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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Valéria Machado “NÃO LUTAMOS PARA SAIR DA COZINHA!”: Trabalho doméstico e feminismo no Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina Florianópolis 2020 Valéria Machado “NÃO LUTAMOS PARA SAIR DA COZINHA!”: Trabalho doméstico e feminismo no Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de graduação em História, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para obtenção do grau de Bacharel/Licenciado em História Orientadora: Profª. Drª. Janine Gomes da Silva Florianópolis 2020 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, Dioneide e Valmir, por todo apoio, incentivo e amor durante esses mais de vinte e três anos. Sem eles nada disso teria sido possível. Agradeço também aos meus irmãos, Dorothy e Pedro Vicente, por todo amor e carinho. À professora Janine, que além de me acompanhar nesse processo contribuindo com suas orientações, sugestões e correções foi também colega durante meus quase dois anos na organização do FG12. Ao Henrique, que com seu jeito meigo e tranquilo - mesmo de longe - me fez sentir amada e cuidada e acreditou em mim em momentos difíceis Às amigas e amigos que fizeram com que eu tenha vivido bons momentos na universidade e fora dela. Em especial à Glenda, por ter sido uma das melhores pessoas que conheci, e mesmo vendo de perto todas as minhas aflições no desenvolvimento deste trabalho, me incentivou e acreditou em mim. Agradeço também ao LEGH, IEG e FG12, espaços nos quais atuei como bolsista e que contribuíram para minha formação feminista, além de terem me possibilitado construir muitas amizades. Por fim, agradeço a todas e todos que de diversas formas fizeram parte de minha trajetória escolar e acadêmica. RESUMO Este trabalho tem por objetivo perceber de que forma as militantes do Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina ressignificaram o trabalho doméstico no campo e fizeram com que estas experiências se transformassem em bandeiras de luta contra as opressões de classe e de gênero no espaço rural. A base desta pesquisa encontra-se principalmente na análise da história do MMC/SC, inserida no contexto brasileiro dos movimentos sociais do campo, na discussão teórica e histórica sobre o trabalho doméstico no Brasil, voltando-se especificamente para o trabalho doméstico no campo e na compreensão das especificidades do feminismo camponês presentes neste movimento. A pesquisa baseia-se, além da pesquisa bibliográfica da vasta produção acadêmica sobre os temas, em entrevistas realizadas com cinco militantes do MMC da região oeste de Santa Catarina, com a qual suas experiências no âmbito doméstico influenciaram a imersão e participação política no movimento das camponesas dessas mulheres, bem como a análise documental de materiais produzidos pelo próprio movimento, tais como: cartilhas, livretos, folheto informativos, panfletos. Ao final do estudo, concluiu-se que a reivindicação do espaço doméstico, o reconhecimento do trabalho feminino na agricultura familiar e as transformações das relações de gênero são fundamentais para a produção e reprodução da vida no campo e que o Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina têm tido um papel fundamental na luta pelo protagonismo das mulheres camponesas. Palavras-chave: Movimento das Mulheres Camponesas. Trabalho doméstico no campo. Feminismo camponês. Movimentos Sociais. ABSTRACT The objective of this article is to apprehend ways in wich Santa Catarina’s Peasant Women’s Movement (MMC/SC) activists resignified domestic labor on the countryside and transformed their experiences into ideas for fighting against class and gender opression in rural areas. This Research is based on MMC/SC’s history analysis in context of brazilian rural social movements, on the academic discussion regarding brazilian house work, focusing in peasant feminist’s take on rural domestic labor. In addition to the vast academic papers on the subject, this research is based on interviews with five activists from Santa Catarina’s west region, whose involvement with the movement was influenced by their own domestical struggle, as well as documental analysis of propaganda such as booklets produced by the movement. At the end of the studies it was concluded that vindication of domestic space, recognition of women’s work in familiar agriculture and transformations in gender roles are fundamental in perpetuating rural life and that MMC/SC’s has a major role on fighting for women’s protagonism. Keywords: Peasant women’s movement. Rural Domestic Labor. Peasant Feminism. Social Movements. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - Agricultura familiar e não familiar: variações entre 2006 a 2017……………...32 FIGURA 2 - Logotipo/Identidade visual do Movimento de Mulheres Camponesas …….….36 FIGURA 3 - Materiais do MMC disponíveis para download em seu site oficial……………44 FIGURA 4 - Mulheres jovens são retratadas à frente das pautas ligadas aos direitos LGBTQI+ e contra a LGBTIFOBIA em cartilha do MMC de 2020…………………………………......45 FIGURA 5 - Dinâmica sobre atividades realizadas pelas mulheres em um dia………….......51 FIGURA 6 - Opinião das mulheres sobre a participação dos homens no trabalho doméstico………………….………………………………………………………………….54 FIGURA 7 - Número de estabelecimentos agropecuários dirigidos pelo produtor (Unidades) - Sexo do Produtor.……….……………………………………………………………...……..57 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANMTR Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais CEBs Comunidades Eclesiais de Base FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MAB Movimento dos Atingidos pelas Barragens MMA Movimentos das Mulheres Agricultoras MMC Movimento das Mulheres Camponesas MMC/SC Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONU Organização das Nações Unidas PT Partido dos Trabalhadores UFPA Unidade Familiar de Produção Agrária UFSC Universidade Federal de Santa Catarina SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 CAPÍTULO 1: “Sem feminismo não há socialismo” 17 2.1 Os Movimentos Sociais no Brasil 18 2.2 O Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina 23 2.3 A atualidade do conceito “camponesa(ês)” 30 3 CAPÍTULO 2: “Não lutamos para sair da cozinha” 38 3.1 Feminismo camponês 38 3.2 Trabalho doméstico no campo 47 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 60 5 FONTES 62 6 REFERÊNCIAS 62 12 1 INTRODUÇÃO A 5 de outubro, oito ou dez mil mulheres foram a Versalhes; muita gente as acompanhou [...].Esse grande movimento foi o mais amplo que a Revolução apresentou depois de 14 de julho. O de outubro foi, quase tanto quanto o outro, unânime, no sentido de que aqueles que dele não participaram desejaram-lhe sucesso, e todos se alegraram de que o rei esteve em Paris [...]. A causa real, certa, para as mulheres, para a multidão mais miserável, foi uma só, a fome. [...]. Para a maior parte dos homens, povo ou guardas nacionais, a causa do movimento foi a honra, o ultraje feito pela corte ao emblema parisiense, adotado pela França inteira como o símbolo da Revolução. Entretanto, teriam os homens marchado para Versalhes se as mulheres não os tivessem precedido? Isso é duvidoso. Ninguém antes teve a ideia de ir buscar o rei [...]. O que há de povo de mais povo, quero dizer, de mais instintivo, de mais inspirado, são, por certo, as mulheres. Sua ideia foi esta: “Falta-nos pão, vamos buscar o rei; se ele estiver conosco, cuidar-se-á para que o pão não falte mais”. (MICHELET, 1998, p. 253). Este trecho de A História da Revolução Francesa de Jules Michelet sempre me causou certa inquietação, e, embora o historiador francês ainda esteja inserido numa lógica romântica e iluminista que reproduz a ideia de que à mulher pertence a natureza do sensível, do instintivo, da maternidade e da família - em contraponto de uma racionalidade exclusivamente masculina - suas observações acerca da Marcha sobre Versalhes nos fazem refletir sobre como as delimitações do espaço doméstico fizeram com que as mulheres fossem as primeiras a sentirem a escassez alimentar (são elas as responsáveis pelo preparo do alimento) e como esse espaço de experiência foi capaz de gerar um efeito mobilizador que ficou conhecido como um dos mais importantes do primeiro ano da Revolução Francesa. Observando como os movimentos feministas brasileiros têm se organizado no que diz respeito ao trabalho doméstico e a divisão sexual do trabalho no campo, minha pesquisa busca analisar a forma com que o Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina ressignificou a esfera doméstica e instrumentalizou as experiências de suas membras, transformando violências e opressões de classe e gênero em ferramentas na luta por direitos e emancipação. Segundo Lourdes Vicente, mulher camponesa e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “É na cozinha das propriedades rurais que estão os espaços de decisão da família. Não lutamos para sair da cozinha, lutamos para que se mude a ressignificação das relações de trabalho entre homem e mulher”1. A fala de Lourdes durante o 11º Seminário Internacional Fazendo Gênero2, em 2017, foi fundamental para o 1 MEDEIROS, Silvia. Um feminismo que brota da terra. Disponível em: <https://catarinas.info/um-feminismo-que-brota-da-terra/>. Acesso em: 29 mai. 2019. 