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Taís Marques Floriano UMA REFLEXÃO SOBRE O RACISMO À BRASILEIRA ATRAVÉS DA PSICANÁLISE SANTOS 2021 2 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................... 3 2. UMA VISÃO PSICANALÍTICA DO RACISMO À BRASILEIRA ................... 4 2.1 Aspectos históricos da construção do racismo estrutural no Brasil .......... 4 2.2 Raça como construção social .................................................................. 6 2.3 Racismo como sintoma social ................................................................. 8 2.4 Efeitos do racismo no Brasil e o Ideal de Eu .......................................... 10 3. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ............................................................. 13 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 14 5. REFERÊNCIAS ........................................................................................ 15 3 1. INTRODUÇÃO Pelo que se sabe, o sistema escravista de modo geral se iniciou na idade antiga, no Antigo Oriente, com a escravização dos povos que eram vencidos nas guerras, porém, esse sistema acabou se estendendo por centenas de anos e se expandindo para outros territórios junto com a era da colonização. Apesar de muitos países terem instituído esse sistema e, posteriormente, terem sido permeados pelos resquícios dessa prática através do racismo, é necessário se discutir como isso ocorreu de forma particular no Brasil, em especial com a população negra, ganhando o nome de “racismo à brasileira”. A construção do racismo no nosso país ocorreu não de forma acidental, ou justificadamente biológica como se tentou propagar, mas de forma cruelmente imposta, contra populações consideradas menos desenvolvidas, desumanizadas e colocadas na posição do Outro, selvagem, que é interessante enquanto ser exótico e distante do Eu. Narcisicamente, o colono europeu se colocou na posição de ser superior e encontrou na fé uma justificativa para se impor sobre o outro: o escolhido por Deus para enfrentar a missão de civilizar os povos considerados “selvagens”. Segundo Santos (2021), é necessário conhecer a história, o processo estrutural que criou o que é ser negro, as construções sociais que impõem o lugar do negro na sociedade e como elas o afetam, e, só depois, se pensar em uma possível forma de superação. Assim, em virtude dessa problemática ter sido invisibilizada durante muito tempo, até pela própria psicanálise, esse trabalho se justifica pela importância do debate e reflexão do tema se utilizando de uma teoria que investiga aquilo que tenta ser ocultado pelo sujeito. Com base nisso, o presente trabalho, desenvolvido através da pesquisa bibliográfica com base teórica em Sigmund Freud e Frantz Fanon, tem como objetivo refletir sobre os fatores que influenciaram na construção do racismo no nosso país, como isso afeta o cidadão negro brasileiro e como a psicanálise pode contribuir para o início de seu enfrentamento 4 2. UMA VISÃO PSICANALÍTICA DO RACISMO À BRASILEIRA 2.1 Aspectos históricos da construção do racismo estrutural no Brasil Como sabemos, a inicial missão de civilização se revelou uma missão extrativista dos recursos naturais do país, juntamente com a escravização da mão de obra dos nossos povos originários que, por conta da violência, das fugas e de doenças trazidas pelos europeus, logo necessitou ser descartada. A partir de então, despontou-se uma nova possibilidade: o tráfico negreiro, uma solução para a mão de obra escravizada e uma nova fonte de renda altamente lucrativa. Com o envolvimento de Portugal no tráfico negreiro, iniciado no século XV, e a série de feitorias que os colonos já tinham estabelecidas na costa africana, não foi difícil dar seguimento ao novo negócio no Brasil e já desembarcar cerca de 3 mil escravizados em 1580, da mesma forma, ou até mais brutalmente, que se exporta o gado na atualidade. Para Vanconcelos (2012), a coisificação do escravizado provém de ideias muito antigas: já no século IV, Platão acreditava que a animalização e a escravidão seriam uma condição natural para aqueles considerados inferiores, ideia que se estendeu por séculos, como podemos ver no livro “Uma viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, lançado originalmente na França, em 3 partes, entre 1834 e 1841, onde Debret relata o jantar brasileiro da época colonial tanto na pintura “Um jantar brasileiro” quanto em um trecho do livro: “No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o “tête-à-tête” de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos, que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. Esses molecotes mimados até a idade de cinco ou seis anos, são em seguida entregues à tirania dos outros escravos que os domam a chicotadas e os habituam assim a compartilhar com eles fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças revoltadas por não mais receber das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida [...]” (DEBRET, 1834 a 1841, reimpressão 2016, p. 137-138) 5 Muitos conceitos foram impostos e utilizados para justificar a escravização no Brasil, condição que percorreu um longo caminho até ser abolida em 1888, pela Lei nº 3.353, sem nenhum sentimento solidário para com a população escravizada composta de cerca de 1,5 milhão de pessoas, 1/3 da população brasileira na época. Pelo contrário, atualmente já se sabe que a abolição da escravatura ocorreu pelo interesse financeiro da Inglaterra em expandir seus mercados, pois, os cativos libertos renderiam muito mais como consumidores do novo sistema capitalista e também por questões políticas, porque com a insurreição republicana que estava surgindo na época, a implementação de tal lei poderia trazer grande popularidade e apoio para a princesa Isabel e, quem sabe, garantir um Terceiro Reinado - inclusive os libertos chegaram a criar um grupo de defensores do império, chamado Guarda Negra. Prova disso é o fato de que os cativos foram libertos sem nenhuma política de inserção social, dificultando sua adaptação como cidadãos livres e os condenando as margens da sociedade em papéis de servidão. Segundo Guerra (2020) o negro foi sendo excluído na medida em que o imigrante europeu se inseria na sociedade, afinal, houve um incentivo a imigração de estrangeiros, que já possuíam conhecimento técnico, para ocuparem os postos de trabalho e, consequentemente, uma diminuição de oportunidades ao negros que se quer foram profissionalizados após serem libertos, o que reafirmava no inconsciente da população o lugar inferiorizado do negro e fazia os ex-cativos traumatizados, por sua antiga condição, se sentirem presos a uma nova forma de escravidão. Posteriormente, em 1889, os mecanismos inconscientes de manutenção da discriminação entraram novamente em cena junto a Proclamação da República, quando todos os documentos referentes a escravidão no Brasil foram queimados, como uma forma de negar a crueldade imposta aos africanos. Se recusando a trabalhar de forma humilhante, que os relembrava os tempos de escravidão, os negros passaram a serem vistos como irresponsáveis e vagabundos. Assim, a sociedade recalcava a discriminação em forma de violência física, não mais aceita perante a lei vigente, e a transformava em uma violência psicológica, e, portanto, aceitável perante a sociedade da época. Logo em seguida, para reafirmar simbolicamente a transformação política que havia ocorrido, criou-se um hino, que novamente renegava a ocorrência da escravidão: 6 “Liberdade! Liberdade!Abre as asas sobre nós [...] Nós nem cremos que escravos outrora Tenha havido em tão nobre País Hoje o rubro lampejo da aurora Acha irmãos, não tiranos hostis” (ALBUQUERQUE E MIGUEZ,1890) 2.2 Raça como construção social Como pôde-se perceber, houve um jogo simbólico que ditava no Brasil quem era superior e quem era inferior desde a colonização, porém, após a libertação dos cativos houve a necessidade de avançar do simbólico para o concreto, dando espaço para teorias que tentaram provar cientificamente que o branco era superior e que o desenvolvimento do país estava atrelado ao branqueamento da população, afinal, a Europa, que era branca, era o símbolo do ápice de desenvolvimento na época. Ainda no campo símbolico, na pintura “A redenção de Cam”, de 1895, Modesto Brocos expõe os supostos efeitos do branqueamento na população brasileira: uma idosa negra retinta com as mãos elevadas ao céu em gratidão – por seus descendentes estarem embranquecendo, sua filha negra, não retinta, em uma posição que remete a Virgem Maria, seu genro branco – possivelmente europeu – expressando satisfação ao ver o filho, e seu neto já branco em uma posição que remete ao menino Jesus. Além disso, podemos perceber uma obtenção de privilégios pelo clareamento da pele: enquanto a senhora está em pé do lado de fora, descalça em um chão de barro, sua filha está sentada quase na porta, entre o chão de barro e o chão de pedra, e, por fim, seu genro está de costas para a cena, na porta de casa, virando-se apenas para observar com satisfação o seu feito – o bebê embranquecido – enquanto, calçado, pisa em um chão de pedra. Não bastasse a pintura em si, Modesto ainda nos faz refletir com o que está implícito no título da obra: “A redenção de Cam” faz alusão a passagem bíblica onde Noé amaldiçoa seu neto, Canaã, filho de Cam, a trabalhar eternamente aos descendentes de seus tios por um pecado de seu pai. Essa história foi utilizada por muito tempo para justificar a escravidão, onde os africanos seriam os descendentes de Canaã e os europeus os descendentes de 7 seus tios, ou seja, a negritude seria a marca da maldição e o sistema escravocrata estava justificado na bíblia sagrada. E, assim, os colonizadores novamente se utilizaram da fé como justificativa, dessa vez para impor o branqueamento como a libertação da maldição de ser negro. No campo científico, temos o darwinismo social como justificativa para a superioridade do branco. Segundo Bolsanello (1996), o darwinismo social não apenas normatizava a desigualdade social como a justificava como uma luta natural pela sobrevivência: era natural que para que alguns fossem ricos outros precisavam ser pobres e sem acesso ao poder social, econômico ou político. Um equilíbrio da balança. Bolsanello afirma ainda que um dos maiores defensores do darwinismo social, Herbert Spencer, propagava a ideia de que a ajuda que o Estado fornecia aos pobres, como políticas públicas, prejudicava os mais ricos e, consequentemente, o processo de seleção natural, afinal, para ele, os pobres deveriam morrer cedo e gerar o mínimo de descendentes para que, com o tempo, a sociedade fosse composta apenas daqueles considerados “aptos” – reequilibrando o processo de seleção natural. Na mesma época, vigorava uma outra teoria que usava a ciência para justificar o racismo: a teoria do criminoso nato. De acordo com França e Silva (2018), o psiquiatra Cesare Lombroso colocou o negro como criminoso afirmando que o sujeito nasce criminoso determinado pela genética e descrevendo o biótipo negro e mestiço como o perfil do criminoso nato. Assim, com base nessas e outras teorias, o gene africano passou a ser considerado um elemento maléfico para a composição biológica dos humanos, dividindo opiniões em como eliminá-lo: coibindo que negros tivessem descendentes ou os embranquecendo pela miscigenação até que não restassem traços da negritude. Seja qual fosse a opção, o objetivo era o mesmo: criar uma raça pura e branca. Raça essa que, como vimos, não existia a priori, mas foi construída pelo poder do burguês colonizador para diferenciá-lo do Outro, que ele considerava diferente e inferior, “Eu concordo plenamente com Fanon que eu não sou negro do ponto de vista ontológico, ou seja, a cor da minha pele só tem sentido social, político, institucional, cultural por causa do processo histórico, da modernidade, do colonialismo, da acumulação primitiva de 8 capital, da escravidão e do poder burguês.” (MANUEL, 2020) Posteriormente, ao fim da Segunda Guerra mundial, houve um esforço da ciência em provar que biologicamente não havia nenhuma diferença entre etnias, isso era apenas uma construção social. Mas mesmo sem embasamento científico o conceito de raça continuou a ser utilizado como uma forma de privilegiar e diferenciar os indivíduos. Segundo o professor de história, Dirceu Lima: “precisamos entender que o racismo é uma questão de poder. O racista prática o racismo para, acima de tudo, garantir os seus privilégios e o seu poder frente o negro." (LIMA, 2020). Ou seja, o conceito de raça é apenas mais uma das faces do racismo criada pelo sujeito colonizador, que precisava nomear o Outro como um ser diferente para se afirmar como branco – humano. Afinal, afirmando-se como branco, o sujeito se assemelha aos seus e se une a eles tendo um Outro, que é diferente, para hostilizar. Segundo Endo e Reino (2011), a hostilidade se aproveita das pequenas diferenças assim como o sonho se aproveita dos restos diurnos. Para Freud, isso que ele chamou de “narcisismo das pequenas diferenças” era a chave para se entender a hostilidade inerente nas relações humanas, pois, esse amor por si mesmo (narcisismo) é tão inflexível e conservador que transforma qualquer diferença do Outro em uma afronta, como se tudo que é diferente fosse uma ameaça para o Eu: Etnias bastante aparentadas se repelem, o alemão do sul não tolera o alemão do norte [...], o espanhol despreza o português. Já não nos surpreende que diferenças maiores resultem numa aversão difícil de superar, como a do gaulês pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo homem de cor. (FREUD, 1921, reimpressão 