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Primeiros Escritos Mercantilistas sobre Valor e Lucro O capital mercantil gerava lucro quando o preço pelo qual uma mercadoria era vendida era suficientemente alto para cobrir o preço pago por ela, mais as despesas de manuseio, armazenagem, transporte e venda da mercadoria e, mais ainda, um excedente sobre esses custos. Esse excedente era o lucro do mercador. Portanto, compreender os determinantes dos preços pelos quais as mercadorias eram compradas e vendidas era crucial para compreender os lucros do mercador. Os primeiros pensadores medievais afirmavam que o preço de uma mercadoria tinha de ser suficiente para cobrir os custos diretos de produção de um artesão e ainda permitir que ele conseguisse um retorno sobre seu próprio trabalho, suficiente para manter-se no estilo de vida tradicionalmente reputado como adequado para os artesãos. Em outras palavras, os preços eram determinados pelos custos de produção, inclusive uma remuneração implícita e apropriada do trabalho dos artesãos.1 Os primeiros mercantilistas, de modo geral, abandonaram essa abordagem baseada no custo de produção para a compreensão dos preços e se concentraram no ponto de venda para analisar os valores de troca. Um estudioso das ideias mercantilistas concluiu que, apesar de haver uma vasta gama de diferenças em aspectos específicos, existem três noções importantes sempre presentes em quase todos os primeiros registros mercantilistas escritos sobre a teoria do valor. A primeira é o “valor” ou “valor natural” das mercadorias – que era, simplesmente, seu preço real de mercado. A segunda refere-se às forças da oferta e da demanda, que determinavam o valor de mercado. A terceira é que os autores mercantilistas quase sempre discutiam “valor intrínseco” ou valor de uso como o fator mais importante na determinação da demanda, sendo, portanto, um determinante causal importante do valor de mercado.2 Nicholas Barbon, um dos mais importantes autores mercantilistas, resumiu esses três pontos em seu panfleto intitulado A Discourse on Trade: 1. O preço dos produtos é o valor atual… O mercado é o melhor juiz do valor; isto porque é com o encontro de compradores e vendedores que a quantidade dos produtos e a ocasião são mais bem conhecidas: as coisas valem tão somente o preço pelo qual podem ser vendidas, de acordo com a antiga regra: valet quantum vendi potest. 2. O preço dos produtos é o valor atual e é obtido calculando-se as ocasiões ou seus usos, com a quantidade servindo aquela ocasião… É impossível, para o mercador, ao comprar suas mercadorias, saber por quanto as venderá: seu valor depende da diferença entre a ocasião e a quantidade; embora esta observação seja a principal preocupação do mercador, o preço depende de tantas circunstâncias, que é impossível sabê-lo. Portanto, se o excesso de mercadorias tiver baixado o preço, o mercado as retira até a quantidade ser consumida e o preço subir. 3. O valor de todos os produtos deriva do seu uso; coisas sem uso algum não têm valor algum. O uso das coisas visa a satisfazer os desejos e necessidades do homem; a humanidade nasce com dois desejos gerais: os desejos do corpo e os desejos da mente; para satisfazê-los, tudo o que está sob o Sol torna-se útil, tendo, portanto, um valor… O valor de todos os produtos deriva de seu uso, e seu preço, caro ou barato, deriva de sua abundância e de sua escassez.3 O panfleto de Barbon foi escrito em uma época em que as atitudes econômicas estavam começando a passar por uma rápida mudança. As passagens citadas refletem as atitudes dos primeiros mercantilistas, que viam o lucro como originário basicamente do ato de troca. Seu lucro era proveniente, em grande parte, de duas fontes. Primeiro, a inflação dos séculos XVI e XVI I (discutida no capítulo anterior) tinha criado uma situação na qual houve, de modo geral, um aumento substancial do valor dos estoques existentes. Entre a data em que os mercadores compravam as mercadorias e a data em que as vendiam, o aumento do preço dessas mercadorias resultava em lucros extraordinários. Em segundo lugar, o que era mais importante, as diferentes condições de produção em várias regiões de um país ou em várias partes do mundo, juntamente com o fato de que havia muito pouca mobilidade de recursos, tecnologia e mão de obra entre essas regiões, faziam com que os preços relativos de mercadorias fossem muito diferentes, nas várias regiões ou países. Os mercadores compravam uma mercadoria em uma região ou em um país em que ela fosse relativamente barata e a vendiam em uma região ou em um país onde ela fosse relativamente cara. Nessas circunstâncias, não é de admirar que os mercadores tivessem uma concepção do valor de uma mercadoria em termos de seu preço de mercado e não de suas condições de produção. Além do mais, era muito natural que eles vissem as diferenças de preços de mercado como resultado de diferenças de disposição ou de vontade de comprar determinadas mercadorias. A oferta só começava a ser considerada à medida que os mercadores viam que, com certo grau de vontade de comprar uma mercadoria, seu preço seria alto se ela tivesse uma oferta reduzida ou baixo se sua oferta fosse abundante. Era por essa razão que as grandes companhias de comércio procuravam monopólios criados e defendidos pelo Estado. A concorrência entre os mercadores levava, inevitavelmente, a uma redução das diferenças de preços relativos e, daí, a uma redução de seus lucros. Se determinada mercadoria tivesse um preço muito alto, em determinada região, o mercador que tivesse comprado essa mercadoria a um preço baixo, e que a tivesse transportado para essa região, teria um lucro maior. Mas esse lucro seria, inevitavelmente, uma isca que atrairia outros mercadores para vender a mesma mercadoria na mesma região. Entretanto, um número maior de mercadores implicaria maior oferta, o que levaria a um preço mais baixo e a menores lucros. Assim, as grandes companhias de comércio iam muito longe para evitar concorrentes e manter seus privilégios monopolistas. Os primeiros mercantilistas achavam que o controle das condições que afetavam a oferta de mercadorias era o