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20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 1/12 Caminhos possíveis POR PATRÍCIA PEREIRA LEITE | 2 DE DEZEMBRO DE 2011 | FORMAÇÃO DE LEITORES | “Antes as palavras saiam da minha boca, hoje saem do meu pensamento.” Depoimento de educador sobre fala de um jovem, 1999. Todas as histórias têm um começo, e a minha com projetos relacionados à aquisição prazerosa e plena da leitura através da transmissão de narrativas literárias iniciou-se na França, há 20 anos. Naquela ocasião, tive a oportunidade de trabalhar vários anos com René Diatkine, Marie Bonnafé, Claude Avram e muitos colegas e amigos animadores do livro e terapeutas na “Únité René Diatkine“ e na Associação ACCES. Muitos dos conteúdos que fundamentam o trabalho da A Cor da Letra foram oriundos destas experiências. Fundada em 1998, A Cor da Letra – Centro de Estudos e Pesquisa em Leitura e Literatura – desenvolve projetos nas áreas de educação, cultura e saúde focando jovens e crianças. Trabalhamos na formação de profissionais que atuam em instituições que atendem crianças e adolescentes em situação de risco,*organizações não governamentais, escolas públicas e particulares, hospitais e também empresas interessadas na implantação de projetos de leitura e bibliotecas. Realizamos também a formação direta de jovens para que atuem como mediadores de leitura e multiplicadores em ações culturais e projetos sociaise oferecemos formação em documentação. Aqui darei ênfase à formação que ministramos aos profissionais das instituições e aos jovens mediadores, além de tratar da prática desenvolvida com os adolescentes e jovens adultos enquanto agentes culturais, mediadores e multiplicadores desta ação, circunscrevendo a natureza do nosso trabalho para situar a especificidade de cada prática. 1. Mediação de leitura Mediação de leitura é uma situação em que duas ou mais pessoas estabelecem uma relação por meio da leitura de histórias e do contato com os livros de literatura. A leitura de um texto é infinita, mas o momento em que o mediador compartilha com a criança a leitura, a troca de experiências que este ato envolve é único, porque inclui o vínculo ali estabelecido. Roupa vermelha, maçã vermelha http://revistaemilia.com.br/author/patricia-pereira/ http://revistaemilia.com.br/categorias/formacao-de-leitores/ http://revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/#situacao-de-risco 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 2/12 “Sabrina, grudada em mim sempre interessada nos livros, repetindo-os conforme o som das palavras, uma hora me contou histórias sobre o barraco onde mora, a polícia que foi chamada, onde ela vai morar no ano que vem… Arllis, ao ver a cor vermelha no livro Cores, me vendo apontar a roupa de um que era vermelha, a maçã que é vermelha, gritou: “SANGUE”. Bom, pensei, é vermelho… ”. (Juliana. A .T., 16 anos, jovem voluntária, 1999) A mediação de leitura propicia às crianças, aos jovens ou aos adultos um momento de contato com grande diversidade de livros de literatura, de maneira livre e prazerosa, acompanhada de um adulto ou jovem mediador de leitura, em situações coletivas e públicas. O mediador se propõe a ler, a compartilhar com todos os presentes o prazer da descoberta das narrativas, dos livros e da literatura. Ele aproxima o livro e a criança, deixando cada um fazer suas escolhas do que será lido. A ideia é encontrar o outro “lá onde ele está”, levando em conta as condições que ele tem naquele momento para se aproximar de um livro, sua disponibilidade em falar ou não durante e depois da história, sua trajetória com as narrativas e, principalmente, dando a ele a possibilidade de escolher participar ou não. Portanto, aquele que lê os livros (o mediador) está disponível para acompanhar o outro na história, acolhendo suas colocações ou seus silêncios, sem preocupação de intervir. Ele respeita assim, a forma, a distância e o ritmo de cada indivíduo na aproximação com o livro, proporcionando um momento afetivo e prazeroso em torno da transmissão das histórias. A partir das leituras, não são impostas atividades e nem colocadas limitações na maneira de se expressar daqueles que ouviram as histórias, permitindo diferentes olhares e diferentes