2 O Seminário Internacional Fazendo Gênero é um evento acadêmico promovido por pesquisadoras das mais diversas áreas de conhecimento da Universidade Federal de Santa Catarina que acontece a cada três anos desde 1994. Voltado para temáticas que englobam as questões de gênero, o Seminário vem buscando em suas últimas edições uma aproximação com a comunidade não-acadêmica e com os movimentos sociais. Em sua 12ª edição, 13 desenvolvimento da ideia central deste trabalho e serviu de pontapé inicial para que eu pensasse a respeito das particularidades do feminismo camponês e das estratégias de resistência das mulheres do campo. O Movimento das Mulheres Agricultoras foi criado no ano de 1983 na cidade de Chapecó, no oeste catarinense, inspirado na figura da líder sindicalista paraibana Margarida Alves, assassinada no mesmo ano por um matador de aluguel. Ao longo dos anos oitenta diversas organizações e movimentos de mulheres do campo se organizaram em várias regiões do país, até que em 1986 se reúnem em São Paulo e promovem o I Encontro Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais, que tinha como um dos objetivos principais a organização da luta pelos direitos trabalhistas e de participação política e das trabalhadoras do campo. (Movimento das Mulheres Camponesas, 2018, p. 5). Ao longo dos anos o MMA vai se discutindo cada vez mais temáticas de gênero e ultrapassando as pautas ligadas ao trabalho e aos direitos políticos, passando a problematizar questões relacionadas ao espaço doméstico e às relações de gênero no campo, como violência, sexualidade, saúde, educação. Em 2004 o movimento se nacionaliza e passa adotar uma postura que tenta abranger as questões das mulheres do campo, voltando-se principalmente para as pautas ligadas à produção de alimentos saudáveis e livre de agrotóxicos. É nesse momento que o MMA “troca” de nome, passando a se chamar Movimento das Mulheres Camponesas. Embora os Estudos de Gênero estejam consolidados no país - dado o número de trabalhos desenvolvidos, a ampliação de grupos de pesquisa, a vasta produção literária - o aprofundamento nas temáticas que circundam este campo de pesquisa têm se mostrado cada vez mais necessário e complexo em nossa sociedade. De acordo com Maria Luiza Heilborn e Bila Sorj (1999, p. 184) diferente do que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa o feminismo brasileiro de segunda onda teve sua constituição menos ancorada nos movimentos sociais e mais articulada no meio acadêmico, desenvolvendo um caráter menos radical e mais científico. Vale lembrar que a “chegada” do feminismo no Brasil coincide com o início do período mais repressivo da Ditadura Militar (final da década de sessenta) . Segundo as autoras As acadêmicas, por sua maior exposição a ideias que circulam internacionalmente, estavam numa posição privilegiada para receber, elaborar e disseminar as novas questões que o feminismo colocara já no final da década de sessenta nos países capitalistas avançados. Assim, quando o movimento de mulheres no Brasil adquire visibilidade, a partir de 1975, muitas das suas ativistas ou simpatizantes já estavam inseridas e trabalhavam nas universidades (p. 285). que acontecerá em julho de 2021, o evento contará pioneiramente com simpósios temáticos coordenados por ativistas e artistas. 14 O avanço dos Estudos de Gênero e sua inserção em áreas para além das ciências humanas vêm refletindo nos últimos anos com relação às abordagens teóricas e no enfoque de várias pesquisas. Este avanço pode ser percebido, por exemplo, no campo de estudos e nas articulações entre a academia e os movimentos sociais. O próprio MMC é um exemplo de como o contato com produções e estudos feministas possibilitou um aprofundamento nas temáticas ligadas às questões de gênero, além disso, eventos como Seminário Internacional Fazendo Gênero tem atuado na transformação do espaço acadêmico, construindo novas perspectivas em parceria com os movimentos sociais feministas. Esse reflexo se dá inclusive nos estudos sobre campesinato no Brasil. Segundo levantamento feito por Edna Lopes Miranda e Ana Louise Carvalho Fiúza, a partir de teses e dissertaçõessobre a temática desde os anos 1980 até 2015, houve uma modificação nas configurações e organizações nos movimentos rurais/do campo no país, para as autoras [...] enquanto os movimentos sociais da década de 1980 até fins do século XX tinham as suas reivindicações focalizadas no mundo do trabalho, sendo a questão do acesso à terra o ponto fundamental das ações coletivas, os movimentos dos anos 2000 voltam-se de forma crescente para a vida cotidiana, com demandas relativas à Educação, ao uso dos meios de comunicação, bem como às questões relativas à juventude e às desigualdades de gênero. Desta forma, temas tradicionais nas pesquisas são recolocados e novos emergem a partir das novas dinâmicas dos movimentos sociais no meio rural. (FIÚZA, MIRANDA, 2017, p. 134) Isso indica que as pesquisas se modificaram ao longo do tempo e têm se atentado cada vez mais para essas reorganizações de enviesamento teórico e político. No levantamento feito pelas autoras os trabalhos com temáticas como mulheres e movimentos sociais contemporâneos correspondiam a 19% do total, sendo as palavras mulher, gênero, rurais, empoderamento, sindicato e militância as mais utilizadas nessas produções (p. 128). Este trabalho, inserido nos Estudos de Gênero e História, busca somar com as pesquisas que dão visibilidade a atuação das trabalhadoras do campo, ao trabalho doméstico, possibilitando a construção de um saber científico que dialogue diretamente com as experiências, conhecimentos, saberes e visões de mundo das militantes do MMC/SC, a partir da compreensão das complexidades de suas pautas e das ferramentas de resistência ao capitalismo e de transformação nas relações de gênero no meio rural. Nesta pesquisa trabalharei com dois tipos de fontes: materiais produzidos pelo próprio movimento e disponibilizados em seu site oficial e fontes orais (resultado de entrevistas). Estes materiais consistem em textos, cartilhas, folders, materiais de formação, imagens e são voltadas, em sua maioria, para a militância. De acordo com Fábio Chang de Almeida (2011, p. 19) são chamados de documentos digitais primários. Esses documentos “podem ser classificados em dois tipos básicos: os ‘documentos primários digitais exclusivos’ 15 e os ‘documentos primários digitalizados’” (p. 19). Segundo o autor, os documentos digitais exclusivos, como seu próprio nome indica, são feitos exclusivamente para publicação em espaço virtual; já os documentos primários digitalizados são aqueles, por exemplo, foram feitos para circulação impressa e posteriormente adaptados para o espaço virtual (p. 19). Por isso, embora todos os documentos do movimento das camponesas analisados nesta pesquisa estejam disponíveis online, vários deles foram produzidos para circulação impressa, e, considerando que se trata de um movimento social, acredito que a disponibilização desses documentos via internet sirva para que facilite seu acesso e divulgação. As entrevistas utilizadas estão inseridas em duas temporalidades distintas: 2012 e 2017 e tiveram diferentes finalidades e abordagens. Sirlei Gasparetto e Noeli (entrevistadas juntas) e Geneci Santos e Catiane Cinelli (entrevistadas juntas), foram entrevistadas pela historiadora Larissa Viegas Mello de Freitas na cidade de Chapecó, no Oeste de Santa Catarina, em 2012. Elas integram um conjunto de entrevistas feitas com mulheres de diferentes movimentos no Brasil e na América Latina que se identificam com o feminismo e fazem parte de um conjunto de fontes destinadas aos estudos sobre Feminismos no Conesul do Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, o LEGH. Estas entrevistas serviram como material para diversas pesquisas, incluindo a dissertação de mestrado de Larissa Freitas: “O Feminismo que