2011, p. 43) 2.3 Racismo como sintoma social Além da negação, que já expomos anteriormente, outro importante mecanismo de manutenção do racismo é o recalque. Para Guerra (2020), o recalque é um mecanismo de esquecimento, que faz com que a representação de uma situação que incomoda o psiquismo se torne inconsciente, mas que ganhe sua forma consciente através de um sintoma. Segundo Nasio (1999), 9 quando esse conteúdo surge na consciência, disfarçado de sintoma, o indivíduo já não o reconhece mais em sua essência, porém, mesmo assim, essa nova representação é capaz de fazer com que o sujeito descarregue sua energia pulsional e obtenha um prazer parcial e substitutivo daquele que não pode ter. Assim, como tudo que é recalcado acaba emergindo através das formações do inconsciente, a hostilidade, como vimos anteriormente, se aproveita da pequena diferença do outro para emergir na consciência, ganhando novos nomes e formas, mas com o mesmo propósito: diminuição da tensão, que nesse caso ocorre através da violência contra o negro, tentando eliminá-lo de forma concreta ou simbólica para preservar o Eu, pois, se deixarmos o Outro se aproximar demais veremos que ele não é muito diferente de nós, na verdade há uma pequena diferença entre nós, e se “ ele não é tão diferente, logo, meu Eu não é tão ideal assim, uma vez que há outros ideais de Eu.” (ANTUNES, 2020), então, para que o Eu continue a ser um ideal é preciso eliminar esse Outro que me ameaça. Ou seja, a hostilidade surge pela ameaça que o Outro provém para o Ideal de Eu, mas como essa hostilidade já não é mais aceita, afinal, existe um preconceito em ser preconceituoso, esse racismo cordial e estruturalque enfrentamos no Brasil surge como um sintoma da hostilidade que vem sendo recalcada pela sociedade brasileira. Um racismo que ataca de forma sorrateira e passa despercebido, na maioria das vezes, e se percebido é justificado como brincadeira, elogio, mal-entendido – um ato falho... Ou, infelizmente, como o racismo à brasileira nem sempre é tão sutil, acaba se manifestando em sintomas mais violentos e até mortais contra a população negra, mas mesmo na violência concreta ele encontra uma desculpa para agir: uma confusão, uma bala perdida, um disparo não intencional, um merecimento (“devia ser bandido”). “[...] Ele (o colonizado) é só um objeto, e se é só um objeto as leis para ele não precisam valer. Você pode derrubar uma casa com moradores dentro [...], você pode invadir a favela e atirar em crianças que não há comoção, porque esse Outro não é o outro que compõem a comunidade [...] e como Outro, ele quando é visto é um objeto útil ou uma ameaça que 10 precisa ser destruída, [...], a morte na favela não é uma morte chorada, ela é comemorada como uma espécie de limpeza. (FAUSTINO, 2021) 2.4 Efeitos do racismo no Brasil e o Ideal de Eu Segundo Guerra (2020), ao passo que a indústria avançava, requerendo cada vez um maior conhecimento técnico, o povo negro era empurrado para as margens da sociedade, para dentro das periferias. Com pouco ou nenhum acesso à educação, alguns negros tiveram as experiências de seus ancestrais atualizadas em trabalhos exploratórios, outros viram no crime uma chance de ascensão social. Então, o antigo escravo, que liberto foi taxado de vagabundo, agora é visto como criminoso e, dessa forma, “o negro se torna perigoso pela cor de sua pele” (GUERRA, 2020, p.6) Segundo Souza (2012), em meio ao cenário de ascensão da chamada “classe trabalhadora”, branca, e a decadência dos negros periféricos, surge a chamada “diferença de classe”, algo que para Dunker (2018), é apenas uma nova manobra de negação do racismo, afinal, com essa interseccionalidade, não sabemos mais se o negro é discriminado por ser negro ou por ser pobre, dificultando a identificação do racismo. Apesar de, desde o início da escravização, sempre terem existido movimentos de resistência contra a discriminação imposta, vivendo em uma nação colonizada por quem colaborou para um dos maiores revés da humanidade e que, sozinhos, mercantilizaram mais de 4,5 milhões de cativos, os negros brasileiros enfrentaram, política e culturalmente, uma ardua transição do lugar de mercadoria para o de cidadão, levando um século para serem contemplados com políticas de reparação que até hoje são tidas como privilégios desnecessários - reafirmando a negação, acredita-se que não há o que reparar. De acordo com a professora de antropologia da USP, Lilia Moritz Schwarcz, em uma entrevista concedida ao BBC, nós ainda sofremos as consequências dessa libertação sem políticas