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AULA 5 PRESTAÇÃO DE CONTAS (ACCOUNTABILITY) Prof. Ricardo Suave 02 CONVERSA INICIAL A accountability segue uma divisão conhecida na literatura acadêmica que a trata entre accountability horizontal e vertical. No caso da accountability horizontal, ocorre o controle entre instituições autônomas e paralelas, ou seja, entre instituições de poder igual ou semelhante, como é o caso do controle que é exercido entre os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O oposto ocorre na accountability vertical, pois o controle se dá entre agentes detentores de poder em diferentes extremos, sendo os representantes e burocratas com maior poder de um lado e seus representados com menor poder de outro. A presente aula tem por objetivo estudar a accountability horizontal e a vertical e o que compreendem. Para tanto, aborda-se o conteúdo por meio de cinco temas, sendo os conceitos de: 1. Accountability horizontal; 2. O controle entre os poderes, pois se tratam também de mecanismos da accountability horizontal. Estudam-se ainda conceitos de: 3. Accountability vertical; 4. Sistema eleitoral brasileiro e Accountability vertical, dado que as eleições se caracterizam como o principal mecanismo de accountability vertical; e, por fim: 5. Accountability societal. CONTEXTUALIZANDO A accountability exerce um papel contributivo à sociedade e, conforme discutido aqui, existe uma corrente da literatura que a divide em accountability horizontal e vertical. Apesar dessa divisão, argumenta-se que ambas as formas conversam entre si, ou seja, não são excludentes. Por exemplo, mecanismos que constituem a accountability vertical (que poderia ser a escolha de representantes de boa índole) podem contribuir para o fortalecimento da accountability horizontal. Como forma de elucidar as diferenças entre essas duas formas de accountability, assista ao vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Qc6Je- QqTis>. Por exemplo, Anastasia e Melo (2002, p. 28) argumentam que “a interação entre instrumentos de accountability vertical e horizontal pode ser desenhada de forma a incrementar concomitantemente a responsabilização dos governantes pelos governados e a estabilidade da democracia”. Nesse sentido, os autores postulam que os mecanismos de accountability horizontal incidem positivamente sobre o exercício da accountability vertical, no plano eleitoral, na medida em que 03 diminui a assimetria informacional; o contrário também ocorre, pois o Legislativo, por exemplo, pode atuar como órgão de controle sobre o Executivo ao sofrer maior controle pelos cidadãos. TEMA 1 – ACCOUNTABILITY HORIZONTAL No Brasil, os principais trabalhos científicos sobre accountability adotam a abordagem do autor Guillermo O’Donnell para sua divisão entre horizontal e vertical. Segundo O’Donnell (1999), citado por Rodrigues (2008, p. 41), a accountability horizontal é a existência de agências estatais que são legalmente habilitadas e com poderes para tal, e realmente propenso e capaz, de tomar ações que vão desde a supervisão rotineira a sanções criminais ou impeachment em relação a ações ou omissões de outros agentes estatais que possam ser qualificados como ilegais. Uma questão para o interesse pela accountability horizontal por O’Donnell (1998) é sua própria ausência. O autor cita que, embora alguns países da América Latina ou outras localidades tenham se tornado democracias políticas ou poliarquias, a accountability horizontal permanece fraca, pois estão sob mandatos autoritários ou o processo eleitoral não é justo e livre. No que se refere a accountability horizontal, nota-se que é nesse tópico que se insere a questão do fortalecimento e da independência das instituições. Tal fato ocorre porque a accountability horizontal se caracteriza pelo controle exercido entre os poderes num mesmo nível, razão pela qual se chama horizontal. Conforme Fontes Filho e Naves (2014), trata-se de um controle lateral da própria burocracia e se fundamenta em um sistema de checks and balances. Os vetores que viabilizariam os processos de accountability horizontal seriam um conjunto de agências estatais com delegação para supervisionar, controlar, punir e/ou retificar ações ilícitas, dispostas estruturalmente em forma de rede, tendo como cume tribunais para as últimas decisões comprometidas com esse mecanismo de responsabilização. (Vieira, 2005, p. 616) Segundo O’Donnell (1998, p. 46), são duas as principais maneiras como a accountability horizontal pode ser violada, e, mesmo que coincidentes, elas são distintas. A primeira consiste na usurpação ilegal por uma agência estatal da autoridade de outra; a segunda consiste em vantagens ilícitas que uma autoridade pública obtém para si ou para aqueles de alguma forma associados a ela. Chamarei o primeiro tipo de “usurpação” e o segundo, mesmo que inclua comportamentos que não se conformam verdadeiramente ao termo, de “corrupção”. 