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SITUAÇÃO DE RUA - ANÁLISE DA COBERTURA MIDIÁTICA - 34-84-PB

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I 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
 
 
Editorial 
Caros leitores, 
 
É com imensa satisfação que apresentamos o décimo segundo número da Revista 
DisSoL – Discurso, Sociedade e Linguagem, publicada pelo Programa de Pós-graduação em 
Ciências da Linguagem (PPGCL) da Universidade do Vale do Sapucaí (Univás). Este volume 
conta com 08 (oito) artigos na seção Artigos, 1 (um) texto resultado de uma conferência na 
seção Convidados e 1 (uma) resenha. Os trabalhos foram escritos por pesquisadores de diversas 
instituições e se filiam a diferentes perspectivas teóricas no terreno dos estudos sobre o discurso 
e o funcionamento da linguagem na sociedade. 
A seção Artigos é aberta com o texto A construção da identidade de gênero a partir do 
“falar-de-si”, de Raíssa Rodrigues de Carvalho (Univas). Na sequência, temos os artigos: A 
gíria em um ambiente socioeducativo: recurso linguístico utilizado pelos jovens que se 
encontram privados de liberdade, de Fernando Miranda Arraz (PUC-Minas). Fake news como 
ferramentas de (des)construção da imagem dos sujeitos, de Israel Vieira Pereira (Unisul). 
Aproximações epistêmico-metodológicas entre a psicologia discursiva e a perspectiva 
foucaultiana dos discursos, das pesquisadoras da UFPE, Juliana Catarine Barbosa da Silva e 
Jaileila de Araújo Menezes. Tudo é agro e tá na globo: paráfrase e polissemia em uma 
campanha televisiva, de Débora Pereira Lucas Costa (Unifasipe) e Tânia Pitombo de Oliveira 
(UNEMAT/SINOP). O corpo da mulher brasileira como espaço de construção mítica, escrito 
pelas pesquisadoras da UNICENTRO/PR, Ana Paula Costa Furman e Gabriela Martins Mafra. 
Quesitação do júri: as marcas de subjetividade não explícita em um julgamento de feminicídio, 
de Diego Dias de Oliveira e Rita de Cássia Mendes Pereira, ambos pesquisadores da UESB. 
Situação de rua: análise da cobertura midiática em jornais de salvador, Bahia, Natalia 
Penitente Andrade (USP). 
Na seção Convidados temos o texto Falar de Poesia, depende, de Valéria Motta 
(Univás). 
Na seção Resenha, Andressa Fabrina Klauck (UEMT) apresenta a resenha da seguinte 
obra: POSSENTI, Sírio. Cinco ensaios sobre humor e análise do discurso. São Paulo: 
Parábola, 2018, p. 173. 
Desejamos aos leitores da décima segunda edição da Revista DisSoL ótimas leituras! 
 
Atilio Catosso Salles 
Valéria Motta 
Editores – Revista DisSoL 
DOI: DOI 10.35501/dissol.vi12.896 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
 
 
Sumário 
 
FALAR DE POESIA, DEPENDE ........................................................................................................... 4 
VALÉRIA REGINA AYRES MOTTA…………………….…………………………………..4 
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO A PARTIR DO “FALAR-DE-SI” TRAVESTI
 ............................................................................................................................................................... 12 
RAÍSSA RODRIGUES DE CARVALHO................................................................................13 
A GÍRIA EM UM AMBIENTE SOCIOEDUCATIVO: RECURSO LINGUÍSTICO UTILIZADO 
PELOS JOVENS QUE SE ENCONTRAM PRIVADOS DE LIBERDADE ....................................... 29 
FERNANDO MIRANDA ARRAZ...........................................................................................29 
FAKE NEWS COMO FERRAMENTAS DE (DES)CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DOS SUJEITOS
 ............................................................................................................................................................... 41 
ISRAEL VIEIRA PEREIRA.....................................................................................................41 
APROXIMAÇÕES EPISTÊMICO-METODOLÓGICAS ENTRE A PSICOLOGIA DISCURSIVA E 
A PERSPECTIVA FOUCAULTIANA DOS DISCURSOS ................................................................. 51 
JULIANA CATARINE BARBOSA DA SILVA......................................................................51 
JAILEILA DE ARAÚJO MENEZES........................................................................................51 
TUDO É AGRO E TÁ NA GLOBO: PARÁFRASE E POLISSEMIA EM UMA CAMPANHA 
TELEVISIVA ........................................................................................................................................ 62 
DÉBORA PEREIRA LUCAS COSTA......................................................................................62 
TÂNIA PITOMBO DE OLIVEIRA..........................................................................................62 
O CORPO DA MULHER BRASILEIRA COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO MÍTICA .............. 75 
ANA PAULA COSTA FURMAN............................................................................................75 
GABRIELA MARTINS MAFRA.............................................................................................75 
QUESITAÇÃO DO JÚRI: AS MARCAS DE SUBJETIVIDADE NÃO EXPLÍCITA EM UM 
JULGAMENTO DE FEMINICÍDIO .................................................................................................... 88 
DIEGO DIAS DE OLIVEIRA...................................................................................................88 
RITA DE CÁSSIA MENDES PEREIRA..................................................................................88 
SITUAÇÃO DE RUA: ANÁLISE DA COBERTURA MIDIÁTICA EM JORNAIS DE SALVADOR, 
BAHIA ................................................................................................................................................. 102 
NATALIA PENITENTE ANDRADE.....................................................................................102 
POSSENTI, Sírio. Cinco ensaios sobre humor e análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2018. p.173.
 ............................................................................................................................................................. 121 
ANDRESSA FABRINA KLAUCK........................................................................................121 
 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
4 
 
 
FALAR DE POESIA, DEPENDE 
SPEAKING ABOUT POETRY, IT DEPENDS 
 
VALÉRIA REGINA AYRES MOTTA1 
mottaval165@gmail.com 
 
Resumo: Este escrito só pode pretender narrar minha trajetória de 
pesquisadora no terreno dos estudos da linguagem se assim o fizer de forma 
resumida e incompleta. O que trago aqui passa apenas por breves menções 
à minha primeira experiência como pesquisadora no programa de Mestrado 
em Ciências da Linguagem na Univás, alcança algumas questões centrais 
tratadas em minha tese de doutoramento defendida no IEL/Unicamp, e chega 
a uma rápida menção sobre o objeto de pesquisa de meu interesse no 
programa de pós-doutoramento na Univás. Dada à impossibilidade de dizer 
tudo o que se pode querer em termos de experiência (ou apenas de dizer tudo, 
em qualquer circunstância), falar de um percurso de pesquisa em poucas 
páginas é, de certo modo, se assujeitar ao método (por menos que se 
pretenda), e nesses termos, isso não se daria a não ser a partir de muitas 
exclusões. Resta aqui então, a promessa não formulada. 
Palavras-chave: Poesia; Análise do discurso; Percurso. 
 
COMEÇO. RECOMEÇO. CAMINHO. 
No começo desta apresentação, um agradecimento. Primeiramente ao Atílio, pelo 
convite para essa fala que abre o VI Seminário Integrado de Monografias, Dissertações e Teses 
promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, da Universidade do 
Vale do Sapucaí. E então aos professores do PPGCL, que aproveito também para cumprimentar 
pelo ânimo que reuniram para a organização deste evento. Pelo ir adiante, a despeito das 
circunstâncias extraordinárias em que estamos nos movendo, o que exige um forte trabalho de 
grupo e um grande apreço pela ciência. Ressaltoo valor que se tem um ir adiante, um continuar. 
Das modalidades remotas dos encontros a todo o desmerecimento e ataque à ciência, nós 
pesquisadores seguimos corajosamente por não sermos capazes de abrir mão do que nos move: 
O desejo de pesquisa. 2 
Hoje pretendo falar sobre meu percurso. E de percurso, não se faz pequenas economias. 
Falo a pesquisadores que se encontram em alguma fase de produção de suas pesquisas. Dirijo-
me a quem está escrevendo um trabalho que se pretende, ainda que imaginariamente, fazer um. 
 
1 Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas; Pós-doutoranda no Programa de Ciências em 
Estudos da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí; Membro do grupo de pesquisa PsiPoliS (Unicamp) 
2 Este texto foi, em sua origem, a conferência de abertura que proferi no VI Seminário Integrado de Monografias, 
Dissertações e Teses, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, da Universidade 
do Vale do Sapucaí, em 13 de novembro de 2020. Decidi-me por publicá-lo na íntegra, mantendo inclusive as 
marcas de oralidade. Agradeço a Paula Chiaretti, minha supervisora no programa, a Atílio Salles, Editor Chefe da 
Revista DisSoL, pela publicação deste texto. 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
5 
 
