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Problema 4 – Intermediária Módulo XIV – Febre, Inflamação e Infecção Medicina – UNIME Introdução A leishmaniose é causada por um protozoário unicelular e intracelular obrigatório do gênero Leishmania e afeta principalmente o sistema reticuloendotelial do hospedeiro; As Leishmania produzem síndromes clínicas amplamente variáveis, que vão desde úlceras cutâneas autocuráveis à doença visceral fatal; Essas síndromes se encaixam em três grandes categorias: • Leishmaniose visceral (LV); • Leishmaniose cutânea (LC); • Leishmaniose da mucosa (LM). Aspectos patológicos As reações teciduais consequentes à infecção por leishmanias viscerotrópicas, refletem várias escalas do espectro no qual os sistemas micro e macrofágico são capazes de destruir os parasitas até onde as lesões crônicas se estabelecem; De modo geral, as descrições histopatológicas da leishmaniose visceral referem-se ao comprometimento do sistema fagocítico mononuclear, além de depleção de linfócitos nas áreas T dependentes do baço e de gânglios linfáticos; O fígado pode apresentar padrões morfológicos variados de reatividade que refletem tanto o tipo de resposta do hospedeiro à infecção como à duração da doença: • Padrão típico: acentuada hipertrofia e hiperplasia das células de Küpffer, com parasitismo e infiltrado linfo- histioplasmocitário portal e intralobular, presentes na fase de doença plenamente manifesta; • Padrão nodular ou involutivo: agregados de linfócitos, macrófagos e plasmócitos nos lóbulos hepáticos e nos espaços portais com raras amastigotas; é o quadro visto nos casos oligossintomáticos e nos indivíduos já tratados, e representa a resposta tecidual para controlar a infecção; • Padrão fibrogênico: ampliação do espaço de Disse com a proliferação sinusoidal de fibras reticulínicas e feixes colágenos; observado na doença de longa duração ou após o tratamento; • Padrão cirrótico: a fibrose hepática intralobular difusa (cirrose de Rogers), é raramente registrada no Brasil; Nos pulmões, pode encontrar pneumonia intersticial e focos de fibrose septal, mas é relatada com pequena frequência. Nos rins, pode ocorrer comprometimento glomerular discreto, com hiperplasia e hipertrofia do sistema retículo-endotelial, configurando-se uma glomerulite, com depósitos de IgG, IgM, fibrinogênio e complemento; • Descreveu-se em humanos nefrite intersticial aguda do tipo celular (mononucleares); Também se descreve na LV humana comprometimento da mucosa jejunal, com presença de formas amastigotas em macrófagos em associação com infiltrado inflamatório mononuclear e discreta proliferação fibrosa do interstício, encontrando-se ocasionalmente micro-ulcerações da mucosa; Quadro clínico A apresentação mais comum da LV é um aparecimento abrupto de febre moderada a alta associada a calafrios; • A febre pode continuar por várias semanas com intensidade decrescente, e o paciente poderá ficar afebril por um curto período antes de um novo episódio de febre; O baço poderá estar palpável por volta da segunda semana da doença e, dependendo de sua duração, poderá ficar bastante aumentado; • A hepatomegalia aparece em seguida; A linfadenopatia é comum na maioria das regiões endêmicas do mundo exceto na Índia; Os pacientes perdem peso e se sentem fracos, e a pele desenvolve gradualmente manchas escuras devidas à hiperpigmentação, mais facilmente observadas em indivíduos de pele morena; Problema 4 – Intermediária Módulo XIV – Febre, Inflamação e Infecção Medicina – UNIME A anemia aparece precocemente e pode se tornar grave o suficiente para levar à insuficiência cardíaca congestiva; • Na doença avançada, a hipoalbuminemia pode se manifestar como edema pedal e ascite; Episódios de epistaxe, hemorragias da retina e hemorragia digestiva estão associados à trombocitopenia; Infecções secundárias como sarampo, pneumonia, tuberculose, disenteria bacilar ou ameboide e gastrenterite são eventos comuns; • Herpes-zóster, varíola, bolhas na pele e escabiose também podem ocorrer; Quando não tratada, a doença é fatal para a maioria dos pacientes, incluindo 100% daqueles também infectados pelo HIV; Diagnóstico A demonstração de amastigotas em esfregaços de aspirados de tecido é o padrão-ouro para o diagnóstico da LV; • A sensibilidade dos esfregaços esplênicos é >95%, enquanto os esfregaços de aspirados de medula óssea (60-85%) e de linfonodos (50%) são menos sensíveis; Algumas técnicas sorológicas são atualmente usadas para detectar anticorpos contra Leishmania; • O ELISA e o teste com anticorpo de fluorescência indireta (IFA) são feitos em laboratórios sofisticados; Na prática clínica, usa-se um rápido teste imunocromatográfico