04 O’Donnell (1998, p. 49) sugere algumas iniciativas para que se possa alcançar a accountability horizontal, como se pode analisar no quadro a seguir. Quadro 1 – Iniciativas para o alcance da accountability horizontal Característica Ação Papel dos partidos de oposição Em primeiro lugar, dar aos partidos de oposição que tenham alcançado um nível razoável de apoio eleitoral um papel importante, senão principal, na direção das agências (Fiscalías, como são normalmente chamadas na América Latina) que estão a cargo de investigar supostos casos de corrupção. No entanto, nada garante que a oposição seja melhor que o governo ou que este, como tem acontecido em muitas novas poliarquias, não vá ignorar, privar dos recursos necessários e/ou cooptar essas agências. Papel preventivo exercido por agências Em segundo lugar, não seria menos importante que as agências que desempenham um papel essencialmente preventivo, tais como os Tribunais de Contas (General Accounting Offices ou Controladorías), fossem altamente profissionalizadas, dotadas de recursos tanto suficientes quanto independentes dos caprichos do Executivo, e as mais isoladas que seja possível do governo. Por sua vez, isso não impede que a corrupção penetre nessas agências, ou que o Executivo as coopte, ou que, na alternativa de ser o Congresso a determinar a autoridade e o orçamento dessas agências, esse se revele tão desejoso quanto o Executivo de eliminá-las ou neutralizá-las. Judiciário altamente profissionalizado Em terceiro lugar, seria de muita ajuda a existência de um Judiciário que fosse altamente profissionalizado, dotado de um bom orçamento que seja tão independente quanto possível do Executivo e do Congresso, e totalmente autônomo em suas decisões relativas a estes. Mas tal “autonomia” é arriscada: pode facilitar o controle do poder Judiciário por um partido político ou uma facção ou coalizão de interesses duvidosos, ou pode promover uma auto definição privilegiada e arcaica da corporação judicial e de sua missão, sem qualquer accountability própria em relação a outros poderes do Estado e da sociedade. Apesar das deficiências, a existência das instituições acima Em quarto lugar, esses e outros recursos institucionais concomitantes têm, como vimos acima, sérias desvantagens. Mas implementar esses recursos com um espírito “madisoniano”1 de descrença prudente nas inclinações republicanas é preferível à situação atual de muitas novas poliarquias, nas quais tais instituições não existem ou foram tornadas inefetivas por presidentes delegativos e legisladores aquiescentes. (continua) 1 Trata-se do dilema em relação à escolha da forma como o controle sobre o governo será exercido, quanto ao principal, por via de eleições ou por via da divisão dos poderes. No espírito madisoniano ocorre a valorização eleitoral e a desvalorizaçãoda divisão dos poderes. Contudo, o processo eleitoral é inadequado para evitar a acumulação de todos os poderes nas mesmas mãos – e, portanto, a tirania – porque nele o legislativo concorreria em melhores condições que os demais (Andrade, R. de C. A reforma institucional no Brasil. Lua Nova, n. 28-29, p. 05-20, 1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64451993000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 5 abr. 2018). 05 (continuação do Quadro 1) O problema da desigualdade Em quinto lugar, referindo-me agora ao sentido liberal da accountability horizontal, especialmente com aquele que lida com os diversos encontros dos fracos e pobres com os agentes estatais, é evidente que há aí um mundo para ser construído [...]