 
Nesse caso, vale ressaltar que um trabalho de investigação tem um início, tem uma continuação, 
e um tem “certo” fecho. Desse “certo fecho”, eu diria, um término que se abre para novos 
começos, e novas continuações. Essa é a trajetória na pesquisa, como dirá Samuel Beckett em 
Fim de Partida “o fim está no começo e no entanto continua-se” 
Mas, começar, recomeçar, não é algo muito simples. Vladimir e Estragon, personagens 
beckettianos em Esperando Godot, que o digam: 
Só temos que recomeçar. 
É, não parece muito complicado. 
O primeiro passo é o mais difícil. 
Podemos começar de qualquer parte. 
Podemos, mas temos que decidir. 
É mesmo. (Beckett) 
Minha decisão para falar hoje sobre minha trajetória de pesquisadora, é começar pela 
poesia. 
Mas falar de poesia, depende. 
Um dia falei de poesia na escola primária, nem sabia ler, mas minha professora nos 
ensinou verso por verso de um poema, e nós o declamamos inteiro ao final. Será que esse final 
foi o começo? Não sei se posso afirmar, mas posso desconfiar. Fiar. Puxar um fio e ver na 
continuação muitas poesias, nas leituras pessoais, nas aulas de inglês que ministrava nesta 
Universidade, e até em pequenos rabiscos por aí. E em Michel Pêcheux, que disse que a “poesia 
não é o domingo do pensamento” (PÊCHEUX, [1983], 2006, p. 35). 
E então, começa minha história com Pêcheux. Sua análise do discurso me pega 
principalmente pela poesia, lá onde ele diz, em parceria com Françoise Gadet, que a língua é 
inatingível porque não é costurada pelas bordas, ele diz mais, diz muito mais quando ainda ousa 
firmar que “embora a linguística não tenha nada a dizer do inconsciente, ela pode assinalar 
pontos na língua em que o sujeito não pode ser representado a não ser como sujeito desejante” 
(GADET; PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 152). 
Foi assim que passei a olhar para aqueles alunos de língua inglesa do curso de letras da 
Universidade do Vale do Sapucaí, onde era então docente: como sujeitos desejantes. E com a 
poesia, aquela do gênero poema, e também essa de Pêcheux, que se vai se construindo em sua 
teorização de modo singular, em outro lugar que o campo estético, que nada tem a ver com o 
gênero poema, mas que foi fundamental para que nosso processo, meu como professora-
pesquisadora e deles como alunos-futuros professores. 
A poesia marcou nosso trabalho de modo tal, que em minha pesquisa de mestrado3 
propus-me analisar três poemas escritos por alunos sujeitos participantes. Sim, eles 
experimentaram poesia, porque experimentaram língua. E nesses experimentares, eles leram 
poemas e escreveram poemas. Fizeram também seus pequenos exercícios gramaticais, mas sem 
a ilusão de que a gramática fosse a língua, e com alguma desconfiança de que a língua não pode 
ser pensada sem a possibilidade de sua poesia. A língua não é costurada pelas bordas, e falar de 
poesia, depende. 
Daquele trabalho, quero ressaltar algo com Gadet e Pêcheux, naquilo que os autores 
afirmam sobre as formas poéticas – “(rimas, jogos de palavras, enigmas...)” e naquilo que eles 
 
3 “Sujeito, língua estrangeira e sentido – experiências discursivas no processo de ensino-aprendizagem de língua 
inglesa em curso de letras”, 2010. 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
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falam sobre a “experimentação maciça das profundezas fonológicas, morfológicas e sintáticas, 
dos equívocos do sentido com a matéria verbal” (GADET; PÊCHEUX, [1981] 2004, p. 73). 
Insisto em chamar de experiência o que os alunos viverem, de tudo isso que Gadet e Pêcheux 
chamam formas poéticas. Aqueles alunos as experimentaram nas atividades de leituras de 
poemas, de sessões de filmes, escuta de músicas etc. também em seus pequenos exercícios de 
traduções, etc. 
Gostaria de ressaltar o modo como essas experiências produziram efeitos em seus 
trabalhos autorais, que hoje compreendo como atos de autorização, na medida em que se 
autorizaram a si mesmos a escreverem poesias em língua dita estrangeria: Eles se lançaram, ao 
saber, da língua, daquela língua, à sua poesia. O que é da ordem da poesia, também Bataille 
nos dirá: “Falei de experiência, não falei de poesia. Não poderia tê-lo feito sem penetrar mais 
adiante num dédalo intelectual: todos nós sentimos a poesia. Ela nos funda, mas não sabemos 
falar dela” (BATAILLE, 2013, p. 47) 
Na continuação, ao falar de poesia, Bataille nos faz experimentá-la nos brindando com 
lindos de versos, de Rimbaud (Apud, BATAILLE, 2013, p. 48): 
Elle est retrouvée 
Quoi? L'éternité. 
C'est la mer allée 
avec le soleil. 
E o autor prossegue, e a poesia persiste com sua potência de nos conduzir a algum lugar, 
não do sem sentido, ou do sentido em excesso, mas do sentido que não cessa de não se escrever: 
A poesia conduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, 
à confusão dos objetos distintos. Ela nos conduz à eternidade, nos conduz à 
morte e, pela morte, à continuidade: a poesia é a eternidade. É o mar partido 
com o sol. (BATAILLE, 2013, p. 48). 
A escrita poética pensada como um gesto de autorização, tal como a considerei naquelas 
condições de produção de aprendizagem de língua estrangeira, ancora-se na materialidade de 
uma escrita que não vem do outro, mas do Outro. De uma escrita que se perde na linguagem, 
onde os jogos com a sintaxe e o léxico que produzem enigmas é a própria liberdade, essa que 
se tem ao reconhecer-se estrangeiro, mas também na própria língua materna. 
É mesmo Pêcheux quem nos chama a atenção para o poético como fato incontornável 
na língua, e para um trabalho com a língua que jamais poderá ser pensado sem que se considere 
a possibilidade de sua poesia. A Língua não é costurada pelas bordas. E Essa é a dimensão da 
língua com a qual todo falante tem que se haver o tempo todo – mesmo em aulas de gramática. 
Trago essa discussão que retoma sentidos que se produziram em minha pesquisa de 
mestrado, tendo em vista algumas elaborações de Pêcheux sobre a poesia, na direção de destacar 
a importância de um processo, sobretudo quando se trata de mostrar que nunca é fortuito ou 
casual a escolha de um objeto. É sempre por afeto. Efeitos que são afetos, dirá Lacan. E a 
poesia faz, diz o autor. O que faz a poesia? Perguntei-me. O que faz a poesia na obra de 
Pêcheux? Segui indagando, e propus pesquisar em meu doutorado “O poético na análise do 
discurso de Michel Pêcheux”4. 
 
4 Minha tese de doutoramento, O poético na análise do discurso de Michel Pêcheux, foi defendida no IEL – 
Unicamp em 2018 e publicada em formato de livro pela Editora Pontes em 2019, com o mesmo título. 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
7 
 
 
“O poético não é o domingo do pensamento”,“Não há linguagem poética”, “Nada da 
poesia é estranho à língua”, “Nenhuma língua pode ser pensada sem a possibilidade de sua 
poesia” e “Talvez houvesse somente um mito do poeta”. Essas afirmações produziram em mim 
uma falta e, ir lá ver, era uma questão de tempo, lógico! Fui à obra! À obra cara de Pêcheux. E 
o preço de ir à obra e ver, foi cobrado com o trabalho de constituição de um arquivo de leitura. 
Por meio dessa constituição de arquivo, se fez possível avançar para o tempo de compreender. 
A primeira questão fundamental para realizar um trabalho com o arquivo que me foi 
necessária compreender, foi a de que o arquivo não está pronto. Ele não é uma reunião de textos 
de onde a verdade sobre o objeto emergirá. Antes, em uma primeira leitura, o funcionamento 
do arquivo é opaco. Essa visada que é tanto de Pêcheux quanto de Guilhaumou e Maldidier está 
de acordo com uma compreensão de ciência enquanto historicidade. A constituição deste 
arquivo de leitura, por esse solo, exigiu-me, antes de mais nada, discutir uma outra questão: a 
do lugar que Pêcheux ocupa frente à História das Ciências, que logo cedo se pode observar em 
seu projeto teórico, vai na direção oposta da epistemologia positivista, cuja pedra angular é uma 
“ciência da ciência”. Essa reflexão foi de grande importância para definir o lugar em que eu me 
instalaria nesta leitura de arquivo. 
O texto de Dominique Lecourt (LECOURT, 1980), Para uma crítica da epistemologia, 
em que o autor destaca o trabalho de Bachelard e Canguilhem, e também de Foucault, serviu-
me de base para esta reflexão. Desse texto de Lecourt, importa aqui destacar sua discussão sobre 
o não positivismo e o antievolucionismo da epistemologia histórica. Também as questões sobre 
as categorias de erro e de verdade a partir da obra de Bachelard, bem como as questões sobre a 
recusa de se encontrar um precursor para uma descoberta científica e a recusa de se considerar 
a história das ciências como uma sucessão de acasos, em concordância com Canguilhem, são 
destaques importantes a serem feitos, uma vez que essas compreensões epistemológicas, além 
de marcar a trajetória de Michel Pêcheux, marcariam o movimento que faria em minha leitura 
de arquivo. 
Entretanto, entre pretender e fazer, estava o compreender. Ler a respeito e escrever a 
respeito dos conceitos que permeariam minha lida com o arquivo não me pouparam de levar 
uma coça do arquivo. Ainda que me propusesse a traçar uma rota de leitura que não se guiasse 
por uma cronologia, que não se valesse de uma acumulação de textos, mas se movesse em 
espaços de tensões e contradições, me vi (e me viram) pega pela evidência de uma pergunta, 
que textualmente não se formulava, mas produzia efeitos em minha escrita. Eis a pergunta: “O 
que o autor Michel Pêcheux quis dizer sobre o poético, o poeta, a poesia em sua análise do 
discurso?” 
Des-supor o autor de seu saber, condição para o que Lacan (LACAN, [1972-73], 2008) 
chama de leitura, e que nas palavras de Pêcheux (PÊCHEUX [1984], 2014) se deixa interpretar 
como condição para se escapar da leitura teológica e do poder do Mestre, foi uma tarefa 
necessária, e muito difícil. Uma forma que encontrei para escapar a essa armadilha do 
conteudismo, foi a de reformular a questão. Então passei a indagar sobre os modos como o 
poético vai se construindo em determinados lugares na teorização de Michel Pêcheux. Ao invés 
de olhar para a lua, passei a olhar para o dedo. 
Esta nova formulação não desempenhou o papel de uma barreira simbólica que 
interditasse meu desejo de completude, mas possibilitou-me continuar e enfrentar o encontro 
com a falta de resposta (ou com a resposta sempre lacunar). Continuar, tendo em vista 
compreender como o poético vai se construindo em determinados lugares na teorização de 
Michel Pêcheux me permitiu enfrentar uma outra questão que me movera: o que faz a poesia 
na teorização de Pêcheux? Porque falar de poesia, depende. 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
8 
 
