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marina albuquerque 1 Leishmaniose Visceral INTRODUÇÃO As leishmanioses compreendem 4 diferentes síndromes clínicas (cutânea, mucocutânea, visceral e dérmica pós-calazar) que podem resultar da multiplicação de alguma das mais de 20 espécies de protozoários tripanossomatídeos do gênero Leishmania nos macrófagos da pele, da mucosa da nasofaringe e nos fagócitos mononucleares, a partir da picada de uma das cerca de 30 espécies distintas de mosquitos flebótomos. A leishmaniose visceral (LV), também conhecida como calazar, que pode ser fatal caso não seja tratada, é uma doença sistêmica causada pelo complexo Leishmania donovani – L. donovani sensu stricto no leste da África e no subcontinente indiano e L. infantum na Europa, norte da África e na América Latina. As Leishmanias se apresentam sob duas formas distintas: extracelular, como promastigota flagelado no intestino do vetor, e amastigota intracelular, que se desenvolve no hospedeiro. Os parasitas são apreendidos pelas células dendríticas e pelos macrófagos da derme, transformando-se em amastigotas ao perderem o flagelo. Em seguida, multiplicam-se nos lisossomos dos fagócitos por meio de uma complexa interação parasita-hospedeiro, disseminam-se através dos vasos sanguíneos e linfáticos e infectam outros monócitos e outros macrófagos do sistema retículo-endotelial, o que resulta na infiltração da medula óssea, hepatoesplenomegalia e, algumas vezes, aumento dos linfonodos. A infecção nem sempre resultará em doença, podendo haver variação importante entre o número de indivíduos infectados e aqueles que adoecem. Nesse sentido, a imunidade celular do hospedeiro parece ser crucial no controle da infecção, parecendo haver uma incapacidade de reconhecimento adequado dos antígenos de Leishmania pelos linfócitos T e de produção de interleucina (IL) 10 nos pacientes que desenvolvem LV. EPIDEMIOLOGIA A LV é considerada uma das doenças tropicais negligenciadas, estimando-se a ocorrência de 500.000 casos anualmente. Ocupa o 2º e o 4º lugares em mortalidade e em morbidade nesse grupo de doenças, respectivamente, determinando entre 20.000 e 40.000 mortes por ano. Bangladesh, Índia, Nepal, Sudão, Etiópia e Brasil concentram 90% dos casos. Migrações, ausência de ações de controle e a coinfecção HIV-LV são apontados como os três principais fatores associados com o aumento global da incidência da LV. A doença é mais frequente em menores de 10 anos (58%), e o sexo masculino é proporcionalmente o mais afetado (61%). Na área urbana, o cão (Canis familiaris) é a principal fonte de infecção. Já no ambiente silvestre, os reservatórios são as raposas (Dusicyon vetulus e Cerdocyon thous) e os marsupiais (Didelphis albiventris). Os vetores são insetos flebotomíneos, conhecidos popularmente como mosquito palha, tatuquiras ou birigui. No Brasil, duas espécies, até o momento, estão relacionadas com a transmissão da doença: Lutzomyia longipalpis e Lutzomyia cruzi. A atividade dos flebotomíneos é crepuscular e noturna, e somente a fêmea do mosquito transmite a doença. O período de incubação é variável: 10 dias a 24 meses no homem, com média de 2 a 6 meses; no cão, varia de 3 meses a vários anos, com média de 3 a 7 meses. QUADRO CLÍNICO A suspeita clínica da LV deve ser levantada nos pacientes com febre e esplenomegalia associadas ou não à hepatomegalia. A doença apresenta um amplo espectro clínico de gravidade. Na maioria dos casos, a LV caracteriza-se por febre irregular prolongada, palidez, hepatoesplenomegalia e emagrecimento insidiosos e progressivos, associados ao comprometimento do estado geral. Eventualmente, a progressão é mais rápida, o que se correlaciona com maior gravidade. Além do emagrecimento, a desnutrição se manifesta por cabelos quebradiços, cílios alongados (sinal de Ptaluga), pele