Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO • Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil • Alexandre Franco Sá, Universidade de Coimbra, Portugal • Christian Iber, Alemanha • Claudio Gonçalves de Almeida, PUCRS, Brasil • Cleide Calgaro, UCS, Brasil • Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil • Danilo Vaz C. R. M. Costa, UNICAP/PE, Brasil • Delamar José Volpato Dutra, UFSC, Brasil • Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil • Eduardo Luft, PUCRS, Brasil • Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil • Felipe de Matos Muller, PUCRS, Brasil • Jean-François Kervégan, Université Paris I, França • João F. Hobuss, UFPEL, Brasil • José Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil • Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil • Konrad Utz, UFC, Brasil • Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil • Marcia Andrea Bühring, PUCRS, Brasil • Michael Quante, Westfälische Wilhelms-Universität, Alemanha • Miguel Giusti, PUCP, Peru • Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil • Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil • Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha • Ricardo Timm de Souza, PUCRS, Brasil • Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA • Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil • Tarcílio Ciotta, UNIOESTE, Brasil • Thadeu Weber, PUCRS, Brasil Comitê Editorial da DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO Ricardo Timm de Souza Marco Antonio de Abreu Scapini (Orgs.) φ Direção editorial: Agemir Bavaresco Capa e diagramação: Lucas Fontella Margoni A regra ortográfica usada foi prerrogativa de cada autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR http://www.abecbrasil.org.br Série Filosofia e Interdisciplinaridade - 75 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SOUZA, Ricardo Timm de; SCAPINI, Marco Antonio de Abreu (Orgs.). Derrida e o pensamento contemporâneo - estudos interdisciplinares [recurso eletrônico] / Ricardo Timm de Souza; Marco Antonio de Abreu Scapini (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017. 314 p. ISBN - 978-85-5696-162-4 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Filosofia. 2. Derrida. 3. Filosofia contemporânea. 4. Psicanálise. 5. Estética. 6. Interdisciplinares. I. Título. II Série. CDD-100 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 APRESENTAÇÃO Ricardo Timm de Souza A presente publicação trata de tema de crescente interesse tanto na academia como nos meios cultos contemporâneos: a renovada presença do pensamento de J. Derrida, já em recepção madura, no contexto das mais diferentes especialidades e intersecções hermenêuticas da contemporaneidade. De fato desde sua morte prematura, em 2004, a influência do autor só faz crescer em áreas como a Filosofia, a História, a Psicanálise, a Psicologia, o Direito, a Literatura, os Estudos Culturais, entre tantas outras. O pretexto – ou pré-texto – para a confecção da presente obra remonta ao Seminário realizado no 2. semestre de 2016 no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, intitulado ESPÍRITO E ESPECTROS DA FILOSOFIA POLÍTICA – Spinoza, Benjamin, Agamben, Levinas e Derrida em diálogo desde “Espectros de Marx”. De fato, os espectros que retornam em uma época de profunda depressão social, política e cultural – não apenas em termos nacionais, mas igualmente internacionais – trazem consigo, no diálogo com grandes pensadores do passado e do presente, a acutilância de novas e por vezes inusitadas possibilidades interpretativas do presente desde as brumas sobreviventes do passado. É a essas novas possibilidades interpretativas e à sua explanação dialogal que os dezenove autores dirigiram seus esforços, resultando em um conjunto de textos que abrangem temas e provocações tão variados como a Ética Animal, o mal-estar psicanalítico, o tema do fetichismo, a relação entre o pensamento de Derrida e o Ubuntu do pensamento africano, os desafios da criminologia e a “democracia por vir”, entre outros. Ao leitor caberá julgar a fidelidade – ou criativa infidelidade – à herança derridiana que tais textos são capazes de sugerir, na observância sensível do tema simultaneamente mais fátuo e mais concreto de todos os que habitam a urgência do presente: a espectralidade incisiva e incontornável que não renuncia à responsabilidade pelo futuro. Porto Alegre, julho de 2017. SUMÁRIO ESPECTROS DE “ESPECTROS DE MARX”: FIGURAS DA ESQUERDA NO SÉCULO XXI ALMERINDO A. BOFF 11 CRIMINOLOGIA COMO DESCONSTRUÇÃO – TALVEZ... AUGUSTO JOBIM DO AMARAL 35 A PSSIBILIDADE DE UMA ABORDAGEM FILOSÓFICA SEBRE A ESCRITURA- O SIGNO, EM DERRIDA E UBUNTU. CELESTINO TAPERERO FERNANDO 53 SERIA ENTÃO UMA CONVERSA ARROGANTE? O MAL-ESTAR PSICANALÍTICO PELO OLHAR DE JACQUES DERRIDA ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER 69 (AS)SOMBRAS DE MARX: AS SOBRAS DE UMA POSSÍVEL REVOLTA FÁBIO CAIRES CORREIA 93 PSICANÁLISE E DESCONSTRUÇÃO - A DEMOCRACIA POR VIR FABIO CAPRIO LEITE DE CASTRO 105 O "ATEÍSMO RADICAL QUE SE LEMBRA DE DEUS" NO QUIASMA ENTRE DERRIDA E LEVINAS GUSTAVO PEREIRA 129 B -- X LEONARDO WITTMANN 167 ESPECTRALIDADE POLICIAL, EXCEÇÃO E MEDO COMO AFETO POLÍTICO CENTRAL LUCAS E SILVA BATISTA PILAU 173 LUCAS MELO BORGES DE SOUZA ESPECTROS E OBSESSÃO: DERRIDA COM LACAN MANUELA SAMPAIO DE MATTOS * 189 A DIFERENÇA ESPECTRAL – A INDECIDÍVEL MELANCOLIA MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI 199 O RETORNO DO FIM HOJE: DERRIDA, FUKUYAMA E A FORÇA DO DISCURSO NEOLIBERAL MARCUS DE DUTRA MATTOS 217 DERRIDA E A REALPOLITIK – OS DIÁLOGOS COM O MATERIALISMO E O MARXISMO ANOS 60 E 70 MOYSÉS PINTO NETO 229 OS ESPECTROS DE MARX: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES OLGA NANCY P. CORTÉS 253 FETICHISMO, SUJETO Y LEY EN LOS ESPECTROS DE MARX. OSCAR PÉREZ PORTALES. 267 ESPECTROS ANIMAIS: “E SE O OLHAR FOSSE A CONFRONTAÇÃO DE DUAS RESPIRAÇÕES?” BRUNA DE OLIVEIRA BORTOLINI 275 RENATA GUADAGNIN ESBOÇO SOBRE REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS A PARTIR DE COMPREENSÕES DA PSICANÁLISE FREUDIANA E DE DERRIDA ROBERTA ARAUJO MONTEIRO 295 ESPECTROS DE “ESPECTROS DE MARX”: FIGURAS DA ESQUERDA NO SÉCULO XXI Almerindo A. Boff1 Todos os recursos – como matas, água, campos, etc. – serão usados em comum... Nossa obediência aos senhores espirituais e temporais encontrará um fim. Também os servos dos príncipes e lordes abandonarão seu serviço. E se alguém pensa que pode manter seu status social, isto será em vão... desejos de ganho egoísta serão abandonados. E uma aspiração pelo bem comum prevalecerá. Hans Hergot, circa 15272 Fica, ilusão! William Shakespeare, circa 1600 “Hamlet”, Ato I, Cena 1 Espectros milenares encontram em Marx a oportunidade de uma transfiguração original da escatologia messiânica dos primeiros profetas hebreus. Após atravessar milênios, em suas diversas transformações, esta havia tomado novo fôlego no século XVI em alguns segmentos do pensamento anabatista radical. Além da reconhecida derivação a partir da dialética hegeliana, o otimismo de Marx em relação ao curso da História em direção ao seu final pode também ter origens identificadas no ramo jacobino da tradição iluminista, assim como no pensamento moral e político do judaísmo clássico e do cristianismo inicial. Apesar da sua rejeição a aspectos do humanismo judaico e 1 Doutor em Filosofia (PUCRS).Psicanalista (Sigmund Freud Associação Psicanalítica). http://lattes.cnpq.br/4570132129917050 2 Apud OSBORN, Ronald E. Humanism and the death of God: searching for the good after Darwin, Marx and Nietzsche. Oxford: Oxford University Press, 2017. Kindle edition: location 2285. 12 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES cristão, pode também ser evidenciada continuidade do seu pensamento com aquele dos grandes rabinos e intérpretes do Talmud, podendo-se afirmar que, também apesar do seu proclamado ateísmo, o socialismo de Marx enraíza-se diretamente na escatologia messiânica, o que permite a George Steiner afirmar: “Nada é mais religioso, nada está mais próximo da fúria extática por justiça nos profetas do que a visão socialista da destruição da Gomorra burguesa e a criação de uma cidade nova e limpa para os homens”.3 Pontuamos até aqui as origens do pensamento de Marx na escatologia messiânica dos primeiros profetas hebreus e o retorno de suas ideias em correntes religiosas do século XVI. No século XVIII, Rousseau aceitou o desafio de dissertar racionalmente a respeito do problema que o levou a redigir o “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” (1755). No século XIX, Marx propôs uma resposta original à questão, posicionando sua obra filosófica entre aquelas que mais influenciaram os acontecimentos históricos que a sucederam. Inquieta-nos hoje a indagação a respeito do legado de Marx para o século XXI: seu pensamento ficou datado e devemos agora abandoná-lo como pouco útil para compreender a complexidade político-econômica da contemporaneidade? Ou podemos pensar que alguns dos espectros de Marx devem ser resgatados para que possamos compreender o paradoxo contemporâneo da simultaneidade de um desenvolvimento tecnológico em ritmo exponencial e de um crescimento igualmente exponencial da miséria e da desigualdade entre os homens, levando-nos à que já é considerada a pior crise humanitária desde 1945? A profissão de fé na revelação marxista continua a ser renovada e reapresentada, como exemplifica a publicação este ano, em sua terceira edição, impressa e disponível em e-book, do livro que se intitula “O socialismo está morto! Longa vida ao socialismo!: O código Marx – socialismo com uma face humana (Uma Nova Ordem Mundial)”. Nesta obra, o autor defende que a completa solução dos problemas do capitalismo só pode ser 3 Idem. Kindle edition: location 2208. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 13 obtida por meio da ciência, mais especificamente do socialismo científico de Karl Marx, a única via possível para a instauração da Nova Ordem Mundial pós-capitalista. Esta Nova Ordem Mundial trará um tempo de igualdade e justiça social, um sistema político radicalmente novo que será o sistema mais democrático já tornado possível, uma sociedade completamente nova que no sistema capitalista é fadada a ser apenas uma utopia. O socialismo, como ciência exata, permitirá a realização desta utopia pelo estabelecimento da propriedade social dos meios de produção, do fim da propriedade privada ou do Estado, e do fim da luta de classes com o estabelecimento de uma sociedade plenamente democrática e sem classes em uma escala mundial.4 O autor prevê assim o fim da utopia ao se positivar nesta Nova Ordem Mundial, ideia que não se preocupa em ocultar sua inspiração direta e indisfarçada na milenar escatologia messiânica. Aqui Marx perde seu caráter espectral e se positivisa como o derradeiro profeta. Nada mais distante do Marx espectral que Derrida nos apresenta em “Espectros de Marx”. Quanto ao estatuto teórico da utopia no século XXI, devemos lembrar que meio milênio se passou desde a publicação do clássico de Thomas More, o que enseja múltiplas reflexões sobre sua espectralidade contemporânea.5 Alain Badiou, como veremos mais adiante, une ambos os temas na sua acesa discussão sobre a atualidade da “hipótese comunista”. A crítica de Deleuze ao capitalismo segue despertando debate importante entre seus defensores e oponentes.6 Discute-se também a ideia de que o neoliberalismo já 4 BOMBOV, Todor. Socialism is dead! Long live socialism!: The Marx code – socialism with human face (A New World Order). Third Edition. USA/Singapore: Strategic Book, 2016 (Print Edition) e 2017 (E-book Edition). 5 OLKUSH, Ksenia; KLOSINSKI, Michal; MAJ, Krzysztof M. (Editors) More after More: essays commemorating the five-hundredth anniversary of Thomas More’s Utopia. Kraków: Facta Ficta Research Centre, 2016. 6 CULP, Andrew. Dark Deleuze. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2016. 14 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES tenha dado lugar ao aceleracionismo como “terceiro espírito do capitalismo”.7 Estas rápidas referências às publicações recentes de Bombov, Badiou, Culp e Pinto Neto pretendem apenas evidenciar a atualidade e a relevância das discussões que os espectros de Marx continuam a suscitar a respeito do capitalismo e suas derivas espectrais. No presente trabalho, partiremos da retomada de algumas considerações de Derrida em entrevistas posteriores ao seu livro, para nos dirigirmos em direção a uma apreciação crítica de algumas figuras da esquerda que se apresentam neste início de século. Derrida revisita os espectros de Marx Em meados dos anos 70, Derrida dedicou um seminário de um ano ao estudo de Marx, apenas recentemente publicado.8 Quase vinte anos passarão até que o encontro longamente esperado e diferido entre a desconstrução e o marxismo venha a público em 1993 com o lançamento de “Espectros de Marx”.9 Sua entrevista a Michael Sprinker sobre Marx e Althusser, realizada ao final dos anos 80, havia sido publicada em inglês em dezembro de 1992 em uma obra coletiva, editada por Kaplan & 7 PINTO NETO, Moysés da Fontoura. Esquecer o neoliberalismo: aceleracionismo como terceiro espírito do capitalismo. Cadernos IHU ideias. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos. Ano 14, Número 245, Volume 14, 2016. ISSN 1679-0316 (impresso) ISSN 2448-0304 (online). 8 DERRIDA, Jacques. Théorie et pratique. Cours de l’ENS-Ulm1975-1976. Édition établie par Alexander García Düttmann. Paris: Galilée, 2017. 9 Benoît Peters observa que há cerca de trinta anos muitos amigos, principalmente na França, criticavam-no por nada ter escrito sobre Marx. A redação do livro se deveu à aceitação por Derrida do convite para realizar, em abril de 1993, a conferência de abertura de um colóquio internacional organizado pela Universidade da Califórnia que tinha o título provocativo de “Wither marxism?”, que pode ser traduzido como “Aonde vai o marxismo”, com a conotação de “O marxismo está morrendo?”. (PETERS, Benoît. Derrida. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 556) Relembro isto para evidenciar de mais uma maneira o caráter espectral de Marx, que aqui se revela na indecidibilidade da questão a respeito da morte ou da sobrevida de Marx em sua persistente insepultabilidade. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 15 Sprinker, intitulada “The Althusserian Legacy”10. A mesma editora publicará em 1999 a resposta de Derrida aos ensaios críticos de diversos autores sobre “Espectros de Marx”11, ocorrendo em 2002 a publicação em francês apenas do texto de Derrida lá publicado.12 Como não poderia deixar de ser, o livro de Derrida levantou muitas questões que foram reabordadas por ele em diversas entrevistas. Destaco nesta sessão a reiteração por Derrida da estrita relação entre a desconstrução e a psicanálise, o que fareiutilizando breves resenhas do tema em quatro entrevistas posteriores à publicação do livro. Em entrevista concedida a Betty Milan13, Derrida observa que a consciência política mundial de hoje precisa reafirmar que Marx e o comunismo estão mortos e bem enterrados, o que revela a persistência de uma relação com os espectros de ambos. Daí a necessidade filosófica de uma “lógica espectral” que abarque a compreensão do que não é nem inteligível nem sensível, nem visível nem invisível, nem vivo nem não vivo, constituindo uma estrutura que resiste às oposições metafísicas. A espectralidade constituiu o viés estratégico da desconstrução justamente por constituir uma “categoria” que resiste às categorias filosóficas. Sua reflexão passou a privilegiar a espectralidade a partir da teorização do luto em Freud, o que o levou a desenvolver a ideia da interminabilidade do luto. O espectro vive numa disjunção do tempo, num tempo anacrônico e não contemporâneo a si mesmo. Embora lançando mão do conceito freudiano de recalcamento para entender nossa relação com o espectro, o passo original de Derrida, no que se refere à psicanálise, está em que ele leva este conceito para além do campo discursivo psicanalítico para pensar uma dimensão política do recalcamento. 10 KAPLAN, E. Ann & SPRINKER, Michael (Editors) The Althusserian Legacy. London: Verso Books, 1993. 11 SPRINKER, Michael (Editor) Ghostly demarcations: a symposium on Jacques Derrida’s Specters of Marx. London: Verso Books, 1999. 12 DERRIDA, Jacques. Marx & Sons. Paris: PUF/Galilée, 2002. 13 MILAN, Betty. A força da palavra: entrevistas. Rio de Janeiro: Record, 2012. 16 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES Considera que as categorias psicanalíticas devem ser reelaboradas e politizadas, já que tanto o filósofo quanto o psicanalista se ocupam da dimensão espectral. No caso de Marx, considera que esta extensão da psicanálise ao campo da política lhe permite construir o livro “Espectros de Marx” como um livro não simplesmente filosófico, já que o pensamento do espectro necessita ser construído contra a própria filosofia em muito dos seus axiomas. O livro constitui um protesto contra uma certa reapropriação de Marx que o neutraliza ao fazer dele um recorte que o imobiliza como mais um personagem da Academia filosófica. Pensar o retorno do espectro de Marx implica não ficar aprisionado em uma dogmática marxista e tentar pensar “o inédito do nosso tempo” com um certo “espírito de justiça” que nos advém a partir dele. Este pensamento implica a necessidade de desconstruir sua filosofia, sua ontologia e seu materialismo dialético, em nome deste próprio espírito de Marx. Os parágrafos anteriores reunem ideias apresentadas na referida entrevista a Betty Milan. Em março de 1997, Jean-Pierre Vincent apresenta no Théatre des Amandiers de Nanterre o espetáculo Karl Marx Théatre inédit, baseado em textos de Shakespeare, Marx, Derrida e Chartreux. A este propósito, Derrida concede a Nadine Eghels uma entrevista da qual passamos também a apresentar alguns recortes.14 Ele reafirma que seu livro é tudo menos um “retorno a Marx”. A afirmação da herança de um certo “espírito” de Marx é ali um gesto político que não busca restaurar qualquer “marxismo” mas, ao contrário, apresentar uma posição crítica em relação a todos os dogmatismos que buscam apropriação de uma tradição marxista, bem como a uma leitura exclusivamente filosófica de Marx. Opõe-se a uma apropriação academicista que neutraliza a virulência de Marx ao apresentá-lo como um grande clássico imobilizado nos cânones dos “grandes filósofos”, tentação à qual deve-se resistir. 14 DERRIDA, Jacques; GUILLAUME, Marc; VINCENT, Jean-Pierre. Marx en jeu. Paris: Descartes & Cie, 1997. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 17 Partindo do conceito psicanalítico do luto, elabora o pensamento de um trabalho de luto político a ser feito não apenas por marxistas e comunistas como também pelos adversários do comunismo, os cruzados do antimarxismo e os grandes sacerdotes do neoliberalismo econômico. No momento em que os cânticos do triunfo final do mercado capitalista perderam seu “inimigo” e vêem-se às voltas com seu fantasma que assombra a partir de um trabalho de luto interminável, Derrida vislumbra o desafio de tornar o discurso psicanalítico, que concerne em geral ao indivíduo, capaz de analisar um luto mundial, uma “melancolia geopolítica”. O livro tenta situar “tudo o que fragiliza a retórica do neoliberalismo e às vezes a torna indecente até a obscenidade” quando ela celebra com acentos jubilatórios o laço entre o mercado e a democracia. O espetáculo em foco constitui, para Derrida, uma outra aliança entre o teatral e o político, na qual o teatro se torna, para além da representação, um novo espaço político. Em um encontro realizado em 1999 com Antoine Spire e Daniel Bensaïd15, Derrida volta a declinar da tendência frequente de arrumar Marx como um filósofo canônico no interior da tradição dos grandes filósofos clássicos, o que tende a levar à neutralização da injunção revolucionária de Marx e à sua domesticação. O livro apresentou o protesto de Derrida contra esta neutralização por meio da tentativa de “analisar o campo atual dos males da ordem mundial, o trabalho do luto do horizonte marxista” incorporando “uma espécie de psicanálise do campo político” pelo recurso a um princípio psicanalítico, a análise dos fantasmas, porém ao mesmo tempo “transformando, politizando, a própria mensagem freudiana”. Para finalizar esta sessão, retomamos algumas passagens da entrevista de Derrida por Elisabeth Roudinesco.16 Ele enfatiza que “Espectros de Marx” é um livro “sobre a melancolia como 15 DERRIDA, Jacques (1999). Sob palavra: instantâneos filosóficos. Tradução Miguel Serres Pereira. Lisboa: Fim de Século Edições, 2004. 16 DERRIDA, Jacques & ROUDINESCO, Elisabeth (2001). De que amanhã: diálogo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 18 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES política, sobre a política da melancolia”, sobre a política como trabalho de luto. Procura problematizar as aporias do trabalho do luto em relação aos recursos e aos limites do discurso psicanalítico a esse respeito. Observa, argutamente, que este luto por um certo marxismo ou um certo comunismo chora, às vezes sem lágrimas, “sobre o cadáver do próprio político. Chora o próprio conceito de político em seus traços essenciais, e mesmo nos traços específicos de sua modernidade (o Estado-nação, a soberania, a forma-partido, a topologia parlamentar com mais credibilidade)”. Considera que “Espectros de Marx” “talvez seja um livro sobre a justiça, sobre uma justiça que não se confunde com uma harmonia, uma proporção, uma ordem”, o que remete a seu aspecto espectral. Para ele, a espectralidade “comanda não apenas a problemática do luto, mas a da técnica, das mídias, da realidade virtual e portanto da consideração, na reflexão psicanalítica e política, de uma lógica geral da espectralidade. Não se pode pretender arrazoar uma realidade política sem levar em conta essa virtualidade espectral”. Enfatiza seu respeito intacto pela “ideia” comunista, com a necessidade de “uma crítica desconstrutivista incansável da lógica capitalista”. Pretendo, com estas breves citações de passagens destas quatro entrevistas, ter evidenciado mais uma vez a essencialidade do pensamento freudiano na elaboração da filosofia da desconstrução. A interminabilidade do luto pelas ideias de Marx e pela “ideia” do comunismo nos leva a compreenderao mesmo tempo a interminabilidade do retorno fantasmático dos espectros de Marx. Na seção seguinte examinarei algumas das formas que assume no presente este retorno. Espectros de Marx no século XXI Na impossibilidade de tentativa de elencar um rol extenso dos espectros marxianos que nos assombram, elejo trazer um pequeno número deles que quero lembrar a fim de enfatizar a fertilidade de algumas ideias para o pensamento contemporâneo. Para tanto, é necessário melhor esclarecer alguns dos aspectos do pensamento de Derrida a respeito da relação entre RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 19 messianismo e espectralidade. Recordemos inicialmente que “Espectros de Marx” é, ao mesmo tempo, e bem ao estilo de Derrida, tanto uma crítica aos diversos marxismos quanto aos discursos anti-marxistas. E aqui já percebemos a virtude do espectral de não se deixar apreender em polos metafísicos. Os espectros de Marx sempre são mais de um, e por isso são menos que Um. Não são inteligíveis nem sensíveis, nem vivos nem mortos. São ao mesmo tempo marxistas e anti-marxistas, pois não se deixam aprisionar nestas categorias, aparecendo sempre fora delas, excedendo-as. A apresentação da dimensão da espectralidade é o recurso desconstrucionista de que Derrida lança mão para ao mesmo tempo denunciar e compreender as consequências político-sociais, em nível global, da falência dos organismos internacionais e das democracias parlamentares, em relação ao seu suposto papel de representação popular, em razão do seu atrelamento ao neoliberalismo e à soberania da smithiana “mão invisível” do mercado. Esta falência invoca e ressuscita permanentemente os espectros de Marx e do comunismo como Outro, como o “totalmente outro” (tout autre) do capitalismo. Cabe então indagar a respeito daquilo que habilita estes espectros a sempre retornarem neste lugar de falta, de falha, de desaparecimento na fumaça, de desesperança. Teria Marx inventado este lugar? Derrida irá observar que este lugar está desde sempre preenchido pelo messianismo, numa “confusão de origem” espectral. Estabelecerá, entretanto, uma distinção fundamental entre o messianismo e o messiânico, sendo este último a instância espectral que precede e possibilita o aparecimento do primeiro. Apresenta o messiânico como uma generalidade estrutural, um lugar/não lugar estrutural daquilo que, ainda não estando aqui, pode a qualquer momento aparecer como o que chega, embora nem o momento da sua chegada, nem propriamente o que chega, possam ser previstos. É este messiânico, como estrutura assincrônica da própria temporalidade, isto é, fora do tempo, que possibilita a apresentação do messianismo. Neste sentido, a promessa messiânica, como messiânico estrutural, precede todos 20 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES os messianismos históricos e lhes oferece o lugar estrutural do seu imprevisível acontecimento. Vistos por esta ótica, o acontecimento dos messianismos abrahâmicos advém pela via da ressignificação a posteriori (Nachträglichkeit) descrita por Freud: a atemporalidade messiânica conecta, na voz do profeta, a memória da herança de uma promessa à ideia de um futuro radicalmente novo. Como dissemos anteriormente, apesar das críticas de Marx à religião em geral, as promessas contidas em sua visão da história apresentam continuidade evidente com a escatologia messiânica dos profetas hebreus. Osborn enfatiza o caráter profundamente antirreligioso dos textos da bíblia judaica, e ilustra isto tomando como exemplo o profeta Amós. No seu tempo, Israel encontrava-se no zênite de sua prosperidade material e poderio militar. Apesar disso, Amós considerava repugnante aos olhos de Deus suas pródigas demonstrações de piedade ritual oficiada por sacerdotes sicofantas a serviço de monarcas corruptos. Repudiava as autoridades religiosas pela opressão dos pobres, pelas injustiças econômicas e pela dureza frente ao sofrimento humano. Declarava que Israel acabaria por colher o que semeara. Na economia moral da soberania da lei divina sobre a história, a ira divina estava reservada para os que “venderam por prata aqueles cuja causa era justa e os necessitados de um par de sandálias”, e que “pisoteiam a cabeça dos pobres na poeira do chão”. Condenava também as nações por crimes internacionais.17 Osborn cita também Isaías. Em seu tempo Israel encontrava-se sitiada pelos exércitos dos seus vizinhos. Isso levou o Rei Ahaz a contrariar as súplicas de Isaías formando alianças militares estratégicas com os brutais impérios da Assíria e Egito. Jerusalém regozijava-se com a habilidade política e a capacidade de negociante de Ahaz: o Rei era astuto, os sacerdotes estavam orgulhosos e o mercado estava repleto. Em contraponto, Isaías saiu pela cidade vestido apenas como um escravo para dramatizar 17 OSBORN, Ronald E. Humanism and the death of God: searching for the good after Darwin, Marx and Nietzsche. Oxford: Oxford University Press, 2017. Kindle edition: location 2220. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 21 aos concidadãos sua real condição moral, sua moralidade de escravo, que os destinava à escravidão. Condenava a política baseada no poder da espada, horrorizava-se frente às brutalidades e carnificinas trazidas pela guerra. Não podia suportar o regozijo das pessoas pelos seus crimes normais, como a exploração dos pobres e a adoração de ídolos. Marx não é original ao proclamar que a objetificação das relações humanas leva à alienação das pessoas em relação às outras e à natureza. A palavra bíblica para o que Marx chamou “fetiche da mercadoria” é “idolatria”. As vozes de inúmeros profetas somam-se às de Amós e Isaías – Jeremias, Ezequiel, Miquéias, Oséias – para falar contra a injustiça, a opressão e a exploração. A crítica de Marx ao capitalismo pode ser considerada essencialmente como a preocupação bíblica pelos órfãos e viúvas, para citar apenas um exemplo, retirada de sua fundamentação teológica e aplicada às condições da modernidade. No Novo Testamento, na sua confrontação com os fariseus, Cristo coloca-se na longa tradição dos profetas hebreus.18 Com estes breves traços pretendemos apenas ter conseguido ilustrar a presença de uma continuidade entre o pensamento judaico milenar, mesmo em aspectos das suas apropriações cristãs, e a apresentação por Marx da ideia de um mundo por vir onde a justiça para todos finalmente reinará. Derrida demonstra, a partir de Freud, o caráter espectral desta herança, a herança de uma promessa milenar que retorna reiteradamente, em infindáveis atualizações e ressignificações, pelo trabalho de um luto interminável. Tendo até aqui apresentado um certo retorno espectral de Derrida, gostaria agora de referir brevemente outros filósofos que também trazem à contemporaneidade espectros de Marx. Inicio trazendo dois filósofos franceses que compartilharam com Derrida a riqueza incomparável do cenário intelectual parisiense da década de 60 do século passado: Deleuze e Badiou. O pensamento de Deleuze tem sido associado a uma expressão que ganhou destaque nos últimos anos na 18 Idem. Kindle edition: location 2234 ss. 22 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES problematização do capitalismo na sua contemporaneidade: trata- se da ideia do aceleracionismo. O termo apareceu primeiramente cunhado por Benjamin Noys em 2011 e foi retomado por Nick Snircek e Alex Williams em 2013, quando estes publicaram o Manifesto for an Acceleracionist Politics, sucedendo-se então uma discussão entre Noys e estes autores em livros subsequentes.19 Queremos observarinicialmente que a ideia do aceleracionismo apresenta ampla polissemia, sendo apenas uma delas a sua concepção como uma derivação de uma estética deleuziana. O termo assume significação totalmente diferente, por exemplo, quando podemos usá-lo para referir-nos a uma concepção escatológica do capitalismo na qual este escapa à previsão do seu fim e se eterniza, ao contrário, em um grande e definitivo triunfo. Os fundadores do californiano Breakthrough Institute, T. Nordhaus e M. Shellenberger, observam a aurora de um capitalismo pós-industrial vibrante, capaz de conduzir a humanidade ao seu destino de abundância para todos. Para eles, a realidade deste destino de abundância produzida pelo capitalismo é simplesmente negada pelos cientistas que insistem na ideia da existência de limites biogeofísicos do planeta para abrigar a vida, pelos ecologistas que falam na necessidade da redução do consumo e pelos economistas que defendem um decrescimento da expansão de algumas atividades econômicas. Para eles, ao contrário, a solução para o aquecimento global reside na liberação e aceleração da atividade econômica e do desenvolvimento tecnológico, na aposta no aumento na produção, na inovação e no crescimento, levando por fim a prosperidade a todos. Propõem a aposta no progresso contínuo, na “modernização da modernização”, no aperfeiçoamento do dispositivo técnico do capitalismo para que ele possa tornar produtivas suas consequências negativas observadas até agora.20 19 SHAVIRO, Steven. No speed limit: three essays on accelerationism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015. Kindle Edition: Pos. 36. 20 DANOWSKY, Déborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. 2. Ed. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie Editora, 2014. pp. 70-73. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 23 A fascinação pela aposta na aceleração do desenvolvimento capitaneado pela expansão do capitalismo, já vigorosa quando Marx escreve, encontra clara expressão estética a partir do lançamento do “Manifesto futurista” de Filippo Tomaso Marinetti, publicado inicialmente na Itália e poucas semanas depois em Paris no Le Figaro em 1909. Entre 1909 e 1916 mais de cinquenta manifestos relacionados foram publicados. Marinetti anunciara o nascimento de “uma nova beleza, (...) a beleza da velocidade”.21 O movimento futurista italiano, que influenciou fortemente a estética da arte no período pré-guerra, apresenta ao mesmo tempo, em sua celebração da velocidade e em seu esforço para dominar e explorar sua expressão estética, a celebração da dominação da natureza pela tecnologia da aceleração, também expressa na exaltação da capacidade mortífera das novas e velozes armas para a guerra. Prenunciando nosso capitalismo 24/722, Gabriele D’Anunzzio anunciara em seu lema pessoal a importância de não dormir, o ideal de viver 24 horas por dia, numa exaltação do empenho em acelerar tecnologicamente a vida a ponto de superar mesmo as necessidades biológicas, prenunciando a guerra atual do capitalismo contra o sono, visto como uma das últimas atividades humanas não produtivas que impedem o indivíduo de produzir por 24 horas por sete dias por semana (24/7). O culto futurista à velocidade e à aceleração levará ao culto à guerra, à misoginia e à sua aliança com o fascismo.23 O estágio atual dos problemas econômicos mundiais pode, portanto, ser pensado como prenunciando a chegada do fim do capitalismo previsto no ideário marxista, bem como pode ser pensado como o momento da necessidade da aposta na revigoração da aplicação dos fundamentos do liberalismo 21 SPROCCATI, Sandro. A guide to art. New York: Harry N. Abrams, 1992. pp. 163- 164. 22 CRARY, Jonathan. 24/7: late capitalism and the ends of sleep. London/New York: Verso, 2013. 23 NOYS, Benjamin. Malign velocities: accelerationism and capitalism. Winchester (UK): Zero Books, 2014. pp. 13-14. 24 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES econômico de maneira mais perfeita e acelerada. Testemunhamos, portanto, a reiteração das visitas não só dos espectros de Marx como também dos espectros de Adam Smith. Para os presentes fins, retomamos aqui a ideia do aceleracionismo no que se refere à sua relação com o pensamento de Deleuze. Em contraponto à concepção de um aceleracionismo liberal apresentado nos últimos parágrafos, trata-se agora da concepção de um aceleracionismo pensado de acordo com a filosofia marxista da história, ou seja, pensado como estratégia para acelerar o capitalismo ao seu fim e à emergência do pós- capitalismo. Este aceleracionismo seria a única via possível para atingir o “além do”, ou o “fora do” capitalismo. Por esta via, o ultrapassamento do capitalismo só é possível a partir de dentro dele, pela estratégia de “colocar a megamáquina capitalista em overdrive, acelerar a aceleração que a define, potencializar a destruição criativa que a move até que ela termine por se autodestruir e nos recrie (em) um mundo radicalmente novo”.24 Noys traça as origens desta concepção do aceleracionismo, aliada aos ideais da esquerda, ao início dos anos 70, com o lançamento de “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1”, de Deleuze & Guattari, em 197225, ao qual seguiram-se, na mesma direção, as considerações críticas de Jean- François Lyotard (em “Economia libidinal”, 1974) e Jean Baudrillard (em “Troca simbólica e morte”, 1976). O desenvolvimento destas ideias levou à concepção de que o único caminho para fora do capitalismo é a ação de acelerar seu desenvolvimento em direção ao seu fim, “seguir suas linhas de fuga ou desterritorialização ao final absoluto, acelerar para além dos limites da produção e assim romper o limite do próprio capital”.26 24 DANOWSKY, Déborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. 2. Ed. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie Editora, 2017. pp. 74-77. 25 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (1972/1973) O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. 26 NOYS, Benjamin. Malign velocities: accelerationism and capitalism. Winchester (UK): Zero Books, 2014. (Kindle edition: position 80-115; pp. 1-4) RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 25 Na crítica de Viveiros de Castro, na linha defendida por Derrida, o já citado “Manifesto aceleracionista”, de Snircek & Williams27, apresenta um pós-capitalismo que é mais uma versão da filosofia messiânica, a “bimilenar narrativa patriarcal, repressiva, transcendentalista, racista e falocrática que atravessa como um fio rubro a história do Ocidente, de São Paulo a Marx, Husserl, Heidegger e além”.28 Em outras palavras, a proposta da estratégia esquerdista de acelerar o capitalismo com suas próprias forças até o seu final, o seu pós-capitalismo, apenas encobre superficialmente a reiteração da milenar promessa bíblica: “Após o apocalipse, o Reino”.29 Como temos visto, a ideia da necessidade de transição para o pós-capitalismo pode ser pensada tanto por um viés liberal quanto por um viés de inspiração marxista. Para seus respectivos inimigos, tanto o neoliberalismo quanto o marxismo devem ser superados na travessia para um pós-capitalismo. Este tem sido um assunto proeminente no trabalho filosófico do segundo filósofo francês que anunciamos pretender lembrar nesta secção. Alain Badiou tem trabalhado as implicações do que chama “a hipótese comunista”.30 A ideia do comunismo foi amplamente debatida, sob coordenação de Badiou e Zizek, em dois encontros internacionais que tiveramlugar em Londres (2009) e Berlim (2010).31 Na impossibilidade de iniciar neste espaço qualquer percorrido da abordagem de Badiou deste problema em inúmeras ocasiões, abordarei aqui apenas duas passagens ilustrativas do seu pensamento. 