 
Ao voltar à obra, me vi diante da necessidade de voltar também ao capítulo que eu já 
havia escrito sobre as conjunturas teórico-políticas da AD. Isso é importante de frisar. Havia 
construído dois capítulos teóricos, que considero fundamentais em meu percurso de pesquisa, 
entretanto, eles figuravam como textos independentes de minha questão central. De forma 
intuitiva, quase em estado bruto, minha escrita sobrevivia, reclamando o esforço de demonstrar 
a importância do que vinha antes, na relação com aquilo que estaria por vir. 
A compreensão sobre o estruturalismo, mais detidamente sobre estruturalismo de 
Pêcheux, e mais fundamentalmente ainda, o antiestruturalismo de Pêcheux, forneceu o fio que 
me conduziria ao poético ou, melhor dizendo, que me levaria da ausência do poético em 
trabalhos da década de 1960 e 1970. E aqui, uma importante exceção – a poesia irrompe já, 
desde as verdades de La Palice – e não cessa de se escrever nos textos da década de 1980. Aliás, 
sobre esta questão, uma observação muito importante: a ausência do poético fora sentida mais 
fortemente em virtude da própria força com que irrompe. E irromper não quer dizer surgir do 
nada. 
Falo da irrupção como o imprevisto de um discurso-outro, do outro, que se pode 
observar em um título como Les vérites de la Palice, nas próprias estrofes de uma música que 
é recrutada na composição desse título enigmático, ou num subtítulo, como A dupla face do 
gigante Maiakovski, além de muitas formulações em que poesia e correlatos se articulam 
fortemente à discussões sobre a língua, o sujeito e à história. Porque, falar de poesia, depende. 
Falo ainda de irrupção como o imprevisto que, ao colocar à mostra a falha no controle 
da língua, portanto a falha nos procedimentos de análise, chama a atenção para uma nova forma 
de narcisismo teórico – essa do movimento estruturalista, que Pêcheux interpreta e escreve 
como “o narcisismo da estrutura”. 
Achei interessante puxar esse fio e tentei com ele produzir uma certa costura. 
Logo cedo, na tessitura desse capítulo sobre as conjunturas teórico-políticas da AD de 
Pêcheux, foram-se formando efeitos de exclamação e pontos de aberturas para que alguns 
sentidos sobre o poético pudessem ser produzidos mais adiante. Nessa direção, chamou-me a 
atenção, além da crítica de Pêcheux, desde sua AAD-69, ao estruturalismo generalizado, por 
deixar na ignorância as relações sociais abordadas no materialismo histórico, também sua 
adesão ao movimento, o reconhecendo como um programa polêmico de trabalho, que abrira a 
questão de saber o que é falar, escutar e ler. 
Mais adiante em sua teorização, mais especificamente na década de 1980, Pêcheux 
retomará diversas vezes a questão do estruturalismo e dirá com grande ênfase das 
consequências de sua relação com o movimento. Dessas retomadas de Pêcheux, destaquei 
algumas formulações que considerei fundamentais para compreender o lugar que o poético foi 
ocupando em sua teoria. Debrucei-me sobre algumas dessas formulações e dei visibilidade ao 
que Pêcheux denuncia como “o narcisismo da estrutura”. 
A formulação “narcisismo da estrutura” vem acompanhada de uma outra que me 
chamou a atenção – trata-se da expressão “ares de discurso sem sujeito”. Essas duas expressões 
se articulam à crítica que Pêcheux tece à proposta de trabalho de alguns movimentos 
estruturalistas, que simulam processos matemáticos. Tal crítica alcança sua proposta de análise: 
Pêcheux dirá que, em virtude de sua adesão ao movimento estruturalista algo ficara de fora da 
construção de seu dispositivo de leitura. 
Perguntei-me, então: o que ficara de fora? Por que ficara fora? Teria isto algo a ver com 
o poético? A essa última pergunta, a resposta foi: sim! Mas era preciso elaborá-la, construí-la. 
Essa construção se deu a partir da leitura de alguns enunciados que recortei de alguns de seus 
 
Pouso Alegre, ano VII, no 12, jul.-dez./2020 –ISSN 2359-2192 
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textos da década de 1980, momento emque Pêcheux já se distanciara do movimento 
estruturalista, e também de seu artigo de retificação escrito com Catherine Fuchs para a 
Langages 37 em março de 1975, intitulado “A propósito da análise automática do discurso: 
atualização e perspectivas”. 
Prossegui minha leitura ancorada por uma importante assunção de Pêcheux, sobre o 
quanto seu empreendimento havia cedido ao narcisismo da estrutura, à alta custa da exclusão 
do sujeito, mais especificamente se referindo à sua maquinaria discursiva da década de 1960. 
Por esse solo, procurei compreender o que impossibilitara que algo do poético fosse formulável 
em determinados lugares em seu projeto teórico. 
Vali-me de recortes que selecionei do artigo de Langages 37 de março de 1975, e ainda 
de recortes de textos da década de 1980, sendo o principal deles, A Língua Inatingível e me 
dediquei a refletir sobre o tratamento que Pêcheux da à questão da ambiguidade e do erro nesses 
trabalhos de diferentes momentos de sua teorização. 
Do artigo de retificação de março de 1975, destaquei as formulações “visando eliminar 
certas ambiguidades, retificar certos erros”, e “para evitar erros de interpretação, acarretados 
pela ambiguidade de certas formulações”, em que pude ler que Pêcheux, na injunção do próprio 
funcionamento do discurso científico, insistia em asseverar a necessidade da desambiguização 
e da retificação do erro, ou mesmo, da evitação do erro. 
Chamou-me a atenção nessas formulações a articulação da ambiguidade com a 
interpretação, mais especificamente, com os erros de interpretação, e então indaguei sobre o 
lugar do poético em um debate que tematiza a interpretação de dois pontos de vista: o do acerto 
e o do erro. E do lado do acerto, uma exclusão radical: a da ambiguidade. 
Pêcheux responderá a essa pergunta em alguns trabalhos da década de 1980, como em 
a Língua Inatingível, do qual destaquei a afirmativa de que o equívoco e a poesia são 
coextensivos da língua. Nesse caso, considerar a possibilidade de desambiguização e de 
descarte do erro, como resíduo de uma operação lógica com a língua, não é sustentável. 
O que concluí dessa análise foi que, se a eliminação da ambiguidade em uma operação 
lógica com a língua pôde ser considerada no texto de março de 1975 como uma saída para evitar 
erros de interpretação, em A Língua Inatingível (1981), o que se destaca é exatamente o lugar 
que o equívoco vem ocupar na teorização de Pêcheux, como fato estrutural implicado pela 
ordem simbólica. Isso diz de um deslocamento que produziu efeitos importantes no projeto de 
leitura de Pêcheux no que toca, sobretudo, à questão da interpretação. Ou seja, a interpretação 
que é compreendida sob o ponto de vista do erro e do acerto, só é possível em um lugar de 
teorização em que os procedimentos da AD estiveram bastante próximos das abordagens 
estruturalistas, das evidências empírico-lógicas da leitura. 
Já, em A Língua Inatingível, em Sobre a (des)construção das teorias linguísticas, em 
ler o arquivo hoje, e em Discurso: estrutura ou acontecimento, Pêcheux estará com a tese do 
valor de Saussure, com lalíngua de Lacan, com Jakobson (por abordar francamente as questões 
da poética), e sobretudo com Milner (em inúmeras menções) para postular que a língua não 
pode ser pensada sem que se considere a possibilidade de sua poesia. A poesia aí pensada em 
relação de correspondência com o equívoco e do lado da falha, do deslize, da ambiguidade, 
como constitutivos da língua. Então, falar de poesia, depende. 
O que tentei demonstrar com esta discussão sobre o estatuto do erro e da ambiguidade 
no trabalho de Pêcheux é que a crítica de Pêcheux aos procedimentos de leitura das abordagens 
estruturalistas, ao narcisismo da estrutura, aos ares de discurso sem sujeito, certamente está 
ligada ao acontecimento do poético no campo discursivo. 
 
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Destaco assim que Pêcheux, ao criticar o movimento, marca de forma radical uma 
posição teórico poética da Análise do Discurso materialista, construindo um terreno outro 
que o do estruturalismo, criticando principalmente o ensurdecimento do estruturalismo ao 
funcionamento próprio da língua, o que o levará a tomar para si duas teses de Milner: “nada da 
poesia é estranho à língua”; e “nenhuma língua pode ser pensada completamente, se aí não se 
integra a possibilidade de sua poesia.” (PÊCHEUX [1983] 2006, p. 53). Isso impõe, às 
pesquisas em linguística, segundo Pêcheux, e eu acrescento, impôs às suas pesquisas, a 
necessidade de construir procedimentos capazes de abordar explicitamente o fato linguístico do 
equívoco como estruturante da ordem simbólica. Por essa via, poético e equívoco estão juntos 
constitutivamente. 
A crítica que Pêcheux tece à surdez do estruturalismo à poesia da língua avança sobre o 
terreno político. Nesse terreno, Pêcheux acusa o estruturalismo de aristocrático e coloca o 
acento de sua denúncia na posição teórico poética do movimento. Cito Pêcheux: 
no limite, os proletários, as massas, o povo... teriam tal necessidade vital de 
universos logicamente estabilizados que os jogos de ordem simbólica não os 
concerniriam! Neste ponto preciso, a posição teórico poética do movimento 
estruturalista é insuportável (ibid., p. 53 – grifos meus, itálico do autor). 
Essa crítica de Michel Pêcheux também indica algo da construção de sua própria posição 
teórico poética no campo materialista do discurso. Essa posição reconhece os efeitos que os 
jogos simbólicos produzem no âmbito político, reconhecendo assim, que há o real da história. 
Por essa via, poético e político estão juntos, constitutivamente. 
Essa posição política frente ao poético reconhece ainda que entre a regra e o deslize, 
está o sujeito de desejo. É uma posição que não reduz os proletários e as massas à condição de 
máquinas, mas os coloca ao lado da figura do poeta, ele mesmo como trabalhador, do lado de 
cá da luta de classes, como podemos ler nesses versos de Maiakovski citados por Gadet e 
Pêcheux: 
“O trabalho é vivo e novo 
Oradores tagarelas 
Ao moinho! 
Aos moleiros! 
Que a água dos discursos faça girar as mós!” 
E o discurso gira: 
“Tua cabeça se vira: o novo amor! 
Tua cabeça se volta, – o novo amor!” 
O amor, dirá Lacan (LACAN, [1972-73], 2008, p. 22), é nesse poema de Rimbaud, 
signo de que se troca de razão. Por essa orientação, pude chegar ao terceiro tempo. O tempo de 
concluir. Conclui que a poesia na obra de Pêcheux se dirige a essa nova razão: “Mudamos de 
razão, mudamos de discurso” (LACAN, [1972-73], 2008, p. 23). 
O que afirmei é que o poético é uma aposta alta no projeto da Análise do Discurso. 
Considerar a poesia como constitutiva da linguagem impôs à sua disciplina que ela abrisse mão 
da obsessão pelas paráfrases e distanciasse do narcisismo da estrutura ou do discurso sem 
sujeito, tomando partido por uma leitura que se sustentasse pela ética e pela responsabilidade. 
 