baseado na detecção de um antígeno recombinante (K39r) por anticorpos; • O teste requer apenas uma gota de sangue ou soro retirado da ponta do dedo, e o resultado poderá ser lido em 15 minutos; A sensibilidade do teste rápido (TDR) com K39r em indivíduos imunocompetentes é de cerca de 98%, e sua especificidade é de 90%. O PCR pode distinguir entre as principais espécies de Leishmania que infectam humanos; Quanto ao diagnóstico diferencial, a LV é facilmente confundida com a malária; • Outras doenças febris que se parecem com a LV incluem febre tifoide, tuberculose, brucelose, esquistossomose e histoplasmose; A esplenomegalia devida à hipertensão portal, a leucemia mieloide crônica, a síndrome de esplenomegalia tropical também podem ser confundidas com a LV; A ocorrência de febre com neutropenia ou pancitopenia em pacientes de uma região endêmica sugere um diagnóstico de LV; a hipergamaglobulinemia em pacientes com doença crônica reforça o diagnóstico; Tratamento A internação está indicada a todos os pacientes com a forma grave de LV; • Com alterações laboratoriais que podem ser consideradas como fatores de mau prognóstico em decorrência de risco de infecção ou sangramento, como leucopenia menor que 1.000/mL ou neutropenia grave (menor que 500/mm3 ) e plaquetopenia abaixo de 50.000/mL; Outros achados laboratoriais que também indicam gravidade são: • Hemoglobina sérica < 7 g/dL; creatinina > 2x o valor de referência; atividade de protrombina < 70%; bilirrubina total acima dos valores de referência, AST/ALT > 5x o limite superior da normalidade, albumina < 2,5 mg/mL, além de exame radiológico de tórax sugestivo de pneumonia. Drogas Antimonial pentavalente A possibilidade de tratamento com os compostos antimoniais, inicialmente usados na leishmaniose tegumentar, reverteu o prognóstico da doença que frequentemente era fatal; Atualmente, existem duas apresentações do antimonial pentavalente, o estibogluconato de sódio, usado em países de língua inglesa, e o antimoniato de N-metilglucamina (Glucantime®), empregado na França e no Brasil; • A ação dos antimoniais contra Leishmania não é bem conhecida, mas acredita-se que atuem no mecanismo bioenergético das formas amastigotas por meio de glicólise e beta-oxidação, que ocorrem nas organelas denominadas glicossomas; • Outro mecanismo aventado é o de ligação com sítios sulfidrílicos, deflagrando a morte desses protozoários; Atualmente, a apresentação do Glucantime® é em frascos de 5 mL, contendo 81 mg de Sbv (antimônio pentavalente) por mL; • A dose para tratamento deve ser calculada com base no conteúdo de Sbv em cada ampola, nunca ultrapassando a dose de três ampolas/dia, ou seja, 15 mL/dia; Problema 4 – Intermediária Módulo XIV – Febre, Inflamação e Infecção Medicina – UNIME • A dose recomendada para o tratamento da LV é de 20 mg/kg/dia de Sbv por 20a 40 dias, sendo o tempo médio de tratamento de 28 dias; As contra-indicações ao uso dos antimoniais são: gestantes, portadores de cardiopatias, nefropatias e hepatopatias; Quanto às nefropatias, deve ser ressaltado que os antimoniais pentavalentes não são dialisáveis, ocorrendo acúmulo em indivíduos com clearance de creatinina rebaixado e, portanto, podendo levar a arritmias graves; Os efeitos adversos mais comuns apresentados pelo antimoniato de N-metilglucamina são: • Artralgia, mialgia, náusea, vômito, cefaléia, anorexia, aumento de transaminases, fosfatase alcalina, lípase e amilase, leucopenia, alargamento do intervalo QT e supra ou infra-desnivelamento do segmento ST; Outros efeitos colaterais menos frequentes são: • Aumento de uréia e creatinina, arritmia cardíaca, morte súbita e herpes-zoster; Antes da utilização do antimonial, devem ser realizados eletrocardiograma, dosagem sérica de uréia e creatinina, enzimas hepáticas e leucograma; • Durante o tratamento, o ECG deve ser realizado 2x por semana, e os demais exames, ao menos uma vez por semana; Anfotericina B Embora a utilização dos antimoniais pentavalentes tenha sido ampla e tenha modificado o panorama da doença em muitos países, incluindo o Brasil, a droga com maior potencial leishmanicida é a anfotericina B; Esta age sobre o ergosterol, esteróide da membrana de Leishmania, causando aumento de permeabilidade da membrana celular, promovendo influxo de íons e levando à morte do parasito; • Além da sua potência, é a droga com menor descrição de resistência até então; Ela ainda possui várias apresentações, sendo separadas em formulação convencional (desoxicolato) e formulações lipídicas, todas elas para aplicação intravenosa lenta; A formulação desoxicolato apresenta-se em frascos liofilizados com 50 mg de anfotericina, e a dose preconizada