. Esse talvez seja o maior problema de todos: em sociedades marcadas não apenas pela pobreza arraigada, mas também, e mesmo mais decisivamente para o nosso tema, por profundas desigualdades, como garantir que os fracos e pobres sejam pelo menos tratados decentemente por tais agentes? Esse tema é complicado demais para ser tratado em um artigo ficado principalmente na dimensão republicana da accountability horizontal. Informação confiável e adequada Em sexto lugar, informação confiável e adequada é essencial. Uma mídia razoavelmente independente e várias instituições de pesquisa e disseminação devem ter um papel importante, mas isso não substitui completamente a existência de agências que possam ser apoiadas publicamente, mas que sejam independentes do governo, responsáveis pela coleta e organização dos dados, amplamente e disponíveis em um vasto leque de indicadores – inclusive, mas não exclusivamente, econômicos. Que indicadores devem ser esses, a metodologia de sua coleta, a sua periodicidade e os meios pelos quais são difundidos devem ser decididos por uma autoridade pluralista, e não puramente governamental. O papel da accountability vertical Em sétimo lugar, em relação a todas essas questões pouco se pode esperar sem a ação determinada e persistente dos atores domésticos – a mídia e várias organizações de accountability vertical – que já mencionei. Organizações e redes internacionais são de boa ajuda também. Mas suas injunções e recomendações correm o risco de ser definidas com sucesso como interferência “externa” indevida se não forem incorporadas e, digamos, “nacionalizadas” por agentes domésticos. O impacto que todos esses atores podem produzir na opinião pública ao menos em questões que envolvem alta corrupção e notória usurpação suscita um apoio que pode ser crucial para autoridades públicas dispostas a adotar uma accountability horizontal. Isso me leva a uma conclusão que gostaria de enfatizar [...] sobre a necessidade de uma rede de agências estatais capazes e dispostas a reforçar a accountability horizontal: sua efetividade também depende dos tipos de accountability vertical – inclusive, mas não apenas, as eleições – que apenas a poliarquia fornece. Indivíduos que seguem as regras liberais e republicanas Finalmente, evoco um fator difícil de estabelecer, mas a meu ver importante: indivíduos, especialmente políticos e outros líderes institucionais, são de fato relevantes. Mesmo em países com tradição de ampla corrupção e repetidas usurpações, o bom exemplo de indivíduos bem posicionados que agem convincentemente de acordo com as injunções liberais e republicanas pode gerar um apoio, talvez difuso, mas ainda assim valioso, da opinião pública. Não menos importante, essas atitudes podem encorajar outros indivíduos ou agências estrategicamente colocadas a tomar posições semelhantes. Porque e como esses líderes surgem é um mistério para mim. O fato melancólico é que eles não parecem muito abundantes, ou bem sucedidos, na maioria das poliarquias e que, quando enfim chegam às mais altas posições, eles nem sempre são coerentes com as expectativas que geraram enquanto as ambicionavam. Fonte: O’Donnell, 1998, p. 49. 06 O autor afirma que tais reflexões acerca do alcance da accountability horizontal não são muito otimistas, pois muitos são os incentivos para que os indivíduos detentores do poder e seus afilhados pratiquem ações pouco liberais ou republicanas. Além disso, exceto os indivíduos altruístas, os incentivos para seguir a accountability horizontal são débeis. TEMA 2 – O CONTROLE ENTRE OS PODERES Conforme dito anteriormente, a accountability horizontal ocorre entre instituições paralelamente num mesmo nível. Esse controle pode ser exercido pelos diferentes poderes ou órgãos de controle, como os Tribunais de Contas e Controle Interno. Para o fortalecimento da accountability, Rodrigues (2008, p. 41) destaca o seguinte: Um ponto importante a respeito de accountability diz respeito aos limites de atuação dos agentes envolvidos. Para que funcione realmente, é necessário que existam agentes estatais dotados de controle ou de sancionar as ações de outros agentes estatais. Para que tais agentes sejam realmente efetivos, é de grande importância que haja participação de cortes e tribunais. A produção efetiva de accountability horizontal pressupõe que os agentes envolvidos não atuem de forma isolada. Para que seja realmente efetiva é necessário que haja uma rede de agências estatais comprometidas com a accountability horizontal, envolvendo até mesmo cortes e tribunais comprometidos a prestar apoio a este tipo de accountability. Ao entrar na discussão da accountability horizontal e do controle que há entre os poderes, dois conceitos relacionados aos checks and balances são importantes e merecem ser discutidos, que tratam do poder de veto e do poder de decreto (conhecido como medidas provisórias). Segundo Mota (2006), o poder de veto se configura