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A questão da ética e da responsabilidade é posta então na linha de frente da disciplina 
de interpretação proposta por Pêcheux e advoga a favor de um compromisso a ser assumido 
com o real: “um real constitutivamente estranho à univocidade lógica” (PÊCHEUX, [1983] 
2006, p. 43). Por essa via, negar o equívoco como constitutivo da linguagem seria o mesmo que 
acreditar em metalinguagem, portanto, acreditar que sempre se pode saber do que se fala. Seria 
negar, assim, “o ato de interpretação no próprio momento em que ele aparece” – seria então 
acreditar em fantasma – mais propriamente “no fantasma da ciência régia” (ibid., p. 53). 
Por meio dessas considerações, e amparada pelo conceito de ruptura tal como 
apresentado no campo materialista, indaguei se a irrupção do poético teria produzido uma 
ruptura epistemológica na história da Análise do Discurso materialista. A resposta que me 
satisfaz é a de que o discurso, ao girar com a poesia, com a força comque o poético se formula 
e se instala no interior da teoria de Pêcheux, e passa a fazer parte das condições de produção do 
campo discursivo, passa a falar por outra razão: o campo discursivo, ao recusar o estruturalismo, 
se (re) formula-se a partir do materialismo. 
Esse é o fim provisório de uma pesquisa no campo discursivo. Nesse fim, encerra-se um 
novo começo, que parte da premissa de que a poesia não é estranha à história, como vimos com 
Pêcheux. História5 é agora o significante recortado da cadeia. História que, se uma vez iniciada 
com a poesia, e com Pêcheux, encontra sua continuidade com Freud, pelas narrativas. 
Inicio esta incursão pelos escritos de Freud a partir das seguintes indagações: O que é o 
inconsciente freudiano? Qual via foi trilhada pelo precursor da psicanálise para apresentar seu 
conceito de inconsciente? Como Freud constrói sua teoria do aparelho psíquico? Essas 
perguntas comparecem nesta atual proposta de estudos para serem de certo modo, tocadas. De 
certo modo, não de qualquer modo. Minha escolha é pela via da história, assim, na sequência, 
indago: O que Freud tem a fazer na história? Reconheço que seja este um tema bastante vasto 
e ainda bastante explorado por estudiosos historiadores e psicanalistas. Meu interesse abordá-
lo poderia ser então compreendido como um desejo investigativo de percorrer alguns caminhos 
já trilhados anteriormente por outros pesquisadores e quem sabe, apresentar uma leitura que 
seja significativa para meu próprio processo de formação em psicanálise. 
Mas essa história ficará para uma próxima conversa. 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
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BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Fábio de Souza Andrade. São Paulo: 
Cosac Naify, 2005. 
______. Malone morre. São Paulo: Códex, 2004. 
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GADET F.; PÊCHEUX, M. (1981) A Língua Inatingível – o discurso na história da linguística. 
Trad. Bethânia Mariani. Campinas: Pontes, 2004. 
LACAN, Jacques. (1972-3) O seminário, livro 20. mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. 
LECOURT, Dominique. Para uma crítica da epistemologia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1980. 
 
5 “Um estudo sobre a história nos escritos de Freud” é o tema proposto para minha pesquisa de pós-doutoramento 
PNPD – que está em curso no Programa de Ciências da Linguagem – PPGCL- Univás /CAPES, sob a supervisão 
da profa. Dra. Paula Chiaretti.. 
 
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MOTTA, V.R.A. O poético na análise do discurso DE Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes 
Ediores, 2019. 
______. Sujeito, língua estrangeira e sentido – Experiências discursivas no processo de ensino-
aprendizagem de língua inglesa em curso de Letras. Dissertação (Mestrado) – Universidade do 
Vale do Sapucaí. Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem. Pouso Alegre, 2010. 
PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e discurso – uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni 
Pulcinelli Orlandi [et al.] Campinas: Editora da Unicamp, 2009. 
______. (1982) Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.) [et al.]. Gestos de 
leitura: da história no discurso. Trad. Maria das Graças Lopes Morin do Amaral. Campinas, SP: 
Editora da Unicamp, 2010. p. 49-59. 
______. (1982) Sobre a (des-)construção das teorias linguísticas. In: Línguas e Instrumentos 
Linguísticos. Editora Pontes, 1999. p. 7-32. 
______. (1983) Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas-
SP: Pontes, 2006. 
______. (1984) Sobre os contextos epistemológicos da Análise de Discurso. In: ORLANDI, 
Eni. Análise de Discurso – Michel Pêcheux. Trad. Eni Orlandi. Editora Pontes, 2011. p. 283-
296. 
Artigo recebido em: 19/11/2020 
Aprovação final: 30/11/2020 
DOI 10.35501/dissol.vi12.894 
 
 
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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO 
A PARTIR DO “FALAR-DE-SI” TRAVESTI6 
THE CONSTRUCTION OF GENDER IDENTITY THROUGH THE 
“TALK-ABOUT-ITSELF” TRANSVESTITE 
 
RAÍSSA RODRIGUES DE CARVALHO7 
raissacarvalho.psi@gmail.com 
 
Resumo: Com foco na identidade de gênero e como ela se articula e se 
relaciona com a vivência da sexualidade de acordo com o imaginário (por 
meio das relações de linguagem), este artigo está embasado na teoria da 
Análise de Discurso e na Psicanálise. Na tentativa de explorar condições que 
podem estar relacionadas à instituição e manutenção do gênero, o projeto-
documentário “A esquina de Monalisa” constituiu o corpus analítico da 
pesquisa, por meio da qual pôde-se notar a importância do outro e sua 
posição enquanto elemento constituinte do sujeito, seu papel nas relações de 
linguagem e concepções acerca do gênero. Observou-se ainda que o trabalho 
é uma ferramenta por meio da qual o sujeito se vê participante das relações 
de poder. Finalmente, a noção binária, unívoca e causal entre 
sexo/gênero/desejo tende a implicar nas interpretações de gênero, mantendo 
estereótipos e fortalecendo, “subversivamente”, “identidades” que o padrão 
sócio-normativo produz e mantém – negando existir. 
Palavras-chave: discurso; Psicanálise; identidade de gênero; sujeito; 
travesti; 
 
Abstract: Focused on gender identity and how it articulates and relates to the 
experience of sexuality according to the imaginary (through language 
relations), this article is based on the Discourse Analysis theory and 
Psychoanalysis. In attempt to explore conditions that may be related to the 
institution and maintenance of gender, the documentary project “A esquina 
de Monalisa” constituted the analytical corpus of this research, through 
which it was possible to notice the importance of the other and his position 
as constituent element of the subject, its role in language relations and 
conceptions about gender. It was also observed that the work is a tool through 
which the subject is participant of the relations of power. Finally, the binary, 
 
6 O artigo é resultante da segunda fase da pesquisa de Iniciação Científica “Imaginários da Sexualidade”, sob 
orientação da Profa. Dra. Luciana Nogueira (PPGCL UNIVAS). 
*O blog mencionado e com título suprimido no texto é o “Imaginários da sexualidade: discurso e psicanálise - 
notas de pesquisas em andamento”; 
7 Psicóloga graduada pela Universidade do Vale do Sapucaí em 2019, sendo que a pesquisa foi desenvolvida 
durante o período de graduação e pertence às áreas de concentração Psicanálise e Análise de Discurso. Os estudos 
foram desenvolvidos com o incentivo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). 
 
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univocal and causal notion between sex/gender/desire tends to imply in 
gender interpretations, maintaining stereotypes and strengthening, 
"subversively", "identities" that the socio-normative pattern produces and 
maintains - denying its existence. 
Keywords: discourse; Psychoanalysis; gender identity; subject; transvestite; 
 