veio do campo: movimentos de mulheres e trajetórias de identificação (Brasil e Paraguai, 1985 - 2010)”. É importante destacar que nesse período o Brasil tinha como presidenta Dilma Rousseff do PT, partido historicamente apoiado pelo MMC, bem antes dos movimentos de julho de 2013 e do golpe de 2016 que impeachmou Dilma. Já Luci Choinacki foi entrevistada em 2017 pela historiadora Soraia Carolina de Mello e faz parte do projeto Mulheres de Luta3, também do LEGH. Esta entrevista está inserida num cenário bem distinto das anteriores, no momento em que o Brasil vive ainda as reverberações causadas pelo impeachment e pelo avanço conservador no país, que levou Jair Messias Bolsonaro à presidência no ano seguinte. Neste cenário também diversos movimentos de ataque às temáticas de gênero e ao feminismo ganham força no país, como o Escola Sem Partido. Dessa forma, minha pesquisa, inserida no campo de História do Tempo presente, busca analisar a trajetória do MMC de Santa Catarina a partir das visões e memória destas cinco militantes (e dos materiais), entendendo suas construções coletivas mas também as subjetividades presentes em suas falas de acordo com estes contextos. No primeiro capítulo discutirei o processo de constituição dos movimentos sociais e as condições políticas, sociais e econômicas que contribuíram para a constituição dos 3 Ver http://www.legh.cfh.ufsc.br/projeto-mulheres-de-luta/. 16 movimentos sociais no Brasil a partir de reflexões de Maria Lúcia Duriguetto e Carlos Montaño. Também farei algumas considerações sobre o surgimento do movimento social camponês no Brasil e do Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina, com base nos trabalhos de Valdete Boni e Larissa Freitas. Por fim, trarei algumas discussões sobre o campesinato no Brasil e as concepções sobre a adoção do termo “camponesa” no movimento das mulheres. No segundo capítulo discorrerei sobre o trabalho doméstico partindo da conceitualização de Maria Cristina Bruschini e das contribuições de Soraia Carolina de Mello sobre o tema, ultrapassando as noções dualistas entre trabalho produtivo e reprodutivo, sobretudo para pensar a complexidade das atividades desempenhadas pelas mulheres camponesas e a forma como (se) este assunto é abordado pelo MMC. Nessa discussão me basearei principalmente nos trabalhos de Maria Ignez Paulilo sobre os diferentes valores atribuídos ao trabalho masculino e feminino no campo. Também abordarei as pautas do MMC pensando nas especificidades do feminismo camponês, das influências das experiências do privado na atuação política das militantes e nas estratégias de manutenção da vida no campo, sobretudo através da agroecologia, da preservação dos saberes tradicionais e da tentativa de transformação das relações de gênero. 17 2 CAPÍTULO 1: “Sem feminismo não há socialismo” [...] E o movimento de mulheres camponesas então, que é; a discussão de quem produz os alimentos, das mulheres que estão no campo, de diferentes atividades, e também tem uma questão da luta de classes. Se retoma também essa discussão do que é ser o camponês, que não é o atrasado, que a camponesa não é a atrasada, que não ficou parada na história, mas é a que traz uma cultura, é a que traz os seusvalores, é a que tem um cuidado com a terra. (CINELLI, 2012, p. 5). [...] Nesse processo o feminismo entra como conteúdo no sentido de que existe uma compreensão pra nós de que o capitalismo e o patriarcado são dois lados de uma mesma moeda que vão reafirmar a exploração e a opressão contra as mulheres, a discriminação, a submissão, a desqualificação, enfim. Então, nós compreendemos feminismo como um movimento das mulheres que lutam pela igualdade, né, contra a opressão de gênero, contra o patriarcado e contra a exploração, contra o capitalismo. Então pra nós, ser feminista é assumir o que? A luta de gênero, de classe, de etnia, enfim, uma luta mais ampla. Esse é o conceito de feminismo que vem perpassando as nuances da história da luta das camponesas no Brasil. [...] (GASPARETTO, 2012, p. 3). Os dois trechos acima foram retirados de entrevistas realizadas com militantes do Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina (em Chapecó) e fazem parte do conjunto de fontes que compõem este trabalho. Através dessas falas é possível identificar elementos que descrevem o caráter político e os princípios ideológicos do movimento: O feminismo e o combate ao capitalismo. É importante destacar que tanto Catiane Cinelli quanto Sirlei Gasparetto - mulheres camponesas - enxergam as opressões contra a classe trabalhadora e contra as mulheres como complementares, “dois lados da mesma moeda”, como destaca uma delas. Essas duas falas deixam evidente que tais percepções não são individuais: elas fazem parte das construções de discurso, de memória e de identidade que, enquanto fenômenos sociais, compõem a própria natureza dos movimentos. Dessa forma é possível encontrar esse mesmo discurso no tópico “Quem somos” no site oficial do MMC: Somos mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem terra, assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade do nosso país. Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e pela transformação da sociedade. [...] Há mais de vinte anos construímos um Movimento autônomo, democrático, popular, feminista e de classe, na perspectiva socialista ( MMC, [20--?] ). Percebemos, então, que o feminismo camponês carrega consigo as compreensões da realidade das mulheres dentro de uma lógica patriarcal atravessada pelas questões de classe e de raça/etnia, construídas através das experiências e visões de mundo de suas militantes. Isso nos mostra que os movimentos sociais não são meras aglomerações de indivíduos que lutam por uma causa comum, mas se trata de organizações que atuam dentro de princípios 18 político-ideológicos e se organizam dentro de uma prática que pode se transformar ao longo do tempo. Para que possamos compreender as complexidades do trabalho doméstico no campo e, sobretudo, as atuações do MMC/SC e suas formas de resistência no que diz respeito às relações e ressignificações das relações de gênero no meio rural, dedicaremos este capítulo para discutir as especificidades dos movimentos sociais [do campo], a forma como se constituem e como atuam na sociedade (de sua gênese até as transformações que sofrem ao longo do tempo) e, a partir desta análise, identificar as condições políticas, econômicas e sociais que contribuíram para a formação do Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina. 2.1 Os Movimentos Sociais no Brasil Muitos dos movimentos sociais que emergiram no Brasil nos anos setenta tinham como principal inimigo o regime militar. Com o fim do governo militar e o início do processo democrático, os movimentos sociais passaram a se desenvolver a partir de pautas mais específicas: educação, gênero, sexualidade, meio ambiente, raça, etnia. Nesse novo contexto neoliberal, Ana Lúcia Duriguetto e Carlo Montaño (2010) ressaltam que alguns movimentos sociais “vêm ativando as lutas de classe e sociais nos marcos das contemporâneas de dominação e exploração” (p. 294). Esses movimentos se caracterizam pela contestação dos avanços neoliberais associados com o afunilamento de explorações ligadas ao trabalho, às relações de gênero e aos direitos indígenas. A nível internacional, os autores destacam a Via Campesina. Para estes autores, o principal objetivo das do movimento é “desenvolver a solidariedade entre as organizações de pequenos agricultores; preservação da terra; soberania alimentar […]; produção agrícola sustentável, entre outros” (p. 298). A via campesina foi criada em 1992 e conta com organizações e movimentos camponeses da América Latina, Ásia, América do Norte, Caribe, América Central, Caribe e Leste e Oeste Europeu. No Brasil, os movimentos que integram a via são o Movimento das Mulheres Camponesas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o Movimento dos Atingidos Por Barragens e o Movimento dos Pequenos Agricultores. O fato do MMC compôr a Via Campesina faz com que seja considerado um movimento contra o avanço do neoliberalismo, atrelado ao movimento feminista, ou seja, o Movimento das Camponesas atua contra os avanços neoliberais através de uma prática feminista, ancorada, sobretudo, na libertação das mulheres através da produção alimentar sustentável e saudável. 