como checks and balances (“freios e contrapesos”) e envolve a participação do chefe do Poder Executivo federal na elaboração de leis, o que é uma típica função do Poder Legislativo. O poder de veto está estabelecido no art. 66 da Constituição Federal de 1988: Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará. § 1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto. § 2º O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea. 07 § 3º Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará sanção. § 4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores. § 5º Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República. § 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final. § 7º Se a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Presidente da República, nos casos dos §§ 3º e 5º, o Presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo. (Brasil, 1988) Hetsper (2012) afirma que um poder é totalmente independente quando suas ações não são decididas em conjunto com outro poder. Nesse sentido, o autor aborda o poder de controlar o outro para avaliar ou impedir alguma decisão tomada. Nesse controle é que se encontra “o poder de veto, previsto como atribuição privativa do Presidente da República (e por analogia aos seus congêneres nos planos subnacionais, governadores e prefeitos)” (Hepster, 2012, p. 1).Segundo o mesmo autor, “pode ser conceituado como a faculdade atribuída a poder diverso daquele que detém a incumbência de exercer a atividade legiferante, de obstar a transformação de um projeto de lei em lei propriamente dita”. Já o poder de decreto, que é realizado por meio das medidas provisórias no Brasil, caracteriza-se pela solicitação de urgência na apreciação de projetos de iniciativa do presidente da república e também se insere no contexto dos checks and balances (Mota, 2006). Esse procedimento interfere no poder de agenda das questões apreciadas. De acordo com Da Ros (2008), o poder de decreto de que o presidente da república dispõe se trata de um dos mais polêmicos institutos da atual democracia brasileira e descende do decreto-lei, instrumento que continha a mesma função no período autoritário. Segundo o autor, é por vezes usado para garantir governabilidade, mas é também visto como um instrumento em que o governo impõe unilateralmente sua vontade. O poder da sugestão de apreciação de projetos de iniciativa do presidente da república está previsto no art. 64 da Constituição Federal: Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. § 1º O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa. § 2º Se, no caso do § 1º, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em 08 até quarenta e cinco dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação. § 3º A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos Deputados far-se-á no prazo de dez dias, observado quanto ao mais o disposto no parágrafo anterior. § 4º Os prazos do § 2º não correm nos períodos de recesso do Congresso Nacional, nem se aplicam aos projetos de código. (Brasil, 1988) Segundo Mota (2006), o Congresso Nacional posteriormente limitou através da Emenda Constitucional n. 32, de 1 de setembro de 2001, os poderes exorbitantes advindos dessa medida inserida na Constituição Federal de 1988. Conforme Da Ros (2008), ao se afastar da característica de urgência, o presidente da república fez com que as medidas provisórias fossem frequentemente usadas com o consequente conflito e a destinação ao Supremo Tribunal Federal por meio do instituto da ação direta de inconstitucionalidade. Saiba mais Conheça mais sobre a divisão entre os três poderes: <https://www.youtube.com/watch?v=I2A8wCx3FHA>. TEMA 3 – ACCOUNTABILITY VERTICAL Enquanto a accountability horizontal é um controle supostamente instituído no mesmo nível, como é o exemplo entre poderes ou órgãos como os Tribunais de Contas, a accountability vertical se caracteriza pela prestação de contas entre agentes compreendidos em diferentes níveis, como é o caso da relação entre representante e representados. Anastasia e Melo (2002) explicam que as eleições, embora muitas vezes tenham sua eficiência contestada, caracterizam-se como um importante instrumento de controle dos governantes pelos governados, ou seja, a efetivação da accountability vertical. Segundo Manin, Przeworski e Stokes (1999), citados por Vieira (2005, p. 612), a accountability vertical ocorre em duas situações: quando o eleitor vota na expectativa de que o representante agirá para