principal meio através do qual poderiam ser conseguidos e mantidos os altos lucros. Contudo, o período inicial do mercantilismo ainda não tinha passado pela mudança de atitudes sociais que, mais tarde, perdoaria e justificaria a incessante busca do lucro como um fim em si mesmo. As motivações e as racionalizações dos governos, em suas políticas de promoção dos lucros dos mercadores, eram muito diferentes das motivações e racionalizações que vão caracterizar os governos capitalistas desde o século XI X até os dias atuais. No início do período mercantilista, havia uma continuidade ideológica entre as defesas intelectuais das políticas mercantilistas e as primeiras ideologias que defendiam a ordem econômica medieval. Essa última baseava-se na ética cristã paternalista, que justificava extremas desigualdades de riqueza, supondo que D eus escolhera os ricos como guardiães benevolentes do bem-estar material das massas.4 A I greja Católica tinha sido a instituição através da qual esse paternalismo fora posto em prática. À medida que o capitalismo foi se desenvolvendo, a I greja ficou mais fraca e os governos dos Estados-nação que iam surgindo se tornaram mais fortes. No início do período mercantilista, os autores de trabalhos de Economia passaram a substituir cada vez mais a I greja medieval pelo Estado, como a instituição que deveria cuidar do bem-estar público. D urante o reinado de Henrique VI I I , a I nglaterra rompeu com o catolicismo romano. Esse acontecimento foi importante, porque marcou a secularização final (pelo menos na I nglaterra) das funções da I greja medieval. Com Henrique VI I I , “o Estado, sob a forma de uma monarquia divina, assumiu o papel e as funções da antiga I greja universal. O que Henrique VI I I fez, à sua própria maneira grosseira, foi santificar os processos deste mundo”.5 D urante seu reinado e os reinados de Elizabeth I , J aime I e Carlos I (1558-1649),houve inquietação social generalizada. A causa dessa inquietação era a pobreza; a causa de grande parte dessa pobreza era o desemprego; a causa de grande parte desse desemprego era o movimento dos cercamentos. Contudo, outro fator foi o declínio da exportação de lã, na segunda metade do século XVI , que provocou grande desemprego na principal indústria inglesa. Houve também muitas crises comerciais parecidas com a fase de depressão dos ciclos econômicos posteriores, embora sem a mesma regularidade. Além desses fatores, o desemprego sazonal fazia com que muitos trabalhadores ficassem sem trabalhar até durante quatro meses por ano. O povo não podia mais procurar a I greja Católica para fugir do desemprego e da pobreza. A destruição do poder da I greja tinha eliminado o sistema organizado de caridade, e o Estado procurava assumir a responsabilidade pelo bem-estar geral da sociedade. Para isso, “os líderes ingleses iniciaram um programa geral e coordenado de reorganização e racionalização… da indústria, estabelecendo as especificações de padrões de produção e comercialização”.6 Todas essas medidas visavam a estimular o comércio inglês e a minorar o problema do desemprego. D e fato, parece que o desejo de alcançar o pleno emprego é o tema unificador de quase todas as medidas de política advogadas pelos autores mercantilistas. Os mercantilistas preferiam medidas destinadas a estimular o comércio exterior, em lugar do comércio interno, “porque achavam que ele contribuía mais para o emprego, a riqueza e o poder da nação. Os autores passaram a ressaltar, depois de 1600, o efeito inflacionário de um excesso de exportações sobre as importações e o consequente aumento de empregos provocados pela inflação”.7 Entre outras medidas tomadas para estimular a indústria naquele período, podemos citar a concessão de patentes de monopólio. A primeira patente importante foi concedida em 1561, no reinado de Elizabeth I . D avam-se direitos de monopólio para estimular as invenções e para criar novas indústrias. Esses direitos eram alvo de grandes abusos, conforme era de se esperar. Além disso, levavam a um sistema complexo de privilégios e apadrinhamentos especiais e a uma série de outros males, que escandalizavam quase todos os autores mercantilistas, tanto quanto os mesmos abusos escandalizavam os reformadores americanos do fim do século XIX. Os males do monopólio levaram ao Estatuto dos Monopólios de 1624, que colocava fora da lei todos os monopólios, exceto os que envolvessem verdadeiras invenções ou que fossem instrumentos de promoção de um balanço de pagamentos favorável. É claro que essas brechas eram grandes, e os abusos continuaram praticamente sem coibição. O Estatuto dos Artífices (1563) especificava condições de emprego e o tempo do aprendizado, previa avaliações salariais periódicas e estabelecia salários máximos a serem pagos aos operários. Esse estatuto era importante, porque ilustrava o fato de que a ética paternalista da Coroa nunca levou a qualquer tentativa de elevar o status das classes trabalhadoras. Os monarcas desse período sentiam-se obrigados a proteger as classes trabalhadoras, mas, como seus antecessores da I dade Média, acreditavam que aquelas classes deveriam ficar em seu devido lugar. Os salários máximos visavam a proteger os capitalistas e, além do mais, os juízes que os estabeleciam e que faziam cumprir o estatuto, geralmente, pertenciam à classe empregadora. É provável que esses níveis máximos reduzissem os salários reais dos trabalhadores, porque os preços, em geral, subiam mais rapidamente do que os salários, com o passar dos anos. As “Leis dos Pobres”, aprovadas em 1531 e 1536, procuraram enfrentar os problemas do desemprego, da pobreza e da miséria, generalizados na I nglaterra. A primeira dessas leis procurou fazer uma distinção entre pobres “com merecimento” e “sem merecimento”; só os primeiros tinham permissão de mendigar. A segunda lei estabeleceu que cada paróquia, em toda a I nglaterra, seria responsável pelos seus pobres e que a paróquia deveria, por meio de contribuições voluntárias, manter um fundo para os pobres. I sso se revelou inteiramente inadequado, e o problema da pobreza foi ficando cada vez mais grave. Finalmente, em 1572, o Estado aceitou o princípio