19 Embora os camponeses tenham articulado e protagonizado importantes movimentos de resistência e disputa pela terra ao longo de todo o processo histórico do Brasil - dos quais se destacam a Guerra de Canudos e a Guerra do Contestado - a formação das Ligas Camponesas são um importante marcador na constituição do que nos anos setenta e oitenta passou a se configurar nacionalmente como Movimento Camponês. A organização das Ligas Camponesas transformaram as perspectivas dos movimentos do campo no Brasil e, como veremos a seguir, umas das condições para a emergência dos movimentos sociais apontadas por Duriguetto e Montaño é justamente o cenário de lutas que antecederam o golpe de militar, dessa forma, podemos considerar que através de transformações sociais e políticas o movimento camponês dos anos 1950 reverbera e se rearranja nos anos setenta, acompanhando as mudanças sociais e levando em conta os agravamentos das condições de produção e reprodução da vida no campo. As Ligas Camponesas eram organizações de camponesas e camponeses que se articularam principalmente no nordeste entre a década de 1940 e os anos que antecederam o golpe militar. Um dos momentos de maior expressão das Ligas foi entre 1945 e 1947, onde funcionavam, nas palavras de Marleide Sérgio, como “organizações-apêndice” (SERGIO, 2016, p. 101) do Partido Comunista, reunindo milhares de membros(as) (FREITAS, 2011, p. 271; SERGIO). Além da influência do PCB, as Ligas tiveram forte participação da Igreja Católica, sobretudo no início dos anos sessenta. De acordo com Larissa de Freitas (2016, p. 262) Desde a década de 1950 a Igreja Católica passou a reestruturar sua atuação perantea sociedade, mostrando-se mais sensível aos problemas sociais da população, e isso vinha em grande parte da América do Sul. Entre 1961 e 1965 ocorreu o Concílio Vaticano II, que de modo geral definia uma atuação mais popular de orientação pastoral da igreja, propondo a realização de trabalhos sociais com as comunidades em que estava inserida. O fracasso da guerrilha armada (tendo como maior exemplo a Guerra do Araguaia) e repressão violenta do regime militar contribuíram para que o Partido Comunista se tornasse cada vez menos influente nas articulações dos camponeses e fez com que a Igreja exercesse um papel fundamental nos anos sessenta na construção de uma base camponesa que vai constituir os movimentos do campo na segunda metade da década de 1970. Voltaremos a este tema mais adiante. As Ligas serviram não apenas como meio de luta e resistência do campesinato entre a década de 1940 e 1960, elas se constituíram como importante expressão das mobilizações do campo e fazem parte da construção da memória e da identidade política e militante do movimento camponês na década de 1980. Além disso, a herança ideológica 20 marxista deixada pelo Partido Comunista pode ser vista ainda hoje no movimento camponês, a exemplo disso temos o feminismo com recorte de classe do MMC. A reivindicação desse passado no movimento das camponesas acontece principalmente a partir da mudança do nome, em 2004, quando se tem a necessidade de construção de uma identidade, e é nesse momento em que o resgate de um passado de lutas se torna imprescindível principalmente por se tratar de uma nomenclatura pouco utilizada nos movimentos da região sul, segundo uma das militantes Então discutir assim o que é ser camponesa, qual o significado da vida camponesa, da cultura camponesa. Como é que se discute o campesinato, o que tem de história do campesinato. Retoma-se as Ligas Camponesas do nordeste, por exemplo. Tem um significado e as mulheres vão compreendendo isso. Esse mesmo resgate foi feito pelos demais movimentos, sobretudo aqueles que passaram a integrar a Via Campesina. A fala de Pedro Stédile, um dos fundadores do MST e importante defensor da reforma agrária demonstra essa retomada de um passado “heróico” das Ligas: As Ligas foram assassinadas! Como organização social foram destruídas. Mas haviam semeado em terra fértil. E suas experiências e pregações ficaram adormecidas profundamente, mas, depois de muitos anos, rebrotaram. [...] vinte anos depois, rebrotaram em diversos outros movimentos sociais no campo brasileiro. Entre eles, no MST. Por isso, muito nos orgulhamos de sermos descendentes desse grande movimento camponês, as Ligas Camponesas (STÉDILE, 2002, p. 8 apud SERGIO, 2016, p. 106). Para Rosemeire de Almeida, o Brasil passa a ter uma questão agrária, ou melhor, um problema agrário com o fortalecimento das medidas de modernização do campo iniciadas na década de 1950 e que tomam maior expressão nos anos sessenta. É nesse momento, segundo a autora, que a herança latifundiária se torna mais complexa, pois a base técnica da agricultura é transformada através da “‘Revolução Verde’ que produziu a chamada ‘modernização dolorosa’”(ALMEIDA, 2009 p. 1). De acordo com Gonçalves (2004) A própria denominação revolução verde para o conjunto de transformações nas relações de poder por meio da tecnologia indica o caráter político e ideológico que ali estava implicado. A revolução verde se desenvolveu procurando deslocar o sentido social e político das lutas contra a fome e a miséria, sobretudo após a Revolução Chinesa, Camponesa e Comunista, de 1949. Afinal, a grande marcha de camponeses lutando contra a fome brandindo bandeiras vermelhas deixara fortes marcas no imaginário. A revolução verde tentou, assim, despolitizar o debate da fome atribuindo-lhe um caráter estritamente técnico. O verde dessa revolução reflete o medo do perigo vermelho, como se dizia à época. Há com essa expressão revolução verde uma técnica própria da política, aqui por meio da retórica (p. 212 apud ALMEIDA, 2009, Grifos do autor). O processo de modernização do campo no Brasil foi marcado pela substituição das plantações de café pela produção da soja e pela introdução de pacotes tecnológicos 21 (pesticidas, fertilizantes), seguindo um modelo que também pode ser observado na Ásia. Esse processo serviu para que houvesse o aumento da mercantilização tanto de produtos quanto das forças de trabalho (BONI, 2012). Os impactos do “milagre econômico” agravaram as desigualdades sociais no campo, precarizando ainda mais o trabalho e as condições de vida dos camponeses em benefício do latifúndio e do crescimento da agroindústria. De acordo com Maria Lúcia Duriguetto e Carlos Montaño (2011), a modernização causou um processo acelerado na proletarização/assalariamento rural, o que aumentou o número de trabalhadores temporários e as migrações para grandes centros industriais e, é nesse momento que o Brasil passa a ser um país efetivamente urbano (p. 269). São esses fatores econômicos, sociais e políticos que vão contribuir para a emergência dos movimentos do campo. Segundo estes autores, existem três condições históricas para a emergência dos movimentos sociais no Brasil. A primeira diz respeito à diversidade latino-americana4. A segunda condição está ligada ao processo de modernização conservadora no Brasil. Para os autores o período conhecido como “milagre econômico” (1968-1973) marcou o avanço do capitalismo no país através da estratégia de endividamento externo e suas consequências foram sentidas pela classe trabalhadora através de piores condições de trabalho, desemprego, fluxo migratório intenso das populações rurais para os centros urbanos (sobretudo para a região sudeste e centro-oeste)5, loteamentos irregulares que ocasionaram o aumento das favelas e a precarização do acesso à saúde, moradia e educação, arrocho salarial, e, consequentemente, o aumento da desigualdade social. Isso contribuiu para o fortalecimento das insatisfações da população que, além de lidar com a forte repressão política e a violência do regime ditatorial, passou a enfrentar também os impactos econômicos causados por este modelo capitalista de aceleração industrial. Entre o fim da década de sessenta e o início da década de setenta este modelo começa a entrar em colapso e serve para potencializar o surgimento de organizações e movimentos populares que irão eclodir na constituição dos movimentos sociais nos anos oitenta, que além do fim das articulações pelo acesso aos bens de consumo (contra carestia, associações de bairro/moradores, mobilizações pelo direito à moradia, à creche, à saúde etc) também passam a pedir o fim da ditadura (diretas já) (p. 274-275). 4 Como nosso foco aqui é abordar o movimento social camponês no Brasil, não nos estenderemos em discutir o contexto latino-americano. De modo geral, esta condição diz respeito aos processos históricos heterogêneos e às diferentesconstituições dos grupos sociais na américa-latina e suas diferentes formas de resistência. 5 De acordo com Duriguetto e Montaño, esse fluxo migratório fez com que a população proletária saltasse de 7,7 milhões em 1970 para 14,3 milhões na década de 1980 (p. 269). 