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438717391-Cem-mil-cigarros-Os-filmes-de-Pedro-Costa-pdf

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2 - INDEX
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FILMOGRAFIA - 3
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Cem mil cigarros
Os filmes de Pedro Costa
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AS CASAS QUEIMADAS
Do I really want to be integrated into a burning house?
James Baldwin, The Fire Next Time
Cem Mil Cigarros é uma colecção de textos sobre a obra de Pedro Costa que reúne diversos
artigos, ensaios e notas críticas, na sua maior parte inéditos, escritos e compilados ao longo
dos últimos dois anos. A recente visibilidade internacional da obra de Pedro Costa – permi-
tida pela selecção em 2007 de Juventude em Marcha para a competição oficial do Festival de
Cinema de Cannes, pela circulação da sua obra em diversas retrospectivas que tornaram
possível um acesso organizado ao conjunto da sua filmografia (nomeadamente na América
do Norte, onde o seu trabalho foi divulgado em 2007/08 na mostra Still Lives: The Films of
Pedro Costa) e pela disponibilização dos seus filmes em DVD – deu origem a uma profusão
de artigos, comentários, notas críticas de imprensa e a várias entrevistas com o realizador. Este
livro não é estritamente sobre a recepção dos seus filmes, nem tenta ser um reflexo dessa
bibliografia em composição, procurando antes de mais sedimentar e fixar ressonâncias de
magnitude diversa, possibilitadas por uma visão retrospectiva da sua obra, num momento
particular de produção (e alguma dispersão) crítica sobre o seu trabalho. 
O livro foi concretizado sob o signo do reencontro dos autores com a obra de Pedro Costa,
espelhando de algum modo a forma colaborativa que preside à concepção dos seus filmes,
sobretudo a partir de No Quarto da Vanda. À excepção dos textos previamente publicados –
que nalguns dos casos foram revistos e expandidos para esta edição – pediu-se aos autores
que, consoante as afinidades com os filmes, estabelecessem um percurso pela obra que
abrisse passagens, relações e circulações de temas e formas recorrentes nos filmes (e entre os
filmes). 
A estrutura do livro pretende então corresponder a isto mesmo: não respeita a cronologia
da filmografia, sugerindo antes um trajecto feito em dois movimentos. Há uma primeira
sequência de textos monográficos que percorrem a sua obra, começando n’O Sangue, obra
ainda preambular, e continuando pelo ciclo iniciado em Casa de Lava, ciclo prosseguido em
Ossos, No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha e concluído até ao momento com Rabbit
Hunters e Tarrafal, dois filmes que condensam de modo exemplar as estruturas formais e as
ordens temáticas do cinema de Pedro Costa. A reflexão do segundo grupo de textos concentra-se,
por um lado, no método de trabalho do cineasta, através de notas e descrições detalhadas do
filme que constitui a sua ars poetica, o retrato cinematográfico do pensamento em acto dos
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10 - RICARDO MATOS CABO
cineastas Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, Onde Jaz o Teu Sorriso?. Por outro lado, in-
cluem-se textos que se aproximam de outras dimensões da sua obra: a utilização do som
(abrindo caminho para a discussão do seu trabalho mais recente, a versão longa de Ne change
rien) e uma reflexão sobre o trabalho expositivo de Pedro Costa, sobre as instalações que
constituem uma extensão do seu pensamento quanto ao espaço e o tempo relacional das
imagens e dos sons nos seus filmes.
Não se procuraram evitar as repetições que ocorrem entre os textos, que em muitos casos
insistem, com ligeiras variações, em determinadas sequências e detalhes. São exactamente
essas repetições e desdobramentos que, de algum modo, definem a força da nossa relação
com os filmes e a capacidade de ecoar de formas diferentes a visão de determinados mo-
mentos de uma obra.
A relação entre os textos, e de filme para filme, estabelece-se quase a um nível premoni-
tório, que remete constantemente, de forma consciente ou não, para os filmes que se se-
guem. Entre os vários ecos, ao rever os filmes de Pedro Costa, recordei-me sempre da frase
do velho Bassoé em Casa de Lava: “Não me pintem cruz na porta”, referência às cruzes que,
na Ilha do Fogo, marcavam a tinta as casas dos doentes da leprosaria. Trata-se da mesma
cruz que é limpa da porta da casa que a família constrói para Leão, e que se vai repetir, dois
filmes mais tarde, como marca do aviso irreversível nas paredes das casas/ vidas por demo-
lir, em No Quarto da Vanda (e que João Bénard da Costa identifica como o símbolo dos pestí-
feros de outros tempos). 
Percebida retrospectivamente, a força dos filmes de Pedro Costa é acentuada por essa
continuidade dos signos, de aviso, que indicia uma estranha permanência temática e uma
constante viagem de regresso a formas e temas, numa teia complexa que relaciona os filmes
uns com os outros. Estabelece-se uma genealogia (real e fictícia) entre personagens e histó-
rias (as suas e dos outros) e sublinha-se a dimensão de apresentação e preservação da identi-
dade e memória (colectiva, individual, da voz e histórias de cada um) e de transmissão como
forma de rejeição activa e militante da exclusão – ao mesmo tempo que se reafirma o cinema
como potência, e a imagem e o som como meios fundamentais dessa preservação.
Os textos do livro dão um lugar muito particular à palavra do cineasta recolhida em diversas
ocasiões em entrevistas e ao que é dito pelos protagonistas dos seus filmes. A transmissão
oral, tão evidente na figura do poema ensinado por Ventura e memorizado por Lento em
Juventude em Marcha – cujo texto replica o da carta enviada por Leão e lida por Mariana em
Casa de Lava (e de que também fazem eco as letras das canções que nesse filme se cantam)
– reenvia para a questão da língua e da memória do que é dito (e do modo como se dizem as
coisas), algo que está presente logo desde os primeiros filmes (e a que o cineasta dá tanta
atenção no filme com Danièle Huillet e Jean-Marie Straub e à atenção que dão ao modo como
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A CASAS QUEIMADAS - 11
o texto é dito em Sicilia!: “ ‘coisa / de padres’ e não ‘coisa de padres!’ ”). A essa memória da
língua de origem, da que é aprendida e mesmo da que é esquecida, acrescenta-se um jogo
determinante com a tradução e a legendagem, do vaivém entre o português e o crioulo e da
forma como ouvimos e percebemos aquilo que os protagonistas dizem. A tradução dos tex-
tos estrangeiros aqui publicados segue de perto os originais das listas de diálogos, tendo
ainda assim em conta que a forma como os seus filmes são compreendidos não só passa pela
tradução mas também por uma aproximação pessoal ao que é dito nos filmes de Pedro Costa,
às histórias que são contadas e à forma como cada um as conta e como nós as escolhemos
ouvir.
De filme para filme, os exilados de Pedro Costa (como, de resto, os exilados de outros
filmes) têm de reaprender e esquecer uma série de coisas para se manterem à tona de água.