leituras sobre um mesmo livro ou uma mesma situação. Sempre procuramos abrir novos caminhos para que as pessoas descubram e escolham, por si, o que querem ali, naquele momento. “Que a arte, aqui representada pela literatura e intermediada pela relação, possa ser um meio que ajude as pessoas, principalmente, a conversarem consigo.” “Eu me aproximei de uma incubadora, do lado a mãe e um bebê. Cleurimar, que é o nome da mãe, me contou que a filha tinha uma semana de vida e estava com problemas no coração. Ofereci as leituras para a mãe, ela aceitou. Comecei a ler, Cleurimar se emocionou e começou a chorar, fiquei preocupado e perguntei o que tinha acontecido, ela me pediu para aguardar com a mão, ela precisava chorar, desabafar. Depois ela me contou a história de Lia, a sua bebê. Depois de me contar perguntei se ela queria que eu continuasse a ler para ela, ela aceitou novamente e li alguns livros, ela riu em algumas passagens. No final disse que seria bom ela contar, cantar e falar com a filha, quando me dirigi para Lia na incubadora e comecei a falar com ela, o medidor de batimentos começou a acelerar. Disse à mãe que se ela quisesse podia pegar livros no 2o andar.” (Ilan Brenman, autor e mediador de leitura – Unidade Neonatal, Hospital Pediátrico – 2001) 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 3/12 Three 136, de Toni Demuro 2. Ação Cultural Estes momentos de inserção cultural deveriam ser situações cotidianas e naturais de transmissão de narrativas entre gerações e grupos. Deveriam ser espontâneos os momentos com os livros, com as leituras, com a transmissão dos saberes. Poderiam estar inseridos na vida de todas as pessoas de qualquer idade, origem, condição social e também em situações sociais, pois são momentos de troca de experiência de vida, de repertórios culturais, de expressão e de transmissão da história e dos conhecimentos. Mas que por várias razões históricas, políticas, sociais, culturais, isto não acontece – e que acontecem cada vez menos em certas regiões. “Nesse bairro não tem farmácia, vídeo locadora, não tem praticamente nada… tem bar, várias igrejas e esgoto a céu aberto. A única coisa que deveria ser boa são as escolas que a população não cuida direito. Então é muito bom fazer alguma coisa nas escolas, sentir que as crianças e os professores gostam do que a gente faz, porque assim a 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 4/12 gente faz da escola algo bom de verdade”. (Luciane Sanches, jovem mediadora de leitura, São Paulo, 2004) “Fico muito feliz desses jovens estarem atuando aqui na escola fora todos os benefícios da leitura para as crianças, o exemplo que eles passam a elas é essencial para o desenvolvimento dessas crianças…” (Maria da Graça, coordenadora do Recreio das férias da EMEF Manuel Vieira, São Paulo, 2004) Através das leituras compartilhadas esta aproximação e aprendizagem, recíproca, entre as gerações volta a ocorrer. Os grupos – distanciados pela hierarquia e rotina de uma instituição ou por realidades socioeconômicas distintas ou simplesmente pela forma de viver na nossa sociedade contemporânea em que “o tempo é sempre curto” e se joga pouca “conversa fora” – tendem a funcionar de forma cindida e muitas vezes conflituosa, violenta, pouco criativa e produtiva. Prevalece certo individualismo sem esperança, uma supervalorização do momento, uma necessidade de permanecer jovem. Isto tudo sem o abrigo do passado, a esperança do futuro, o sentido da trajetória e o contorno comum da própria história do homem. Os grupos de adolescentes de diversas classes sociais e regiões de São Paulo, por exemplo, nos mostraram que a transmissãode narrativas é uma ferramenta importante no trabalho e na valorização da diversidade: “Somos diferentes, mas falamos a mesma língua!”