22 A terceira condição está ligada ao cenário de lutas que precederam o golpe de 1964: Entre os anos de 1961 e 1964, as organizações das classes subalternas tiveram forte momento de ascensão na sociedade civil brasileira. Aglutinados sob a bandeira das reformas de base (reforma agrária, tributária, bancária, urbana, política e universitário, de cunho democrático e nacionalista) uma forte mobilização social se expressou por meio do movimento sindical, dos movimentos no campo e do movimento estudantil. Centenas de greves foram realizadas pelo movimento sindical urbano e pelos movimentos sociais e sindicais no campo pela reforma agrária.6 [...] O campo democrático e popular, sustentado assim na versão de amplas camadas de trabalhadores urbanos e rurais sobre a bandeira das reformas de base, colocava em questão aqueles dois traços que caracterizam a nossa formação social: o capitalismo sem reformas e a exclusão das massas dos níveis de decisão (p. 270). Isso demonstra a construção e a emergência de “novos” sujeitos políticos e transformações das organizações desses grupos sociais que passam a ter visões mais complexas e nacionalizadas da sociedade brasileira e essa organização atinge todos os setores: passa pelas condições da vida privada, do trabalho, do acesso a serviços fundamentais, questões de gênero, raça, sexualidades. São diferentes formas de organização que confrontam o sistema do qual são fruto. No entanto, este processo é completamente interrompido com o Golpe de 1964, onde todas as possibilidades de desenvolvimento democrático são fortemente repreendidas através da instauração de uma política de violência institucionalizada, como os Atos institucionais e os Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). O cenário extremamente hostil não impediu que houvesse organizações e articulações clandestinas de resistência ao regime. Duriguetto e Montaño (2011, p. 273) destacam a Passeata dos Cem Mil (1968), as greves dos metalúrgicos de Contagem e Osasco (1968), as atuações dos grupos de esquerda que defendiam a luta armada e atuaram através de assaltos a bancos, sequestros de representantes internacionais (destaca-se o caso do embaixador dos EUA Charles Burke Elbrick), e por meio da ação política por vias legais, como foi o caso do MDB - partido de oposição ao do governo, o Arena. Além das três condições locais/nacionais, a emergência dos novos movimentos sociais no Brasil acompanharam as transformações no mundo ocidental em volta das mobilizações desencadeadas pelos acontecimentos de maio de 1968 em Paris, que marcam as transformações nas organizações sociais que vão repercutir nos movimentos contra a Guerra do Vietnã, pelo fim da segregação racial nos EUA e pelos direitos dos negros, no movimento feminista, movimento LGBT, o movimentos ecologista, estudantil. Assim, 6 Destaca- se a criação da União Nacional dos Estudantes (UNE), Centros Populares de Cultura (CPCs), Movimentos católicos (JUC, JAC), criação do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Política Popular, Ação Popular etc. (DURIGUETTO, MONTAÑO). 23 Esse aparecimento assina um novo limite da conflitividade produzida pelo movimento operário: “a contestação do poder do capital sobre o trabalho não se estendeu ao poder fora do trabalho”, ou seja, as lutas operárias não conseguiram se articular com as demandas e lutas dos chamados novos movimentos sociais emergentes (p. 265). Os movimentos sociais que se constituem no Brasil entre a década de 1970 e 1980 inserem novas visões no campo de atuação política, desenvolvendo novas concepções e “buscam lutar no seu cotidiano contra as amarras da alienação, no ‘aqui e agora’, experimentando formas organizativas de auto-gestão, auto-avaliação, criando a possibilidade histórica de desenvolvimento de um processo de conscientização sobre as condições políticas causadoras da alienação” (ALMEIDA, 2009, p. 5). O cenário anti-democrático do período militar evidenciou o “não lugar” desses sujeitos, que a partir de mecanismos locais de articulação e resistência atribuem sentido às suas indignações e que coletivamente passam a reivindicar melhorias nas condições de trabalho, a criação de políticas públicas e ampliação dos direitos civis voltados para cidadania, cultura, raça/etnia, sexualidade, gênero. 2.2 O Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina A História de formação do Movimento das Mulheres Camponesas está inserida num contexto nacional pós-ditadura militar de reorganização dos movimentos ligados ao trabalho rural e o direito à terra. Segundo a autora Maria José Carneiro (1994, p. 11), é na década de 1980 que as mulheres do campo começam a se organizar em movimentos sociais que visam resolver problemas específicos ligados, sobretudo, ao trabalho. Isso não significa que antes desse período as mulheres não estivessem engajadas em organizações de luta camponesa, o que acontece, segundo a autora, é que “até então, a inserção feminina nos movimentos sociais no campo realizava-se, normalmente, através da participação dos respectivos maridos ou de outros familiares”. Para Elizabeth Ferreira da Cruz a participação das mulheres rurais em movimentos e organizações políticas é invisibilizada, já que elas estiveram presentes nas Ligas Camponesas7, na criação dos sindicatos rurais, na constituição das CEBs e pastorais sociais e de grupos que já estavam voltados para a situação das mulheres do campo, como clube de mães e clube de mulheres do campo (2008, p. 161). Essa participação invisibilizada e limitada vai ser, inclusive, o motivo pelo qual as mulheres veem 7 Destacamos aqui a importância política de Elizabeth Teixeira na liderança das Ligas Camponesas na Paraíba. Elizabeth assumiu o movimento em Sapé/PB depois que seu marido, João Pedro Teixeira, foi assassinado por latifundiários da região, em 1962. Para Larissa de Freitas a militância de Elizabeth se divide em duas fases: quando acompanhava o marido (mas já tinha participação ativa na Liga) nas reuniões e quando toma a frente do movimento depois do assassinato de João Pedro (FREITAS, 2011, pp. 271-272). 24 a necessidade de organizar um espaço onde possam ter maior participação, onde sejam responsáveis pelas tomadas de decisão e, principalmente, um espaço em que além dos interesses da “classe camponesa” também possam construir pautas voltadas para as mulheres do campo. Para compreender o Movimento das Mulheres Camponesas é preciso pensar suas especificidades e, para além do contexto nacional, discutir as características regionais do oeste catarinense e suas implicações no tipo de organização camponesa que surge ali. Enquanto o modelo agroindustrial implantado na região norte e centro-oeste do país se caracterizou pela monocultura latifundiáriade produção de soja, milho e criação de gado de corte para o abastecimento do mercado externo, a região sul é marcada pela presença de minifúndios destinados, sobretudo, ao abastecimento interno de produção de alimentos, leite aves e suínos, sendo esses dois últimos também destinados à exportação e nos quais as indústrias frigoríficas irão investir na produção integrada com os pequenos agricultores (BONI, 2012). As origens do modelo de agricultura no sul, especificamente no oeste de Santa Catarina, tem ligação direta com o tipo de ocupação e de política de terras que se desenvolve na região. Jaci Poli (2014, p. 149) destaca que existem três fases de ocupação do oeste catarinense: a primeira, que vai até meados do século XIX e diz respeito ocupação indígena de etnia Kaingang; a segunda, conhecida como “cabocla” e tem origem da miscigenação de portugueses com indígenas da região; e a terceira, a fase da colonização, marcada pela chegada de imigrantes de origem alemã e italiana vindos do Rio Grande do Sul, sendo esta que vai definir as atividades agrícolas da região. A chegada dos indivíduos de origem europeia vindos do Rio Grande do Sul foi causada pelo esgotamento de terras neste estado e a colonização da região oeste de Santa Catarina, amplamente estimulada pelo Estado. Dessa forma, essas famílias compravam terras no oeste através das companhias colonizadoras que eram as responsáveis pela demarcação dessas terras. É importante ressaltar que este território já era ocupado por indígenas e “caboclos”, que por sua vez não possuíam títulos das terras. Antes da colonização os caboclos concentravam suas atividades na agricultura de subsistência, mas com a chegada dos imigrantes passaram a trabalhar como diaristas ou agregados nessas propriedades (BONI, 2012). As áreas da região eram caracterizadas pelos terrenos de difícil acesso porém a experiência europeia de produção agrícola fez