Introdução 
O presente artigo está vinculado à segunda fase da pesquisa de Iniciação Científica “X 
(a ser especificado após a avaliação pelos pares)” – projeto iniciado em 2016 e que buscou 
investigar os sentidos e o papel da sexualidade e suas articulações que permeiam o imaginário 
social na contemporaneidade. 
Partindo da ideia de que a linguagem dá corpo e sentido às manifestações subjetivas e 
sociais, foram analisados recortes de obras veiculadas pela mídia levando em consideração a 
Análise de Discurso, a Psicologia e a Psicanálise. Além disso, foram compartilhadas notas de 
estudo por meio de uma plataforma virtual, que é o blogue “X (a ser especificado após a 
avaliação pelos pares)”. Este blogue reúne leituras, vídeos e materiais utilizados e discutidos 
entre as participantes no decorrer das duas fases da pesquisa. 
Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, a segunda 
fase deste projeto tomoucomo foco a identidade de gênero e como ela se articula e se relaciona 
com a vivência da sexualidade de acordo com o imaginário – que funciona nas relações de 
linguagem. Buscamos, desta forma, estudar e explorar as situações e condições que podem estar 
relacionadas à instituição e manutenção do gênero, sempre considerando a constituição da 
identidade de gênero e como o sujeito se constitui na linguagem. 
Nesta etapa da pesquisa, o projeto-documentário A esquina de Monalisa constitui o 
corpus de análise: foram recortadas cenas do documentário – que dá voz a cinco travestis de 
Botucatu - SP – a fim de estudar, a partir do “falar-de-si”, como estas se significam enquanto 
sujeitos em e de seu discurso. 
Fundamentando-nos na teoria da Análise de Discurso, buscamos entender, a partir do 
discurso das travestis participantes do referido documentário, as articulações e condições que 
constituem e mantêm a identidade – especialmente a de gênero, e como se significam enquanto 
sujeitos em e de seu discurso. 
Observa-se, neste foco teórico, que o sujeito não se resume somente ao que diz sobre si 
e demais temas que o cercam - mas também àquilo que não diz, e os contextos nos quais estão 
inseridos: ele próprio e o discurso. O discurso, enquanto constituído com/para/pelo e junto ao 
sujeito, traz elementos históricos, ideológicos, culturais, econômicos, religiosos e políticos 
inerentes a ele, pois ambos integram igualmente estes contextos (históricos, culturais, 
sociais...). Não há discurso sem sujeito, assim como não há sujeito sem ideologia, como discorre 
Orlandi (2010). 
Ainda é importante lembrar que, na confecção deste artigo, levaram-se em conta 
também as concepções da binaridade e dicotomia que prevalecem diante das noções de gênero, 
conforme Butler (2016). A matriz sócio-normativa das relações causais de gênero/sexo/desejo 
fortalece o que a autora chama de “heterossexualidade compulsória”, além de promover uma 
noção de que algumas identidades seriam, de alguma forma, subversivas, uma vez que não 
correspondem a tais padrões. 
 
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Estes padrões equivalem ao que a autora denomina “gêneros inteligíveis”, relação 
causal em que o gênero seria, obrigatoriamente, decorrente do sexo (anatômico) e, o desejo, 
resultante do sexo e, portanto, do gênero. Aquilo que estiver fora desta matriz tende a ser 
considerado às margens da patologia e degenerescência, “proibidos” de existirem, 
“silenciados”. Estas noções também nos despertaram uma associação ao dispositivo da 
sexualidade, discutido por Foucault (1976). 
Além disso, estudos paralelos em cumprimento às disciplinas do curso de Psicologia da 
Universidade do Vale do Sapucaí auxiliaram na busca da compreensão do sujeito, 
principalmente concepções pertencentes à Psicanálise. 
APRESENTAÇÃO DO MATERIAL DE PESQUISA 
A esquina de Monalisa é o nome de um projeto realizado na cidade de Botucatu, São 
Paulo, sob a iniciativa de Rodrigo Casali. A partir de pesquisas, leituras, entrevistas e trabalhos 
em equipe, foram confeccionados livro e vídeo documentários a respeito da questão da 
identidade e representação travestis (utilizando o método de pesquisa em história oral8), tendo 
sido ambos lançados no dia 25 de janeiro 2013. O projeto teve o apoio do Programa de Ação 
Cultural (PROAC), da Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para a Diversidade, da 
Secretaria Estadual da Cultura, Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura Municipal de 
Botucatu e também da Revista Ethos. 
O documentário9, corpus de análise utilizado neste artigo, retrata um pouco da rotina, 
vida pessoal, profissional e amorosa de cinco travestis de Botucatu - SP: Viviana, Michelli, 
Vivian, Carlinhos e Babi. 
Todos estes sujeitos participantes da pesquisa possuem suas peculiaridades, inclusive 
em seu pensamento sobre o que é ser, de fato, travesti. Vê-se como a identidade e a 
representação não são fatores isolados, mas sim articulados em um processo de constantes 
construções dependentes de questões sociais, históricas, ideológicas, econômicas, culturais, 
psicológicas, emocionais e afetivas de cada sujeito. Esses processos, ainda, são sempre 
articulados e se dão pela/na linguagem, que é uma mediadora por meio da qual o sujeito se 
significa e é significado. A seguir, serão brevemente apresentadas as participantes do projeto e 
suas concepções e/ou vivências de gênero e suas articulações. 
Michelli, por exemplo, atua como técnica de enfermagem em um hospital universitário 
de Botucatu e, conforme ela verbaliza, valoriza em primeiro lugar sua profissão e o amor de 
sua mãe (ela inclusive se emociona, em determinado momento, ao falar da mãe como a pessoa 
que “sempre lhe deu amor e carinho”). É nesse lugar que ocupa profissionalmente que ela se 
enxerga e se significa como pessoa, como frisa ao dizer que “a enfermeira Michelli é mais 
importante que a Michelli travesti” (CASALI, 2012, p.10). 
Carlinhos, por sua vez, deixa clara a importância da religião em sua vida e em como ele 
se vê. O Candomblé foi a única religião em que se sentiu aceito e, ao se autodenominar “pai” 
de santo e utilizar seu nome normalmente, mesmo que goste e se vista de forma dita “feminina”, 
demonstra singularidade em relação às demais participantes. A interpretação e vivência de seu 
 
8 Metodologia de pesquisa decorrente da realização de entrevistas gravadas com testemunhas/pessoas que possam 
contribuir com critérios preestabelecidos pelo objetivo de algum projeto já existente. 
9 Vale ressaltar que, durante a pesquisa a que se refere este artigo, foram utilizados recortes de falas das 
participantes do documentário que já estão transcritos no livro do mesmo autor do documentário que organizou o 
projeto em forma de vídeo documentário e também em livro – ambas as obras estão disponíveis no blogue que 
reúne materiais e informações sobre o projeto. 
 
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“gênero” vai além da binaridade esperada socialmente – quanto a exercer uma personagem dita 
ou feminina ou masculina, somente. Tal assunto se refere às menções de Butler (2016) a 
respeito da univocidade do sexo e do gênero e as relações causais entre sexo/gênero/desejo e 
será retomado no decorrer do artigo. 
Babi é uma profissional do sexo e, segundo ela, decidiu ser travesti porque era muito 
difícil ser um “gay afeminado”. Ela acredita que, como travesti, sofre menos preconceito do 
que sofreria se continuasse de tal forma. Babi também diz que prefere trabalhar com programas 
porque já sofreu discriminações nas empresas onde trabalhou por ser travesti. 
Vivian afirma ter “vestido uma armadura” na tentativa de não se abalar com o 
preconceito e as dificuldades de ser travesti. Ela trabalha como agente de saúde no programa 
de DST/AIDS, levando informações sobre as doenças aos moradores das periferias de Botucatu, 
a fim de promover maior prevenção por tais comunidades. Também realiza trabalhos de 
promoção social e de saúde para populações em situação de risco e vulnerabilidade social. 
Poder exercer esse trabalho e trazer ganhos à sociedade a faz se sentir “uma cidadã completa”, 
como expressa no livro-documentário organizado por Rodrigo Casali (2012, p. 39). 
Viviana é diarista e também trabalha como cabeleireira. Ela relata sua dificuldade em 
assumir a travestilidade10, o que considerava ainda mais difícil do que ter se assumido como 
homossexual à família. Como bem lembra parte dos dizeres de Viviana, a travesti, diariamente, 
lembra a sociedade que a identidade vai além da sexualização dos corpos – simplesmente pelo 
fato de existir e ser quem é. 
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDENTIDADE DE GÊNERO 
A formação da identidade está ligada a diversos fatores e, na Psicologia, é estudada de 
diferentes formas de acordo com suas abordagens. Considerando a Psicanálise e o nó 
borromeano de Lacan retratando a “tríplice aliança” – uma relação simultânea do Real, do 
Imaginário edo Simbólico, o sujeito é constantemente afetado pelas ordens do inconsciente, da 
linguagem e da ideologia (FERREIRA, 2010). 
Neste contexto, ele se vê refém de um jogo de identificações – seja no âmbito familiar, 
social, cultural, histórico, econômico e ideológico, sendo apresentado constantemente a ideais 
identitários e, a partir de sua identificação com tais ideais, moldam-se seus desejos, crenças, 
participação em grupos sociais e religiosos. Tão cedo recebe um nome pelo qual atende e, em 
breve, vê-se acometido a se identificar com a ideologia dominante. O Outro, nesta perspectiva 
relacional, é considerado um referencial, uma forma de possibilitar a formação da identidade a 
partir de tais laços identitários, estruturados pela relação entre sujeito e significante – sendo o 
significante qualquer elemento isolado que possa vir a ter um sentido ou significado, quer seja 
uma imagem ou até mesmo um gesto, desde que se articule a uma estrutura combinatória de 
representações (STARNINO, 2016; SOLER, 2004 apud STARNINO, 2016)11. 
Assim sendo, o sujeito tem as referências do que é feminino e masculino a partir do 
outro. Em geral, primeiramente, daqueles que exercem a função paterna e materna (embora a 
constituição familiar e tais funções não sejam, obrigatoriamente, preenchidas por “um homem” 
e “uma mulher” – o que é tradicionalmente associado ao masculino e ao feminino, 
respectivamente), em seguida, junto à cultura, à linguagem, ao discurso... participando das 
 
10 Hábito de vestir-se com roupas e acessórios tradicionalmente associados a um gênero diferente, não condizente 
ao sexo biológico do sujeito (considerando o gênero como fenômeno binário e dependente do sexo). Referido no 
DSM-5 (APA, 2014) como travestismo/cross-dressing. 
11 SOLER, Colette. Ce que Lacan disait des femmes. Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2004. 
 