maximizar os desejos e as aspirações da população, ou quando o representante seleciona um conjunto de políticas necessárias para a reeleição. Para que a accountability se viabilize, torna-se necessário ocorrer uma avaliação retrospectiva, ou seja, os eleitores manipulam informações que possam estabelecer um padrão de evolução positiva ou negativa das ações empreendidas pelo governante durante o mandato. Nessa perspectiva, se a situação do eleitor melhorar, o governante será reeleito; em sentido contrário, se a situação piorar, ocorrerá a troca do representante. O https://www.youtube.com/watch?v=I2A8wCx3FHA 09 pressuposto fundamental nessa hipótese é que o eleitor possua todas as informações necessárias e tenha conhecimento e/ou capacidade para efetuar a avaliação. Mota (2006) enfatiza que, além das eleições livres e justas, outros aspectos também englobam a accountability vertical, como as ações da sociedade civil e da mídia que têm por objetivo expor atos de administradores públicos que possam ser contrários ao interesse público. Para isso, faz-se necessário que a sociedade tenha à disposição um conjunto de liberdades, como as liberdades de opinião e associação e de acesso às informações, para que possam ser feitas articulações de demandas e formulação de denúncias contra tais atos. Levando em conta o que é tratado no conceito em que se considera que no processo eleitoral os eleitores podem avaliar retrospectivamente os candidatos, Anastasia e Melo (2002, p. 29) chamam atenção para o fato de que “as possibilidades de mobilização eficiente dos procedimentos eleitorais para fins do exercício da responsabilização política crescem na medida em que diminui a assimetria informacional entre representantes e representados”. E o grau da assimetria informacional, por sua vez, varia em função da distribuição dos recursos políticos, o que inclui materiais e poder, entre os diferentes atores políticos. Assim como ocorre na accountability horizontal, no caso da vertical também há grande influência de O’Donnell sobre os acadêmicos. Por meio de eleições razoavelmente livres e justas, os cidadãos podem punir ou premiar um mandatário votando a seu favor ou contra ele ou os candidatos que apoie na eleição seguinte. Também por definição, as liberdades de opinião e de associação, assim como o acesso a variadas fontes de informação, permitem articular reinvindicações e mesmo denúncias de atos de autoridades públicas. Isso é possível graças à existência de uma mídia razoavelmente livre, também exigida pela definição de poliarquia. Eleições, reivindicações sociais que posam ser normalmente proferidas, sem que se corra o risco de coerção, e cobertura regular pela mídia ao menos das mais visíveis dessas reinvindicações e de atos supostamente ilícitos de autoridades públicas são dimensões do que chamo de “accountability vertical”. São ações realizadas, individualmente ou por algum tipo de ação organizada e/ou coletiva, com referência àqueles que ocupam posições em instituições do Estado, eleitos ou não. (O’Donnell, 1998, p. 28) Santos (2013) afirma que, de maneira semelhante à accountability horizontal, a accountability vertical também remete à ideia de controle, mas um controle que emerge do povo, em que os cidadãos controlam os políticos e as ações governamentais. O controle institucionalizado é exercitado por meio de instrumentos reconhecidos e validados pela ordem jurídica vigente, como o plebiscito, 010 o referendo e a iniciativa popular além do voto. Ambos são formas de controle cuja participação popular é imprescindível. No entanto, a noção de controle atrelada a tais instrumentos restringe a participação de importantes atores, cuja contribuição pode ser essencial na efetivação do comando de fiscalização e responsabilização dos governantes (Santos, 2013, p. 12). Conforme O’Donnell (1998), as eleições são os principais mecanismos de accountability vertical e ocorrem apenas de tempos em tempos. Porém, destaca o autor, não está claro até que ponto são efetivas, pois, dadas as configurações existentes em muitas das novas poliarquias (como sistemas partidários pouco estruturados, alta volatilidade de eleitores e partidos, temas de política pública pobremente definidos e reversões políticas súbitas), comprometem a eficácia da accountability eleitoral. Santos (2013) corrobora com a ideiade pôr em dúvida a eficácia da accountability vertical, especialmente pelo fato de argumentar que os mecanismos de participação popular no Brasil