27 SRNICEK, Nick & WILLIAMS, Alex. #Accelerate: manifesto for an acceleracionist politics. In: JOHNSON, Joshua. (Ed.) Dark trajectories: politics of the outside. Hong Kong: [NAME] Publications, 2013. 28 DANOWSKY, Déborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. 2. Ed. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie Editora, 2017. p. 81. 29 Idem. p. 75. 30 BADIOU, Alain. Circonstances 5. L’hypothèse communiste. Clamecy (FR): Nouvelles Éditions Lignes, 2009. 31 BADIOU, Alain & ZIZEK, Slavoj. (Eds.) L’idée du comunisme. Clamecy (FR): Nouvelles Éditions Lignes, 2010 (Conférence de Londres/2009) e 2011 (Conférence de Berlin/2010). 26 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES Em uma entrevista com Peter Engelman, realizada em março de 2012, Badiou observa que o movimento comunista no século XXI não está condenado a repetir os erros cometidos nos séculos anteriores, devendo assumir novas formas que incorporem o aprendizado daquelas experiências. Ilustra isso, entre inúmeros exemplos, o reconhecimento da impossibilidade contemporânea de pretender um movimento comunista com um comando central unificado e seu decorrente caráter autoritário. Ao invés disso, o movimento comunista contemporâneo deve discutir a nível global a “Ideia” de comunismo, revisitando criticamente as ideias de Marx e os experimentos comunistas já realizados. Esta ação poderia estimular o desenvolvimento de discussões e experimentos locais, que encontrariam ressonância em um espaço global de troca de experiências de trabalho realizadas localmente a partir da “hipótese comunista”. Estas discussões permitiriam pensar uma nova ideia de política que não seja uma política de representação como a vigente.32 Ao final de um longo debate travado com o filósofo Marcel Gauchet, pensador da democracia liberal e defensor do neoliberalismo, realizado em 2014, Badiou, após comentar sobre as consequências mundiais da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética nos anos 1990, surpreende Gauchet ao afirmar que o neoliberalismo, para avançar em sua reformulação, tem uma necessidade vital da vigência da hipótese comunista. Isso porque o exame da história mostra que aquilo que fez com que o liberalismo repensasse suas posições teóricas foi exatamente a presença efetiva de um outro universo, da “outra hipótese”, a dos comunistas. O fim do comunismo histórico ocorrido nos anos 90 do século passado fez com que as democracias liberais deixassem de ser desafiadas por seus adversários comunistas, resultando que, na ausência do perigoso Outro que as ameaçava, passaram a ser vassalas do capital e de seus detentores, que não se sentem mais constrangidos a aceitar os princípios da moderação e da redistribuição. A democracia tem 32 BADIOU, Alain. Quel communisme? Entretien avec Peter Engelmann. Montrouge Cedex (FR): Bayard, 2015. pp. 94-105. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 27 necessidade lógica de ser trabalhada por sua alteridade, seu Outro, quer lhe seja interno ou externo. O comunismo, ou a hipótese comunista, é o Outro do capitalismo que o torna possível.33 Assim como o grande Outro da democracia representativa é o capital, ao qual ela está submetida e que é quem a perpetua.34 A propósito destas ideias de Deleuze e de Badiou, é interessante aproximá-las, por exemplo, de uma passagem da já citada entrevista a Betty Milan em que Derrida, ao comentar sua referência a uma Nova Internacional em “Espectros de Marx”, pontua que sua brincadeira com esta expressão aponta, ao contrário do aparentemente anunciado, para uma ação solidária internacional que se dá fora dos partidos, fora dos sindicatos, fora de um Estado, reunindo homens e mulheres que não são sujeitos políticos no sentido tradicional da palavra “político”. Esta forma de solidariedade representa a aspiração de uma força internacional que já existe de forma obscura por ainda não ter encontrado sua linguagem. Embora ainda sem forma organizacional, ela perturba as instituições ligadas ao Estado e exige uma transformação da democracia e do direito internacional, operado por instituições internacionais regidas por categorias europeias criticáveis e dependentes dos Estados Unidos.35 Encerraremos agora esta secção fazendo apenas uma breve referência a outros autores que devem ser lembrados necessariamente para pensarmos a contemporaneidade dos espectros de Marx. Ainda nos referindo aos franceses, há trabalhos recentes bastante interessantes aproximando Lacan com as ideias de Marx.36 Entre os brasileiros, não podemos deixar de 33 BADIOU, Alain & GAUCHET, Marcel Que faire? Dialogue sur le communisme, le capitalisme et l’avenir de la démocratie. Animé par Martin Duru et Martin Legros. Paris: Philo Éditions, 2014. pp. 153-155. 34 Idem. pp. 79-80. 35 MILAN, Betty. A força da palavra: entrevistas. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 52- 3. 36 Algumas sugestões de leitura para a aproximação dos pensamentos de Lacan e Marx: BRUNO, Pierre. Lacan, passeur de Marx. L’invention du symptôme. Toulouse: 28 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES registrar os retornos de Marx nas obras de Paulo Freire37 e Augusto Boal38. No nosso meio, Edson Luiz André de Sousa tem trabalhado consistentemente sobre a necessidade da utopia.39 Registramos aqui também o importante trabalho de crítica ao neoliberalismo desenvolvido na Argentina por Hugo Biagini40. Éditions Érès, 2010.; TOMSIC, Samo. The capitalist unconscious: Marx and Lacan. London/NewYork: Verso, 2015.; TOMSIC, Samo & ZEVNIK, Andreja. Jacques Lacan: between psychoanalysis and politics. London/NewYork: Routledge, 2016. 37 A elaboração teórica da “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire, desenvolvida por ele a partir dos anos 60 do século passado, encontra cada vez maior reconhecimento a nível internacional. Uma abordagem recente da importância do seu pensamento para o século XXI pode ser encontrada em ROBERTS, Peter. Paulo Freire in the 21st century: education, dialogue and transformation. London/NewYork: Routledge, 2016. Na mesma linha, ver RODRÍGUEZ, Héctor Manuel Núñez. Pedagogía de la liberación de Paulo Freire en la etapa global del capitalismo. 2ed. México: Editorial Venera, 2013. Uma introdução recente ao seu pensamento pode ser encontrada em SMIDT, Sandra. Introducing Freire: a guide for students, teachers and practitioners. London/NewYork: Routledge, 2014. Sua obra também é valorizada em TAROZZI, Massimiliano & TORRES, Carlos Alberto. Global citizenship education and the crises of multiculturalism: comparative perspectives. London: Bloomsbury, 2016. Uma abordagem histórica das concepções de Marx em relação à educação pode ser encontrada em SMALL, Robin. Marx and education. London/NewYork: Routledge, 2016. 38 Augusto Boal, em um pensamento muito próximo ao de Paulo Freire e desenvolvido na mesma época, tornou-se internacionalmente reconhecido pela teorização e prática do “teatro do oprimido”. Revisitas recentes à sua obra se encontram em LAWRENCE, Luis Chesney & DINNEEN, Mark. Augusto Boal revisitado: ensayos em inglés, portugués y español. 2ed. Charleston (USA): On-Demand Publishing (ODP), 2014.; FRITZ, Birgit. Inexactart – the autopoietic theatre of Augusto Boal:a handbook of theatre of the opressed practice. Translated by Lana Sendzimir and Ralph Yarrow. Stuttgart: ibidem Press, 2012.; COHEN-CRUZ, Jan & SCHUTZMAN, Mady. (Eds.) A Boal companion: dialogues on theatre and cultural politics. London/NewYork: Routledge, 2006. 39 SOUSA, Edson Luiz André de & WILLIGES, F. R. Utopias e a parcialidade da imagem. Polêmica. v. 16, p. 14-21, 2016.; SOUSA, Edson Luiz André de. I Margens utópicas: contrafluxos do futuro. Revista Mesa. v. 4, p. 1-6, 2015. SOUSA, Edson Luiz André de & SANTELLANO DE FREITAS, A. Dobras de uma origem: clinica, criação e utopia. Barbarói (UNISC. Online), v. 43, p. 104-118, 2015.; SOUSA, Edson Luiz André de. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007. 40 BIAGINI, Hugo E & ROIG, Arturo A. El pensamiento alternativo en la Argentina del siglo XX. Tomos I y II. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2004 (Tomo I) y 2006 (Tomo II). BIAGINI, Hugo E. La contracultura juvenil: de la Emancipacón a los Indignados. Buenos Aires: Editorial Capital Intelectual, 2012; BIAGINI, Hugo E & PEYCHAUX, Diego F. Neuroliberalismo: a ética do mais forte. Tradução Antonio Sidekum. Nova Petrópolis (RS): Editora Nova Harmonia, 2016. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 29 Espectros do por vir Encerramos esta breve reflexão com uma tentativa de marcar, levando em conta o apresentado ao longo do texto, uma distinção pertinente entre apropriações do pensamento de Marx no século XX e aquelas autorizadas por uma reflexão a posteriori a partir da filosofia e da cena da escritura das décadas iniciais do século XXI. Recepções históricas do marxismo que procuraram sustentar a possibilidade de levar ao fim a espectralidade messiânica através da busca da realização histórica positiva do fim da luta e da sociedade de classes, do fim do capitalismo e seus fundamentos, como a propriedade privada e o predomínio do interesse individual sobre o coletivo, mesmo que pelo uso da violência totalitarista e pela apropriação dos meios de produção pelo Estado totalitário, parecem atualmente apenas ecoar a impossibilidade de discriminar entre o messiânico espectral, marca da presença de um oriente como utopia revitalizadora, e a possibilidade de uma positivação última capaz de pôr fim à necessidade da utopia. Derrida, apoiado no conhecimento psicanalítico elaborado por Freud, entende a utopia como compondo o messiânico estrutural, promessa que marca a presença de um trabalho de luto interminável, permanentemente sujeito à reiterabilidade. Devemos então responder à questão referente às alternativas que se colocam para cuidar da sobrevivência da espectralidade utópica como condição de possibilidade da presença de um por vir como esperança. Queremos deixar com o leitor duas ideias a nosso ver importantes para compor esta resposta. A primeira é a ideia da necessidade da desconstrução crítica do discurso que sustenta a articulação duradoura entre a democracia parlamentar e o capitalismo tardio na sua versão neoliberal contemporânea, criativamente renomeada por Biagini & Peychaux como “neuroliberalismo”41. Só esta crítica poderá 41 BIAGINI, Hugo E & PEYCHAUX, Diego F. Neuroliberalismo: a ética do mais forte. Tradução Antonio Sidekum. Nova Petrópolis (RS): Editora Nova Harmonia, 2016. 30 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES abrir a possibilidade de pensar a democracia por vir para além do seu atrelamento histórico aos interesses do capital vadio, que tem na sua reprodução ilimitada o seu fim último e soberano, sempre para além da possibilidade do reconhecimento de qualquer Outro. Se esta ideia implica abrir campo para novos estamentos legais que dela resultam, a nível nacional e internacional, esta dimensão ao mesmo tempo é incapaz de sustentar-se fora da ideia de um sujeito que permanece capaz de dialogar “com” e “na presença” dos fantasmas, como nos diz Derrida42. Fantasmas que acompanham os sonhos e a arte dos humanos como condição da sua existência. A fruição estética desta presença espectral é o ar que este sujeito respira e que o mantém vivo. Neste cenário, cabe ao trabalho dos artistas, filósofos e psicanalistas o papel de manter as condições atmosféricas de respirabilidade de que este sujeito depende para estar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADIOU, Alain. Circonstances 5. L’hypothèse communiste. Clamecy (FR): Nouvelles Éditions Lignes, 2009. BADIOU, Alain. Quel communisme? Entretien avec Peter Engelmann. Montrouge Cedex (FR): Bayard, 2015. BADIOU, Alain & GAUCHET, Marcel Que faire? Dialogue sur le communisme, le capitalisme et l’avenir de la démocratie. Animé par Martin Duru et Martin Legros. Paris: Philo Éditions, 2014. BADIOU, Alain & ZIZEK, Slavoj. (Eds.) L’idée du comunisme. Clamecy (FR): Nouvelles Éditions Lignes, 2010 (Conférence de Londres/2009) e 2011 (Conférence de Berlin/2010). BIAGINI, Hugo E. La contracultura juvenil: de la Emancipacón a los Indignados. Buenos Aires: Editorial Capital Intelectual, 2012. 42 DERRIDA, Jacques. (1993) Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1994. p. 11. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 31 BIAGINI, Hugo E & PEYCHAUX, Diego F. Neuroliberalismo: a ética do mais forte. Tradução Antonio Sidekum. Nova Petrópolis (RS): Editora Nova Harmonia, 2016. BIAGINI, Hugo E & ROIG, Arturo A. El pensamiento alternativo en la Argentina del siglo XX. Tomos I y II. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2004 (Tomo I) y 2006 (Tomo II). BOMBOV, Todor. Socialism is dead! Long live socialism!: The Marx code – socialism with human face (A New World Order). Third Edition. USA/Singapore: Strategic Book, 2016 (Print Edition) e 2017 (E-book Edition). BRUNO, Pierre. Lacan, passeur de Marx. L’invention du symptôme. Toulouse: Éditions Érès, 2010. COHEN-CRUZ, Jan & SCHUTZMAN, Mady. (Eds.) A Boal companion: dialogues on theatre and cultural politics. London/NewYork: Routledge, 2006. CRARY, Jonathan. 24/7: late capitalism and the ends of sleep. London/New York: Verso, 2013. CULP, Andrew. Dark Deleuze. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2016. DANOWSKY, Déborah & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. 2. Ed. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie Editora, 2014. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. (1972/1973) O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. DERRIDA, Jacques. Théorie et pratique. Cours de l’ENS-Ulm 1975- 1976. Édition établie par Alexander García Düttmann. Paris: Galilée, 2017. 32 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DERRIDA, Jacques. (1993) Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. DERRIDA, Jacques (1999). Sob palavra: instantâneos filosóficos. Tradução Miguel Serres Pereira. Lisboa: Fim de Século Edições, 2004. DERRIDA, Jacques. Marx & Sons. Paris: PUF/Galilée, 2002. DERRIDA, Jacques; GUILLAUME, Marc; VINCENT, Jean-Pierre. Marx en jeu. Paris: Descartes & Cie, 1997. DERRIDA, Jacques & ROUDINESCO, Elisabeth (2001). De que amanhã: diálogo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. FRITZ, Birgit. Inexactart – the autopoietic theatre of Augusto Boal: a handbook of theatre of the opressed practice. Translated by Lana Sendzimir and Ralph Yarrow. Stuttgart: ibidem Press, 2012.KAPLAN, E. Ann & SPRINKER, Michael (Editors) The Althusserian Legacy. London: Verso Books, 1993. LAWRENCE, Luis Chesney & DINNEEN, Mark. Augusto Boal revisitado: ensayos em inglés, portugués y español. 2ed. Charleston (USA): On-Demand Publishing (ODP), 2014. MILAN, Betty. A força da palavra: entrevistas. Rio de Janeiro: Record, 2012. NOYS, Benjamin. Malign velocities: accelerationism and capitalism. Winchester (UK): Zero Books, 2014. OLKUSH, Ksenia; KLOSINSKI, Michal; MAJ, Krzysztof M. (Editors) More after More: essays commemorating the five-hundredth anniversary of Thomas More’s Utopia. Kraków: Facta Ficta Research Centre, 2016. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 33 OSBORN, Ronald E. Humanism and the death of God: searching for the good after Darwin, Marx and Nietzsche. Oxford: Oxford University Press, 2017. PETERS, Benoît. Derrida. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. PINTO NETO, Moysés da Fontoura. Esquecer o neoliberalismo: aceleracionismo como terceiro espírito do capitalismo. Cadernos IHU ideias. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos. Ano 14, Número 245, Volume 14, 2016. ISSN 1679-0316 (impresso) ISSN 2448-0304 (online). ROBERTS, Peter. Paulo Freire in the 21st century: education, dialogue and transformation. London/NewYork: Routledge, 2016. RODRÍGUEZ, Héctor Manuel Núñez. Pedagogía de la liberación de Paulo Freire en la etapa global del capitalismo. 2ed. México: Editorial Venera, 2013. SHAVIRO, Steven. No speed limit: three essays on accelerationism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015. SMALL, Robin. Marx and education. London/NewYork: Routledge, 2016. SMIDT, Sandra. Introducing Freire: a guide for students, teachers and practitioners. London/NewYork: Routledge, 2014. SOUSA, Edson Luiz André de. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007. SOUSA, Edson Luiz André de. I Margens utópicas: contrafluxos do futuro. Revista Mesa. v. 4, p. 1-6, 2015. SOUSA, Edson Luiz André de & SANTELLANO DE FREITAS, A. Dobras de uma origem: clinica, criação e utopia. Barbarói (UNISC. Online), v. 43, p. 104-118, 2015. 34 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES SOUSA, Edson Luiz André de & WILLIGES, F. R. Utopias e a parcialidade da imagem. Polêmica. v. 16, p. 14-21, 2016.; v. 4, p. 1-6, 2015 SPRINKER, Michael (Editor) Ghostly demarcations: a symposium on Jacques Derrida’s Specters of Marx. London: Verso Books, 1999. SPROCCATI, Sandro. A guide to art. New York: Harry N. Abrams, 1992. SRNICEK, Nick & WILLIAMS, Alex. #Accelerate: manifesto for an acceleracionist politics. In: JOHNSON, Joshua. (Ed.) Dark trajectories: politics of the outside. Hong Kong: [NAME] Publications, 2013. TAROZZI, Massimiliano & TORRES, Carlos Alberto. Global citizenship education and the crises of multiculturalism: comparative perspectives. London: Bloomsbury, 2016. TOMSIC, Samo. The capitalist unconscious: Marx and Lacan. London/NewYork: Verso, 2015. TOMSIC, Samo & ZEVNIK, Andreja. Jacques Lacan: between psychoanalysis and politics. London/NewYork: Routledge, 2016. CRIMINOLOGIA COMO DESCONSTRUÇÃO – TALVEZ... Augusto Jobim do Amaral Refletir sobre o desenvolvimento dos movimentos e tendências críticas em criminologia, desde sempre, deve passar longe do encerramento metodológico ou das categorizações planificadas ideologicamente.1 Do contrário, a traição a qualquer postura radical, de fato, já estaria anunciada e desde sempre ex- posta, não menos que pelo alijamento do esforço em construir, atualizar e profanar conceitos capazes de captar as lutas sociais e políticas que propriamente lhe dariam sentido. Em tempos sombrios de naturalização da violência, sobretudo dos dispositivos de punição, em que o embrutecimento do pensamento toma protagonismo, orientado por uma “nova razão do mundo”2 ditada pelos auspícios neoliberais, a urgência radical de certa inteligência que enfrente a burrice do fanatismo mobilizado pelos fascismos como modo de vida atrofiado pelo medo se impõe. Um vazio reflexivo ganha eco, matraqueado pelo senso comum que, em matéria penal, concretamente, não apenas franquia a morte em escala industrial operada pelo sistema penal, mas forja uma expansiva e permanente tecnologia de governo hábil à eliminação da diferença. Pôr em questão, ainda que de maneira esparsa, o compromisso de não negociar com este injustificável estado de coisas, é mais que mera questão de engajamento, atualmente trata-se de ponto nevrálgico de decisão.3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. 