de que os pobres teriam de ser mantidos por recursos tributários e estabeleceu um “imposto para os pobres compulsório”. Em 1576, foram autorizadas a funcionar “casas de correção” para os “vadios incorrigíveis”, tendo-se tomado providências no sentido de as paróquias comprarem matérias-primas para serem trabalhadas pelos pobres e vadios mais tratáveis. D aquela época até o fim do século XVI , foram aprovados muitos outros estatutos dos pobres. A Lei dos Pobres, de 1601, foi a tentativa dos Tudor consolidarem aquelas leis de forma coerente. S uas disposições principais incluíam o reconhecimento formal do direito de os pobres receberem auxílio, a imposição de contribuições em nível de paróquias e o tratamento diferenciado para várias classes de pobres. As pessoas de idade e os doentes poderiam receber ajuda em suas casas; os filhos dos pobres que tivessem muito pouca idade para receber treinamento em um ofício ficariam internos; os pobres merecedores e os desempregados receberiam trabalho, segundo as disposições da lei de 1576; os vadios incorrigíveis deveriam ser mandados para casas de correção e prisões.8 Com base na discussão anterior, podemos concluir que o período do mercantilismo inglês se caracterizou pela aceitação, segundo o espírito da ética cristã paternalista, da ideia de que “o Estado tinha a obrigação de servir à sociedade, aceitando e satisfazendo a responsabilidade pelo bem-estar geral”.9 Os vários estatutos aprovados naquele período “assentavam-se na ideia de que a pobreza, em vez de ser um pecado pessoal, era função do sistema econômico”.10 Reconheciam que as vítimas das deficiências do sistema econômico deveriam ser alvo dos cuidados daqueles que dele se beneficiavam. Escritos Mercantilistas Posteriores e a Filosofia do Individualismo À medida, porém, que o capitalismo foi se desenvolvendo, duas novidades econômicas foram tornando a visão mercantilista insatisfatória para as necessidades do novo sistema e para a maioria dos capitalistas importantes da época. Primeiro, apesar dos esforços das grandes companhias de comércio para manter seus monopólios, a difusão do comércio e o aumento da concorrência (principalmente dentro dos próprios Estados-nação) foram continuamente diminuindo as diferenças relativas de preços entre as diversas regiões e nações. I sso reduziu os lucros que poderiam ser auferidos pelo simples aproveitamento dessas diferenças de preços. A segunda mudança estava intimamente relacionada com a primeira. À medida que os lucros potenciais auferidos somente pelas diferenças de preços foram sendo reduzidos, passando a haver uma integração do controle capitalista, tanto dos processos de produção, quanto do comércio. Essa integração teve duas origens. I nicialmente, os mercadores procuraram obter maior controle sobre a produção, criando o sistema doméstico de trabalho (discutido no capítulo anterior). Um pouco mais tarde, porém, houve outra inovação, que acabou sendo muito mais revolucionária. J á no século XVI , as guildas passaram a ser sistemas relativamente fechados, destinados a proteger o status e a renda dos mestres de corporação, restringindo o número de aprendizes e de artífices que poderiam se tornar mestres. Com o tempo, em muitas corporações, os mestres foram se transformando, cada vez mais, nos organizadores e controladores do processo produtivo, deixando de ser meros trabalhadores que operavam ao lado dos aprendizes e dos artífices. Os mestres passaram a ser empregadores ou capitalistas, e os artífices passaram a ser simples trabalhadores contratados, com pouca ou nenhuma perspectiva de se tornarem mestres. No início do século XVI I , esses capitalistas produtores começaram a entrar no ramo do comércio. Logo passaram a constituir uma grande força na vida econômicada I nglaterra – uma força que, segundo D obb, constituía “um importante deslocamento do centro de gravidade” do sistema socioeconômico inglês.11 Os interesses desse novo segmento da classe capitalista eram, desde o início, quase sempre contrários aos interesses dos antigos mercadores capitalistas. Essas mudanças econômicas de longo alcance levaram a duas mudanças muito importantes nas ideias econômicas. Primeiro, havia um grande segmento de filósofos, economistas e outros pensadores que rejeitavam a antiga visão paternalista do Estado e da regulamentação estatal e que começaram a formular uma nova filosofia do individualismo. Em segundo lugar, houve uma mudança de interpretação de que os preços e o lucro eram determinados basicamente pelas forças da oferta e da demanda e, em particular, pela utilidade, para a interpretação de que os preços eram determinados pelas condições de produção e os lucros eram originários do processo produtivo. Examinaremos cada uma dessas duas mudanças isoladamente. Em fins do século XVI I , um número cada vez maior de capitalistas, em especial os que tinham origens nas guildas, havia se tornado muito inibido na busca por lucros, pela complexidade das restrições e regulamentações mercantilistas que beneficiaram, inicialmente, as grandes companhias de comércio; os capitalistas procuravam livrar-se dessas restrições. Também não gostavam dos remanescentes mercantilistas do antigo paternalismo cristão, que condenavam o comportamento ambicioso, aquisitivo, e a vontade de acumular riquezas. A economia de mercado capitalista, que se ampliava significativamente em áreas muito importantes da produção e do comércio, precisava de um comportamento baseado na iniciativa individual, aquisitivo, para funcionar bem. Nesse contexto, começaram a afirmar que os motivos pessoais e egoístas eram os motivos básicos – quando não os únicos – que levavam o homem a agir. Essa interpretação do comportamento humano é expressa nas obras de muitos pensadores importantes da época. Muitos filósofos e teóricos sociais começaram a afirmar que todo ato humano estava relacionado com a autopreservação e que, por isso, era egoísta, no sentido mais puro do termo. O nobre inglês Robert Filmer ficou muitíssimo espantado com o grande número de pessoas que falava de “liberdade natural da humanidade, uma opinião nova, plausível e perigosa”, com implicações anarquistas.12 