de inserção social para os libertos. Para ela, o que estamos fazendo ao longo desses 130 anos de libertação, nada mais é do que dar continuidade ao racismo, afinal, nós nem iniciamos o processo 11 de descolonização e permanecemos negando, tanto o nosso passado escravocrata quanto o nosso presente racismo estrutural. Para Schechter e Bonfim (2020) as questões raciais começaram a ganhar força no Brasil, tanto de forma positiva como negativa, quando o negro passou a ocupar espaços que socialmente foram destinados aos brancos, através de políticas públicas que visam promover, de alguma forma, igualdade de oportunidades, algo que para Herzog (2019) foi negado aos negros para colocá- los como menos do que humanos, já que para ser humano era preciso ser branco. Herzog acredita que promover cotas, por exemplo, é reparar o status de humano que foi roubado do sujeito negro e não o privilegiar. Sem dúvidas, vivemos em uma sociedade que nega o racismo escancaradamente, onde até se pode concordar que existe racismo, mas ninguém admite ser pessoalmente racista. Uma sociedade majoritariamente afrodescendente na qual houve uma construção social da branquitude como sinônimo de humanidade, ao passo que o negro foi tido como objeto escravizado, animalizado, amaldiçoado e criminalizado. Uma nação onde, segundo Guerra (2020), o negro, inconscientemente, assimilou uma posição narcísica de inferioridade, identificando na branquitude um ideal de Eu. Porém, como esse ideal nunca poderá ser atingido, acaba gerando um sofrimento psíquico ao negro, uma dor narcísica por estar condenado a um lugar inferiorizado, com a angústia de estar preso em seu próprio corpo e mente que nunca poderão corresponder, respectivamente, aos ideais de beleza e intelecto europeu, pois, segundo Fanon (1952), a civilização europeia impôs um desvio existencial ao negro, uma busca desesperada para descobrir o sentido de sua identidade. Posteriormente, como uma maneira de escapar dessa situação, surge a ideia de que o amor e a aprovação do branco seriam uma forma possivel de se libertar e embranquecer – retrocedendo a política de miscigenação: Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem este desejo repentino de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, e sim como branco. [...] Sou amado como um branco. Sou um branco. Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz à plenitude... Esposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca. (FANON,1952, reimpressão 2008, p. 69) 12 Em “Pele negra, máscaras brancas” (1952), Fanon aborda a alienação do negro que em uma tentativa de se embranquecer, para atingir o Ideal de Eu, veste máscaras brancas ao incorporar traços de seu colonizador: cabelo, veste, dialética, religião, costume. Se afastando do que é ser negro e se aproximando ao máximo do ideal, perdendo sua identidade através da alienação, o que para Fanon ocorre quando o sujeito concebe a incorporação da cultura europeia como uma válvula de escape para se desligar de sua raça, raça essa que epidermicamente o condena a um lugar de não-ser (humano), mas o coloca no lugar de um vir-a-ser, vir a ser o que é antagônico a própria existência, numa negação de si mesmo e desejo da própria extinção. Talvez em um desejo inconsciente de atingir o nirvana, onde haveria harmonia com o mundo exterior, um estado de plenitude que acabaria com seu sofrimento. Para Fanon (1952), acreditava-se que como o negro passou a sofrer preconceito quando esteve sob o olhar do branco, apenas o sujeito branco poderia devolvê-lo sua condição humana, valorizando-o e libertando-o da condição de objeto: “Implorei ao outro (branco). Seu olhar libertador, [...] me devolveu uma leveza que eu pensava perdida” (FANON, 1952, p. 103). Contudo, em uma sociedade racista, ter o amor branco como via de libertação dessa angústia faz com que o negro permaneça sofrendo, se sentindo inferior e culpado. Sendo assim, o negro precisa encontrar outra forma de alforria: a desalienação. De acordo com Fanon, para que a desalienação ocorra é preciso que o negro tome consciência das realidades econômicas e sociais, as mesmas que alimentaram seu processo de inferiorização. Ou seja, não é possivel olhar o sujeito apenas de forma individual, é necessário observar a sua subjetividade que se constrói a partir do contexto histórico, social, cultural, político, econômico. Para entender o indivíduo é preciso olhar para o coletivo em que ele está inserido, ou nas palavras de Freud: “a psicologia individual também é social” (FREUD, 1921, p. 10). De certo, como vimos ao longo deste trabalho, o racismo permeia todos os contextos em que o ser se insere. Mas além de se conscientizar sobre a realidade, Fanon acredita que é preciso ocorrer uma “recusa em aceitar a atualidade como definitiva” (FANON, 1952, p. 187). E isso não significa inverter os papéis e pregar o ódio ao branco. 