. Para os profissionais das instituições esta ação permitiu a horizontalidade das relações entre aqueles que estavam envolvidos no projeto, intensificando a integração entre os mesmos. O reconhecimento da experiência do outro e da importância do trabalho multidisciplinar ficaram assim evidenciados. A valorização da experiência confere sentido à vida! “Hoje os meus amigos e familiares me vêem como uma mediadora, e com isso eu sinto que tenho uma responsabilidade pelas crianças.” (Juliana Alves, jovem mediadora de leitura, São Paulo, 2004) No geral, vemos como a mediação destas narrativas literárias estabelece um tempo de prazer entre um adulto e uma criança, um adulto e um adolescente, um adolescente e uma criança, adolescentes entre si, etc… Que é um prazer dividido entre gerações e que pode ser longo, curto ou apenas um momento, mas estabelecido verdadeira e naturalmente – introduzindo o livro e a leitura neste contexto, que propicia o desejo de conhecimento e a apropriação dele. Nossa experiência tem demonstrado que a transmissão entre gerações nunca acontece em um só sentido e este é um ingrediente fundamental que deve ser sempre considerado, pois potencializa a ação e seu efeito multiplicador! Assistimos a pequeninas crianças migrantes traduzirem narrativas para suas mães e adolescentes, introduzindo os livros e as narrativas em sua comunidade. Somos surpreendidos continuamente por detalhes destacados, segredos preciosos que nos revelam outra realidade a partir de relatos e perguntas feitas espontaneamente pelas crianças e jovens sobre narrativas, já lidas tantas vezes que pensávamos conhecer e dominar. Também nós, formadores e mediadores de leitura, estamos neste contexto continuamente a aprender. É um momento de equilíbrio delicado, em que é necessária a presença da capacidade de se surpreender! 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 5/12 “Ana (11 anos) mora em uma comunidade pequena na costa. O acesso até lá é feito exclusivamente de barco. Um dos técnicos da equipe resolveu levar livros de literatura e implantar voluntariamente um pequeno trabalho com a comunidade. Após alguns dias os livros começaram a ser emprestados, as crianças podiam levá-los para casa, para ler com seus pais, irmão e avós. Ana pegou emprestado Tanto, tanto, de Trich Cooke e Helen Oxemburyet. Ao chegar em casa leu para a mãe (analfabeta) e para os irmãos. Todos gostaram, e a mãe, que nunca vira álbuns ilustrados, ficou encantada com as ilustrações. Durante a noite, a mãe transformara as páginas do livro em quadros e decorou várias paredes da casa com eles. Ana, em lágrimas, explica para mãe que livros não são feitos para isto, que ela tinha de devolver, de que era para várias pessoas da comunidade ler etc… A mãe, surpresa, e um pouco envergonhada, acompanha então Ana para contar que Tanto, tanto infelizmente tinha virado quadro e pede desculpas!” (Tatiana Wexler, técnica do projeto) Trabalhamos a literatura e a leitura através de ações culturais. Ao fazer esta escolha, definimos um campo preciso de ação. Ele permite aos envolvidos o despertar ou a descoberta de sua própria capacidade de expressão verbal, cultural. De certa forma, de descobrir-se autor, narrador… Criar, inventar e reinventar seus objetivos, encontrando novas possibilidades de elaborar e construir sua própria história. “Eu já me desenvolvi bastante! Perdi o meu jeito tímido, envergonhado e medroso comigo mesma. Também aprendi bastante com as crianças, nas mediações.” (Marisa Alves, jovem mediadora de leitura, São Paulo, 2004) “Aqui no curso comecei a aprender a me organizar, a planejar, escrever relatório e isso me ajudou muito a escolher minha faculdade. Passei no curso de secretariado e estou muito feliz porque agora vou ter uma profissão.” (Marina Nemoto, jovem mediadora de leitura, São Paulo, 2004) 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 6/12 Three 153, de Toni Demuro 3. Leitura e a literatura como direito A leitura é um direito, visto que ela é um instrumento fundamental para o processo formativo e para o aprender. Várias experiências mostram que quando lemos histórias para crianças, jovens e adultos que não sabem ler, eles se encantam ao descobrir um universo que muitas vezes ignoravam, mesmo aqueles que apresentam dificuldades de aprendizagem, que vivem em um universo onde o livro e a escrita são pouco presentes ou encontram-se em um contexto de acompanhamento terapêutico ou de adversidade. É essencial para a dignidade de todo ser humano que ele aprenda a ler, escrever, além disso, que possa participar – o mais amplamente possível – de todas as manifestações culturais, que conheça a sua história e a história da humanidade e que guarde na memória os fatos do