Leviathan, de Thomas Hobbes, publicado em 1651, articulou objetivamente uma opinião, bastante difundida, de que todos os motivos humanos advinham de um desejo por tudo que promovesse o “movimento vital” do organismo (homem). Hobbes acreditava que os motivos de todas as pessoas – até mesmo a compaixão – eram meramente diversos tipos de autointeresse disfarçado: “A tristeza com a calamidade dos outros é piedade e deriva da imaginação de que a mesma calamidade pode acontecer consigo mesmo; assim, é chamada… de compaixão e de … solidariedade”.13 Exceto os poucos grupos de interesses especiais que se beneficiavam com as grandes restrições e regulamentações de comércio e produção nesse período, os capitalistas, em sua maioria, sentiam-se inibidos e limitados em sua busca por lucros, pelas regulamentações estatais. As doutrinas individualistas e egoístas foram ansiosamente defendidas por esses homens e começaram a dominar o pensamento econômico, até mesmo entre os mercadores. Um historiador meticuloso afirma que “quase toda a política… mercantilista pressupunha que o interesse próprio governava a conduta individual”.14 A maioria dos autores mercantilistas era formada de capitalistas ou empregados privilegiados de capitalistas. Por isso, era muito natural que percebessem os motivos dos capitalistas como universais. D as ideias dos capitalistas sobre a natureza da humanidade e suas necessidades de serem livres das grandes restrições econômicas é que nasceu a filosofia do individualismo, que serviu de base para o liberalismo clássico. Contra a visão bem ordenada e paternalista que a Europa tinha herdado da sociedade feudal, eles sustentavam “a ideia de que o ser humano deveria ser independente, dirigir-se a si mesmo, ser autônomo, livre – deveria ser um indivíduo, uma unidade distinta de massa social, e não ficar perdido nela”.15 O Protestantismo e a Ética Individualista Um dos exemplos mais importantes desse individualismo e dessa filosofia de classe média foi a teologia protestante, que surgiu com a Reforma. Os novos capitalistas da classe média queriam ter liberdade, não só em relação às restrições econômicas que atrapalhavam a produção e o comércio, mas também em relação ao opróbrio moral que a I greja Católica tinha associado aos seus motivos e às suas atividades. O protestantismo não só os libertou da condenação religiosa, como também acabou transformando em virtudes os motivos pessoais, egoístas e aquisitivos que a Igreja medieval tanto desprezara.16 Os principais mentores do movimento protestante estavam muito próximos da posição católica, em questões como a usura e o preço justo. Na maioria das questões sociais, eram profundamente conservadores. D urante a revolta dos camponeses, na Alemanha, em 1524, Lutero escreveu um folheto cheio de rancor, intitulado Contra as Hordas de Camponeses Assassinos, em que dizia que os príncipes deveriam “derrubar, estrangular e apunhalar… Que tempos maravilhosos eram estes, em que um príncipe merecia o céu mais facilmente pelo derramamento de sangue do que um outro pelas orações!”. Seu conselho contribuiu para o clima geral em que foram assassinados mais de 100 mil camponeses, tudo em nome do zelo religioso. Contudo, apesar do conservadorismo dos fundadores do protestantismo, essa visão religiosa contribuiu para a influência crescente da nova filosofia individualista. O princípio básico do protestantismo, que preparou o terreno para as atitudes religiosas que deveriam aprovar as práticas econômicas da classe média, era a doutrina de que os homens eram justos pela fé e não pelas obras. A I greja Católica ensinava que os homens se tornavam bons pelas obras, e isso implicava, em geral, cerimônias e rituais. Segundo a visão católica, nenhum homem poderia ser justo apenas pelos seus próprios méritos. “Ser justo pelas obras… não queria dizer que o indivíduo pudesse salvar-se por si próprio: significava que ele poderia ser salvo por intermédio da I greja. D aí o poder do clero. A confissão obrigatória, a imposição de penitências a toda a população… juntamente com a possibilidade de excomunhão davam aos padres um terrível poder.”17 Esses poderes também criaram uma situação em que as doutrinas medievais da I greja Católica não eram abandonadas com facilidade, e o indivíduo ainda estava subordinado à sociedade (representada pela Igreja). A doutrina protestante da justificação pela fé afirmava que os motivos eram mais importantes que os atos ou os rituais específicos. A fé era “nada mais que a verdade do coração”.18 Todo homem tinha que indagar a si mesmo se seus atos se originavam de um coração puro e da fé em D eus; todo homem tinha de se julgar a si próprio. Essa confiança individualista na consciência particular de cada um atraía muitíssimo os artesãos da nova classe média e os pequenos comerciantes: Quando o empresário de Genebra, Amsterdã ou Londres, dos séculos XVI e XVII, olhava para o íntimo de seu coração, verificava que Deus lhe tinha incutido um profundo respeito pelo princípio da propriedade privada… Estes homens achavam sincera e decididamente que suas práticas econômicas, embora pudessem entrar em conflito com a lei tradicional da antiga Igreja, não ofendiam a Deus. Pelo contrário, glorificavam-no.19 Foi com essa insistência na interpretação da vontade de D eus pelo próprio indivíduo que os “puritanos procuraram espiritualizar os (novos) processos econômicos” e acabaram acreditando que “D eus tinha criado o mercado e a troca”.20 Todavia, não levou muito tempo até que os protestantes expusessem um dogma que esperavam viesse a ser aceito por todos. Entretanto, o novo dogma era radicalmentediferente das doutrinas medievais. As novas doutrinas enfatizavam a necessidade de sair-se bem em sua passagem pela Terra como o melhor caminho para agradar a Deus e ressaltavam a diligência e o trabalho duro. A antiga desconfiança cristã das riquezas traduziu-se numa condenação da extravagância e da dissipação desnecessária da riqueza. Assim, a ética protestante ressaltava a importância do ascetismo e da frugalidade abstêmia. Um teólogo que estudou a relação entre religião e capitalismo resumiu a relação da seguinte maneira: O valor