Esquecer o país de origem é esquecer a língua (como Edite em Casa de Lava), única hipó-
tese para fingir uma integração. Recusá-la é igualmente ter de reinventar os espaços e es-
quecer os caminhos aprendidos. Como os índios – os “exilados” da noite branca no filme
homónimo de Kent MacKenzie, protagonistas reais dos programas de realojamento norte-
americanos dos anos 50 que os transportavam das suas terras para a cidades, para os integrar
no tecido social – também os protagonistas de Costa, encontrados e protegidos nos corredo-
res labirínticos das Fontainhas e do Casal da Boba (esses bairros onde tudo é terra e muito
pouco céu), têm agora de reaprender o seu caminho, reconquistar o seu espaço, tactear as saí-
das e apoiar-se nas paredes para encontrarem pontos de fuga.Ventura caminha rente às
paredes, nunca sabemos a distância real que percorre entre os dois mundos em que vive.
Se Casa de Lava surge hoje como o epicentro deste percurso, filme dos retornos inversos
e das expulsões forçadas, é por ser o filme que marca o abandono dos espaços metafóricos
de O Sangue, que enterra aquilo que nesse filme era já uma inércia e uma ficção sem saída
(o rosto cadáver de Isabel de Castro, a feiticeira do primeiro filme), dando início a uma série
de transformações da narrativa que caracterizariam o seu cinema desde então. O filme foi
planificado (com o recurso a um caderno de trabalho do realizador) segundo um princípio
modernista de colagem/ montagem e aproximação sensível de influências cinematográficas
(o Hawks de Land of the Pharaohs, Tourneur, Chris Marker), literárias (Desnos, Faulkner),
musicais (Stravinsky, a música de Cabo Verde), visuais (imagens de pintura, fotografias –
Costa cita a propósito a sua admiração por Eugene Smith como hoje cita a que tem por Jacob
Riis, entre outros) e fontes documentais (notícias de jornal, fait divers) – este processo de
trabalhar permite aceder, num estádio ainda de desenvolvimento, ao método do cineasta e
compreender de que modo a questão da referencialidade é antes de mais um instrumento de
trabalho e de montagem (procedimento percebido e replicado peloas ensaios visuais feitoas
a propósito da sua obra, nomeadamente por Andy Rector). Casa de Lava resulta do confronto
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entre essa planificação e o improviso e contacto com os espaços e as pessoas que filma, esta-
belecendo as características do cinema do autor e o terreno intersticial dos seus filmes, ancora-
dos no concreto das coisas e dos locais onde filma, mas com uma alusão permanente à
desadequação e procura de um lugar de pertença daqueles que os procuram ou que a eles
estão confinados.
A dicotomia operacional entre o interior e o exterior, tão referida a propósito da sua obra,
surge aqui pela primeira vez com a sugestão feita pelo realizador da visão das casas cons-
truídas de lava (viradas dao avesso) como tumbas, no contraste com o exterior, e na procura de
um equivalente – apenas permitido pelo cinema – de um tempo e espaço comum e univer-
sal, algures entre a morte e a vida, o interior e o exterior. Não deixou desde então de perscrutar
e filmar a “alma dos quartos” (usando a expressão de Dreyer), aquilo que apenas se revela na
intimidade dos espaços reais, na sua complexa acumulação de histórias, presenças e au-
sências, uma busca que culmina no espaço de Tarrafal. Um filme militante, que responde a
uma urgência, a um facto real da vida de um dos protagonistas – Zé Alberto, que acabou de
receber uma ordem de expulsão do território – o filme tem como base um espaço que vai per-
dendo referentes (“Quando eu para aqui vim não havia casas”, diz-se), um vasto terreno ci-
nematográfico que já só pertence aos que neles habitam e que, ainda que ameaçado pelo
exterior (o aviso de expulsão cravado com uma navalha, os vampiros que espreitam a oportuni-
dade) é orgulhosamente deles, das suas histórias, do seu repouso; e é, tal como noutros filmes,
uma oferenda do cineasta às pessoas que filma.
Este livro dá conta do carácter insular dos filmes de Pedro Costa: descobre passo a passo
a formação do método do cineasta e a forma como foi progressivamente elidindo os géneros
cinematográficos e as próprias referências de que se socorre, desenvolvendo um conjunto
de estranhas e atípicas sequelas, cada uma com um tratamento próprio do tempo dos prota-
gonistas, das histórias contadas. Um longo caminho que neste livro é muitas vezes identifi-
cado com uma compreensão cada vez mais complexa das ordens da narrativa, pelo modo
utiliza elipse na construção das suas histórias, pela descoberta desse “presente tornado ab-
soluto” (usando as palavras de Shiguéhiko Hasumi) e pelo interesse na construção de ficções
polifónicas (como num monogatari, as suas histórias desenvolvem-se em blocos de tempo,
justapostos em sequências que se desenrolam muitas vezes sem dependerem do que veio
antes ou do que se segue, assentes no detalhe da palavra e dos gestos significativos).
Finalmente, mas não menos relevante, os filmes de Pedro Costa têm vindo a aproximar-se
de uma economia de produção e distribuição cinematográfica que se inscreve numa genea-
logia particular de cineastas que construíram a sua obra no interior e com a participação di-
recta das comunidades que filmam – num certo sentido, do cinema de Andy Warhol na
concentração formal e na elisão das fronteiras entre personagens reais e filmados (e os jogos
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A CASAS QUEIMADAS - 13
que isso possibilita), mas certamente, com a obra de cineastas que, tal como o japonês Tsu-
chimoto Noriaki, que acompanhou durante anos as consequências trágicas para os habitan-
tes do lugar de Minamata do desastre ambiental ou da prática do colectivo das Produções
Ogawa que acompanharam ao longo de dez anos a resistência dos habitante da aldeia de San-
rizuka à construção do aeroporto de Narita (referidos por Thom Andersen no seu texto). 
Os seus filmes parecem nessa medida oferecer cada vez mais um refúgio contra o es-
quecimento e uma possibilidade de reconquista para aqueles que neles intervêm, reinventando
de modo exemplar um dos papéis primeiros do cinema (o realizador fala do poder vingativo
do cinema no seu início, de Chaplin, “da possibilidade de vingança, sobretudo na ficção”).
Presente nos seus filmes desde logo, a combustão dos espaços (as fogueiras na noite do pri-
meiro filme, o vulcão em erupção que abre o segundo, as casas de fogo seco de Casa de Lava),
dos corpos (em No Quarto da Vanda, o Muletas que se salva do fogo por um triz, as fogueiras
que ardem dia e noite nas Fontainhas e à volta das quais a comunidade se reúne). Os quar-
tos carbonizados em que Lento surge de mão dada com Ventura (e que contam uma histó-
ria verdadeira de desespero) em Juventude em Marcha recordam a frase de James Baldwin em
epígrafe, e que tão bem resume a recusa da assimilação e da invisibilidade a que as ilusões
de integração parecem querer remeter aqueles a quem o cinema de Pedro Costa dá presença,
corpo, peso e voz.