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relações de identificação (TOLEDO, 2018). Nesse sentido, mesmo que o sujeito não 
“concorde” ou “aja” da mesma forma que o outro, ele necessita desta referência – para dizer 
que “não sou” determinada coisa, primeiramente alguém me disse que “sou”, esta “coisa” foi 
atribuída a mim de alguma maneira. É a partir da igualdade que nos diferenciamos (TOLEDO, 
2017). 
Considerando tais fatores sociais, religiosos, psicológicos, simbólicos, históricos, 
políticos e ideológicos, o que é, afinal, “ser mulher”? O que é vestir-se de forma dita feminina? 
O que é “sentir-se feminina”? Que fenômenos – sociais, culturais, religiosos, ideológicos, 
históricos, discursivos... – se articulam para contribuir com a ideia de que o que não é masculino 
(afinal, o que seria, então, masculino?) é, obrigatoriamente, feminino? 
Tal “obrigatoriedade” parte da binaridade biológica quanto aos sexos (macho/fêmea) e 
a atribuição genérica de tal condição quanto à vivência sexual dos sujeitos, atrelando assim toda 
a “nebulosa da sexualidade”, como nomeia Cavalcante (2014), a tal fator biológico – concepção 
causal descrita por Butler (2016) como “gêneros inteligíveis”. Desta forma, todos aqueles que 
exerçam “comportamentos na esfera sexual” contrários (conforme o que se tem construído 
socialmente) à sua condição sexual biológica estariam nos limites patológicos – como, por 
exemplo, os transtornos de identidade sexual e de gênero descritos na quinta edição do Manual 
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5, quanto às disforias de gênero ou 
em relação ao transtorno transvéstico, incluso entre os transtornos parafílicos. Vale ressaltar 
que o manual também destaca como critério diagnóstico um forte sofrimento que os “sintomas” 
estabelecidos causem ao indivíduo ou prejuízos à sua vida (AMERICAN PSYCHIATRIC 
ASSOCIATION, 2014). É válido ressaltar que os Manuais Diagnósticos e Estatísticos de 
Transtornos Mentais costumam ser orientadores clínicos para a Psiquiatria e algumas áreas da 
Psicologia e Psicanálise, embora algumas vertentes – tal como a Psicanálise Lacaniana – 
possuam algumas críticas com relação a eles. 
Esta atenção majoritariamente patológica acerca da sexualidade e da “identidade 
sexual” advém de uma concepção sócio-normativa de sexo-gênero, que naturaliza, padroniza e 
reforça a matriz binária heterossexual e a heterossexualidade compulsória, pressupondo uma 
relação causal e de dependência entre o sexo, o gênero e o desejo. Além disso, tal suposição 
implicaria que o desejo seria uma expressão do gênero ou que o gênero refletiria o desejo, 
mantendo uma relação contínua através da prática sexual. Butler (2016, p. 43) nomeia essa 
concepção “coerente, contínua e causal” entre tais fenômenos como “gêneros inteligíveis” – 
como mencionado anteriormente, pois corresponderiam, então, às normas de inteligibilidade 
instituídas e mantidas socialmente, enquanto gêneros outros que não se conformam às “normas 
institucionais do sexo” e estariam às margens da degenerescência e da patologia (BUTLER, 
2016). 
 
APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA E A METODOLOGIA DA ANÁLISE DE 
DISCURSO 
Neste tópico, expõem-se, de maneira breve, os principais conceitos da Análise de 
Discurso presentes nas análises empreendidas neste artigo. O estudo se baseou em textos e 
artigos produzidos na área de Análise de Discurso, abordagem teórico-metodológica esta que 
tem como propósito observar o sujeito do discurso e como ele se significa na e pela linguagem 
– a produção de seus sentidos no discurso, levando em consideração a ideologia e a história: a 
linguagem só faz sentido porque está inscrita na história, assim como o sujeito que a produz. 
 
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Eles (sujeito e sentido) se constituem, dessa forma, de maneira interdependente (ORLANDI, 
2010). 
De acordo com Orlandi (2010), o discurso é uma produção sócio-histórica que constitui 
e, simultaneamente, é constituído com/pelo sujeito, visto que ambos estão inseridos em 
determinado contexto histórico, ideológico, social e cultural. Desta forma, a autora também 
ressalta a característica opaca da linguagem, já que, uma vez que cada interlocutor/sujeito 
possui determinada carga histórica/ideológica/econômica entre outros, não é possível que os 
sentidos atribuídos sejam interpretados e compreendidos de forma pura, transparente, por 
diferentes interlocutores. Dito isto, o sujeito do discurso é, também, afetado/determinado pela 
ideologia e pela ordem do inconsciente. 
Ainda de acordo com a autora, o discurso é a materialidade da ideologia e, a língua, é a 
materialidade do discurso. Por este motivo, a Análise de Discurso trabalha a relação entre 
língua-discurso-ideologia, refletindo sobre como a ideologia se manifesta na língua. O sujeito 
não possui uma relação direta com o mundo, senão pela mediação do discurso e seu caráter 
ideológico (ORLANDI, 2010). 
A partir disto, trabalhamos, no presente artigo, com a noção de Interdiscurso - também 
explorada pela autora. O interdiscurso diz respeito à memória discursiva, àquilo que foi falado 
antes, em outro momento e lugar, ou seja, tudo que já foi dito sobre determinado assunto, seus 
sentidos e significados, atuam sobre o que se é dito “agora”. O que dizemos convoca sentidos 
de outrora, além de tudo que era atribuído àquele sentido: história, cultura, ideologia 
(ORLANDI, 2010). 
Ainda, é importante ressaltar como atua a relação entre o imaginário e o real na 
concepção da Análise de Discurso. O real se refere à incompletude, à contradição, à 
descontinuidade, enquanto o imaginário representa a unidade, completude, coerência. Desta 
forma, o discurso é regido pela força do imaginário e da completude, o que nos leva à noção 
discursiva de antecipação: o sujeito busca antecipar qual efeito suas palavras produzem no 
interlocutor, e, assim, agirá de acordo com o sentido que pensa estar produzindo ao ouvinte a 
partir de sua fala. 
Tal mecanismo repousa no que Orlandi (2010) chama de formações imaginárias, 
referindo às imagens que os sujeitosrepresentam socialmente, não equivalentes ao sujeito ou 
lugares físicos que ocupa, mas às projeções dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Essas 
imagens constituem as posições discursivas – posições estas que foram alvo desta pesquisa. 
Além disso, o lugar de onde o sujeito fala é constitutivo do que ele diz, ou seja, seu lugar 
de fala também influencia nos sentidos daquilo que ele diz: aquilo que é dito por um padre 
significa mais do que se dito pelo fiel, por exemplo. Esta noção, chamada por Orlandi (2010) 
de relações de força, diz respeito à hierarquização – associada também às relações de poder, 
discutidas por Foucault (1976). 
 
CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS 
A noção de formação imaginária, segundo Pêcheux (1997), é um pressuposto para todo 
o processo discursivo. Para ele, os sujeitos que compõem o discurso, denominados como 
elementos A e B, não são apenas pessoas físicas, empíricas, mas são sujeitos marcados social, 
histórica e ideologicamente. Dessa maneira, A e B representam lugares determinados na 
estrutura de uma organização social, sendo que cada sujeito enuncia a partir dos lugares sociais 
 
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que ocupa e que podem ser explicados a partir das características que os constituem, conforme 
estão/são representadas nessa constituição. 
No processo discursivo, ocorre uma série de formações imaginárias que designam o 
lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio 
lugar e do lugar do outro. É nesse sentido que afirmamos acima, a partir de Orlandi (2010) que 
o que determina a constituição do discurso é a antecipação imaginária dos lugares ocupados por 
cada sujeito. Considerar a posição dos protagonistas do discurso no jogo de formações 
imaginárias, conforme estabeleceu Pêcheux (1997), é considerar, dentre as diversas questões 
abordadas pelo autor (tais como aquelas relacionadas ao referente/assunto e aos sujeitos que 
compõem o discurso), as seguintes (possíveis) relações: i. a imagem do lugar de quem fala sobre 
si mesmo refere-se à indagação: Quem sou eu para que lhe fale assim?; ii. a imagem do lugar 
do ouvinte para o sujeito que fala corresponde à indagação: Quem é ele para que me fale assim?; 
iii. a imagem do lugar do ouvinte em relação a si próprio se traduz na pergunta: Quem sou eu 
para que ele me fale assim?; iv. a imagem do lugar do falante para o sujeito ao qual o discurso 
é dirigido se coloca no questionamento: Quem é ele para que eu lhe fale assim?. Nessas 
relações, ainda estão presentes: a imagem que A possui acerca de si e do assunto, assim como 
sobre o destinatário B; a imagem que A imagina que B faz dele próprio (destinatário B), dele 
(enunciador A) e do referente (assunto) e a imagem que A gostaria que B fizesse dele próprio 
(destinatário B), de si mesmo (enunciador A) e do referente. 
O jogo imaginário produz diferentes efeitos de sentido em um processo discursivo e 
vale dizer que essas formações imaginárias estão presentes em todo esse processo. As 
formações imaginárias não se constituem ou são discursivizadas a partir de um “sujeito 
empírico”, mas elas se dão a partir de imagens do que possivelmente o sujeito do discurso 
simboliza no/do real. Isto nos faz levar em conta, sempre, qual o lugar social ocupado pelo 
sujeito do discurso, o interdiscurso, as condições de produção e o fato de que um discurso está 
sempre em relação com um outro discurso existente, possível ou imaginado (NOGUEIRA, 
2017). É assim que procuramos pensar, analisar como se constroem os discursos aqui analisados 
em torno da identidade de gênero. 
 
OS “TEMAS” NOS FALARES-DE-SI DAS TRAVESTIS: FAMÍLIA, RELIGIÃO 
E TRABALHO 
Percebeu-se considerável recorrência discursiva a respeito de determinadas questões no 
documentário A esquina de Monalisa. Pode-se ressaltar a predominância de discursos que 
permeiam a relação das travestis com suas respectivas famílias, religião e trabalho. Serão 
transcritos no decorrer deste artigo recortes temáticos12 a respeito de tais assuntos e a descrição 
de elementos pertinentes na realização de uma análise discursiva. 
Serão destacados, nos próximos tópicos, os três trajetos temáticos recorrentes e suas 
respectivas análises, sendo eles: a família, a religião e o trabalho. Pode-se considerar que estes 
âmbitos são referenciais para a constituição do sujeito e sua identidade, inclusive interpretações 
acerca das concepções de gênero – visto que, como abordado anteriormente, é a partir da relação 
com o outro e com o meio que o sujeito é inserido na linguagem, na cultura, na Lei. É por meio 
 
12 Com “recortes temáticos”, referimo-nos ao gesto de leitura que fazemos de certos trajetos temáticos a partir 
dos “falares-de-si” desses sujeitos travestis. Benevides (2013) retoma o pensamento foucaultiano do “falar-de-si” 
como confissão, de maneira mais genérica, atribuída à admissão, declaração ou ao fato de atestar algo sobre si 
mesmo. 
 