passado, tanto aqueles felizes, quanto os marcados pela destruição. Os diversos instrumentos de conhecimento são os meios seguros que nos permitem apreender a realidade, ter o desejo de participar dela e, quem sabe, de transformá-la. “Engraçado que ao observar a reação das crianças menores, geralmente bebês em primeiro contato com os livros. A tentativa deles de arrancar as imagens dos livros, verificando logo que as figuras não são reais, mesmo sem terem uma noção, se acostumam com a realidade. Eles perguntam constantemente (quando já falam) o que são todas aquelas imagens. Já as crianças maiores, que já sabem falar, estão em contato com figuras e histórias. Instigantes são as figuras embaixo das imagens, mais parecidas com insetos (já me disse 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 7/12 uma menina), vários tem pernas, mas nenhum tem olho nem boca… E aos poucos as letras do alfabeto também se tornam familiares… A importância dos livros é inigualável” (Juliana A. T., jovem voluntária, São Paulo, 1999) 4. A leitura e diversidade em espaços de crise Quando a adversidade da vida é excessiva, utilizamos menos a linguagem narrativa e, muitas vezes, nos encontramos impedidos de sonhar e pensar. Nestes momentos surge a angústia, a barbárie, a depressão. Segundo Leopoldo Nosek, em “Terror na Vida Cotidiana”, “nesta esfera de ausência de sonhos, o passado não faz sentido, a atualidade carece de vida e o futuro não existe… neste tempo, onde o passado não faz sentido e o futuro não foi vislumbrado, criam-se os monstros…”. “Quando nós fazemos um trabalho coletivo, com quatro mediadores, colocamos os tapetes, esparramamos os livros, e sempre me impressiona o efeito que isso causa, a quantidade de gente que isso aglutina, as reações delas, a alegria que elas passam, a alegria que isso gera nos pais. Isso mexe no dinamismo, porque, são pais que estão há dias, semanas, aqui no hospital, internados junto com as crianças, sofrendo pelo problema de saúde delas. E de repente, nós instauramos um momento de ludicidade, de alegria, de conhecimento, de troca, de prazer. Acaba me enchendo os olhos cada vez que nós organizamos um momento coletivo de leitura.“ (Educador, Hospital Pequeno Príncipe, 11/2/2002) De acordo com Michele Petit, em seu texto “A Leitura em Espaços de Crise” , “uma crise surge quando os modos de regulação sociais e psíquicos, que até então estavam funcionando, tornam-se inadequados por causa de uma mudança brutal (…) ou de uma violência onipresente e durável. Na época contemporânea, a aceleração das mudanças e o crescimento das desigualdades, e a ampliação do distanciamento entre as populações tem alterado todos os marcos nos quais se desenvolvia a vida, tornando vulneráveis os homens, as mulheres e as crianças, de maneira variável, de acordo com seus recursos materiais, simbólicos e afetivos”. Muitos são os contextos da realidade brasileira que poderíamos qualificar como precários e adversos ao bom desenvolvimento das crianças e jovens; à valorizaçãoe comunicação dos grupos sociais; à introdução no mundo da leitura e no acesso à cultura. Precárias – e também insuficientes – são as ferramentas e recursos para transformarmos efetivamente esta situação. Muitos são os grupos, projetos e profissionais que trabalham e desenvolvem ações relacionadas ao tema que aqui estamos a discutir. Na Cor da Letra, investimos na criação, promoção e manutenção de espaços onde a cultura – através da literatura – esteja presente, acessível e pode ser transmitida e expressa com naturalidade. Escolhemos sempre criá-los e mantê-los em funcionamento, trabalhando conjuntamente com pessoas que já atuem, habitem no local e se interessem pelo que estamos propondo, sejam eles adultos ou jovens, com formações específicas ou educadores leigos, líderes comunitários, mães, pais… São espaços que rapidamente se transformam em pequenas “ilhas” de expressão, transmissão e criação de cultura. Fabio Hermmann, psicanalista brasileiro, qualificou nossa ação de: “Criação de Ilhas de Humanização.” 