Ricardo Matos Cabo
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O NEGRO É UMA COR ou 
O CINEMA DE PEDRO COSTA
João Bénard da Costa
Nos nossos dias, arte
radical significa arte sombria,
negra como a cor fundamental
Theodor W. Adorno
Méfiez-vous des roses noires
Il en sort une langueur
Épuisante et l’on en meurt
Robert Desnos
The Blackness of Black
De 30 de Junho a 5 de Novembro de 2006, a Fundação Maeght de Saint-Paul de Vence orga-
nizou uma exposição, “homenagem viva a Aimé Maeght”, no centenário do seu nascimento,
comissariada por Dominique Païni, à época director artístico da citada fundação.
O título era o mesmo da primeira exposição organizada por Aimé Maeght em Dezembro de
1946, em Paris: “Le noir est une couleur”, frase atribuída a Matisse e que em português tanto
se pode traduzir por “o negro é uma cor” como por “o preto é uma cor”, única língua que
conheço em que os termos são rigorosamente sinónimos.1 Em 1946, a seguir à guerra, o título,
sem esquecer as ruínas e os lutos, transformava-se em energia e esperança, em cor. Em 2006,
após cerca de sessenta anos, a frase de Matisse quase que adquire um sentido inverso, como
se, chegado o tempo de abandonar “os prazeres pueris das cores”, ficasse o negro, “fogueira
apagada, consumida, que cessou de arder”, “fim dos fins” a que talvez se siga – quem sabe?
– “o nascimento de um outro mundo” (Kandinsky).
O negro é uma cor? Longa polémica.
Durante a Idade Média, o negro foi cor interdita devido à sua associação com o demoníaco
ou com a melancolia.2 Só no Renascimento o negro se afirmou como cor nos retratos de
Lotto, Tiziano, Tintoretto,Dürer, Holbein, etc. Curiosamente, foi pelo realismo que o negro
se introduziu. Se de negro se vestiam os reis e nobres retratados, como pintá-los diversa-
mente? O maneirismo insinua-se por essa brecha. Fugindo ao idealismo renascentista, e em
plena época da Contra-Reforma, a grande pintura devia ser a de uma dramaturgia onde as
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trevas e as luzes violentamente se contestassem e violentamente contrastassem. Quanto
maior o negrume, maior a luminosidade. Cerca de cem anos mais tarde – as Pinturas Negras
de Goya – já só o negrume, que o sono da razão gera monstros e todos somos os filhos de-
vorados por Saturno. Goya levou às últimas consequências o tenebrismo do século prece-
dente, ou libertou a pintura de visões de luxo, calma e volúpia? Tinha que ir dar uma longa
volta pelo romantismo, pelo impressionismo e pelo simbolismo para responder e o tema do
artigo impõe-me limites.
Recordo apenas três pontos capitais para esse mesmo tema:
a) O negro como cor emblemática das vanguardas mais incisivas, desde Kandinsky e
Malevich às grandes obscuridades de Mark Rothko. Se há, na história da pintura do século XX,
quem o tenha usado como apelo da noite, ou apelo à noite, ou como expressão da “treva mais
que mística do silêncio” (as Iconostasis de Parmiggiani, por exemplo) a maior parte dos gran-
des pintores utilizaram-no ou como exorcismo ou como reforço da ameaça. The Blackness
of Black, para citar o título de uma tela célebre de Motherwell ou a aproximação a Beckett de
Judit Reigl. 3
b) O surto de novas artes figurativas (a fotografia, o cinema), de que grande parte da
história só se pode fazer a preto e branco ou com tintagens posteriores, químicas ou manuais.
No caso do cinema, do advento do sonoro aos anos 50-60, a grande parte da produção é
a preto e branco, tornando-o, como na profecia seiscentista de Kirscher, “a grande arte da luz
e das sombras”. Sobretudo o cinema americano, nos anos 40 e 50, foi, muito mais do que um
cinema expressionista, como hoje errada e apressadamente se diz, um cinema nocturno e um
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O NEGRO É UMA COR - 17
cinema negro, alegoricamente reproduzindo o combate das luzes e das trevas, com o branco
muito branco para as primeiras e o negro muito negro para as segundas. Nunca, talvez, o
negro tenha sido tanto uma cor como nessa época da história do cinema.
c) Mas a partir dos anos 60 (na América) e dos anos 70 (um pouco por toda a parte) o
preto e branco, no cinema (muito mais do que na fotografia, o que levaria a outra digressão)
desaparece, como desaparecera, nos anos 50, o onirismo tecnicolorizado, só surgindo em
casos excepcionais e por criadores que como excepção se assumiam.4 Ou seja, em épocas em
que lhe coube na pintura uma primazia e um significado fundamentais (no sentido do nosso
próprio fundamento) o negro deixou de ser uma cor no cinema, ou rarissimamente o foi, a não
ser como efeito especial (penso por exemplo no filme de Malick, The Thin Red Line (1998).
Sob este pano de fundo, posso passar à obra de Pedro Costa. Ou eu vejo tudo escuro ou
só nesse escuro ela se deixa ver com a sua assombrosa claridade.
Sangue escuro e Sarça Ardente
Em 1989, aos 30 anos, Pedro Costa iniciou o seu primeiro filme, O Sangue, estreado em
1990, e que obteve, nesse ano, a Menção da Crítica de Roterdão.
Com Pedro Hestnes Ferreira e Inês Medeiros (actores típicos desses anos, actores da
geração de Pedro Costa) nos protagonistas e ainda com secundários tão relevantes, na história
do nosso cinema e do nosso teatro, como Canto e Castro, Luis Miguel Cintra, Isabel de
Castro, Henrique Viana e Manuela de Freitas (parece o cast quase exemplar de um filme
“política e esteticamente correcto” desses anos).
O Sangue começa quase de noite ou quase de dia, à hora indistinta do escurecer e do cla-
rear. Antes de o sabermos, e durante alguns segundos é só o que sabemos, ainda não vimos
ninguém. Mas já vimos negro. O negro, o muito negro, dos planos negros do início do filme.
Misturados com eles, diversos ruídos: trovões, vento, motores de arranque e de desarranque.
De súbito – um dos começos mais súbitos de qualquer filme, como sempre sucederia depois
em filmes de Pedro Costa – vinda do escuro, a primeira personagem do filme está diante de
nós. Um rapaz alto, novo, magro, com expressão obstinada. É enquadrado a meio-corpo
(plano de busto) e se está diante de nós não nos olha a nós. Olha quem? A resposta não vem
de nenhuma palavra mas duma mão que atravessa rapidíssima o enquadramento e lhe dá
uma bofetada. Contraplano (ou novo plano?) e vemos quem deu a bofetada. Um homem
baixo, de meia idade, gordo, com uma expressão perdida. Novo contraplano (ou novo plano)
e voltamos a ver o rapaz. A expressão não mudou, continua a olhar o homem mais velho e
não esboça nem movimento de defesa nem movimento de resposta. Seguem-se mais dois
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contraplanos (ou mais dois planos), o primeiro do homem olhando o imóvel rapaz, o segundo
deste. Pela primeira vez, alguém fala. É o rapaz. E diz: “Faça de mim o que quiser.” O ecrã
volta a ficar todo escuro, todo negro.