13 Isso significa resistiratravés da palavra que, segundo Kon (2017), é o ponto de partida para ultrapassarmos a dor e começarmos a desenhar novos destinos, afinal, para a psicanálise o problema se destaca justamente pelo que não é dito – é recalcado, e, portanto, segue se repetindo, só podendo começar a ser enfrentado a partir de um processo analítico onde é preciso recordar e elaborar. Para enfrentar o racismo é preciso quebrar o silêncio. 3. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO Como se sabe, ainda não existe uma cura definitiva para o racismo. Apesar de não nascermos racistas, a priori, adquirimos a ideologia racista à medida que nos confrontamos com o ambiente em que estamos inseridos: uma sociedade essencialmente preconceituosa com tudo que é minimamente diferente. Porém, por mérito dos movimentos negros que trazem a narrativa do racismo à tona em diversos espaços, buscando políticas públicas, denúncia e representatividade, atualmente já podemos ver uma movimentação na estrutura: corpos pretos passam a ocupar espaços que a pouco tempo eram destinados apenas aos brancos. Corpos que só eram aceitos como objetos de entretenimento – na música, na dança, no esporte – hoje ocupam a política, a educação, a ciência. Algo que abre espaço para que a nova geração de afrodescendentes possa se desalienar, de fato, e começar a pensar na construção de um novo ideal de Eu, ideal esse que não precisa fazer com que o indivíduo negro se apague pois ele o representa, afirma sua identidade. Pensando nisso, cabe ao fim deste trabalho fazer-se o uso das mídias sociais, mais precisamente o Instagram, para disseminar conhecimentos que façam os indivíduos refletirem sobre suas vivências, escolhas, comportamentos, modos de ser e pensar que estão implicadas nas próprias histórias, mas também na história daqueles que vieram antes deles, e que, acima de tudo, os instigue a ocupar espaços e quebrar o silêncio, se possivel em um processo terapêutico- analítico. Enfim, uma proposta de intervenção que não irá resolver a situação, mas que irá contribuir para seu enfrentamento, uma faísca anunciando o início da chama que se acende no coração de cada afrodescendente que resiste. 14 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Alguns diriam que a solução para problemática do racismo é não tocar no assunto, mas parar de falar sobre racismo não faz com que ele deixe de existir, pelo contrário, o que Freud vem nos ensinando há mais de um século é que negar uma verdade desconfortável demais para o Eu só faz com que essa verdade seja recalcada para emergir com uma nova face, mas com a mesma finalidade, tal qual vimos ao longo dessa narrativa. A história da construção do racismo à brasileira é longa, mas como podemos observar o racismo é o sintoma e não a causa. A ponta da lança que nos fere necessariamente precisa de uma mão humana para empunhá-la, podemos tentar combater a lança, mas nosso inimigo continuará à espreita por uma nova oportunidade de nos ferir. Da mesma forma, não adianta combatermos o sintoma se não buscarmos sua causa, e nesse sentido a psicanálise se faz essencialmente necessária para o enfrentamento dessa questão social. Portanto, com base no que expomos até aqui, é necessário que a psicanálise brasileira não feche os olhos para a realidade da população e leve em consideração como esses fatores impactam a subjetividade dos indivíduos. É de suma importância preparar a escuta psicanalítica para compreender esses aspectos e auxiliar os indivíduos a perceberem como estão implicados em suas próprias histórias, dando ouvidos aqueles os quais tentaram calar e os ajudando a quebrar o silenciamento que vem se impondo ao longo da história do Brasil. 15 5. REFERÊNCIAS ANTUNES, Gilvandro. A Psicanálise e a Psicologia Social no debate do racismo no Brasil: o lugar onde patologia e estrutura social da desigualdade se encontram. São Paulo: Revista Movimento, 14 de julho de 2020. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2020/07/a- psicanalise-e-a-psicologia-social-no-debate-do-racismo-no-brasil-o-lugar-onde-patologia-e- estrutura-social-da-desigualdade-se-encontram/. Acesso em: 12 de maio de 2021. BRASIL. 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