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 8/12 “Depois de uma longa internação, W (12 anos) retornou ao hospital para uma consulta”. O médico perguntou se estava feliz de ter voltado para casa; W. não titubeou em responder: “É, mas no hospital era bom que tinha livro e gente pra contar história pra mim, em casa não tem”. (Enfermeira, Hospital São Paulo, 2002). Apostamos nesta possibilidade de brincar, pesquisar, pensar e expressar a partir das histórias. Pela importância e riqueza que a literatura tem para o desenvolvimento dos indivíduos, dos grupos e das relações entre os mesmos. Esta manifestação de vida, saúde e desenvolvimento, é bastante visível entre as crianças, jovens e adultos quando nos dispomos a estar com eles e com os livros. “Eu não gostava de ler nada, nem mesmo gibi, pois eu só gostava de ficar na rua sem fazer nada. Quando começou o projeto da Prefeitura foi muito construtivo pra mim, pois eu comecei a me interessar pelos livros e hoje eu faço leituras diversas, inclusive jornal e revista”. (Rafaela da Silva Logelso, mediadora de leitura, 2004) “Todos se beneficiam destas transmissões de saberes, ultrapassando os limites dos mundos privados. Cada história suscita o aparecimento de novas historias que circulam pela memória, por novas leituras e interpretações”, como afirma Nosek. Nossa intenção é a de contribuir para melhorar a qualidade de vida e complementar outras ações junto a crianças e adolescentes, principalmente aqueles que se encontram em situação de risco e exclusão. “Não é possível equilíbrio psíquico sem sonho durante o sono, talvez possamos dizer que não haja equilíbrio social sem literatura desta forma ela é um fator essencial para a Humanização e sendo assim confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua no subconsciente e no inconsciente”. Partindo do mesmo princípio da afirmação de Antonio Candido, nomeamos como narrativas literárias todas as criações poéticas, ficcionais ou dramáticas, de diferentes níveis, de uma sociedade e nas diferentes culturas, do folclore, da lenda, do chiste, até as formas mais complexas encontradas nas produções escritas das civilizações. Trabalhamos com a transmissão de narrativas literárias lidas. Ler para o outro é uma estratégia que permite a transmissão e a apropriação da linguagem devido à repetição exata do texto e a permanência da história. A escrita traz a possibilidade da releitura. “Cada nova leitura é uma descoberta que permite renovar e reforçar o sentimento de existir de um jeito diferente que aquele atravessado pela dificuldade.” (citando novamente Antonio Candido). Trabalhamos com livros de literatura infantil e juvenil, apesar de que os bons livros não têm idade, pois agradam a diferentes faixas etárias e despertam emoções, independente da idade. Atualmente, no Brasil, dispomos de uma enorme variedade de publicações de autores nacionais e internacionais, clássicos e modernos. Selecionamos os acervos que vamos utilizar, garantindo sempre que uma grande diversidade de formas literárias, de temáticas, de origens culturais das narrativas seja contemplada. 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 9/12 Three 177, de Toni Demuro 5. O trabalho com jovens no Brasil É fundamental pensar projetos nos quais todos os interessados façam parte da ação e possam estar incluídos como agentes e não apenas beneficiários. Investir em ações que tem o jovem (educador leigo, o profissional da instituição que não tem formação acadêmica, pais, mães, avós, não leitores…) foi um investimento, uma descoberta e um desafio para nós. Os jovens, em geral, são vistos como inconstantes, irresponsáveis e imprevisíveis. Eles, que já não sabem qual pode ser o seu lugar, ficam sem alternativa de ação junto à sociedade e são, assim, desvalorizados e pouco reconhecidos em suas capacidades e reais possibilidades de contribuição com a comunidade na qual estão inseridos. O jovem tem grande energia, força de trabalho, criatividade e ousadia (próprias da idade). Ele deseja ser agente e canalizar estas potencialidades e em geral não sabe como fazê-lo, pois esta é uma descoberta em si mesmo. Quando propomos uma ação cultural constante, acompanhada por outros jovens e por adultos que esperam realmente que eles trabalhem, o jovem facilmente adere e contribui para o desenvolvimento do projeto, pois sente na proposta a possibilidade de valorização pessoal e a contribuição para a construção de sua própria trajetória, além da transformação da realidade onde está inserido. 