seca e, nos quadros mais avançados, edema dos membros inferiores, podendo evoluir para anasarca. Outras manifestações importantes incluem hemorragias (epistaxe, gengivorragia e petéquias), icterícia e ascite. O óbito geralmente é determinado por infecções bacterianas ou sangramentos. As infecções bacterianas são as complicações mais frequentes da LV, com destaque para pneumonia, diarreia, otite média aguda, piodermites e infecção urinária, que podem evoluir para sepse se não identificadas e tratadas prontamente. As hemorragias são geralmente secundárias à plaquetopenia, sendo a epistaxe e marina albuquerque 2 a gengivorragia as mais comumente encon- tradas. A hemorragia digestiva e a icterícia, quando presentes, indicam maior gravidade do caso. A síndrome de ativação macrofágica (hemofagocitose) associada com a LV é uma complicação que vem sendo cada vez mais descrita e deve ser considerada nos pacientes que permanecem graves e com pancitopenia intensa, mesmo após o início do tratamento específico e de suporte. O diagnóstico diferencial deve ser feito com outras condições, infecciosas ou não, que determinem hepatoesplenomegalia febril. Entre as doenças infecciosas em nosso meio, des- tacam-se enterobacteriose sistêmica prolongada (coinfecção esquistossomose e enterobactérias), malária, febre tifoide, brucelose, doença de Chagas aguda, tuberculose miliar e es- quistossomose. Nos pacientes com vírus da imunodeficiência humana (HIV)/aids, a histoplasmose disseminada tem evolução muito semelhante. Considerando a indicação de tera- pêutica diferenciada para pacientes soropositivos, o teste de HIV deve ser sempre oferecido na suspeita de LV. Entre as condições não infecciosas, devem ser incluídas no diagnóstico diferencial: leucemia, linfoma, lúpus eritematoso sistêmico, doença de Still, anemia falciforme, entre outras. PROGNÓSTICO O Ministério da Saúde adotou um sistema de classificação de prognóstico baseada em esco- res clínicos e laboratoriais que é indicado para identificação dos pacientes com maior risco de evolução para óbito por LV e, portanto, orientar a escolha terapêutica específica. Segundo esse modelo, os pacientes com pontuação ≥ 4, baseados apenas nos critérios clínicos, ou com pontuação ≥ 6, com base nos critérios clínicos e laboratoriais, são os que apresentam risco aumentado de evoluir para óbito. Idade <1 ano e >40 anos, anemia intensa, febre > 60 dias, infecções, sepse, diarreia, icterícia, dispneia, reação neutrofílica, plaquetopenia, sangramentos, hemotransfusões e coinfecção por HIV/aids estão associados à maior chance de óbito por LV. DIAGNÓSTICO LABORATORIAL O diagnóstico laboratorial pode ser feito pela identificação do parasita em tecidos ou por métodos sorológicos, sendo também importantes exames laboratoriais inespecíficos para ajudar na identificação, no tratamento de complicações e na escolha do tratamento adequado. EXAMES INESPECÍFICOS Devem ser solicitados na admissão e no acompanhamento do paciente: hemograma completo, velocidade de hemossedimentação (VHS), creatinina, ureia, alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST), atividade de protrombina, albumina, globulina, fosfatase alcalina, bilirrubinas, amilase sérica, hemocultura, sumário de urina, urocultura, radiografia de tórax e eletrocardiograma. O teste de HIV deve ser sempre oferecido para pacientes com LV. Pancitopenia é um achado constante na LV, sendo necessá-rio estar atento para queda dos neutrófilos abaixo de 500/ mm3, situação em que o paciente deve ser conduzido como neutropênico febril. A inversão da relação albumina/globulina é também muito marina albuquerque 3 característica na LV. É frequente a elevação da fosfatase alcalina, da desidrogenase lática (DHL), da AST e da ALT, acompanhadas ou não do aumento das bilirrubinas e/ou alargamento do tempo de protrombina. A