religioso baseado no trabalho constante, sistemático e eficiente, por iniciativa própria, como o meio mais rápido de se assegurar a salvação e de se glorificar a Deus, tornou-se um poderosíssimo instrumento de expansão econômica. As limitações rígidas do consumo, por um lado, e, por outro, a intensificação metódica da produção só poderiam ter um resultado: a acumulação de capital.21 Assim, embora nem Calvino nem Lutero tenham sido porta-vozes da nova classe média capitalista, no contexto do novo individualismo religioso, os capitalistas encontraram uma religião na qual, com o tempo, “os lucros… passaram a ser considerados uma vontade de D eus, uma marca de Seus favores e uma prova de sucesso em se ter sido chamado”.22 As Políticas Econômicas do Individualismo D urante todo o período do mercantilismo, esse novo individualismo levou a inúmeros protestos contra a subordinação dos assuntos econômicos à vontade do Estado. D esde meados do século XVI I , quase todos os autores mercantilistas condenaram os monopólios concedidos pelo Estado e outras formas de proteção e favoritismo na economia interna (contrariamente ao comércio internacional). Muitos achavam que, em um mercado em concorrência, que colocava um comprador diante do outro, um vendedor diante do outro e comprador contra vendedor, a sociedade lucraria mais se o preço pudesse flutuar livremente, encontrando seu nível adequado (de equilíbrio do mercado). Um dos primeiros autores mercantilistas importantes, J ohn Hales, argumentou que a produtividade agrícola poderia ser aperfeiçoada se os lavradores tivessem permissão para ter mais lucro do que estão tendo com ela, e liberdade para vender a produção em qualquer ocasião e em todos os lugares, com a mesma liberdade que os homens têm de fazer as outras coisas. Mas não há dúvida de que, nesse caso, o preço dos cereais subiria, principalmente no começo, mas não a longo prazo; contudo, este preço faria com que todos arassem o solo, cultivassem terras livres, transformassem as terras reservadas para pastagem em terras aráveis; isto porque todos fariam isso com mais disposição, quando vissem os lucros e ganhos maiores. Com isso, haveria, necessariamente, muitos cereais e também muita riqueza para este reino; além disso, teríamos muito mais mantimentos.23 Esta crença – de que as restrições à produção e ao comércio dentro de uma nação eram prejudiciais aos interesses de todos – difundiu-se cada vez mais, em fins do século XVI I e no começo do século XVI I I . Podem-se encontrar muitas exposições desse ponto de vista nas obras de autores como Malynes, Pe y, North, Law e Child.24 D esses, talvez D udley North (1641-1691) tenha sido o primeiro porta-voz claro da ética individualista que se transformaria na base do liberalismo clássico. North achava que todos os homens eram motivados primordialmente pelo interesse próprio e que deveriam ter liberdade para competir por si sós num mercado livre, para que o bem-estar público fosse maximizado. Argumentava que, sempre que mercadores ou capitalistas defendiam leis especiais para regular a produção ou o comércio, “geralmente viam ao seu próprio interesse imediato como a Medida do Bem e do Mal. E há muitos que, para ganhar um pouco no seu próprio comércio, não se importam com o sofrimento alheio; e cada homem luta para que todos os outros sejam obrigados, em suas transações, a agir de modo a que favoreçam seu lucro, mas em nome do público”.25 O bem-estar público seria mais bem atendido, na opinião de North, se a maioria das leis restritivas que concediam privilégios especiais fosse inteiramente abolida. Em 1714, Bernard Mandeville publicou The Fable of the Bees: or Private Vices, Publick Benefits [A Fábula das Abelhas: ou Lucros Privados, Benefícios Públicos], em que apresentou o paradoxo aparentemente estranho de que os vícios mais desprezados pelo antigo código moral, se praticados por todos, resultariam em maior proveito para o público. Ele afirmava que o egoísmo, a ambição, e o comportamento aquisitivo tenderiam a contribuir para a industrialização e para uma economia próspera. A resposta a esse paradoxo era, obviamente, que aquilo visto como vício pelos moralistas medievais eram as próprias forças motivadoras que impeliam o novo sistema capitalista. E, segundo as novas filosofias religiosas, morais e econômicas da época capitalista, esses motivos não eram mais vícios. Muitos capitalistas tinham lutado, durante toda a época mercantilista, para libertar-se de todas as restrições em sua busca por lucro. Essas restrições – que só beneficiavam um número relativamente pequeno de companhias de comércio mais antigas, já estabelecidas e monopolistas – eram fruto das leis paternalistas, que eram remanescentes da versão feudal da ética cristã paternalista. Tal ética simplesmente não era compatível com o novo sistema econômico, que funcionava com base em obrigações contratuais estritas entre as pessoas, e não em vínculos pessoais tradicionais. I números mercadores e capitalistas novos procuraram minar as posições privilegiadas dos monopólios dos mercadores mais antigos e criar um sistema sociopolítico mais voltado para a busca livre e desinibida do lucro. Os mercadores e capitalistas que investiam grandes somas em empreendimentos no mercado não podiam depender da força dos costumes para proteger seus investimentos. Tampouco podiam buscar, efetivamente, lucros no emaranhado de restrições governamentais que caracterizavam o início da época mercantilista. A busca do lucro só poderia ser eficaz em uma sociedade baseada na proteção dos direitos de propriedade e na certeza do cumprimento dos compromissos contratuais impessoais entre os indivíduos. Nesse quadro institucional, os capitalistas tinham de poder continuar buscando os lucros livremente. A nova ideologia que estava se enraizando firmemente nos séculos XVI I e XVI I I justificava esses motivos e essas relações entre os indivíduos. Ao mesmo tempo, uma mudança igualmente importante estava ocorrendo na maneira pela qual os ideólogos econômicos explicavam os preços, a natureza e as origens dos lucros. Os Primórdios da Teoria Clássica de Preços e Lucros Com a integração entre