Mas sabemos que entre aquele rapaz e aquele homem – filho e pai, como a seu tempo
saberemos – se perdeu a confiança. Só a morte é tão súbita, tão preparada e tão irremediável
como a confiança perdida. Diz-se “faça de mim o que quiser”, mas não há qualquer doação
ou qualquer entrega. Não há nada. Nada que se possa fazer. Nada que se possa dizer. Nada
que se possa ver. Escuro, muito escuro.
Como é escuro, muito escuro, o acordar das crianças na noite, que se segue a esses pla-
nos (ainda antes do genérico). “Acordam no meio da noite, tomados de um súbito e inven-
cível terror”, como nos anos 50 escreveu Nuno Bragança a propósito de Il Bidone (1955) de
Fellini. “Mais do que medo porque não tem objecto inteligível.” “O que são as coisas e o que
somos nós, no meio do verbo ser?” Este filme começa aí no meio do verbo ser, ainda não sa-
bemos quem é Nino, ainda não sabemos quem é a miúda que dorme ao lado dele.
À época, houve muito quem se espantasse com a opção de Pedro Costa de filmar a preto
e branco. Não era o vulgar brilho da pobreza nem o ardor banal da originalidade. Era mesmo,
pela raridade da película utilizada e pelo recurso ao grande operador alemão Martin Schäfer,
o luxo dessa produção barata. Nenhuma cor podia reproduzir o sonho ou o pesadelo que O
Sangue também é. Em noites dessas não se vêem cores. Por isso não foi por modas, moder-
nismos ou pós-modernismos que este filme é preto e branco. O preto é uma cor e essa cor é
a necessidade deste filme circulatório, onde o fondu é palavra proibida. “Mes faims, c’est les
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bouts d’air noir”, dizia Rimbaud, e podiam dizer as personagens d’O Sangue que “bateau
ivre” também é. Cercle noir sur fond blanc é um quadro de Malevitch, e se a luz se apaga e
acende, como se esconde e adormece no primeiro plano d’O Sangue, efeito de surpresa seme-
lhante ao negro inicial é o que nos dão as letras muito brancas do genérico, logo após a noite
das crianças. Passou uma eternidade e dela vem, na escola, a mulher do filme, fabuloso
contra-luz. Passará outra eternidade até vermos a luz do dia.
Mas Pedro Costa não inventou um novo preto e branco, como não inventou uma nova
história de amor, nem uma nova história de fantasmas.
Se Nicholas Ray (o Nicholas Ray de They Live by Night, 1948) visita O Sangue é porque
aquele rapaz, aquela rapariga e aquele miúdo “were never properly introduced to the world we
live in”. Por isso Vicente e Clara (o rapaz e a rapariga) se perguntam se os sonhos existem
mesmo. A resposta é a árvore assombrada. Ou melhor, as respostas são a árvore assombrada,
a dívida reclamada e o homem com um grande termómetro no chapéu. Na noite mítica do
amor, Vicente e Clara descobrem-sesós e têm medo. “Estás a tremer… Pede-me coisas… Mais
perto… Mais.” Um tal diálogo ouvia-se pela primeira vez n’O Sangue e voltar-se-ia a ouvir na
Casa de Lava, nos Ossos. Como nesses filmes, reencontramos os bichos mais famintos e mais
antigos que nos restam da magia negra. Eles ofuscam a magia dos juncos e dos pântanos,
ou a magia do plano final de Nino, no barco, de gorro e a olhar para nós. E reconhecemos
naquele imaginário o das águas envenenadas do poço de Stars in My Crown (1950) de Jacques
Tourneur (esse filme tão amado por Pedro Costa) como reconhecemos os zombies com
que nos passeámos. Os ogres de Laughton, as mulheres evanescentes de Siodmak. Um
dia, o cinema foi assim, e esse dia, transfigurado, só pode voltar a esse canto da infância, a
esse quarto escuro onde tudo estremece tão de dentro.
Houve quem visse no filme um lirismo desesperado e incerto que, no final, nos deixa
suspensos no longuíssimo plano do olhar de uma criança navegando de estígios antigos para
estígios novos. Mas as personagens escondiam algo de ainda mais terrível. Tão doces carnes
ocultavam a estrutura óssea que no filme seguinte o realizador começou a desvelar. Quatro
anos depois d’O Sangue (Cannes, “Un Certain Regard”) Pedro Costa olhou pela primeira vez o
mundo dos cabo-verdianos. O filme foi quase todo rodado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde,
onde um vulcão adormecido de quando em vez retoma actividade. Nesse filme, pela primeira
vez, Pedro Costa usou a cor, que usaria, depois, em toda a obra futura. Mas usá-la-ia, sempre,
nas suas dominantes negras. Não há um só plano na obra de Pedro Costa (se o há, não o recordo
agora) em que as chamadas cores vivas (as “cores acidentais” de Buffon) sejam dominantes.
Algum leitor mais atento terá notado que, nos meus apontamentos sobre O Sangue, tornei
quase sinónimo, não o negro e o preto de que falei na introdução, mas o negro e o escuro. Ora
não são a mesma coisa. O escuro não é uma cor, mas é a origem das cores, como é também a
O NEGRO É UMA COR - 19
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origem do visível. Como dizia Goethe: “o olhar não vê forma nenhuma. São o claro, o escuro
e a cor conjugados que fazem com que o olhar distinga um objecto do outro.” “A realidade
é concebida ao mesmo tempo que o olhar.”5
Se O Sangue necessitava do preto (como necessitava do branco) para a sua evocação-in-
vocação, só nos confins das sombras há algo para ver. Do filme noir que O Sangue tende a ser,
é nos ditos confins das sombras que Pedro Costa situa a obra futura. Se o negro é o primeiro
grau do “escuro”, as cores prosseguem, encadeadas umas nas outras nesse ritmo tenebroso.
Daí que Casa de Lava, um filme quase todo situado durante a erupção de um vulcão, seja
simultaneamente um filme púrpura (“o mundo é um braseiro, tudo se incendeia”)6 e um
filme negro. O fogo e o mar, ou, para melhor rodear a poderosa metáfora líquida, a lava e o
mar. “Assim o amarelo, quando se alaranja pela intensidade e escurecimento, emite uma
radiação avermelhada que vai aumentando. A púrpura é, por conseguinte, a luminosidade no
escurecimento.” Mas a sua cor contrapolar, o violeta e ou índigo, mais “luminescente” e mais
escura do que o azul, vai desembocar no mesmo efeito.7
Mas Casa de Lava não se passa só na Ilha do Fogo para onde uma rapariga (de novo Inês
Medeiros) levou, de regresso à origem, um operário cabo-verdiano. O que se pode chamar
o prólogo do filme – sequências em Lisboa, na construção civil – são as do acidente quase
mortal (ou mortal) que o cabo-verdiano sofre. Por isso, na “sinopse oficial”, Pedro Costa
escreveu: “No início é o ruído, o desespero e o obscuro [sublinhado meu] […]. Morrer quer
dizer sair do Inferno […]. Mariana, plena de vida, pensa que talvez possam escapar juntos do
inferno. Acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos. Sete dias e sete
noites mais tarde percebe que estava enganada. Trouxe um homem vivo para o meio dos
mortos.”