estão enfraquecidos, seja pela dificuldade em utilizar, como é o caso de ações populares, ou até pelo desuso, como ocorre com os referendos e os plebiscitos. Saiba mais Para entender o papel desses mecanismos de participação e a diferença entre eles (referendo e plebiscito), acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=_qpHTSrBjf4>. TEMA 4 – SISTEMA ELEITORAL BRASILEIRO E ACCOUNTABILITY VERTICAL Inicialmente, abordam-se os principais aspectos do sistema eleitoral brasileiro para que possa ser analisada sua relação com a accountability vertical. De acordo com Venturini (2016), diversas são as características desse sistema. A primeira delas é que no Brasil adota-se o modelo presidencialista, em que o presidente da república possui o mais alto cargo do Poder Executivo e exerce os poderes de chefe de estado e chefe de governo. O voto é secreto e obrigatório, as eleições ocorrem de dois em dois anos (intercalando eleições nacionais/estaduais e municipais) e com mandatos de quatro anos, com exceção dos senadores, pois possuem mandatos de oito anos. As eleições ocorrem em dois turnos quando os votos para determinado presidente, governador e prefeito (em cidades com mais de 200 mil eleitores) não alcançam 50% mais um dos votos válidos, excluindo brancos e nulos. O Brasil é pluripartidário e permite a coligação partidária para eleições de vereadores e partidos, e os votos para candidatos ou 011 partidos dessa união são computados para a coligação, o que aumenta as chances para que os partidos consigam vagas no Legislativo. Para a escolha dos políticos, dois sistemas estão previstos pela Constituição, o majoritário e o proporcional. No primeiro, o candidato com mais votos é eleito. Já no segundo, para os casos de vereadores e deputados, não é necessário maioria dos votos, pois são efetuados cálculos que levam em consideração o total de votos recebidos pelo partido político ou pela coligação. Neste último caso, tem-se por objetivo que as minorias também sejam representadas. Venturini (2016) menciona ainda que, como um dos principais componentes desse sistema, a atividade dos eleitores de irem votar ocorre desde a década de 1930. Contudo, ela destaca que muitas mudanças ocorreram desde então e provavelmente ainda vão ocorrer. O que se percebe é que em momentos de crise política tais discussões de mudanças entram em pauta e na mídia, principalmente como resultado de mobilizações sociais. Entre os dias atuais, segundo Venturini, os principais temas em discussão dizem respeito aos limites de gastos, fontes de financiamento, tempo de campanha e desempenho de partidos. Por exemplo, Oliveira e Rodrigues (2014) pontuam diversas propostas de mudanças do sistema eleitoral que estão em debate. Entre elas, o voto majoritário para o Legislativo, abolindo assim o cálculo proporcional; voto proporcional com lista fechada, em que o eleitor vota em uma lista de candidatos preestabelecida; voto proporcional com lista flexível, em que o eleitor ainda pode escolher um candidato, mas os votos na legenda são do candidato que encabeça a lista; voto em dois turnos, com votos para o partido no primeiro turno para definir quantas vagas cada legenda terá, e no segundo turno os eleitores votam nos candidatos; voto distrital, em que ocorre a divisão em distritos, e em cada distrito há um único deputado eleito; voto distrital misto, com eleição dos deputados com uma parte no sistema distrital e outra, proporcional, e candidatura avulsa, em que um candidato pode se registrar sem ser filiado a um partido político. Anastasia e Melo (2002) discorrem sobre a característica de multipartidarismo que é inerente ao sistema brasileiro, pois é compatível com o grau de complexidade e heterogeneidade do país. Contudo, os autores apontam para problemas como vínculos precários entre partidos e eleitores, além da profusão de partidos de aluguel. Referente à crítica geralmente feita sobre a 012 quantidade de partidos, os autores elucidam que, à época, sete partidos controlavam cerca de 90% da representação, o que não é elevado. Se os principais partidos podem ser, de fato, apontados como refletindo a diversidade e complexidade nacionais, o sistema de representação proporcional, por sua vez, favorece a sua efetiva presença no poder Legislativo aumentando as chances de que este Poder se constitua em um espaço institucional de expressão política das diferentes minorias. Sobre tais aspectos, pode-se dizer que o funcionamento do sistema político brasileiro