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 10/12 Alguns estudos, como “Qualidade da educação”, demonstram que, atualmente, os jovens procuram aprender, definir sua conduta e obter conselhos muito mais de seus pares do que de sua família: “o grupo dos iguais está notavelmente a assumir a tarefa de socialização dos adolescentes; e, na medida em que as crianças se deslocam para a puberdade, as ideias dos pais tornam-se para elas cada vez mais irrelevantes”. Nesse sentido, propomos ações nas quais os jovens possam criar uma identidade de grupo, trocar experiências saudáveis e perceber que são agentes de transformações positivas. Porém, no Brasil, em razão da falta de oportunidade no mercado de trabalho e de políticas públicas, os jovens têm permanecido mais tempo morando com suas famílias e demorando a se tornar independentes economicamente, o que tem mudado e aumentado a faixa etária do que se considera jovem. Assim, diferentes órgãos sociais têm feito divisões considerando adolescentes a faixa entre 14 e 17 anos, e jovens os de 18 aos 24 anos. Em qualquer lugar ou instituição em que implantamos um projeto, trabalhamos no e com o coletivo, investindo em situações nas quais podemos reunir várias gerações ou grupos sociais. Desenvolver estas propostas, considerando a relevância da diversidade, levou-nos, muitas vezes, a constatar, descobrir e a refletir sobre aspectos que não havíamos considerado e até que desconhecíamos. Essas reflexões foram geradoras de novas ações, conhecimentos e caminhos possíveis na construção de uma realidade mais digna, reflexiva e, portanto, construtiva e saudável. Three, de Toni Demuro** Este artigo é uma versão do apresentado na Sessão Preliminar do Salão do Livro e da Imprensa para a Juventude em Seine-Saint-Denis, no 20/04/2019 Caminhos possíveis | Revista Emília revistaemilia.com.br/caminhos-possiveis/ 11/12 Fórum franco-brasileiro reservado aos profissionais, “Cultura e desigualdades culturais na França e no Brasil”, UNESCO (Paris 7°), 29/11/2005. A Cor da Letra foi criada em 1998 por Cíntia Carvalho, bacharel em Letras, e Patrícia Bohrer Pereira Leite, psicóloga clínica e psicanalista. * Situação de risco é aquela em que as crianças e jovens sem seus direitos básicos assegurados, e que, por questões de saúde ou de deficiência física ou mental têm comprometido o seu desenvolvimento global, e crianças que, por situações de perdas diversas vivem durante certo tempo uma redução importante da atenção e dedicação afetiva que lhes são necessárias, tanto para o seu desenvolvimento físico, emocional e cognitivo quanto para entender e lidar com a adversidade a qual foram submetidos. Referências Antonio Candido Melo e Sousa, “O direito à literatura. Em: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995, pp.242-243. Avram C, Diatkine R. Pourquoi on m’a né?. Paris: Calmann-Lévy, 1995, p. 158. C. Carvalho, Hotimsky S. e Patrícia Pereira Leite. “A Leitura para crianças e uma ação de cidadania”. Congresso Latino Americano de Literatura Infantil. Cuba , 1998. Edward Shorter, A formação da família moderna. Lisboa: Terramar, 1995. Leopoldo Nosek, “Terror in Every Life: revisting Mr. Kurtz”. Em: Violence or dialogue. Londres: International Psychoanalyis Library, 2003, p.31 “Qualidade da educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da quarta série do ensino fundamental”, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC). O trabalho teve como base os resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2001. Trish Cookie e Helen Oxemburyet, Tanto tanto. São Paulo: Ática. A EMÍLIA agradece a Toni Demuro, autor de todas as ilustrações deste artigo. Para saber mais sobre a obra deste ilustrador italiano, visite seu blog. 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Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise; Mestre em Psicologia Clínica e Psicopatologia pela Universidade de Paris V e especialista em Técnicas de Saúde Mental pela Universidade de Paris XIII. Membro fundador de A Cor da Letra Centro de Estudos em Leitura, Literatura e Juventude. Presidente e Coordenadora de Projetos sociais em Ação Cultural do Instituto A Cor da Letra. http://revistaemilia.com.br/author/patricia-pereira/