produção e comércio e a dificuldade cada vez maior de obter lucro com a simples exploração das diferenças de preço, começou uma nova abordagem para entender os preços e os lucros. Um famoso estudioso dessa época escreveu o seguinte: “No fim do século XVI I I , principalmente na I nglaterra, a antiga começa a dar sinais claros de renascimento. Passa-se a dar cada vez mais ênfase aos custos de produção, particularmente na indústria.”26 Com a criação de uma mão de obra “livre” – quer dizer, um número substancial de produtores que não podiam ter controle algum sobre os meios de produção necessários e que eram obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver – foi se tornando cada vez mais claro que o controle sobre esses produtores era a chave para a obtenção de lucros. Típica desse enfoque foi a afirmativa de D aniel D efoe, em sua obra A General History of Trade (1713), de que “são o trabalho e o esforço das pessoas que, por si sós, geram riqueza e tornam… o comércio lucrativo para a nação”.27 Outra das inúmeras afirmativas que expressam esse ponto de vista pode ser encontrada na obra Britannia Language (1680), de William Pe y: “Só se pode acumular um tesouro suficiente com o trabalho das pessoas… Portanto, as pessoas são a mercadoria principal, mais básica e preciosa, da qual podem ser obtidostodos os tipos de produtos industrializados, navios, riquezas, conquistas e domínio sólido”.28 A indústria capitalista começou a gerar aumentos substanciais da produtividade do trabalho, aumentando a divisão do trabalho, pela qual diferentes trabalhadores se especializavam apenas em uma ou poucas tarefas; os pensadores econômicos do início do século XVI I I começaram a identificar dois princípios distintos e importantes que norteavam esse aumento de produtividade. Primeiramente, viram que os recursos naturais só se transformavam em mercadorias com valor de troca depois de o trabalhador os ter transformado em produtos com valor de uso. Em segundo lugar, com o aumento da especialização e a divisão do trabalho, ficou claro que uma troca de mercadorias poderia ser vista como uma troca dos diferentes trabalhos especializados incorporados nessas mercadorias. I sso foi visto com mais clareza por Bernard Mandeville: A providência ordenou as coisas de tal modo, que não só diferentes partes do mesmo país têm sua própria produção mais adequada: da mesma forma, homens diferentes têm aptidões adaptadas a uma grande variedade de artes e indústrias diferentes. Portanto, o comércio, ou a troca de uma mercadoria… por outra, é altamente conveniente e benéfico para a humanidade… Para facilitar as trocas, os homens inventaram a moeda, adequadamente chamada meio de troca, porque, com ela, troca- se trabalho por trabalho ou uma mercadoria por outra… E o comércio, em geral, nada mais é do que a troca de trabalho por trabalho e, por isso, o valor de todas as coisas é… medido mais corretamente pelo trabalho.29 O precursor mais evidente da teoria do valor-trabalho dos economistas clássicos foi o autor anônimo de um folheto publicado em 1738, intitulado Algumas Ideias sobre os Juros do Dinheiro em Geral, que concluiu que o valor das … (mercadorias), quando são trocadas umas pelas outras, é regulado pela quantidade de trabalho necessária e comumente usada em sua produção; e seu valor ou preço, quando são compradas e vendidas e comparadas com um meio comum, será determinado pela quantidade de trabalho empregada e pela maior ou menor quantidade do meio ou da medida comum.30 Com base nesse ponto de vista, é óbvio que, se o trabalho é o mais importante determinante dos preços em geral, o trabalho também tem de ser a fonte dos lucros, porque eles são obtidos pela compra e venda. Quando os lucros são auferidos através do controle do processo de produção, têm de refletir a diferença entre os preços pagos pelos insumos necessários à produção e a quantidade produzida. D urante toda aquela época, muitos autores passaram a ver os lucros como um excedente, que restava após os trabalhadores terem conseguido as mercadorias necessárias para seu próprio consumo. Em 1696, J ohn Cary escreveu que as mercadorias “exportadas dão mais ou menos lucro, de acordo com o trabalho das pessoas incorporado ao seu valor”.31 Em 1751, essa fonte de lucro estava sendo chamada de excedente de produção sobre as necessidades de consumo dos trabalhadores: A fonte da riqueza é o número de habitantes;… quanto mais populoso for um país, mais rico ele é ou poderá ser… Isto porque a terra é gratuita e remunera seu trabalho não apenas com o suficiente, mas com abundância… Ora, tudo o que sobra sem ser consumido é excedente que constitui a riqueza da nação.32 No entanto, esses pensadores não conseguiram entender o processo com clareza suficiente para mostrar como era possível que a quantidade de trabalho incorporada a uma mercadoria fosse, ao mesmo tempo, o determinante dos preços e a fonte do valor excedente e do lucro. Para isso tornar-se possível, teria de haver um claro reconhecimento de que o lucro sobre o capital era uma categoria distinta da renda de classe, que ia para o dono do capital, porque sua propriedade permitia que ele controlasse o emprego dos trabalhadores, e isso representava mais ou menos o valor de troca do capital do dono. Ronald L. Meek, eminente historiador das ideias econômicas, chegou à seguinte conclusão: O lucro sobre o capital e as classes sociais que passaram a auferir rendas deste tipo eram, obviamente, o produto final de vários séculos de desenvolvimento econômico. Mas foi só a partir da segunda metade do século XVIII, ao que parece, que o lucro sobre o capital como um novo tipo genérico de renda de classe tornou-se tão claramente diferenciado dos demais tipos de renda, que os economistas conseguiram captar todo o seu significado e delinear suas características básicas.33 Em 1776, Adam Smith publicou sua famosa obra, intitulada A Riqueza das Nações. Ela foi a primeira análise sistemática e ampla do capitalismo, em que essa maneira de entender o lucro sobre o capital foi plenamente elaborada. No próximo capítulo, examinaremos as ideias de S mith. Antes de fazê-lo, é preciso fazer um breve resumo das