1 Cf. SCAPINI, Marco Antonio de Abreu. Criminologia & desconstrução: um ensaio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012; PANDOLFO, Alexandre Costi. A Criminologia Traumatizada: um ensaio sobre violência e Representação dos Discursos Criminológicos Hegemônicos do Século XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. LAITANO, Grégori Elias. Por uma Criminologia do Encontro: um ensaio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. 2 Cf. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016. 3 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Existência em Decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig. São Paulo: Perspectiva, 1999. 36 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES Não obstante, a condição de normalização da exceção tem nesta regra a força de supressão de todo instante de decisão e sumamente de responsabilidade sobre aquilo que cabe em cada instante de crise.4 Agonisticamente, noutros termos, o que se suprime é o próprio tempo.5 Nada restará, portanto, senão o abortamento do porvir – futuro inderrogável que passa a ser assumido como fatalidade, o que, em matéria de pensamento político-criminológico, consolida esquemas legitimantes de técnicas permanentes de governo pautadas pelo medo.6 A crise coincidida com a normalidade é tornada ferramenta do poder punitivo. Eis sua estética que não precisa se justificar senão por sua própria ostentação. O horror desnudado desta regra depõe o julgamento (local do critério) e sua evidência basta para se encerrar futuros (im)possíveis nas lógicas das repetidas narrativas da exclusão e da morte operadas pelas rotinas penais banalizadas. Ao estado totalizante do poder punitivo cabe a cada um o desafio de saber o que dizer.7 Portanto, possível e necessário arriscar – afinal a radicalidade não nos é dada. Exatamente, para estarmos à altura de tempos urgentes de violências totalizantes múltiplas, é que a criminologia pode fundar seu limiar filosoficamente. Para que tal condição porvir possa se dar, sem antecipação, o peso imprevisível do acontecimento é a inspiração singular.8 Afinal, mais diretamente, 4 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a Construção do Sentido: o pensar e o agir entre a ética e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2003. 5 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. O Tempo e a Máquina do Tempo: Estudos de Filosofia e Pós-Modernidade. Porto Alegre: Edipucrs, 1998. 6 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Ainda Além do Medo: Filosofia e Antropologia do Preconceito. 2ª Ed.. Porto Alegre: Editora fi, 2015. 7 SOUZA, Ricardo Timm de. Kafka: a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal – um ensaio. São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 17-30. 8 Acontecimento não é apreensão, que está lá para ser prevenido ou para ser percebido antecipadamente: “Um acontecimento é o que vem; a vinda do outro como acontecimento só é um acontecimento digno deste nome, isto é, umacontecimento disruptivo, inaugural, singular, na medida em que precisamente não o vemos vir. Um acontecimento que antecipamos, que vemos vir, que pré-vemos, não é um acontecimento: em todo caso, é um acontecimento cuja acontecimentalidade é neutralizada, precisamente, amortecida, detida pela antecipação.” (DERRIDA, Jacques. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; BASSAS, Javier (Orgs.). Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 37 o que haveria de decisivamente contemporâneo e radical, entre uma criminologia e uma filosofia, senão o profundamente impossível e necessário traço de convocação ética9 que alguma criminologia possa ambicionar? Na fragilidade densa da resistência contra os blocos maciços de sentidos e racionalidades criminológicas bem pensantes, frente às tendências justificantes de todos os matizes na imposição violenta de supostos fins “justos”, talvez (como experiência do possível como impossível10) ainda reste deixar pulsar instantes outros que excedam toda a presença de um tempo ensimesmado. Fazer criminologia como se11 memória política fosse, fantasmagoria criminológica dos sistemas penais, como desajuste radical 2012, p. 70). De saída, é imprevisível, não podendo ser predito, pois não podemos vê-lo vir e, portanto, não possui horizonte – ele é vertical. Digno deste nome, apenas pode vir do outro, e não haverá responsabilidade nem decisão com o peso necessários sob esta experiência se não houver de se pensar como dizer deste im-possibilidade indizível. Im- possível que não é somente impossível, o contrário do possível, mas que é também condição ou chance do possível, ou seja, que é a sua própria experiência – e uma decisão que arrisque dizê-lo supõe, pela indispensabilidade responsabilidade pelo outro, que esgarce a trama do possível. (DERRIDA, Jacques. “Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento” (tradução de Piero Eyben). In: Revista Cerrados (Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB). Brasília: Vol. 21, nº 33 (2012), p. 244-5). 9 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento II – Pequeno tratado de ética radical. Caxias do Sul: Educs, 2016. 10 A ênfase está no “talvez” como experiência do possível como impossível: “ora, a experiência do ´talvez´ seria, de uma só vez, a do possível e a do impossível, do possível como impossível. Se apenas acontece [arrive] o que já é possível, portanto antecipável e esperado isso não faz um acontecimento. O acontecimento só é possível se vindo do impossível. Ele acontece como a vinda do impossível, ali onde um ´talvez´ nos priva de toda segurança e deixa o porvir ao porvir. O ´talvez´ se alia necessariamente a um ´sim´: sim, sim a(o) que vem. O ´sim´ seria comum à afirmação e à resposta, viria antes mesmo de toda a questão. Um ´talvez´ como ´perhaps´ (it may happen, como se diria), de preferência à ligeireza do ´vielleicht´, de preferência ao chamado do ser ou à insinuação ontológica, o to be or not to be, de um ´maybe´, eis talvez o que, exposto como o ´sim´ ao acontecimento, ou seja, à experiência do que acontece (happens) e de quem então chega (arrives) longe de irromper a questão, dá-lhe sua respiração.” DERRIDA, Jacques. “Como se fosse possível, “within such limits”...”. In: Papel-máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, pp. 258- 259. 11 O “als ob”, venerado pela tradição filosófica (cf., por todos, o papel enigmático e decisivo desempenhado pelo als ob em todo o pensamento de Kant, em especial com relação à ideia reguladora: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, pp. 545-585), é posto, em contrapartida, em nome da própria razão, como escreve Derrida, para salvaguardar a sua própria honra. Como se fosse possível dar conta de uma 38 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES diante dos fantasmas dos já mortos, dos que ainda não nasceram, vítimas ou não das guerras, dos extermínios e das violências do poder punitivo. A bom rigor, a radicalidade filosófica de qualquer criminologia parece não poder distar da interrogação sempre candente sobre aquilo que pode assumir o sentido de humano – e para além dele – engolido pelas engrenagens criminais/criminosas bem pensadas e objetificantes de um estado de coisas que não se suporta mais, senão ao preço das suas maiores perversões, ser conciliado e sustentado como normal. O que mais deverá ser recorrente e inesgotável num discurso criminológico radical senão a incisividade no convite à monumental evocação sobre os restos transparentes da história esquecidos pela máquina penalizante? Espectros de palavras que reverberam propriamente sobre aquilo que por elas não é alcançado: o testemunho sobre a dor do outro, limite absoluto da minha representação, que teoria nenhuma será capaz de lhe fazer justiça.12 Uma estirpe criminológica tocada por uma ética da vida, do qual todo o mais é derivado, será campo assombrado que haverá de aprender a viver, finalmente,13 com fantasmas14 – aventura estranha e desconfortável que não substitui o que se viveu e morreu pela memória do acontecido, nem está centrada na ideia do que se passará (pois não a temos), contudo que urge pela representação não solitária e indeterminável do outro que habita clandestinamente toda a lógica (criminológica) exaurida. Pro- vocação inaudita de uma responsabilidade radical que algum discurso criminológico não poderá olvidar. Questão de justiça, pois. Algo que talvez uma im-possível criminologia – e não falamos incondicionalidade que permanece incalculável, para que, entre outras questões, evite com que a razão perca seu desejo de razão, sua dignidade mesma, autoimunizando-se e convertendo-se num mero, porém ameaçador poder. DERRIDA, Jacques. Vadios. Tradução Fernanda Bernard. Coimbra: Palimage, 2009, pp. 219 e 239. 