favorece a dispersão de poderes entre os atores relevantes. (Anastasia; Melo, 2002, p. 38) Outro aspecto é o problema das cadeiras “fora do lugar”, que, segundo os autores, compromete a proporcionalidade entre os votos e os postos legislativos recebidos pelos partidos. Nesse sentido, eles afirmam que o Brasil é um país que adota a proporcionalidade e se destaca pelo alto grau de desproporcionalidade. Como forma de intervenção contínua dos cidadãos no processo decisório, Anastasia e Melo (2002) enumeram algumas iniciativas do Poder Executivo, entre elas a criação do SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira), que é o principal instrumento de administração orçamentária e financeira da União; o acesso ao processo de transferência de recursos; a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal; a disponibilização pública de informações sobre o Plano Plurianual; a disponibilização das informações necessárias à fiscalização do Orçamento da União; e a criação da Corregedoria-Geral da União. As iniciativas do Poder Legislativo se concentram na comunicação direta com os cidadãos a partir do funcionamento das TVs e rádios Câmara e Senado; disponibilização na internet de informações detalhadas sobre o funcionamento de ambas as casas; criação de ouvidorias; e a modificação do art. 53 da CF, que tornou os parlamentares passíveis de processo pelo STF sem a necessidade de licença prévia da casa. Outro problema, segundo Anastasia e Melo (2002), é que os eleitores escolhem um determinado candidato pela expectativa e suposição de que ele possa representar seus interesses. Contudo, o parlamentar eleito, ao chegar na Câmara, depara-se com um poder de agenda e de veto em outras mãos, e os seus compromissos com seus eleitores só poderão ser atingidos se eles coincidirem com os interesses dos líderes partidários. Nesse sentido, os autores sustentam que no Brasil o eleitor poderia melhor acompanhar o processo legislativo caso designe um partido como seu agente, e não o candidato individualmente. Por fim, vale a conclusão de Anastasia e Melo (2002, p. 47) de que 013 [...] os eleitores designam agentes que, pelos motivos acima expostos, não contam nem com bases de apoio eleitoral seguras o suficiente, nem com recursos de ordem regimental/ institucional, com os quais possam contar para resistir às pressões do Executivo e dos líderes partidários. Os deputados, por sua vez, sabem que os eleitores de um modo geral, ou são “desatentos”, ou enfrentam uma série de obstáculos para monitorar os mandatos individualmente. Logo, sempre que colocados entre dois fogos – o Executivo e o eleitor – em um contexto que não inclua mobilização social, os legisladores encontrarão mais incentivos a ceder ao primeiro. Se tudo isso está correto, pode-se dizer que o sistema político brasileiro funciona de forma tal que os mecanismos de accountability vertical não têm sido capazes de incidir sobre os processos de controle no plano horizontal. TEMA 5 – ACCOUNTABILITY SOCIETAL Partindo de argumentações referentes às deficiências dos mecanismos de accountability vertical, alguns trabalhos abordam um novo conceito, o de accountability societal, que poderia ocorrer por meio de conselhossetoriais (Vieira, 2005). [...] um mecanismo não eleitoral, que emprega ferramentas institucionais e não institucionais (ações legais, participação em instâncias de monitoramento, denúncias na mídia, etc.), que se baseia na ação de múltiplas associações de cidadãos, movimentos, ou mídia, objetivando expor erros e falhas do governo, trazer novas questões para a agenda pública ou influenciar decisões políticas a serem implementadas pelos órgãos públicos. (Carneiro; Costa, 2001, citados por Vieira, 2005, p. 618) A accountability societal é aquela que “é acionada por parte de atores coletivos em funções de representação que são desempenhadas de jure ou de facto perante o poder público e suas instâncias administrativas” (Lavalle; Castello, p. 68). Segundo os autores, nessa configuração o controle social sobre o poder público e suas burocracias é realizado por agentes coletivos, e não por cidadãos de maneira individual; situam-se na fronteira da inovação democrática e dependem “das relações que os novos atores da representação mantêm com os eventuais beneficiários, em nome dos quais falam e exercem essa representação”. Filgueiras (2011) afirma que, apesar de existir um sistema multipartidário estável na transição para a democracia, parece que as instituições