elevação da amilase pode serum dos efeitos colaterais do uso do anti- moniato de N-metilglucamina, medicamento que também pode estar associado com o alargamento do intervalo QT corrigido no eletrocardiograma. DETECÇÃO DO PARASITA A visualização direta de amastigotas por exame microscópico de aspirado de gânglios linfáticos, da medula óssea ou do baço é o teste de confirmação clássico para LV. Apesar de elevada especificidade, a sensibilidade de microscopia varia, sendo maior no baço (93 a 99%) do que na medula óssea (53 a 86%) ou linfonodo (53 a 65%). A punção esplênica requer maior habilidade e é mais sujeita a complicações graves. A detecção, em cultura, de parasitas no sangue ou em órgãos ou pela utilização de técnicas moleculares, como a reação em cadeia da polimerase (PCR), é mais sensível que o exame microscópico direto. DETECÇÃO DE ANTICORPOS Vários testes foram desenvolvidos para o diagnóstico da LV pela detecção de anticorpos anti-Leishmania. Uma limitação desses testes é que, mesmo após o tratamento, esses anticorpos permanecem detectáveis por tempo variável, inviabilizando seu uso como critério de cura ou para identificar casos de recidiva. Portanto, um resultado positivo, por si só, não autoriza a indicação de tratamento. Além disso, nas áreas endêmicas, muitos indivíduos apresentam anticorpos anti-Leishmania em decorrência de infecções assintomáticas (10 a 30%). Já nos imunodeficientes, podem dar resultados falso- negativos conforme a intensidade de imunossupressão. Assim, é indispensável que a interpretação dos testes laboratoriais baseados na identificação de anticorpos seja sempre vinculada a uma suspeita clínica bem fundamentada de LV. Os testes sorológicos de imunofluorescência indireta, ensaio imunoenzimático (ELISA) ou Western blot usados no diagnóstico da LV mostraram boa acurácia nos estudos, mas são pouco acessíveis nos locais com poucos recursos. O mais usado em nosso meio é a imunofluorescência indireta, cujo resultado é expresso em diluições. Consideram-se como positi- vas as amostras reagentes a partir da diluição de 1:80. Nos títulos iguais a 1:40 em pacientes com clínica sugestiva de LV, recomenda-se a solicitação de nova amostra em 30 dias. Mais recentemente, tem se destacado a pesquisa de anticorpos contra a rK39 no diagnóstico da LV. O rK39 é uma repetição de 39 vezes de um aminoácido que é parte de uma proteína rela- cionada com a cinesina da Leishmania chagasi e que é conservada no interior do complexo de L. donovani, o que explica sua elevada sensibilidade e especificidade. Trata-se de um teste rápido em fita, fácil de executar, de baixo custo e com sensibilidade e especificidade de 93,9% e 95,3%, respectivamente. TRATAMENTO O tratamento da LV consiste no uso de drogas específicas anti--Leishmania associadas com o tratamento precoce de infecções concomitantes, anemia e hipovolemia, além de um suporte nutricional adequado. Utilizados há mais de 70 anos, os antimoniais estibogluconato de sódio e o antimoniato de N--metilglucamina ainda são o tratamento de primeira linha para a LV em muitos países. Posteriormente, surgiram como alter- nativas o desoxicolato de anfotericina B, a anfotericina B lipossomal, o miltefosine (oral) e a paramomicina. O uso combinado de dois ou mais desses medicamentos vem sendo estudado como forma de enfrentar a crescente resistência do parasita, reduzir custos e a duração do tratamento. No Brasil, os dois medicamentos indicados para o tratamento da LV são o antimoniato de N- metilglucamina e a anfotericina B lipossomal. Recentemente, o Ministério da Saúde deixou de indicar o uso do desoxicolato de anfotericina B para essa condição, com base no perfil de toxicidade desse fármaco. O antimoniato de N- metilglucamina continua sendo a primeira opção para o tratamento da LV no Brasil. A anfotericina B lipossomal