é de 0,5-0,7 mg/kg/dia ou 1 mg/kg em dias alternados até uma dose total entre 2 a 3 g, não ultrapassando a dose diária de 50 mg; • Infelizmente esse esquema apresenta alta toxicidade, sobretudo renal e outros efeitos adversos, como cardiotoxicidade; Os efeitos adversos mais comuns são aqueles que ocorrem durante a infusão da droga: febre, anorexia, náuseas, vômitos e flebite; • Esses sintomas devem ser corretamente manejados, uma vez que eles não contra- indicam o uso da anfotericina; • Hipopotassemia e insuficiência renal são outras complicações muito frequentes com o uso da anfotericina; • Hidratação adequada e aplicação intermitente são formas práticas de tentar diminuir esses efeitos adversos; • Anemia, leucopenia e alterações cardíacas são outras complicações encontradas não infrequentemente; O monitoramento do tratamento deve consistir em dosagem, duas vezes por semana, dos níveis séricos de sódio, potássio, magnésio, uréia e creatinina, além da realização de hemograma e ECG; As formulações lipídicas são medicamentos mais recentes que foram modificações na apresentação da anfotericina original, com o intuito de diminuir os efeitos adversos, principalmente renais; Das que estão disponíveis no mercado, a mais estudada na LV é a anfotericina lipossomal (Ambisome®); • Apresenta-se em frascos-ampola com 50 mg de anfotericina e a dose preconizada varia conforme a região; • No Brasil, a dose empregada para o tratamento da LV é de 4 a 5 mg/kg/dia durante 5 dias; • O grande problema do Ambisome® diz respeito ao custo dessa droga; Outras drogas Uma droga que vem se tornando bastante atrativa no tratamento da LV em todo o mundo tem sido a miltefosina; É um quimioterápico, de apresentação oral, o que facilita muito o tratamento desses pacientes; A droga também parece ter poucos efeitos adversos, mas ainda precisa de mais estudos para determinar seus efeitos na LV brasileira; As diamidinas aromáticas, como a pentamidina, também são bastante eficazes no tratamento da LV; • A dose preconizada é de 4 mg/kg, 3x por semana, por 5-25 semanas dependendo da persistência do parasita no aspirado esplênico; Os eventos adversos mais descritos são: náuseas, vômitos, cefaléia, hipoglicemia, hipotensão durante a infusão, aumento de uréia e creatinina, síncope, diabetes, leucopenia, pancreatite e alterações inespecíficas do segmento ST e da onda T; Problema 4 – Intermediária Módulo XIV – Febre, Inflamação e Infecção Medicina – UNIME É contra-indicada para gestantes, portadores de diabetes, insuficiência renal, insuficiência hepática, doenças cardíacas e crianças com peso < 8 kg; Co-infecção Leishmania-HIV O tratamento utilizado na infecção com HIV tem sido semelhante ao indicado para a LV em imunocompetentes; A droga de escolha é o Glucantime®, na dose de 20 mg/kg/dia, sem limite máximo diário, durante 4 semanas, período que pode ser prolongado dependendo da resposta; Segundo dados da literatura, estima-se que 83% dos pacientes que terminam o tratamento apresentam melhora do quadro; Critérios de cura Observa-se o desaparecimento da febre já nos primeiros dias após a introdução da terapêutica específica; Progressivamente o paciente melhora o estado geral, ocorre aumento do apetite e ganho de peso; A recuperação das alterações hematológicas pode ser acompanhada observando-se inicialmente tendência à normalização do número de plaquetas e de leucócitos; • Progressivamente há melhora da anemia; O paciente apresenta, durante o tratamento, involução progressiva da hepatoesplenomegalia; Há regressão mais lenta do fígado do que do baço e, na maioria das vezes, ocorre a regressão total da visceromegalia após o tratamento específico; A albumina eleva-se com a melhora clínica do doente mesmo durante o tratamento, e a hipergamaglobulinemia persiste por várias semanas ou até meses após a cura clínica; Embora o indivíduo seja considerado curado, a infecção pode ser reativada quando há imunossupressão, como na co-infecção Leishmania- HIV; • A recidiva é considerada como o retorno dos sinais e dos sintomas da doença, assim como positivação de exame parasitológico antes de 12 meses de completado o tratamento; • A falha terapêutica é definida como a não- melhora dos critérios clínicos e laboratoriais durante a reavaliação do paciente no 1º, 3º, 6º e 12º mês de acompanhamento; Referências SUNDAR, S. Leishmaniose. In: KASPER, D. L., et al. Medicina interna de Harrison. 19. ed. Porto Alegre: AMGH, 2017. p. 5666-5687. AMATO, V. S.; TUON, F. F.; NICODEMO, E. L. Leishmaniose visceral. In: MARTINS, M. de A., et al. Clínica Médica – vol. 7. 2. ed. São Paulo: Manole, 2016. p. 495-506.
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