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da relação com o outro que ele atribui significado às próprias percepções e recebe um nome, 
pelo qual deve responder e é reconhecido socialmente (STARNINO, 2016). 
A família 
Com relação à família, primeiro trajeto temático constituído pelo nosso gesto de leitura, 
destacaram-se: 
Recorte 1: 
Mas tinha o fato d’eu querer ser feminina, e isso também me deixava com 
medo... Porque até então a minha família me aceitar como... como gay era 
uma coisa, de repente começar a me aceitar como travesti era outra... 
(Viviana, 5:40) 13 
Viviana, aparentemente, temia a reação de sua família a partir do momento em que 
apresentasse comportamentos e hábitos sociais considerados femininos. A orientação sexual 
não se mostra um problema para a travesti com relação à aceitação de sua família, mas sim ter 
sua figura – fisicamente “masculina”, associada a atributos “femininos” (querer ser 
feminina/aceitar como gay/aceitar como travesti). 
A “verdade do sexo”, questionada por Foucault (1976), perpassa o discurso através das 
práticas reguladoras quanto às categorias de sexo e suas funções. É importante ressaltar sua fala 
sobre “querer ser feminina”, que traz novamente a noção binária/dicotômica de que, aquilo que 
não é “adequadamente masculino”, obrigatoriamente, deve ser feminino – remetendo à 
condição unívoca e às relações causais e contínuas de sexo e gênero, também discutidas por 
Butler (2016). 
Mais à frente, ainda no documentário, Viviana fala novamente sobre a família e a 
travestilidade: 
Recorte 2: 
Eu tive mais medo de assumir meu lado travesti do que assumir meu lado 
homossexual, porque... ah... na... na minha cabeça... a minha fa... a minha 
família aceitou o fato d’eu ser homossexual, mas não ia aceitar, assim, o fato 
d’eu ser travesti, porque a minha mãe mesmo dizia que ela... eu ser 
homossexual não ia influenciar... a minha vida, assim [...] Não ia influenciar 
de uma forma tão, é... significativa, assim, tão pesada. (Viviana, 11:25) 
Em ambos os fragmentos (recortes 1 e 2), ela utiliza a palavra “medo” (querer ser 
feminina deixava com medo/mais medo de assumir seu lado travesti), medo este aparentemente 
relacionado ao que a família poderia pensar/fazer com o fato de “querer ser feminina”. A partir 
do momento em que percebeu que “queria ser feminina”, Viviana demonstra uma tentativa de 
ruptura com relação à figura masculina – a homossexualidade, somente, não satisfaria este seu 
desejo. 
Esse “medo” do que o outro, em sua posição, poderia pensar sobre a travestilidade, 
retoma as noções de antecipação e formações imaginárias anteriormente discutidas. Sua 
posição, de alguém que deseja se comportar de maneira “feminina”, pode ter gerado em Viviana 
tal sentimento devido a uma antecipação do que poderiam concluir de sua imagem, sua 
projeção. Ainda destaca-se o interdiscurso, a memória: tudo aquilo que já foi dito e atribuído 
 
13 Refere-se à participante e aotempo (em minutos) correspondente ao recorte do vídeo-documentário A esquina 
de Monalisa, disponível no blogue organizado por Rodrigo Casali, vide referências bibliográficas. 
 
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às travestis estaria, de alguma forma, atuando neste jogo entre ela e os demais – a imagem que 
ela tem dos outros e que imagina que eles teriam dela, a partir das condições sócio-históricas 
de produção do discurso. 
Recorte 3: 
“A minha família é extremamente tradicional... É... Vamos dizer que... não 
que eles aceitem, mas que eles... é... respeitam. Entendeu? Aceitação dentro 
da minha casa é muito difícil. Inclusive até hoje eles não conseguem se dirigir 
a mim pelo nome feminino, sempre me chamam pelo nome masculino dentro 
da minha casa.” (Vivian, 31:00) 
A partir desta fala de Vivian, nota-se que, para ela, a aceitação está relacionada ao 
reconhecimento de seu nome social (aceitação dentro da minha casa é muito difícil/sempre me 
chamam pelo nome masculino). Como dito anteriormente, o Outro/outro é que possibilita a 
constituição da identidade do sujeito, sendo que o nome é uma das mais fortes marcas do 
psiquismo, pois a partir dele o sujeito é reconhecido e inserido formalmente na sociedade e nos 
relacionamentos sociais. A adoção do nome social, neste sentido, seria uma tentativa de ser 
reconhecida por outrem tal qual ela mesma compreende sua identidade: alguém que tem 
preferência em utilizar adereços e assumir comportamentos atribuídos, geralmente, à figura 
feminina e seus papéis sociais. Desta forma, a recusa de a reconhecerem como “Vivian” implica 
como uma não aceitação de parte de sua identidade – a de gênero, neste caso. 
A religião 
O segundo trajeto temático da presente pesquisa é a religião, tema abordado 
principalmente pelo participante Carlinhos, que é pai de santo. Destacaram-se os seguintes 
fragmentos: 
Recorte 4: 
[...] Eu falava assim: se eu me assumir como gay, eu não vou poder ser nada, 
porque crente não pode ser, católico não pode ser, eu vou ser o quê? 
(Carlinhos, 9:10) 
A expressão de Carlinhos, ao questionar “o que poderia ser”, demonstra uma 
necessidade de “ser algo” (eu não vou poder ser nada/eu vou ser o quê?), reconhecer-se 
enquanto sujeito em uma religião. Inicialmente, ao citar mais de uma religião, entende-se que 
ele somente queria “ser” – ou “católico”, ou “crente”, ou fazer parte de qualquer religião que 
aceitasse sua condição e, por ela, ser aceito como aquilo que é, independente de qual delas 
fosse. O importante, para Carlinhos, era “ser alguma coisa” no âmbito religioso, qualquer que 
fosse, que o proporcionasse aceitação. 
Recorte 5: 
Eu já era gay [...] mas, é... Não era assumido. Não, ninguém sabia... E o 
Candomblé me ajudou muito nisso, porque eu consegui, através do 
Candomblé, uma aceitação... Por que todas as religiões que eu frequentava, 
eu via a discriminação, a questão de falar que isso não pode, né, que isso é 
errado [...]. Foi diferente no Candomblé [...]. No Candomblé o importante é 
você. (Carlinhos, 6:00) 
Apesar da polissemia, a palavra “assumir” está amplamente relacionada à noção de 
“confissão” e “admissão”, assim como o “falar-de-si”, anteriormente discutido no texto. Mais 
estritamente, ainda tratando sobre a temática religiosa bastante recorrente no discurso de 
 
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Carlinhos, podemos refletir sobre o termo como o ritual do ato confessional em si – admitir ao 
outro algo sobre si. 
Ao dizer que “já era gay, mas não era assumido”, notamos novamente uma necessidade 
do reconhecimento do outro quanto ao que somos, a importância da aceitação social quanto ao 
“assumir-se” determinada coisa, o valor atribuído à declaração daquilo que se é: é necessário 
que o outro saiba – o jogo do saber e do poder, como Foucault aborda em História da 
Sexualidade I: a vontade de saber (1976). 
Recorte 6: 
Vamos dizer que um travesti ou um homossexual, que seja, ele vai ter 
praticamente só o Candomblé como... como escape. Ele só tem o Candomblé 
como religião que aceita. (Carlinhos, 43:30) 
Neste recorte, notamos o deslocamento do “escape” para “religião que aceita”: os 
termos se substituem, constituindo uma paráfrase (só o Candomblé como escape/só o 
Candomblé como religião que aceita). Ainda que os sentidos possam não ser os mesmos em 
ambos os casos, reflete-se sobre a possibilidade da produção do sentido de que a “aceitação 
religiosa” (no caso, do Candomblé) representaria um “escape” para Carlinhos. E podemos 
relacionar os sentidos de “escape” aqui com os sentidos de “liberdade”. 
O trabalho 
Seguindo para o próximo trajeto temático, a questão do trabalho, faz-se importante 
mencionar a recorrência do assunto durante o documentário, o que se mostrou, ainda, um 
aspecto fundamental no autoconceito14 e noção de identidade das participantes – com relação 
ao papel social e de gênero expressos a partir do trabalho. Refletimos também sobre o impacto 
da estabilidade (ou instabilidade) no trabalho e como isso aparece no discurso dos sujeitos. A 
seguir, vemos o discurso de Viviana, aos 36:30 minutos: 
Recorte 7: 
Eu fui buscando coisas ass... é, empregos... que... mexessem mais com a parte 
feminina... (Viviana, 36:30) 
Sendo que Viviana é diarista e cabeleireira, nota-se como o imaginário e concepções 
sociais, culturais, históricas e econômicas afetam na noção de identidade do sujeito, sobretudo 
quando pensamos nas questões de gênero. Culturalmente, a mulher/o feminino tende a ser mais 
associado aos cuidados do lar e também estéticos, estereótipos associados ao que é “ser 
mulher”, ou seja, trata-se de algo que é social e ideologicamente construído. 
Percebe-se que Viviana sente a necessidade de participar de atividades que, socialmente, 
são tidas como femininas. Esse “mexer com a parte feminina” (faxina e cuidados com o cabelo) 
seria, então, uma tentativa de ser aceita/reconhecida socialmente como “mais feminina”? Como 
já mencionado anteriormente, “somos” a partir do outro e de seu “reconhecimento de quem 
somos”, não há sujeito isolado, fora da relação com o objeto que o torna sujeito. O trabalho é 
uma das formas desse reconhecimento. 
Dessa maneira, retomam-se novamente as noções de formações imaginárias e 
interdiscurso discutidas por Orlandi (2010) e a univocidade e causalidade do sexo e do gênero, 
abordadas por Butler (2016). A imagem que Viviana possui daquilo que é feminino para si e 
 
14 Conjunto de pensamentos, sentimentos e características que o sujeito atribui a si próprio, como vê a si mesmo 
e presume que os outros o vejam, a partir de suas relações (ANDRADE, 2016). 
 