Entre mergulhos na casa dos mortos e ascensão a ela, entre erupções e lavas decorrentes,
Casa de Lava é um filme onde se pode passar mais facilmente da morte à vida do que da vida
à morte. De que se lembrava todo o tempo que estava morto o protagonista de Casa de Lava?
“Do sangue / do Escuro a lamber-nos / do teu cheiro / das tuas mãos.” Neste filme que
explode em ocre (vermelho púrpura) a cor do sangue é cercada por todos os lados pela cor
negríssima do mar.
E se o luxo d’O Sangue, como atrás referi, fora a fotografia a preto e branco, o luxo de Casa
de Lava é a presença não só, novamente, de um operador de excepção (Emmanuel Machuel)
como sobretudo, no papel mais entrelaçante do filme, a presença mágica de Edith Scob, vinda
de Les Yeux sans visage, de Thérèse Desqueyroux, de Judex e de Thomas l’imposteur, filmes de
Franju dos anos 50-60, para revisitar simultaneamente Musidora e Christiana, voltando a
ser o pássaro que esvoaça eroticamente, a mulher que dá realidade ao irreal, o outro lado das
mortes e reaparições do protagonista. Filme sobre um mundo de mortos-vivos, de zombies,
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religa, nessa explosão do espectro das cores, os nocturnos de Tourneur com as trevas de
Franju. “As trevas em cor é uma coisa que eu não entendo”, dizia Franju. A partir de Casa de
Lava, Pedro Costa começou a entendê-lo. E a suspender nelas o que delas emana.
A Descoberta dos Ossos
A que meio social pertencem as personagens d’O Sangue, vamo-lo sabendo, a pouco e pouco, ao
longo do filme. Dívidas e credores, professoras primárias, natais burgueses. Em Casa de Lava,
o acidente do operário e a nacionalidade deste recordam-nos como se fazia e faz a mão-de-obra
em Portugal nos anos 90. Imagens chamadas documentais viam-se neste último filme, bus-
cadas a um filme conservado por Orlando Ribeiro8 sobre a grande erupção do vulcão do Fogo,
em 1951. Mas, para além do fortíssimo sublinhado das sequências do operário, no início de
Casa de Lava, o meio social não é muito acentuado nos primeiros filmes de Pedro Costa,
como o não é qualquer matriz documental. Argumentos do autor são ficções, com partici-
pação relevante de actores vários.9
Ossos, estreado no Festival de Veneza em 1997, é o primeiro filme de Pedro Costa situado
quase integralmente no Bairro das Fontainhas, que, desde então até hoje, não mais deixou de
ser a morada de Pedro Costa, com a óbvia excepção do filme sobre os Straub de 2001 Onde Jaz
o Teu Sorriso? ou das 6 Bagatelas que o prolongam. Ossos é o último filme de Pedro Costa
onde ainda surgem alguns actores, ou melhor, algumas actrizes como Isabel Ruth ou Inês
Medeiros. Ossos é o último filme rodado em película por Pedro Costa, com o mesmo Machuel
de Casa de Lava. Também é o último filme com uma produção “convencional” assegurada,
como no filme anterior, por Paulo Branco. Ossos é assim o mais mutante filme de um rea-
lizador associado a mutantes, embora seja certo que os intérpretes “autóctones” (Vanda Duarte)
ainda não são eles próprios, como depois sempre sucederia, mas representam personagens. 
O Sangue e Casa de Lava são filmes líquidos. A um e outro convêm os verbos irrompidos:
brotar, manar, derivar, mesmo se é verdade que a irrupção ou a erupção alagavam e incen-
diavam o mais íntimo. Fosse no preto e branco ortocromático, fosse no ocre e púrpura pan-
cromático, eram filmes escuros, muito mais que filmes obscuros.
Com Ossos, pelo contrário, toda a seiva parece retirada e todas as cores parecem a rever-
beração de uma ausência de cor original e circundante.
Ossos é um filme traçado em semifusas e o que fica é essa textura do que está para além
do cerne secreto, num filme traçado em “sons agudos e palavras orantes”, cortadas pelo tutano.
“E é outra ossatura mais forte / que o esqueleto comum, de todos / debaixo do próprio es-
queleto / no fundo centro dos seus ossos.” São versos de João Cabral de Melo Neto, de quem22 - JOÃO BÉNARD DA COSTA
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O NEGRO É UMA COR - 23
tanto me lembrei ao ver o filme, sozinho numa manhã do Monumental. A resistência dele
é, em termos de João Cabral, a do “aço do osso, que resiste / quando o osso perde seu cimento”.
Já imaginaram cor para esse aço ou para esse osso? São as cores que aparecem na fronteira
entre o corpo e as coisas, são as cores que se adequam aos “sons agudos e palavras orantes”,
cores sinestésicas como as do célebre poema de Rimbaud. E, dessas cores, prevalece a vogal
inicial, “o A noir”, “golfes d’ombre”.
“Os ossos são a primeira coisa que se vê nos corpos” disse Pedro Costa numa entrevista. Mas
são também a última coisa que resta deles. O que mais me espanta neste espantoso filme é que
ele vai, incessantemente, osseamente, brancamente, do mais exposto ao mais oculto, da
evidência básica da nossa imagem à da desaparição dela. É um filme de corpos vivos atraves-
sado pela morte ou por aquilo que na morte implica o desaparecimento dos corpos. É um filme
de mutantes, no mais radical sentido da palavra, pois que todos uns nos outros se mudam.
Este filme suporta, simultaneamente, duas visões tradicionalmente opostas. Uma coloca
em primeiro plano a realidade social que é o Bairro das Fontainhas (ou a secção dele onde vivem
os protagonistas) e escancara-nos existências que João Miguel Fernandes Jorge, num texto
admirável, situou num “post-humano português, se, acaso, as nacionalidades permanecerem
na linguagem cifrada do replicante”. E continuou: “Neste filme mostra-se como se ultra-
passou um tempo histórico e social. Como a comunidade na qual nos inserimos já é outra.
Como já não se situa no ponto exacto onde cada um de nós ainda a concebe. A ficção fílmica
alastrou a toda a geografia portuguesa e, nisso, o filme tem também força documental.”
Mas uma outra visão, que não anula nem abala esta, pode colocar em primeiro plano
uma realidade fantasmagórica, se o fantasma é, como foi na pintura veneziana do século XVI
(Giorgione ou o primeiro Tiziano que os grandes planos e a composição do quadro neste
filme tão fortemente evocam) um ex-novo da realidade. A uma tal visão, a visão do filme
reflecte a das primeiras páginas d’Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, aquelas que Rilke
escreveu na Rue Toulier, em Paris, perto do Val de Grâce, hospital militar. Como Rilke, Pedro
Costa viu cheiros, sons, e o medo, sobretudo o medo. Viu casas singularmente cegas. Viu bebés
embrulhados em plástico ou a dormir debaixo de camas. Viu um rapaz a correr e viu-o, por três
vezes, beber a água de um chafariz. Viu janelas como molduras e viu como são fortes os
fechos das portas. Viu muros esburacados de inscrições, restos de graffiti políticos de antanho.