com que agricultura se desenvolvesse de forma que as famílias produziam para sua subsistência enquanto o excedente era comercializado e a renda muitas vezes utilizada para pagar as companhias colonizadoras. Essa política de venda 25 de terras para pequenos produtores fez com que se desenvolvesse ali a policultura, mesclando produção de alimentos e criação de animais. Com as políticas de modernização no campo houve uma virada agroindustrial que fez com que esses pequenos agricultores passassem a produzir em maior escala e especializassem sua produção/criação. Assim, a partir da década de 60 a região presencia um aumento na produção de suínos, incentivada e influenciada pelo estabelecimento de indústrias frigoríficas (Perdigão, Sadia, Aurora, Seara) e pelo Estado, como destaca Paulilo: No Oeste do Estado, outro fator de modernização foi a expansão dos frigoríficos. Essas empresas trabalham na forma de ‘produção integrada’, isto é, fornecem insumos e assistência técnica ao produtor e compram toda a produção. Essa é uma forma oligopólio-oligopsônica de comércio, porque o agricultor se obriga a só comprar os insumos da agroindústria e a vender o produto para ela. Para ser integrado o agricultor tem que obedecer padrões de qualidade bastante altos e mesmo internacionais, quando os bens são exportados. Caso não o faça, ou não consegue ligar-se às empresas ou é delas desligado, porque nada lhe assegura a continuidade do contrato (1998, p.113 Apud BONI, p. 32). Isso demandou que a produção de suínos e aves substituísse a policultura e, como consequência, fez com que as famílias não conseguissem mais produzir para seu próprio abastecimento e passassem a dedicar a propriedade ao atendimento das demandas industriais, pois além do produto final da produção a criação desses animais fez com que aumentasse a produção de soja e milho que serviam de alimento para aves e suínos. Com a instalação de agroindústrias, passaram a produzir em maior escala e a se dedicar a criações mais específicas. Nos anos 1960 surge uma nova fase na produção de suínos, com a interferência direta das agroindústrias e do Estado neste processo que visava modernizar a agropecuária nacional. Essa produção foi a primeira a se destacar após a instalação dos frigoríficos na década de 1970. Os agricultores, que já produziam para o autoconsumo, passaram a produzir em maior escala e fornecer seu produto ao mercado, por meio do sistema de integração com as agroindústrias, utilizando novas técnicas para o aumento de produtividade e transformando essa produção na principal atividade econômica da região (BONI, 2014, p. 109). O processo de integração da agricultura fez com que os agricultores e agricultoras perdessem o controle e autonomia sobre todo o processo de produção, isso porque as indústrias eram as responsáveis pelo estabelecimento das técnicas utilizadas nesse processo, dessa forma pequenos produtores perderam a centralidade da sua própria atividade (BONI, 2014; PAULILO, 1990). Outra consequência da modernização foi esgotamento das terras, o que gerou um processo migratório para outras regiões do país, conforme destaca Valdete: Nesse período, intensifica-se a migração para o norte e centro-oeste do Brasil. Havia uma escassez de terras no oeste catarinense, as famílias eram numerosas e já não havia terra para todos os filhos. É importante lembrar que, embora não seja legal, segundo a legislação brasileira, não era comum (e ainda não é) as mulheres nessa região herdarem terras, pois supunha-se que ao se casarem teriam terra devido à herança de seu marido. Mesmo assim, as terras não eram mais suficientes para que todos os filhos homens fossem contemplados na partilha da propriedade. Com a implantação e crescimento das agroindústrias de carnes, como a Sadia e a Perdigão, 26 havia o incentivo para que alguns migrassem para as cidades para servir de mão-de-obra urbana (p. 34). A autora destaca que esses fatores, aliados às influências da igreja (abordaremos esta questão mais adiante) geraram uma resposta de organização e articulação dos Camponeses que resultou na emergência e reorganização de diversos movimentos A reorganização de muitos movimentos no campo foi ocorrendo de forma gradativa; eram reuniões, em muitos casos grupos de consciência ou de reflexão, que aconteciam ainda, em sua grande maioria, no espaço da igreja, de forma mista ou não neles eram discutidos variados temas voltados para a realidade cotidiana da região onde as pessoas viviam: dificuldades enfrentadas por pequenos agricultores com relação à expropriação crescentes de terras; dificuldades com plantio; discussões sobre a falta de auxílio do governo; reflexões em torno das transformações que estavam ocorrendo diante da campanha governamental de modernização do Campo; crescimento do latifúndio em detrimento da pequena propriedade; reforma agrária; entre outras. Muitas mulheres da área rural também passaram a participar desses debates e reflexões (que eram predominantemente compostos por homens) propostos por clérigos ou agentes pastorais. (FREITAS, 2011, p.265). Estes grupos começam a tomar forma mais organizativa a partir da segunda metade da década de 1970, acompanhando a constituição de movimentos sociais em todo o país, tanto no espaço rural quanto no urbano. Um dos marcos mais importantes para o movimento camponês (sobretudo no sul do Brasil) foi a ocupação da fazenda Macali, em Ronda Alta/RS e da fazendo Burro Branco, em Abelardo Luz/SC, em 1979 e 1980, que deram origem ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST (DURIGUETTO, MONTAÑO, 2011; BONI, 2014). Nesta mesma época vários trabalhadores da região do Alto Uruguai (SC e RS) são desapropriados de suas terras para a construção de usinas hidrelétricas (Itaipu, Itá), o que gera mobilizações que dão origem ao que nos anos oitenta seria conhecido como Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB. Além da influência da Igreja Católica, Valdete Boni também aponta para a importância do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chapecó, que foi conquistado pela oposição em 1980 e passou a se mobilizar em favor da diminuição de juros e crédito especial para agricultores familiares e direitos trabalhistas. O sindicato vai ter papel importante também no que diz respeito ao incentivo à sindicalização das trabalhadoras rurais em 1982 e no reconhecimento da profissão “agricultora”. Isso reflete no fato de que na sua primeira década o Movimento das Mulheres Agricultoras vai traçar pautas e construir lutas ligadas ao trabalho, motivadas, sobretudo, pelos interesses de classe: Nos anos da década de 1980 se consolidaram diferentes movimentos de mulheres nos estados, em sintonia com o surgimento de vários movimentos do campo. Nós trabalhadoras rurais construímos a nossa própria organização. Motivadas pela bandeira do Reconhecimento e Valorização das Trabalhadoras Rurais, desencadeamos lutas como: a libertação da mulher, sindicalização, documentação, 27 direitos previdenciários (salário maternidade, aposentadoria...), participação política entre outras” (MMC [20--?] ). Em 1986 o MMC dá um importante passo em direção às conquistas dos direitos trabalhistas das mulheres do campo: a eleição de Luci Choinacki como deputada estadual de Santa Catarina. Luci foi a primeira mulher agricultora eleita ao cargo de deputada no Brasil, e a segunda mulher a ocupá-lo no estado8. Segundo ela, sua candidatura foi incentivada tanto pelo sindicato dos trabalhadores rurais quanto pelo Partido dos Trabalhadores. É interessante ressaltar que a proximidade dos movimentos do campo no oeste de Santa Catarina e do sindicato dos trabalhadores rurais com o PT tem a ver com o fato de que as pessoas que constituíam tanto os movimentos quanto o partido eram as mesmas, evidenciando que o movimento camponês se atrelava a diferentes formas de luta política: a religiosa, a sindical, a partidária e a dos “novos” movimentos sociais, essa mesma metodologia esteve presente na constituição do MMC - quando ainda se chamava MMA. Nas palavras da ex deputada: era pra ser candidata a deputada, mas ninguém queria ser, nem eu, porque a gente achava um abs...pra nós era coisa do outro mundo, política, fazemos um movimento, me realizava fazendo movimento e trabalhando na roça daí, foi foi, daí as mulheres vai tu Luci, tu já fala mais, não sei o que, daí eu aceitei, vamos lá, vamos ver o que que dá, mas a gente saiu pra cumprir uma meta, uma missão, não era para buscar eleição, nem ideia passava pra isso né, ai tanto que quando a gente, se elegeu [...] o pessoal, tinha pessoas que diziam, as próprias mulheres, aquelas