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para os outros, a partir de suas relações e contexto sócio-histórico, interferem na forma como 
ela se representa e se sente como “feminina”. Tudo o que já foi dito e atribuído ao “feminino” 
articula em suas concepções neste momento de como deseja ser e ser vista, além daquilo que o 
outro espera ver – ou que ela acredita que o outro espera ver. 
Recorte 8: 
Eu procuro, assim, não ficar levantando bandeira pra tudo: não, porque eu 
sou travesti, porque não sei o que... Não, eu procuro lutar pelo meu espaço, 
né... Eu procuro tá... tá seguindo meus objetivos, tá lutando com... é uma 
consequência: eu lutando pelo meu, eu tô abrindo espaço pras outras (...) 
estarem trabalhando junto comigo... (Michelli, 40:25) 
Levando em consideração o interdiscurso e a discursividade do enunciado “levantar uma 
bandeira”, em um contexto sócio-cultural amplamente associado a pautas e questões políticas 
e ideológicas, vemos que Michelli movimenta, em seu discurso, uma noção de 
representatividade social. Para ela, sua presença e participação ativa enquanto sujeito travesti 
no mercado de trabalho é, por si só, representativa para as demais. Nota-se, ainda, que o 
“espaço” a que ela se refere está relacionado a seus objetivos pessoais em umpossível 
deslocamento (procuro lutar pelo meu espaço/procuro seguir meus objetivos), além do uso 
recorrente e associado das expressões “lutar” e “espaço” – remetendo às dificuldades de 
conquistar, manter-se, representar e ser representado no trabalho. Vemos mais sobre a temática 
no próximo recorte: 
Recorte 9: 
Hoje eu me sinto mais orgulhosa: de ser quem eu sou, de ter conquistado meu 
espaço, enfim... Meu trabalho é a minha vida! (Michelli, 41:10) 
O nono recorte demonstra o impacto da estabilidade (ou não) no trabalho como aspecto 
essencial à constituição e manutenção da identidade do sujeito, sobretudo o sujeito travesti e 
gêneros outros que não se adequem à matriz sócio-normativa que imprime, inclusive, a noção 
de empregos “adequados/inadequados” a determinado gênero. 
Ainda, pode-se observar o deslocamento de sentidos proporcionado pelo significante 
trabalho, neste recorte (ser quem eu sou/ter conquistado meu espaço/meu trabalho é a minha 
vida). O “meu trabalho”, para Michelli, substitui, “enfim”, aquilo “que ela é” e “o espaço que 
conquistou”. Ela parece transferir o significado e resumir seu orgulho de ser quem é e seu 
espaço à conquista e manutenção do trabalho. 
Ao pensarmos sobre o que não foi dito no discurso de Michelli – nos recortes 8 e 9 deste 
trabalho, poderíamos questionar alguns pontos: o que é, afinal, o “espaço” a que Michelli se 
refere? Seria meramente um espaço no mercado de trabalho (aspecto mais abordado por ela 
neste caso) ou um espaço social para “ser quem ela é”? Ela se sentiria menos orgulhosa de “ser 
quem é” se não exercesse tal trabalho? Até que ponto o “orgulho” de “ser quem somos” depende 
dessa participação nas relações de poder? 
A polissemia e a opacidade do discurso permitem também uma reflexão sobre a última 
frase do recorte 9. A expressão “meu trabalho é a minha vida”, considerando a conotação da 
palavra trabalho utilizada em um contexto de algo que requer esforços e medidas específicas a 
serem cumpridas sistematicamente visando o sucesso de alguma tarefa específica poderia 
significar, também, como a vida, em si, é um “trabalho” para a enfermeira Michelli? Ser quem 
é e alcançar seus objetivos seriam, então, as tarefas a serem cumpridas? 
 
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Recorte 10: 
Trabalhar no programa (programa de prevenção contra as doenças 
sexualmente transmissíveis) me faz bem, porque hoje eu sei que eu posso 
ajudar as pessoas que... tão lá na ponta, sabe, pessoas que de repente não tem 
acesso à saúde, não tem acesso à educação... (Vivian, 48:00) 
Ao falar sobre o trabalho, Vivian o caracteriza como algo que lhe “faz bem”. O que lhe 
faz bem, de acordo com ela, é saber que tem a possibilidade de ajudar as pessoas que não têm 
acesso adequado aos serviços de saúde e educação. Percebemos que somente a partir desta 
posição de trabalho, ela sentiu que podia auxiliar a população (trabalhar no programa/hoje eu 
sei que eu posso ajudar as pessoas). Ao dizer que “hoje sabe” disso, refletimos: foi necessário 
ser reconhecida nessa posição para que “soubesse” que podia ajudar de alguma forma? A 
questão da estabilidade promoveu essa confiança em “saber” que podia ajudar demais pessoas? 
Afinal, saber que se pode ajudar alguém poderia ser uma concepção simples individualmente, 
mas o que é necessário, de fato, neste caso? Possuir uma posição socialmente ativa nas relações 
de trabalho e/ou de poder? 
Recorte 11: 
Trabalhar no programa de DST/AIDS abriu muitos... muitos espaços pra mim 
que talvez nem eu acreditava que podia ser aberto (...). Eu passei a ser uma 
pessoa que era desrespeitada pela maior parte da sociedade, uma pessoa que 
era marginalizada a aos poucos começar a sentir algum esboço de respeito... 
em algumas situações, em alguns locais... (Vivian, 49:00) 
Vemos, neste recorte, novamente a questão do “espaço”, trazida anteriormente por 
Michelli. Vivian, neste momento, fala sobre como “talvez nem ela acreditava que podia ser 
aberto” tal espaço e, ao falar sobre esta abertura, ela a substitui com a noção de respeito e 
reconhecimento na sociedade. A ausência deste espaço equivale, em seu discurso, à 
marginalização – um termo relacionado à exclusão, a não participação social. Toda esta 
“abertura de espaço” é atribuída, por Vivian, ao seu emprego. 
Outra referência ao contexto social em seu discurso acontece quando ela diz que “talvez 
nem eu” acreditava que tal espaço poderia ser aberto. Esta expressão “nem eu” remete ao fato 
de “não somente eu”, alguém mais duvidava da abertura desse espaço e, “até mesmo” ela. Ela 
revela a importância do outro nessa relação, a importância de ser reconhecida, respeitada – no 
caso, a partir daquilo que produz (o trabalho). Esta atribuição, é claro, se relaciona ao contexto 
sócio-histórico, cultural, ideológico, político e econômico em que ela está inserida: o discurso, 
o interdiscurso, o sujeito e a produção de sentidos se formando juntos. 
Recorte 12: 
Quando você vai arrumar um emprego, tá lá na tua RG e nos teus documento 
seu nome de... de homem, óbvio. E daí eles olham pra você e faz uma cara... 
daí de repente ela olha pra você fala ‘olha, estamos com uma outra pessoa 
aqui na frente e tal, se não der certo a gente chama você’, mas cê sente que 
não vai chamar, entendeu? Então, sabe, eu não quero passar por isso, essas 
coisas já tá me... me deixou mal, entendeu? Me deixa mal. Então eu faço 
programa (...). Quando você faz programa cê ganha mais, entendeu, do que 
você viver ganhando salário... um salário mínimo. (Babi, 50:00) 
Os documentos são um meio pelo qual o cidadão se comprova “formalmente” 
pertencente à sociedade. Eles representam aquilo que ele é perante os demais – e, até 
recentemente, aquilo que se é (ou não) mediante a concepção dos demais, já que não era 
facilitada a alteração de nome e gênero documentais no país. Ou seja, aquele que fosse de 
 
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alguma forma divergente do que afirma sua documentação, seria trans(gressor), incongruente, 
inadequado – e, desta forma, “denunciado” àquela sociedade que firmou a concepção da fixidez 
da identidade de gênero, como reitera a fala de Babi. 
Ela menciona, ainda, a questão do salário mínimo e como ganha mais fazendo programa, 
o que demonstra que a produção e o poder, representados na sociedade pelo símbolo dinheiro, 
é um fator que gera, de alguma forma, satisfação, pois proporciona uma posição mais ativa nas 
relações de poder – como pode ser observado no recorte 13: 
Recorte 13: 
Eu senti que o... que o meu salário era por causa d’eu ser travesti, porque 
toda vez que eu pedia um aumento, a pessoa me tacava na cara: olha, se 
quiser cê pode pedir a conta, mas cê sabe que você é travesti, é difícil arrumar 
emprego. E essas coisas (...) foram me fazendo mal... (Babi – 51:00) 
Babi, que é profissional do sexo, já encarou o preconceito em outro local de trabalho e 
por esse motivo diz exercer, atualmente, tal profissão. A imagem da travesti costuma ser 
fetichizada, sexualizada e parece um ciclo de vulnerabilidade o fenômeno da travesti ter sua 
imagem hipersexualizada, não possuir oportunidades de empregos formais devido às 
estigmatizações e, então, encontrar “uma saída” na prostituição. Essa questão merece maior 
atenção e parece-nos ser necessário maiores pesquisas a respeito disso. Vivian também comenta 
a respeito do tema: 
Recorte 14: 
Eu posso garantir que se... toda travesti tivesse oportunidade de ter um... 
emprego... eu tenho certeza que a gente veria menos travestis... na 
prostituição, ou nas coisas erradas que acabam sendo mostrado (...). Eles 
pouco veem o travesti que trabalha, o travesti que... estuda, né... (...) o padrão 
é assim: todo travesti é marginal, é profissional do sexo... e acaba fazendo um 
pacotão e achando que ninguém presta. (Vivian, 54:00) 
O discurso de Vivian aborda a relevância e importância da oportunidade de empregos e 
profissionalização no imaginário

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