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O que Vem com a Lua

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O Que Vem Com a Lua 
H.P. Lovecraft 
 
Odeio a lua, tenho medo dela, pois quando ela 
brilha sobre certas cenas familiares e amadas, às vezes as 
torna inusitadas e hediondas. 
Foi no verão espectral, quando a lua brilhava sobre 
o velho jardim onde eu passeava; o verão espectral de 
flores narcóticas e úmidos mares de folhagem 
provocando sonhos multicores e selvagens. E enquanto 
caminhava margeando a rasa corrente cristalina, vi 
estranhas ondulações com as cristas amareladas de luz, 
como se aquelas plácidas águas fossem arrastadas em 
correntes irresistíveis para estranhos oceanos fora do 
mundo. Silenciosas e faiscantes, brilhantes e malignas, 
aquelas águas amaldiçoadas pela lua corriam não sei 
para onde, enquanto nas margens verdejantes, brancas 
flores de lótus esvoaçavam uma a uma levadas pelo 
narcótico vento noturno, e caíam invariavelmente na 
corrente, girando vertiginosamente para longe, por baixo 
da ponte arqueada, entalhada, e olhando para trás com a 
sinistra resignação das impassíveis faces mortas. 
Enquanto corria ao longo da margem, esmagando 
flores adormecidas com pés descuidados, enlouquecido 
pelo medo de coisas desconhecidas e pela sedução das 
faces mortas, vi que o jardim não tinha fim sob aquele 
luar, pois onde havia muros durante o dia, agora se 
estendiam apenas novas paisagens de árvores e 
caminhos, flores e arbustos, ídolos de pedra e pagodes, e 
as dobras da corrente amarelada cruzando ribanceiras 
gramadas e passando por baixo de grotescas pontes de 
mármore. E os lábios das faces-lótus mortas 
 
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murmuravam tristemente e convidavam-me a 
prosseguir, e não cessaram meus passos até que a 
corrente virasse um rio desaguando, através de pântanos 
de juncos ondulantes e praias de areias cintilantes, na 
costa de um vasto e inominado oceano. 
Brilhava sobre aquele mar a hedionda lua, e de 
suas ondas mudas emanavam misteriosos perfumes. E, 
enquanto olhava as faces-lótus ali desaparecerem, 
ansiava por redes que me permitissem capturá-las e 
aprender com elas os segredos que a lua trouxera para a 
noite. Mas quando a lua desceu para o oeste e a maré 
calma refluiu a praia sombria, eu vi, sob aquela luz, 
antigas flechas quase descobertas pelas ondas e colunas 
brancas adornadas com festões de algas verdes. E 
sabendo que para este lugar submerso vieram todos os 
mortos, estremeci e não quis mais falar com as faces-
lótus. 
No entanto, quando enxerguei no horizonte 
marinho o negro condor descer do céu para pousar em 
um vasto recife, de bom grado eu o teria interrogado e 
perguntado por aqueles que eu conhecera quando 
estavam vivos. Isto eu lhe teria perguntado se não 
estivesse tão longe, mas ele estava muito longe e não 
podia ser absolutamente percebido ao se aproximar 
daquele gigantesco recife. 
Observei então a maré vazar sob aquela lua 
poente, e vi, cintilando, as flechas, as torres e os telhados 
daquela cidade morta gotejante. E enquanto olhava, 
minhas narinas tentaram se fechar para o mau cheiro dos 
mortos do mundo que afogava os perfumes; pois, 
realmente acumulara-se nesse lugar deslocado e 
esquecido toda a carne dos cemitérios para os túrgidos 
 
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vermes marinhos roerem e se fartarem. 
Sobre tais horrores pairava agora a maligna lua 
muito baixa no céu, mas os túrgidos vermes marinhos 
não precisavam da lua para se alimentar. E enquanto eu 
olhava as ondulações que diziam da convulsão dos 
vermes sob sua superfície, senti um novo arrepio vindo 
de longe, do lugar para onde o condor voara, como se 
minha carne tivesse captado um horror antes de meus 
olhos o verem. 
Não se arrepiara sem motivo minha pele, pois ao 
erguer os olhos, vi que as águas haviam recuado para 
muito longe, deixando a descoberto boa parte do vasto 
recife cuja borda já havia enxergado. E, quando percebi 
que o recife era apenas a negra coroa de basalto de um 
fabuloso ídolo cuja monstruosa testa agora se expunha 
sob o tênue clarão do luar, e cujas ignóbeis patas deviam 
escavar o lodo infernal muitas milhas abaixo, gritei e 
gritei, temendo que a face oculta se erguesse acima das 
águas e temendo que os olhos ocultos me fitassem depois 
da ocultação daquela vigilante e traiçoeira lua amarela. 
E para escapar dessa coisa implacável, mergulhei 
contente e sem hesitação nas águas rasas malcheirosas 
onde, entre paredes arruinadas e ruas submersas, gordos 
vermes marinhos se regalam com os mortos do mundo.

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