que não faziam campanha pra gente : - tu até pode se eleger, mas o que que tu vai fazer lá? Né, e foi a única que se elegeu do PT, em 86, e a única mulher também, num estado que não é, assim, tão democrático com as mulheres, um estado de, que eu digo que Santa Catarina é de uma linha conservadora ainda, com a participação feminina popular, social, e eu vim desse meio e foi uma batalha enorme pra se garantir como, num mandato (CHOINACKI, 2017 p. 3). A eleição de Luci Choinacki foi fundamental para a defesa e conquistas dos direitos das mulheres camponesas. Durante o exercício do mandato a então deputada relata ter sofrido diversas formas de opressão: [...] então a minha vida na política foi assim, muito dura, como é, porque […] por primeiro por ser mulher, segundo por ser agricultora, terceiro por ter um envolvimento sempre social e botar sempre os pobres em primeiro lugar, pobre não dá lucro, pobre só dá voto, então isso eles, muito gente pensa, e pra mim trabalhar com esse público eu tive que fazer muito esforço, pra eles acreditar que eu podia ajudar, que o mandato podia ser um instrumento de, não de fazer as coisas, mas de mobilizar, de apresentar sugestões e trabalhar junto, isso a gente conseguiu por muitas vezes (p. 04). Luci representa o que podemos chamar de primeira fase política pós-ditadura, caracterizada pela inserção pela via política tradicional de indivíduos ligados aos movimentos sociais e às demandas populares, sendo que sua eleição serviu para que mulheres de várias 8 Antonieta de Barros foi a primeira mulher a ocupar o cargo de deputada estadual no Brasil e a primeira mulher negra a ocupar um cargo político no país, em 1935. 28 regiões do país lançassem campanhas e ocupassem cargos municipais, como vereadoras. Percebemos, então, que num primeiro momento os movimentos sociais tiveram inserção no sistema tradicional político, ocupando cargos públicos e levantando bandeiras pela reivindicação de direitos. As transformações do movimento de acordo com os direitos conquistados na constituição de 1988 resultam num afastamento e rompimento com o sindicalismo, com o partido e com a igreja na década de 1990 e define uma identidade mais autônoma e voltada para as questões de gênero (BONI, Ibidem, p. 39). Em 1995 vários movimentos autônomos de mulheres do campo se juntam e constroem a ANMTR, Associação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais. Para Larissa Freitas, as mobilizações das mulheres do Campo em Santa Catarina se deram por dois motivos fundamentais: 1) atuação das comunidades eclesiais de base (CEBs) e 2) do compartilhamento de experiências ligadas à realidade das mulheres do Campo e a necessidade de uma organização em defesa de seus direitos (FREITAS, 2011, pp. 265 - 266). Este segundo motivo não foi exclusivo do movimento das mulheres camponesas, muito menos das constituições do feminismo só no Brasil. Os grupos de reflexão eram espaços utilizados para refletir e compartilhar experiências e vivências pelas mulheres, principalmente sobre a realidade das mulheres camponesas. Larissa Freitas afirma que estes grupos foram originalmente utilizados pelos primeiros grupos feministas nos Estados Unidos. Acreditamos que a concepção de originalidade é perigosa, principalmente quando se parte de uma perspectiva ocidental. O fato desta metodologia ser utilizada também pelas mulheres camponesas -sendo praticamente impossívelpensar num tipo de inspiração nessa metodologia - o que defendemos é que, num contexto de perseguição e impossibilidade de publicizar certos debates (a questão da mulher não tinha espaço dentro das pautas “mistas”) esta estratégia do diálogo, da conscientização, do compartilhamento de ideias em um espaço seguro e privado faz com que os indivíduos sintam maior liberdade para abordar certas temáticas e esta prática ultrapassa as questões de gênero e não se limita aos Estados Unidos e Europa. Era uma forma de a gente compreender o mundo, compreender-se a si próprio no mundo e a partir desse mundo que eu vivi, que eu vivo, que eu estou inserido, os padrões, cultura, tradições, vícios, concepções, educação, que educação eu recebi, como eu vivi, como se dá toda essa discussão... Como É que eu interpreto isso e aí vem todo o processo da indignação, porque a pessoa começa a se indignar e o movimento dialoga com isso e diz: não basta indignação, é preciso superar e propor (GASPARETTO, 2012, p). Boa parte das percepções da realidade e do fomento organizativo do movimento das mulheres agricultoras vieram da forte ligação com a Igreja, principalmente através das 29 mudanças políticas adotadas a partir do Concílio Vaticano II, ocorrido entre 1961 e 1965. A partir dele a Igreja “adotou uma atuação mais popular de orientação pastoral da igreja, propondo a realização de trabalhos sociais com as comunidades em que estava inserida. Muitos desses trabalhos se desenvolveram nas Comunidades Eclesiais de Base” (FREITAS, 2011, p. 262), as CEBs. As Comunidades Eclesiais de Base tiveram um papel fundamental nas aproximações e mediações entre a população e as questões políticas da época (Ibidem, p. 261), o que fez com que a Igreja substituísse as vias políticas tradicionais, como o sindicato, durante os anos de chumbo. De acordo com Jacir Casagrande (1991) isso acontece porque os “canais tradicionais de organização e representação política, os anos pós 64, no Brasil, passaram a ser severamente controladas pela ditadura militar e muitos líderes sindicais combativos foram eliminados”, isso nos ajuda a compreender o espaço que a Igreja ocupava nessas comunidades, nas palavras de Freitas (2011, p. 262): Naquele momento, a participação da Igreja poderia garantir três condições fundamentais para as pessoas engajadas nesses movimentos: maior proteção frente à repressão existente; reconhecimento dos movimentos que se organizavam; e uma espécie de “mediação” entre comunidade e governo. Percebemos que a Igreja é muito mais que um espaço de exercício da fé, mas também possui uma dimensão política que serve de ferramenta de articulação e mobilização, e nesse momento, o fato de estar mais alinhada à ideologia de esquerda, acaba servindo de No Oeste de Santa Catarina, as camponesas e camponeses contaram com a presença do Bispo Dom José Gomes: [...] daí aconteceu que numa época lá no oeste, nos anos 79 início de 80, começou um grande movimento de igreja católica, igreja baseada na teoria, na teologia da libertação, não na igreja do dogma, de ficar fechado dentro daquelas estruturas e achar que o mundo vai resolver por ali. Aí a gente teve a felicidade de ter um bispo, que era, igual o José Gomes também que não está mais nesse plano, terreno. Ele dizia pra gente, que a gente podia mudar o mundo, que a vida podia ser melhor. Eu fiquei tão feliz ouvindo isso, e a gente através da pastoral da terra organizar o movimento de mulheres sem terra, outros movimentos, mas o grande cerne, o motivador, o que deu força, foi o bispo dom José Gomes, foi ele.. (CHOINACKI 2017, p.2) A fala de Luci Choinaki destaca o papel da igreja e coloca Dom José Gomes ― mais do que uma liderança religiosa ― uma figura política central na articulação dos movimentos do campo na região Oeste do estado, o “cerne” e “motivador”, nas palavras da militante camponesa. A saída política das mulheres do espaço privado se deu em primeiro lugar a partir da Igreja, pois assumiram trabalhos ligados à catequização, ministério de liturgia, agentes pastorais (BONI, 2014, p. 223), além disso essas atividades permitiam que tivessem grande contato com a comunidade, o que facilitava a organização de espaços em que podiam dialogar e compartilhar suas experiências. Na organização de algumas mobilizações e 30 trabalhos de base, Luci Choinacki fala que muitas vezes recorriam à ajuda dos padres da comunidade “Então a gente fazia os encontros, muitas vezes batia na casa do padre, às vezes o padre acei...tratava mais ou menos, às vezes não, às vezes bem, tudo era, depende a cabeça, era uma forma de trato” (2017, p. 03). Com base nas discussões apresentadas, partimos da ideia de que o surgimento do movimento das mulheres camponesas de Santa Catarina resultou tanto das influências de sua participação ativa nos serviços da igreja através das pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base como também das atuações conjuntas com os movimentos do campo e organizações como sindicato e o Partido dos Trabalhadores, que fez com que a impossibilidade de ampliação dos debates ligados às pautas exclusivas das mulheres do campo demandasse a criação de um espaço exclusivo feminino, onde pudessem elas mesmas tomar a frente do movimento. 