deve ser a primeira escolha para pacientes com LV que atendam pelo menos 1 dos seguintes critérios: • idade: < 1 ano ou > 50 anos; • escore de gravidade: clínico ≥ 4 ou clínico- laboratorial ≥ 6 (Tabelas 1 e 2); • insuficiência renal; • insuficiência hepática; • insuficiência cardíaca; • transplantados cardíacos, renais ou hepáticos; • intervalo QT corrigido no exame eletrocardiográfico maior que 450 ms; • uso concomitante de medicamentos que alteram o intervalo QT; • hipersensibilidade ao antimoniato de N- metilglucamina ou a outros medicamentos utilizados para o tratamento da LV; marina albuquerque 4 • infecção pelo HIV; • comorbidades que comprometem a imunidade; • uso de medicação que compromete a imunidade; • falha terapêutica ao antimoniato de N- metilglucamina ou a outros medicamentos utilizados para o tratamento da LV; • gestantes. TRATAMENTO DE SUPORTE Infecções bacterianas Recomenda-se o uso de antibióticos em pacientes com LV nas seguintes situações: • neutropênicos com menos de 500 neutrófilos/mm3 ; • quadro infeccioso definido ou pacientes com toxemia; • menores de 2 meses; Esquema empírico inicial: ceftriaxona isoladamente ou associada à oxacilina em casos de infecção de pele ou tecido celular subcutâneo ou nos neutropênicos graves. Hemoderivados • Concentrado de hemácias: hemoglobina < 7 g/dL ou hematócrito < 21% ou quando houver repercussão hemodinâmica. Volume: 10 mL/kg (peso até 30 kg) e de 300 mL se peso > 30 kg; • concentrado de plaquetas: plaquetopenia < 10.000/mm3 associada a sangramentos. Dose: uma unidade para cada 7 a 10 kg de peso; • plasma fresco: sangramentos graves, com baixa atividade de protrombina. Dose: 10 a 20 mL/kg a cada 8 ou 12 horas; • fatores de estimulação de colônias de neutrófilos: restringir para pacientes gravemente neutropênicos, portadores de complicações infecciosas que não estão respondendo satisfa- toriamente às medidas iniciais; • vitamina K: nos pacientes com icterícia, quando o tempo de atividade de protrombina estiver abaixo de 70%. Dose: 1 a 5 mg de vitamina K, por via EV, a cada 24 horas, durante 3 dias. CRITÉRIOS DE CURA São essencialmente clínicos. O desaparecimento da febre geralmente acontece por volta do 5o dia de medicação e a redução da hepatoesplenomegalia ocorre nas primeiras semanas. Ao final do tratamento, o baço geralmente apresenta redução de 40% ou mais em relação à medida inicial. A melhora dos parâmetros hematológicos (hemoglobina e leucócitos) surge a partir da 2ª semana. O aparecimento de eosinofilia é sinal de bom prognóstico. A eletroforese de proteínas se normaliza lentamente, podendo levar meses. O ganho ponderal do paciente é visível, com retorno do apetite e melhora do estado geral. O seguimento do paciente tratado deve ser feito aos 3, 6 e 12 meses após o tratamento, e, na última avaliação, se permanecer estável, o paciente é considerado curado. As provas sorológicas não são indicadas para seguimento do paciente. O teste de Montenegro, que na doença é negativo, costuma ficar positivo após a cura. PREVENÇÃO As estratégias de controle da LV ainda são pouco efetivas e estão centradas no diagnóstico e tratamento precoce dos casos humanos, redução da população de flebotomíneos, eliminação dos reservatórios e atividades de educação em saúde. O controle químico por meio da utilização de inseticidas de ação residual da classe dos piretroides é a medida de controle vetorial recomendada. Coleiras impregnadas com deltametrina a 4% podem ser recomendadas como medida de proteção individual para os cães. A prática da eutanásia canina é reco- mendada a todos os animais com diagnóstico confirmado. REFERÊNCIAS: PEDIATRIA, S.B. D. TRATADO DE PEDIATRIA, VOLUME 1. EDITORA MANOLE, 2017. 9788520455869. SEÇÃO 14: INFECTOLOGIA, CAPÍTULO 19: LEISHMANIOSE VISCERAL
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