Viu troncos de árvores miseráveis. Viu rafeiros a ladrar. Viu mulheres a sufocar em barracas
e a aspirar andares alheios. Viu um corpo caído no chão de um hospital e viu os que não
viram esse corpo. Viu um corredor enorme com muitas portas e lâmpadas amarelas. Viu fru-
tos e miolo de pão. Viu as doenças que não deixam ficar com ninguém. Viu fogões de gás com
as torneiras todas abertas, único sopro ainda possível ou jamais possível. E viu, como única
contra-imagem, os ruídos, o som que escava os ossos dos corpos aguentados neles.
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O “aço osso” deste filme são esses ruídos. Mas, e volta Rilke, “há alguma coisa aqui ainda
mais terrível: o silêncio. Nos grandes incêndios deve haver, às vezes, também, este instante de
tensão extrema. Os jactos de água apagam-se, os bombeiros deixam de subir escadas, ninguém
se move. Sem barulho, uma cornija preta desloca-se, lá em cima, e uma parede enorme, atrás
da qual o fogo alastra, inclina-se, sem barulho. Toda a gente fica imóvel e espera, de ombros
levantados, de rosto contraído em torno dos olhos, a terrível queda. Aqui, o silêncio é assim”.
O mais terrível desses silêncios (até porque não há silêncio) é o do plano na Praça da
Figueira, quando o pai, com o bebé nos braços, pede esmola para ele. Ao fundo, da estátua
do rei que foi trocada e não se sabe quem é, só se vê o pedestal. E nenhum dos transeuntes
com que o rapaz se cruza tem olhos, corpos enquadrados abaixo do pescoço, nenhum olhar
devolvendo o olhar do protagonista.
Como o mais terrível desse ruído é o do plano (repetido) à noite nas Fontainhas, com a
porta da casa aberta, as escadas e duas janelas iluminadas de amarelo, pouco antes ou pouco
depois de o marido de Clotilde dizer a Tina que pode ficar entre as pernas dela como ficou
entre as pernas de Clotilde.
“A morte não nos larga”, diz-se a certa altura. E Ossos é também uma dança da morte em
que a morte estabelece a semelhança entre as personagens e torna todas aquelas mulheres
espelhos umas das outras, como se a morte as fizesse todas iguais, na véspera ou no dia
seguinte de coisa nenhuma. Porque se os ossos são, em tradição cristã imemorial, a figura
usada para nos lembrar que somos pó e em pó nos havemos de tornar, neste filme a metá-
fora desdobra-se pela insistência (grandes planos) com que nos é recordado que eles são,
também, a parede contra a qual bate a morte, o limite da resistência e da vida. Ossos brancos.
Ossos negros.
No Quarto de Vanda e Na Carta de Ventura
Pedro Costa contou numa entrevista que, quando terminou a rodagem de Ossos e se deixou
cair numa cadeira extenuado, Vanda veio ter com ele e perguntou-lhe se o cinema tinha que
ser sempre assim, tão difícil, com tanta gente, tanto bulício, tanta maquinaria. Histórias? As
histórias dela, e as histórias de tantas e tantos como ela, davam dezenas de filmes. Porque não
vinha ele, ele Pedro Costa, até à beira dela, ela Vanda, e ficavam a conversar ou só os dois ou
com quem lá entrasse e muita gente entrava no quarto de Vanda, quando o quarto de Vanda
ainda era nas Fontainhas.
Vanda Duarte tinha sido em Ossos a mais relutante a seguir as instruções do realizador,
a mais resistente às ordens do realizador. “Não havia maneira de fazê-la dizer o que eu
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O NEGRO É UMA COR - 25
queria nem fazê-la ir às marcas.” Pedro Costa começou então a pensar – há uma entrevista
em que diz a “sonhar” – “se o cinema não se fez para as pessoas dizerem o que querem dizer,
para as pessoas fora das marcas”. E um dia bateu à porta do quarto de Vanda e pediu licença
para entrar, com uma câmara de vídeo, um tripé e três reflectores de esferovite. Durante dois
anos (1998 e 1999) viveu nas Fontainhas, nas ruas das Fontainhas, na casa de Vanda e de
algumas pessoas mais, no quarto de Vanda. Foram esses dois anos em que o bairro foi arrasado,
supõe-se que com o louvável interesse de acabar com tais misérias, tais vergonhas, as chama-
das chagas sociais. Filmou 120 horas, com umas dezenas de moradores de que ficámos a
conhecer, por nome ou alcunhas, vinte e seis. Depois, aproveitou desse material 170 minutos.
Passou o vídeo a 35mm. E estreou-o em Locarno, em Agosto de 2000, quase dez anos depois
da primeira apresentação d’O Sangue.
No Quarto da Vanda. Também chamado “quarto das meninas”. É nele que mais tempo
estamos, é ele o espaço que melhor ficamos a conhecer. Mas não é todo o tempo do filme,
nem todo o espaço do filme. Que espaço é esse que não é o quarto da Vanda? Fora alguns
declarados exteriores, nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser
casas ou ruínas de casa, ou restos de casa, ou caminhos entre casas. Relentos ou abrigos.
Mas fora ou dentro quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O espaço, bem como o
tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas dele. Antigamente, diz Vanda e confirma
Zita, não era assim, não foi assim. Mas como foi, quando ainda estavam orientadas, ou
quando ainda estão desorientadas?
Penso naquele plano da venda das couves. “Dona, quer alfaces ou couves?” Quem é que
está dentro? Quem é que está fora? Nunca se sabe bem. Há coisasque já só são o resto delas e
outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um animal pré-histórico e,
quando actua, fica de olho vidrado, a olhar o que já consumiu. A própria ideia do “dentro”
passa a deixar de fazer sentido a não ser no quarto da Vanda. “Não há remédio: não podemos
deixar de ver.” “Jamais poderemos deixar de ver.” Mais uma vez o ecrã todo negro.
A esse negro, do outro lado do quarto de Vanda, responde o diálogo dela com Pango. Para
o doce Pango aquela vida “é a vida que a gente é obrigado a ter. Parece que é já um destino,
é um traço…” Vanda pergunta-lhe: “Achas?” e repete o que começa por afirmar: “É a vida que
a gente quer, acho eu.” Depois de ouvir a confissão daquele que saiu de casa para não fazer
mais mal à mãe, “não aguentou ouvir mais nada”.
Pedro Costa também não. Seguiram-se os anos dos seus filmes com os Straub, últimos
anos de vida de Danièle Huillet e dos sorrisos ocultos. Numa das 6 Bagatelas (DVCam) Straub
está na sala de montagem, talvez com passo mais ágil que jamais e diz a Danièle que está um
dia lindo lá fora. Aqui dentro, que me adianta isso, pergunta, entre o desabafo e o amuo, Danièle.
E estão jazendo dentro sempre mais dentro, sempre no negro, cor dos sepultados.