ainda não conseguem apoio da sociedade. Segundo o autor, a desconfiança que os cidadãos têm sobre os políticos e burocratas cria um distanciamento entre sociedade e Estado. Quanto às políticas públicas, Filgueiras (2011, p. 3) afirma que [...] o discurso público brasileiro tem discutido a possibilidade de a sociedade civil assumir o papel de controladora da corrupção, cabendo 014 às instituições nas quais ela se faça presente a incumbência de auxiliar no processo de desenvolvimento institucional e o papel de fomentar a accountability por fora do Estado. O aprimoramento da accountability societal tem se apresentado no discurso brasileiro como remédio para o aprofundamento e desvelamento da corrupção no Brasil. Frente a isso, a hipótese de aprofundamento da accountability societal afirma que a representação da sociedade civil em órgãos colegiados, conselhos e conferências pode ser um remédio fundamental para o combate à corrupção. Filgueiras (2011) esclarece que a crise do Estado de bem-estar social promoveu transformações nas instituições tradicionais de representação política, como os partidos políticos, e estes passaram a encontrar dificuldades para exercer seu papel de representação dos interesses e intermediar a relação entre políticos e cidadãos. Assim, cria-se um sentimento de corrupção cada vez maior, além de outros problemas institucionais, o que ocasiona desconfiança dos cidadãos em relação a tais representações e consequente problema para a legitimação da democracia representativa. A participação de diferentes organizações e associações da sociedade civil se trata de uma resposta às deficiências das instituições tradicionais de representação (Filgueiras, 2011). Essas novas formas de representação, em sua maioria por órgãos colegiados, demonstram interesses da sociedade e fazem intermediação com o Estado em processos de decisão, implementação e avaliação de políticas públicas; essa reconfiguração “procura ampliar a participação da sociedade nos processos de decisão sobre as políticas públicas e o papel delas no controle dessas políticas” (Filgueiras, 2011, p. 4). Contudo, conforme conclui Filgueiras (2011), no Brasil ainda não é claro quais são o papel e a percepção desses conselheiros acerca da corrupção. Enquanto os conselheiros prezam pelo fomento e pela avaliação dos resultados de políticas públicas, não há uma atenção voltada a processos contábeis e jurídicos, que normalmente estão envolvidos no controle da corrupção. Percebe- se, nesse sentido, a importância da accountability em diversas instâncias da sociedade e da sua necessidade de expansão. FINALIZANDO Abordamos na presente aula a divisão da accountability entre horizontal e vertical. Conceituando a accountability horizontal, verificou-se que se trata da existência de agências estatais capazes de tomar ações que vão desde a supervisão rotineira a sanções criminais ou impeachment de agentes que tenham cometido ações ilegais. Em seguida, como instrumentos da accountability 015 horizontal, tratou-se dos poderes de veto e de decreto, conhecidos no Brasil como medidas provisórias. Em terceiro lugar, verificou-se que a accountability vertical se trata da existência de eleições razoavelmente livres e justas, em que os cidadãos podem punir ou premiar um mandatário votando a seu favor ou contra ele ou nos candidatos que apoie na eleição seguinte. Em seguida, estudamos o sistema eleitoral brasileiro, devido a sua importância para a accountability vertical, bem como sua relação com ela. Por fim, tratamos da accountability societal, em que o controle social sobre o poder público e suas burocracias é realizado por agentes coletivos, geralmente colegiados, e não por agentes de forma individualizada. 016 REFERÊNCIAS ANASTASIA, F.; MELO, C. R. F. Accountability, representação e estabilidade política no Brasil. In: O Estado numa era de reformas: os anos FHC: parte 1. Brasília, 2002. v. 7. (Coleção Gestão Pública). Disponível em: <http://www.cedec.org.br/files_pdf/OEstadonumaeradereformasOsanosFHCparte1 .pdf>. Acesso em: 5 abr. 2018. DA ROS, L. Poder de decreto e accountability horizontal: dinâmica institucional dos três poderes e medidas provisórias no Brasil pós-1988. Revista de Sociologia e Política, v. 16, n. 31, 2008. FILGUEIRAS, F. Sociedade civil e accountability societal no controle da corrupção no Brasil. In: Encontro Anual da ANPOCS. Belo Horizonte, 2011. FONTES FILHO, J. R.; NAVES, G. G. 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