
sublinhar esse desequilíbrio que persiste como leit motiv da educação e que nos
treina para ser mais receptores que produtores, mais repetidores que
transformadores.
Com a ingenuidade antiquada de que viveremos em um mundo previsível, estático
e não neste, em que os conhecimentos se desatualizam com a velocidade com que
se substitui um gravador por um mp3, nos ensinam a ser mais conformistas e
menos imaginativos, como se sonhar, inventar ou criar fossem operações mentais
reservadas a um punhado de gênios isolados e não necessidades vitais para
aportar para a transformação deste mundo cada vez mais mutável e, por desgraça,
cada vez mais nas mãos de uns poucos.
Daí que a proposta de ensinar literatura na escola, mas não como o exercício
estéril de ler e sublinhar as ideias principais ou de identificar as sequências
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narrativas ou de repetir o que o autor quis dizer, e sim como a possibilidade de
explorar mundos possíveis tanto fora, como dentro de nós, resulte mais urgente no
mundo de hoje. As possibilidades interpretativas e a grande riqueza emocional e
cognitiva que a ficção mobiliza proveem o substrato – como aqueles nutrientes
invisíveis dos pratinhos das bonecas – para que cada ser humano desenvolva,
desde o começo e ao longo das distintas etapas de a vida, alternativas ricas e
diversas para seu crescimento contínuo como sujeito interpretativo, imaginativo,
sensível, crítico e criador: autor e coautor a um só tempo, em diálogo permanente
com o dado e com o que cada pessoa tem para dizer.
Nesse “tempo outro”, construído com essas “coordenadas outras” da ficção, se
inaugura a passagem a essa linguagem, também outra, que vai mais além do fático
e que é a porta de entrada a esses reinos invisíveis nos quais se erguem o
pensamento e a imaginação humanos. A ficção permite falar do ausente recorrendo
ao presente e nos ajuda a iniciar o contato com as formas discursivas mais
complexas, distintas da língua do imediatismo. Para retomar o exemplo do
começo, Elisa aos seus dois anos, já não tem que morder os seus amigos. A
linguagem lhe permite “fazer de conta” que morderá; quer dizer, apertar os
parafusos de seus instintos, graças ao mecanismo simbólico de anunciar em um
“registro outro” o que não fará no âmbito do real. Mas o descobrimento desse
“registro outro” como possibilidade decifradora, transformadora e catártica, não se
dá por geração espontânea, e requer alimento permanente. E precisamente por
isso, necessitamos trabalhar deliberadamente essas possibilidades de construção
simbólica que a literatura e a expressão artística oferecem para o desenvolvimento
da imaginação infantil.
Nas frases de Elisa ou nas de Silvana está presente esse jogo que testemunha seu
incipiente contato com as coordenadas “outras” da ficção e que as situou no amplo
texto da cultura, para indicar-lhes como a linguagem permite transformar nossas
pulsões e instintos. Continuar enriquecendoe alimentando esse desenvolvimento
progressivo da linguagem – ou, melhor, “das linguagens”– mais além do fático, para
que empreendam viagens cada vez mais distantes do aqui e do agora e para que
se aventurem por lugares e tempos ignotos, seria o desafio para os educadores,
não apenas destas meninas, mas de todas as nossas crianças.
Ou digamos com as palavras de Harold Bloom: “Uma criança a sós com seus livros
é, para mim, a verdadeira imagem de uma felicidade potencial, de algo que sempre
está a ponto de ser. Uma criança com talento utilizará uma história ou um poema
maravilhosos para criar um companheiro. Esse amigo invisível não é uma
fantasmagoria enferma, mas uma mente que aprende a exercitar todas suas
faculdades. Quiçá seja também esse momento misterioso em que nasce um novo
poeta, um novo narrador”.
“Uma mente que aprende a exercitar todas suas faculdades no exercício de
inventar histórias e de inventar-se a si mesmo”. Talvez não existam palavras mais
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pertinentes para indicar o lugar da literatura na educação. Por isso, proponho
desenvolver a imaginação e a fantasia, como faculdades por excelência para que
todos nossos meninos e meninas comecem a participar da tarefa coletiva de
decifrar, mas também de reinterpretar e de transformar o mundo. Nesse
movimento de vaivém entre o dado e o possível poderia situar-se o lugar da
educação.
Notas
1 Espantapájaros é um projeto cultural de formação de leitores, dirigido não apenas as
crianças, mas também a mediadores e adultos dirigido por Yolanda Reyes e situado em
Bogotá, Colômbia. Instituto Espantapájaros.

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