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Por esses anos, os habitantes das Fontainhas saíram do bairro ou o bairro saiu deles e
foram viver para horríveis prédios de horríveis imobiliárias, tentando reinventar neles o
quarto de Vanda que continua a existir. Já não existe a lista amarela, lista sórdida, onde Vanda
guardava a droga. A droga também já não existe, substituída pela metadona, mas, apesar de
uma aparente claridade, o negro ainda é mais negro agora do que era dantes.
Estou já a falar de Juventude em Marcha, filme de 2006, o filme de Ventura, aquele que
viveu um outro 25 de Abril a trabalhar na parede do Museu Gulbenkian, onde agora se podem
ver dois Rubens e um Van Dyck. E há a luz coada do museu e há as cores exuberantes de
Rubens, mas há sobre tudo e todos a mole negra de Ventura, esse a quem o filho pede um
dia que lhe conte a carta de amor.
Para mim, Juventude em Marcha, filme de ousadia e de fidelidade, para usar termos de
Pedro Costa, é o filme do homem que escreve uma carta de amor que outros homens já
escreveram. É – e também Pedro Costa o disse – “a história secreta daquele corredor negro”.
A 15 de Julho de 1944, Robert Desnos escreveu à mulher do campo de concentração de
Flöha uma última carta, a cerca de um ano da sua morte.
Diz que lhe queria oferecer “100 000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costu-
reiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a
de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma
as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe
uma garrafa de bom vinho e pensa em mim.” Ventura em Juventude em Marcha diz e rediz
ao filho para que este nunca mais a esqueça, a carta que escreveu há trinta anos: “Eu gos-
tava de te oferecer cem mil cigarros / uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos / um
automóvel / uma casinha de lava que tu tanto querias / um ramalhete de flores de quatro
tostões / mas antes de todas as coisas / Bebe uma garrafa de vinho bom / Pensa em mim.”
“Para contar o amor e o sofrimento do Ventura foi preciso ouvir o amor e o sofrimento de
um poeta francês.”
Nem Desnos nem Ventura reencontraram as mulheres. Nem Desnos nem Ventura rece-
beram sequer resposta a essas cartas. Nem Desnos nem Ventura verão as mulheres que ama-
ram com os vestidos que sonharam. Em lugar de tudo isso ficou aquele plano fantomático
com que começa Juventude em Marcha, onde, para o saguão negro de uma ruína negra, uma
mulher (a mesma? outra?) atira janela fora os restos dos pertences do marido. “Julgo que vou
esquecer de mim” é a última linha da carta de Ventura. Não se esqueceu, na enganadora apa-
rência da memória. Mas esqueceu-se no corredor escuro. De cor que era ao tempo d’O Sangue,
o negro volveu-se na ausência de toda a luz. Sobreviver é repetir incessantemente uma carta
de amor ou, como Vanda, repetir incessantemente a história do dia em que deu à treva a
filha.
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Cá fora, no extremo de outro espectro da cor, uma cadeira encarnada, tão antiga como a
carta e tão sem eco como ela. O negro é uma cor? De que cor é então o estado do mundo que,
com outros cineastas, ele trajou em 2007, sob forma da caça ao coelho com pau?
Não o sei e não sei se Pedro Costa o sabe. Sei é que essa cor é a cor que nos circunda, nos
novos desertos em que os quartos se perdem e as juventudes se fixam.
1. Em 1980, Manoel de Oliveira projectou adaptar ao cinema a peça teatral de Vicente Sanches O Negro e o Preto.
O projecto nunca se concretizou, mas, nas referências que lhe foram feitas por comentadores estrangeiros, transpa-
rece a dificuldade de qualquer tradução. Jacques Parsi escolhe, em francês, Le Noir et le noir. Em inglês aparece The
Black and the Nigger, o que desvirtua totalmente o sentido inicial. Mesmo The Black and the Dark ou Le Noir et le Sombre
são coisas completamente diferentes. Nada a ver com Pedro Costa? Ver-se-á.
2. Cf. Gérard-Georges Lemaire, “La quête du noir” no catálogo da exposição referida, pp. 47-55.
3. Pense-se, ainda, no caso da pintora húngara, na série de obras New York September 11, 2001.
4. Obviamente não estou a pensar no Spielberg de Schindler’s List (1993), em que o preto e branco (aliás colorido) fun-
cionou apenas como efeito para “o grande e horrível crime”.
5. Cf. Philippe Blon, “Índigo – A Papoila de Goethe” in Cinema e Pintura, Ed. Cinemateca Portuguesa – Museu do
Cinema, Lisboa, 2005, pp. 85-120; cf. sobretudo, pp. 96-102.
6. Ibid., p. 99.
7. Ibid., p. 100.
8. Orlando Ribeiro (1911-1997) foi o mais marcante geógrafo português do século XX. Professor universitário de
grande prestígio, deixou uma obra vastíssima e muitas “reportagens” geográficas e fotográficas de erupções vulcânicas
(Cabo Verde, Açores).
9. Embora deva ser notado que o protagonista d’O Sangue é um miúdo não-actor (Nuno Ferreira).
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STILL LIVES
James Quandt
De todos os filmes apresentados em 2006 em Cannes, o momento mais chocante não foi
Paul Dawson a engolir o próprio esperma em Shortbus, de John Cameron Mitchell, nem Sergi
Lopez a suturar o rosto recém-esfolado com um kit de costura doméstico em El Laberinto del
Fauno de Guillermo Del Toro, ou mesmo o sortido de provocações sub-borowczykianas em
Taxidermia de György Pàlfi, que incluía uma erecção que também fazia as vezes de maça-
rico, um concurso para ver quem era mais rápido a comer seguido de vómitos abundantes,
gatos gigantes a devorarem as entranhas do dono que explodiu e o auto-embalsamamento
que proporciona ao filme o seu final de mortificação da carne. Nenhum destes momentos
à caça do escândalo conseguiu igualar o absoluto poder de desorientação do plano súbito de
um quadro – a Fuga para o Egipto, de Rubens, exposto no Museu Calouste Gulbenkian de
Lisboa – em Juventude em Marcha de Pedro Costa. Inserido numa fase adiantada da sucessão
aparentemente infindável de conversas declamadas em quartos decrépitos e sombrios, a
surpreendente aparição desta obra-prima do barroco holandês, com o seu cenário luxuoso e
tranquilo, funcionou como uma bofetada visual e tonal – a transição de plano como ataque
sensorial. (Maurice Pialat era um profissional destas montagens vertiginosas.) Mas as multi-
dões que tinham abandonado a projecção uma hora atrás, durante o primeiro monólogo
prolongado do filme, não estavam lá para saborear o golpe formal de Costa, sendo Juventude em
Marcha o género de obra exigente e calculada a que Cannes é cada vez mais hostil. Comparado
com o filme de Costa, muito do que sepassou no festival foi complacência e lisonja.