ideias dos fisiocratas, uma escola francesa de economistas do século XVI I I , cujas obras iriam exercer uma influência considerável sobre o desenvolvimento subsequente das doutrinas econômicas. Os Fisiocratas como Reformadores Sociais Os fisiocratas eram um grupo de reformadores sociais franceses, discípulos intelectuais de François Quesnay (1694-1774). Quase todas as suas ideias se originavam direta ou indiretamente do Tableau Economique, de Quesnay.34 Sua influência imediata sobre os assuntos econômicos e políticos franceses durou cerca de duas décadas e terminou quando seu membro politicamente mais influente, Anne Robert J acques Turgot (1727-1781), perdeu seu cargo de controlador geral das finanças, em 1776. Os fisiocratas estavam interessados em reformar a França, que estava passando por desordens econômicas e sociais, causadas principalmente por uma combinação heterogênea de muitas das piores características do feudalismo e do capitalismo comercial. A tributação era desordenada, ineficiente, opressiva e injusta. A agricultura ainda usava a tecnologia feudal, feita em pequena escala, ineficiente, e continuava sendo uma fonte de poder feudal que inibia o avanço do capitalismo. O governo era responsável por um emaranhado extraordinariamente complexo de tarifas, restrições, subsídios e privilégios nas áreas da indústria e do comércio. O resultado disso foi o caos social e econômico, que culminou com a Revolução Francesa. Os fisiocratas achavam que as sociedades eram governadas pela lei natural e que os problemas da França eram devidos à incapacidade de seus dirigentes compreenderem essa lei natural e ordenarem a produção e o comércio de acordo com ela. Quesnay formulou um modelo simples de como uma sociedade deveria ser estruturada, a fim de refletir a lei natural, e, com base nesse modelo, os fisiocratas advogavam a reforma política: a abolição das guildas e a remoção de todas as tarifas, impostos, subsídios, restrições e regulamentações existentes que prejudicassem a indústria e o comércio. Propuseram a substituição da agricultura em pequena escala e ineficiente, então vigente, pela agricultura capitalista em grande escala. Mas a proposta de reforma pela qual os fisiocratas são mais lembrados foi a recomendação de que toda a renda do governo fosse obtida através de um único imposto, para todo o país, sobre as atividades agrícolas (por razões que ficarão claras na discussão subsequente). As reformas estavam destinadas a ser inatingíveis, porque os fisiocratas não questionavam o direito da nobreza feudal de receber a renda de suas terras, enquanto a nobreza percebia – bastante corretamente – que os esquemas fisiocratas levariam ao empobrecimento da classe proprietária de terras e à ascensão da classe capitalista. Mudanças sociais que exigem a remoção de uma classe dominante por outra não podem ser alcançadas por meio de reformas. Exigem revolução, e a França precisou da revolução de 1789 para que mudanças parecidas com as defendidas pelos fisiocratas se tornassem possíveis.35 Portanto, a influência dos fisiocratas foi basicamente intelectual e não política. Algumas das ideias expressas no Tableau Economique de Quesnayiriam tornar-se, depois, muito importantes na literatura econômica. D edicaremos o restante deste capítulo a uma discussão de três tópicos nos quais a ideias de Quesnay haveriam de ter um impacto importante: (1) a noção de trabalho produtivo e improdutivo e de excedente econômico; (2) a interdependência mútua dos processos de produção; (3) os fluxos circulares da moeda e das mercadorias e as crises econômicas que podem ser causadas pelo entesouramento do dinheiro. As Ideias Econômicas de Quesnay O Tableau Economique é, basicamente, um modelo de uma economia. O modelo mostra os processos de produção, circulação da moeda e das mercadorias e a distribuição da renda. O modelo pressupõe que a produção ocorra em ciclos anuais e que tudo o que é produzido em um ano é consumido naquele ano ou se transforma nos insumos necessários para a produção do ano seguinte. O centro de atenção é a agricultura. Por exemplo, em determinado ano, o setor agrícola produz 5 bilhões.36 O setor industrial produz um bilhão. O produto bruto é de 6 bilhões. Um bilhão vai imediatamente substituir o ativo durável usado pela agricultura na produção, deixando um produto líquido de 5 bilhões. D o produto agrícola, 2 bilhões ficam com os produtores. I ncluem as sementes para o período seguinte e os salários da administração (lucro) para os fazendeiros capitalistas e os salários dos agricultores. Todo o estoque da moeda (2 bilhões) está nas mãos dos fazendeiros capitalistas, no início do período. Eles pagam 2 bilhões em moeda à classe dos proprietários rurais, como arrendamento. Essa é a renda excedente no sistema. Os proprietários de terras não desempenham qualquer função econômica em troca desse pagamento. Esses 2 bilhões representam um excedente produzido no setor agrícola, que ultrapassa o consumo dos agricultores e os custos de reposição dos ativos consumidos na produção agrícola. Os fisiocratas consideravam esse excedente um presente da natureza e achavam que só através do contato direto com a natureza, na produção extrativa ou agrícola, é que o trabalho humano poderia produzir um excedente. Os agricultores eram, portanto, chamados de classe produtiva . Os produtores de mercadorias industrializadas eram chamados de classe estéril, não porque não produzissem, mas porque o valor do que produziam era, presumivelmente, igual aos custos necessários de matérias-primas mais os necessários salários de subsistência dos produtores. Não se achava que pudesse sobrar qualquer excedente ou lucro na atividade industrial. Havia, portanto, três classes: a classe produtiva (capitalistas e trabalhadores dedicados à produção agrícola), a classe estéril (capitalistas e trabalhadores ligados à indústria) e a classe ociosa (os donos de terras, que consumiam o excedente produzido pela classe produtiva). Após o recebimento de sua renda pela classe dos proprietários de terras, o Tableau prosseguia com uma longa lista de transações que mostravam como os produtos dos setores agrícola e industrial