12 Cf. ADORNO, Theodor W.. Dialética Negativa. Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 173. 13 Cf. DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin. Entretien avec Jean Birnbaum. Paris: Éditions Galilée/Le Monde, 2005. 14 Estamos às voltas, notadamente, do precioso “Exórdio” de DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, pp. 09-13. RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 39 aqui do direito ou da sua ciência correlata e subordinada diretamente – possa recorrer como herança ética de um desajuste, da dia-cronia irredutível da alteridade.15 Expressa assim tal desejo Derrida, frutífero agora também para uma sintonia radical criminológica sem vacilações: “Justiça alguma – não digamos lei alguma, e mais uma vez lembro que não falamos aqui do direito – parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para além de todo presente vivo, nisto que desajusta o presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram, vítimas ou não das guerras, das violências políticas ou outras, dos extermínios nacionalistas, racistas, colonialistas, sexistas ou outros, das opressões do imperialismo capitalista ou de todas as formas do totalitarismo. Sem essa não- contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que secretamente o desajusta, sem essa responsabilidade e respeito pela justiça com relação a esses que não estão presentes, que não estão mais ou ainda não estão presentes e vivos, que sentido teria formular-sea pergunta ‘onde?’, ‘onde amanhã?’ (´whither?´).”16 Para além e aquém das formas e suas ordenações racionais, onde, enfim, amanhã, uma criminologia radical? Se fosse possível dizê-la, o polo atrator haveria de tocar alguma criminologia como desconstrução17 – “justiça como núcleo indesconstruível de 15 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. Autrement qu´être ou au-dela de l´essence. Martinus Nijhoff: The Hague, 1978. 16 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx, p.11-12. 17 Histórias de “mais de uma” Criminologia – Criminologias Plurais, portanto. “Mais de um/a” [plus d´une/e] é uma das várias aproximações de Derrida à desconstrução (da origem, do fundamento ou da identidade em geral): “Si j'avais à risquer, Dieu m'en garde, une seule définition de la déconstruction, brève, elliptique, économique comme un mot d'ordre, je dirais sans phrase : plus d'une langue. Cela ne fait pas une phrase, en effet” DERRIDA, Jacques. Mémories – pour Paul de Man. Paris: Galilée, 1988, p. 38. Vale ainda uma digressão menos sucinta: “A desconstrução, evidentemente, podemos considerar que consiste justamente em colocar os ladrilhos do avesso, enfim, perturbar uma ordem. Mas consiste também em interrogar-se sobre o que não funciona na ordem, sobre o que na ordem é uma desordem, o que a ordem oculta como desordem. A desconstrução não consiste apenas em recolocar uma ordem, mas se interessa pela 40 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES toda a desconstrução”18 –, que apenas muito cinicamente poderia dizer-se programável, exatamente quando seu próprio discurso já tivesse flertado com o mero dito – encadeamento lógico de enunciados – e não procedesse literalmente de um tempo porvir. Se a desconstrução deve enxergar a partição no coração dos conceitos, desde sempre carregará o criminólogo, tal como o filósofo, o coração partido como sua marca genética diante do limiar entre a filosofia e a criminologia. Interditados à totalidade, o filósofo aqui encontra o criminólogo em seu amor pelo mundo, devendo suportar estar diante do trauma que é a desconstrução do próprio mundo, da precariedade de sentidos e da espectralidade do real, e estar sempre disposto a denunciar toda e qualquer postura autoritária que tente apresentar o mundo em sua plenitude – o real em sua violenta totalização – espantando assim o assombro originário que é o que inaugura a própria filosofia. Conectivo “e” que impinge ao insubstituível “mais de um” e denuncia o umbral como solidez fundadora, limite entre o dentro e o fora da própria inclusão e exclusão – reclamando-nos uma perene vigilância a respeito das absolutizações, do solo único de uma linha indivisível. Criminologia e Filosofia tornam-se, nesta decisão, convite de desconstrução para além da alternativa entre continuidades e cisuras, o que, mais do que um plano firme, possa permitir lançarmo-nos para um único plural além de si. Axioma pronto, por assim dizer, a desestabilizar (inclusive) os esquemas conceituais (críticos) e destotalizar totalidades auto-referentes. A desconstrução, se é que isto possa se desordem. Daí o interesse que tive, interesse doloroso, fascinado etc., por aquele ladrilho mal colocado, e o interesse de estilo desconstrutor pelas coisas que são mal agenciadas, ali onde elas estão solidificadas. (...) Ora, a desconstrução se interessa por essas coisas que não funcionam e que se encontram chanceladas na ordem. Como o senhor sabe, não são apenas questões de política, de direito, etc., são questões de inconsciente, desordens que estão chanceladas. Os ladrilhos não são pedras, não estão na natureza. São pedreiros a quem se deram ladrilhos geometricamente desenhados e que um dia, no que foi uma história, colocaram mal aquele ladrilho. É uma história”. DERRIDA, Jacques. “Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo”. In: Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. MASÓ, Joana; MICHAUD, Ginette; BASSAS, Javier (Orgs.). Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, p. 138. 18 DERRIDA, Jacques. “Force de Loi: “Fondement Mystique de l´Autorité”. In: Cardozo Law Review. Translated by Mary Quaintance. New York. Vol. 11 (July/Aug. 1990), Numbers 5-6 , pp. 919-1045 (cit. p. 944). RICARDO TIMM DE SOUZA; MARCO ANTONIO DE ABREU SCAPINI (ORGS.) | 41 dar, busca traços a partir destes ecos singulares que as racionalidades tão bem sabem governar.19 Haveria uma criminologia filosoficamente não domesticada, neste enfoque, naquilo que estivesse preocupada com as intempestividades que ocupam o nosso presente, o que significa em termos dos aparatos maquínicos do poder penal, colocá-lo face a si mesmo, decompor a estrutura e entender como havia sido construído seu conjunto, não meramente como denúncia, mas como trauma assimétrico a qualquer forma de adaptação. O interesse está, para além de qualquer método, por aquilo que, historicamente se institui como ordem, como poder punitivo, na qual uma desordem violenta foi chancelada e fixada como normalidade. Compromisso com o que virá, precedido e ancorado naquilo que não é ainda, com o que vem sem ser visto, estratagema afeto, não obstante, a um aqui agora sem reenvio infinito, uma injunção democrática porvir a rigor que não se pode deixar idealizar, pois é na vida com todo o seu peso e concretude vinda de cima, inegavelmente real e sensível, que um im-possível porvir confia.20 Jamais se imiscuindo no deplorável espetáculo hipócrita do compromisso democrático falsamente despolitizado, urge (re)pensar uma criminologia neste viés desde uma democracia agora por vir. Convite paradoxal, nunca cego ao apelo sedutor de algum regime político estreito, contudo que arrisca, para além da contingência de alterar as coordenadas do que parece possível e poder dar condições a algo novo, sobretudo a resguardar como se possível fosse a radicalidade da abertura de um talvez im-possível.21 19 “Porque a desconstrução, se algo de tal existisse, permaneceria a meus olhos, antes de mais, um racionalismo incondicional que não renuncia nunca, precisamente em nomes das Luzes por vir, no espaço por abrir de uma democracia por vir, a suspender de forma argumentada, discutida, racional, todas as condições e pressuposições, a criticar incondicionalmente todas as condicionalidades, incluindo as que ainda fundam a ideia de crítica, a saber, a do krinein, da krisis, da decisão e do juízo binário ou dialético.” DERRIDA, Jacques. Vadios, p. 251 (sobre os equívocos na sua acepção a parte da Destruktion heideggeriana, consultar p. 263, nota 4). 20 DERRIDA, Jacques. Vadios: Dois Ensaios Sobre a Razão. Coordenação, Tradução e Notas de Fernanda Bernardo. Coimbra: Palimage, 2003, pp. 155-178. 21 O que se apõe é uma experiência aporética do impossível. Novamente afirmando, um pensamento radical de desconstrução em democracia, se é que isto pode-se dar, estaria longe 42 | DERRIDA E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: ESTUDOS INTERDISCIPLINARES De certo modo, estamos já pulsando sob o espaço que pode vir. Tudo aquilo que trazemos gira em torno, a rigor, em termos democráticos, de uma invocação por vir [à venir] da democracia – cada vez de novo, à-vez [tour à tour], e de uma vez por todas [une fois pour toutes]22 – num cenário urgente que não ignora o motivo que isto implica: não se pode querer ver vir o que permanece insistentemente por vir. Algo quiçá nada latente quando se afirmam comummente os argumentos sobre os horizontes democráticos não realizados, mas a serem alcançados como metas a serem perfectibilizadas teleologicamente. Falseiam as boas intenções, pois ainda estaremos sobre
Compartilhar