2.3 A atualidade do conceito “camponesa(ês)” Assim como o conceito de movimentos sociais, as concepções sobre campesinato são diversas, contraditórias e oferecem uma infinidade de possibilidades teóricas entre defesas de seu uso e de seu abandono. Neste tópico traremos algumas considerações sobre quem são os camponeses e camponesas na constituição dos movimentos sociais do campo no Brasil e quais as implicações do uso do termo “camponês” enquanto categoria política, cultural e de classe pelo Movimento das Mulheres Camponesas de Santa Catarina. A disputa pela terra - marcada por revoltas, guerras, escravidão, dizimação de povos originários - está presente em todos os períodos, regimes políticos e regiões do Brasil. Nesse longo processo de jogos de poder que privilegiam a grande propriedade e o latifúndio, o uso e destruição desenfreada dos recursos naturais e, consequentemente, o fortalecimento das desigualdades sociais causadas pelas expropriações, migrações compulsórias e exploração do trabalho, é possível identificar uma figura recorrente: o/a camponês/a. Para Maria Motta e Paulo Zarth, o fato dos camponeses estarem presentes em todos os períodos da história do Brasil faz com que existam “princípios mínimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadêmico quanto no político, dialogar em torno de reflexões capazes de demonstrar a presença da formação ou condição camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivação ou de situações sociais.” (2008, p.7). De modo geral, a maior parte das teorias contemporâneas sobre o campesinato se ancoram na análise das suas relações de produção desta com o sistema capitalista. Segundo Valdete Boni, existem31 visões contraditórias sobre a pequena produção camponesa, pois alguns teóricos a enxergam como atraso a ser superado pelo capitalismo (e fadada ao desaparecimento) enquanto outros consideram-na uma necessidade para a reprodução deste (BONI, 2012, p. 107). De acordo com a autora, a maior dificuldade em conceitualizar o termo é o fato de que ainda existe uma defesa de que os camponeses estão limitados ao período feudal europeu, outros justificam que para que um indivíduo seja considerado camponês é necessário que este não possua relações com o mercado, ou seja, sua produção deve ser apenas para subsistência familiar. Esta mesma concepção pode ser percebida nas palavras da socióloga Maria Ignez Paulilo quando esta afirma que Muitos estudiosos crêem que essa categoria só se aplica a países que tiveram um passado feudal. Outros a reservam para agricultores pouco ligados ao mercado. Nós, neste trabalho, estamos considerando como camponeses os agricultores que trabalham principalmente com mão-de-obra familiar e são considerados pequenos e médios proprietários e produtores, segundo os critérios do INCRA e da FAO para a região em que vivem (2004, p. 230). Seguindo a mesma base de pensamento de Paulilo, Maria Motta e Paulo Zarth (2008, p.7) destacam que o campesinato deve ser visto como uma categoria analítica e histórica constituída [...] por poliprodutores, integrados ao jogo de forças sociais do mundo contemporâneo [...] pela produção, em modo e grau variáveis, para o mercado, termo que abrange, guarda as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relação com o mercado é característica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condições dessa produção guardam especificidades que se fundamentam na alocação ou no recrutamento de mão-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condição de existência desses trabalhadores e de seu patrimônio material, produtivo e sociocultural, variável segundo sua capacidade produtiva (composição e tamanho da família, ciclo de vida do grupo doméstico, relação entre composição de unidade de produção e unidade de consumo) ( pp. 7- 8). Dessa forma, para esses autores, o grau de interação com o sistema capitalista não é o traço definidor do campesinato, pelo contrário, o mercado é justamente o ponto que distingue os camponeses entre si e faz com que esta categoria seja economicamente diversificada e heterogênea, embora a classe seja um marcador fundamental em sua constituição. É nas condições de produção que os autores encontram o denominador comum entre o campesinato: trata-se da dependência da mão-de-obra familiar na produção e reprodução da vida no campo, em outras palavras, podemos diferenciar o campesinato de outras formas de produção a partir da não geração de lucro através da mais-valia. Nas duas concepções são destacadas questões fundamentais e primordiais para a existência do campesinato: o acesso à terra e usufruto de seus recursos - sejam eles provenientes de criação de animais, agricultura, extrativismo - e o uso da força de trabalho 32 familiar, ou seja, da estrutura familiar. Isso ajuda a compreender, por exemplo, como o campo ainda hoje funciona com organizações específicas de divisão sexual do trabalho e como esse funcionamento permite que as militantes do MMC utilizem a lógica do patriarcado para analisar as relações de gênero no campo, temas que serão discutidos em nosso segundo capítulo. Dados do último censo agropecuário, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 2016 e 2017, apontam para uma diminuição ocorrida num intervalo de onze anos no número total de estabelecimentos de agricultura familiar (pequena propriedade) e, consequentemente, de pessoas ocupadas com o trabalho nessas unidades de produção. Em contrapartida, revelam que houve um aumento significativo no número e na área destinada às médias e grandes propriedades (agricultura não familiar). Além disso, a agricultura familiar perdeu nesse período cerca de 2,2 milhões de trabalhadores, enquanto mais de sete mil novos postos de trabalho foram criados na agricultura não-familiar (AGÊNCIA, c2017). FIGURA 1 - Agricultura familiar e não familiar: variações entre 2006 a 2017. Fonte: IBGE/ Agência IBGE Notícias, 2019. De acordo com o artigo primeiro do decreto nº 9.064 de 31 de maio de 2017, considera-se Unidade Familiar de Produção Agrária (UFPA), o “conjunto de indivíduos composto por família que explore uma combinação de fatores de produção, com a finalidade de atender à própria subsistência e à demanda da sociedade por alimentos e por outros bens e serviços, e que resida no estabelecimento ou em local próximo a ele” (BRASIL, 2017). Ainda de acordo com o decreto, as UFPA devem obedecer quatro requisitos: 1) possuir, a qualquer 33 título, área de até quatro módulos fiscais9; 2) utilizar, no mínimo, metade da força de trabalho familiar no processo produtivo e de geração de renda; 3) auferir, no mínimo, metade da renda familiar de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento e 4) ser a gestão do estabelecimento ou do empreendimento estritamente familiar. Os dois principais fatores que ajudam a explicar a queda do número de UFPA são: o envelhecimento da população camponesa e o êxodo rural da população jovem, sobretudo das mulheres, o que gera, além do envelhecimento no campo, sua masculinização (abordaremos esta questão no segundo capítulo). Além disso, o decreto que estabelece os critérios de classificação das UFPA parece não acompanhar as novas dinâmicas de organização do campesinato no Brasil, o que impossibilita que muitas propriedades atendam a todos os critérios. Para além dos seus impactos materiais, os dados que apontam a diminuição dessas propriedades ajudam a fortalecer o estigma de que esses grupos são economicamente atrasados e estão fadados ao desaparecimento, enquanto que a agroindústria seria o potencial de desenvolvimento, sobretudo econômico, do Brasil. Em entrevista publicada no site da Radio Mundo Real Fm (2011), Ploeg afirma que Os camponeses investem muito, não através de mecanismos bancários mas de seu trabalho: constroem terraços, irrigações, aumentam a fertilidade do solo e isto traz como consequência o fato de que a agricultura camponesa seja produtiva. Também temos que levar em conta que frequentemente está ameaçada e isso se relaciona com o que hoje em dia se fala em nível mundial sobre a apropriação de terras. Eu diria que essas compras de terras não são um investimento em agricultura, mas sim a desapropriação das possibilidades de desenvolvimento. O Brasil conta com uma área de 351,289 milhões de hectares ocupada por um total de 5.073.324 estabelecimentos agropecuários, o que corresponde a 41% do território nacional. 77% desses estabelecimentos são de agricultura familiar, entretanto, essas propriedades ocupam uma área de 80,89 milhões de hectares,
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