eram distribuídos ou alocados e como era necessário haver a perfeita circulação da moeda para essa alocação. No fim de todo o processo, se as transações fossem agregadas, veríamos que a economia voltaria ao seu estado inicial. Em cada período, o setor industrial reproduzia o mesmo valor que tivesse usado em insumos (matérias-primas e consumo de subsistência do setor agrícola); o setor agrícola reproduzia o valor de seus insumos (sementes, consumo de subsistência e ativos agrícolas duráveis usados) e um valor excedente de 2 bilhões, que era apropriado pela classe dos proprietários de terras e consumido sob a forma de produtos agrícolas e produtos industriais. Esse modelo ilustra o fato de que os dois setores de produção são interdependentes e que o produto de cada um deles é um insumo necessário para o outro. Essa interdependência tecnológica de diferentes indústrias deveria servir (conforme discutiremos mais adiante, em outro capítulo) de base para as futuras versões da teoria do valor-trabalho. O modelo também ilustra o fato de que a alocação de insumos e produtos requer a circulação contínua de moeda. Os fisiocratas se anteciparam a T. R. Malthus, Karl Marx, J . M. Keynes e muitos outros economistas posteriores, que mostraram como o entesouramento da moeda ou a criação de pontos de estrangulamento ou desequilíbrios no processo de circulação monetária poderia atrapalhar a alocação de insumos e de produtos, provocando crises ou depressões econômicas. Finalmente, muito embora quase todos os economistas posteriores tenham rejeitado a noção de que o excedente era um dom da natureza, a classificação dos trabalhadores cuja força de trabalho cria valor excedente como produtivos e daqueles cuja força de trabalho não cria excedente como improdutivos iria tornar- se um elemento importante na análise econômica do século XIX. Conclusão Em geral, deve-se dizer que poucos economistas anteriores a Adam Smith apresentaram o mesmo tipo de análises coerentes e bem elaboradas dos processos econômicos do capitalismo, que encontraremos nos capítulos que se seguem. I sso não ocorreu por serem eles intelectualmente inferiores aos seus sucessores, mas porque estavam escrevendo numa época de transição socioeconômica em que as características do sistema capitalista emergente estavam permeadas de muitos vestígios do antigo sistema. Em fins do século XVI I I , as características mais gerais do capitalismo já se tinham tornado muito mais visíveis. D aquela época em diante, os pensadores econômicos puderam perceber muitas dessas características, com uma clareza cada vez maior. Além do mais, depois de o capitalismo ter aparecido claramente como o sistema econômico dominante da Europa Ocidental, cada geração de economistas que passava podia aproveitar e refinar as ideias de seus predecessores. Não obstante, o leitor verá que muitas das ideias discutidas neste capítulo têm – reaparecido várias vezes até os dias de hoje. Apesar das enormes mudanças ocorridas desde o século XVI , o capitalismo continua baseando-se em muitos dos mesmos fundamentos sociais, políticos, jurídicos e econômicos que eram percebidos apenas por alto, na época em que estavam começando a dominar a sociedade da Europa Ocidental. Notas Do Capítulo 2 1. Ver MEEK, Ronald L. Studies in the Labour Theory of Value. Ed. Rev. Nova York: Monthly Review Press, 1976, p. 12-14. Quase toda a primeira parte deste capítulo se baseia no Capítulo 1 desse excelente livro. 2. Ibid., p. 15. 3. Ibid., p. 15-16. 4. Ver HUNT EK. Property and Prophets. Nova York: Harper & Row; 1975; p. 8-11. 5. WILLIAM Appleman Williams. The Contours of American History. Nova York: Quadrangle; 1966; p. 36. 6. Ibid., p. 40. 7. GRAMPP William D. Economic Liberalism. Nova York: Random House; 1965; 2 v., 1, p. 59. 8. Para uma elaboração desta discussão acerca das Leis dos Pobres, ver BIRNIE, Arthur. An Economic History of the British Isles. Londres: Methuen, 1936, Capítulos 12, 18. 9. WILLIAMS, Contours of American History, p. 41. 10. Ibid., p. 44. 11. DOBB Maurice H. Studies in the Development of Capitalism. Londres: Routledge & Kegan Paul; 1946; p. 134. 12. Ver McDONALD Cameron Lee. Western Political Theory : The Modern Age. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich; 1962; 29. 13. Citado por GIRVETZ Harry K. The Evolution of Liberalism. Nova York: Colliers; 1963; p. 28-29. 14. GRAMPP, Economic Liberalism, vol. 1, p. 69. 15. McDONALD. Western Political Theory, p. 16. 16. Os estudos clássicos da relação entre o protestantismo e o capitalismo são os de MAX WEBER, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nova York: Scribner, 1958, e TAWNEY, Richard H. Religion and the Rise of Capitalism. Nova York: Mentor Books, 1954. 17. HILL Christopher. “Protestantism and the Rise of Capitalism”. In: Landes DS, ed. The Rise of Capitalism. Nova York: Macmillam; 1966;43. 18. Ibid., p. 43. 19. Ibid., p. 46-47. 20. Ibid., p. 49. 21. FULLERTON Kemper. “Calvinism and Capitalism; an Explanation of the Weber Thesis”. In: Green Robert W, ed. Protestantismand Capitalism: The Weber Thesis and Its Critics. Lexington: Mass, Heath; 1959;19. 22. Ibid., p. 18. 23. Citado por GRAMPP. Economic Liberalism. vol. 1, p. 78. 24. Ibid., p. 77-81. 25. Citado por Robert Lekachman, (ed.). The Varieties of Economics. Nova York: Meridian, 1962, 2 vols., vol. 1, p. 185. 26. MEEK. Labour Theory of Value, p. 18. 27. Citado por FURNISS Edgar S. The Position of the Laborer in a System of Nationalism. Nova York: Augustus M. Kelly; 1965; p. 16. 28. Ibid., p. 16-17. 29. Citado por MEEK. Labour Theory of Value, p. 41. 30. Ibid., p. 42-43. 31. Citado por FURNISS. Position of the Laborer, p. 19. 32. HAY, William. Op. cit. 33. MEEK. Labour Theory of Value, p. 24-25. 34. QUESNAY, François. Tableau Economique. Londres: H. Higgs, 1894; original impresso privadamente. (Versalhes: 1758). 35. Uma defesa mais completa desta afirmativa pode ser encontrada em ROGIN, Leo. The Meaning and Validity of Economic Theory. Nova York: Harper & Row, 1957, p. 14-50. 36. Estou adotando a terminologia de Rogin em Economic Theory, p. 20, e não a de Quesnay.
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