O realizador português de quarenta e oito anos dificilmente terá ficado surpreendido com
o desprezo da crítica; há muito que os seus apoiantes têm sido escarnecidos como cultores
da depressão, devotos impávidos do seu tipo peculiar de pornomiseria lusitana. Costa encaixa
menos confortavelmente junto de compatriotas celebrados como Manoel de Oliveira e João
César Monteiro do que no grupo pan-europeu de miserabilistas que inclui o húngaro Béla Tarr,
o alemão Fred Keleman e o lituano Sharunas Bartas. Divergentes nas suas visões, partilham,
no entanto, uma propensão para o plano-sequência e a estrutura em tableaux, uma predilecção
por paisagens desoladas e por rostos atormentados, maltratados pela vida, e um sentido
dostoievskiano da existência enquanto inferno.
Costa demorou algum tempo a atingir o seu estilo rigoroso, deixando para trás a poética
romântica da sua impressionante estreia, O Sangue. Um daqueles primeiros filmes que
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parecem ser a libertação de forças reprimidas – ideias visuais há muito alimentadas, home-
nagens acumuladas a filmes e realizadores favoritos e um romantismo que não se via desde
os primórdios da obra de Leos Carax – O Sangue lembra-nos, em vários momentos, The Night
of the Hunter (Charles Laughton, 1955), Murnau, Bresson (a bofetada na abertura é uma
referência directa a Mouchette, 1967), Cocteau, El espíritu de la colmena (Víctor Erice, 1973),
Boy Meets Girl (Leos Carax, 1984). Um Traumspiel filmado em preto e branco carregado – a
luz do dia parece frequentemente noite cerrada – e com uma magnífica banda sonora de
Stravinsky, O Sangue desenrola-se entre o Natal e o Ano Novo, numa cidade ribeirinha de pro-
víncia. Dois irmãos, o jovem e frágil Nino e Vicente, o mais velho, que está profundamente
apaixonado por Clara, uma professora – “Salva-me. Só confio em ti”, diz-lhe ele num dos
momentos de cine-romantismo mais poderosos do filme –, são perseguidos por homens peri-
gosos (um tio de Lisboa e dois violentos cobradores de dívidas) após o desaparecimento do seu
pai. Simultaneamente conto de fadas, film noir, história de amor e mistério policial, O Sangue
foi também uma espécie de falsa partida, na medida em que o tom nocturno e sonhador, a cine-
filia evidente e o trabalho de câmara exibicionista não estabeleceram o verdadeiro caminho
de Costa, que progrediu em direcção a um cinema materialista e despojado.
Isto talvez não fosse ainda evidente no filme seguinte, Casa de Lava, com o seu acréscimo
de enigma numa isola nera no arquipélago vulcânico de Cabo Verde, invocando Stromboli,
terra di Dio (Roberto Rossellini, 1950) e I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943)
(o poema de Desnos, que é tão importante em Juventude em Marcha, ouve-se aqui pela
primeira vez). Uma enfermeira portuguesa chamada Mariana (Inês Medeiros d’O Sangue)
viaja até lá para acompanhar um imigrante (Isaach de Bankolé) que ficou em coma na sequên-
cia de um acidente de trabalho em Lisboa. Enquanto ele jaz durante seis dias e seis noites
entre a vida e a morte, Mariana tenta reconstituir a história da existência dele nesta ilha de
areia vulcânica negra e gente supersticiosa e orgulhosa, mas quanto mais investiga mais
misteriosa (e perigosa) se torna a situação. Entre as muitas personagens enigmáticas com
que se cruza encontram-se uma viúva portuguesa, interpretada por Edith Scob, cujo filho
bem-parecido parece determinado a ser salvo – de quê? – por Mariana. Em Ossos, o primeiro
filme da trilogia que é concluída com Juventude em Marcha, a abordagem onírica e alusiva
de Costa cede lugar a um arsenal bressoniano – montagem elíptica, ausência de planos gerais
que contextualizem o espaço, pouca música extra-diegética, actores não-profissionais e inex-
pressivos que recitam os diálogos num tom monocórdico, uso do som de modo a substituir
a imagem e sugerir um mundo fora de campo, tratamento rigoroso e materialista dos objectos,
dos corpos e do espaço – que o realizador aplica a um tema e a um cenário decididamente
não-bressonianos: as vidas pobres e abandonadas nos bairros miseráveis dos subúrbios de
Lisboa.
30 - JAMES QUANDT
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O próprio título, Ossos, despojado até do artigo utilizado em O Sangue, dá alguma ideia
da austeridade esquelética que o filme se esforça por ter. Muito antes de L’Enfant (2005), dos
Dardenne, Costa conta a história do bebé de uma mãe adolescente com tendências suicidas,
cujo namorado, igualmente jovem e inexpressivo, usa a criança como adereço para mendigar
e depois tenta vendê-la – primeiro a uma enfermeira que foi bondosa para com ele e, a seguir,
a uma prostituta. (Ele esconde a criança dócil debaixo da cama enquanto tem relações sexuais
com a prostituta.) A sensação de desespero do filme é tão insistente e condensada que lembra
um dos mais deprimentes Fragmentos de Kafka, de György Kurtág, em que a heroína resume
a sua existência em seis palavras: “Dormi, acordei, dormi, acordei, vida miserável.” A mãe do
bebé tenta suicidar-se com gás, não uma mas duas vezes, a primeira das quais com o filho;
e a sua amiga mais próxima, uma mulher-a-dias, também usa um fogão a gás para se vingar
do pai.
As composições em bloco e a montagem elíptica de Costa, que por vezes nos obrigam a
transpor com dificuldade abismos de incidentes omitidos e relações ambíguas, sugerem
austeridade, tal como a sua predilecção por efeitos bressonianos – planos aproximados de
mãos, fechaduras e ombreiras de portas; a câmara que por vezes, durante um ou dois tempos,
mantém fixo o enquadramento depois de a figura o ter abandonado, indicando o som off um
espaço contíguo. Mas Ossos é mais sensual que ascético, move-se mais no pesar do que na
negação. Os grandes planos comoventes que Costa concede às suas personagens abjectas
raiam a beatitude – o pai de cabelo liso e comprido, com olhar distante, evoca uma das madonne
contemplativas de Bellini – e a iluminação refinada transforma dois planos simétricos de uma
fotografia, algumas chaves e maços de cigarros amachucados pousados num toucador ver-
melho em naturezas mortas coloristas. Costa também não está longe do virtuosismo: é óbvio
o seu prazer durante o longo e difícil travelling de acompanhamento do pai caminhando pela rua,
e por duas vezes faz uso de uma pouquíssima profundidade de campo para ostensivamente
produzir um efeito. O seu verismo cru cai por vezes em coincidências forçadas, de forma a
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estabelecer relações entre as personagens, e ainda não abandonou completamente a utilização
de actores profissionais (Inês Medeiros no papel da prostituta, por exemplo). Em Ossos, Costa
ainda segura com firmeza o seu passaporte para aquilo a que Godard chamou “esta magnífica
região da narrativa”.
Mas abandona completamente esse domínio no filme seguinte, No Quarto da Vanda, a
obra-prima de Costa e um dos filmes mais extraordinários da última década. Aparentemente
insatisfeito com Ossos, Costa regressou àquele mesmo cenário do bairro da lata, que estava
então a ser demolido, para contar a história de uma das suas actrizes, Vanda Duarte, que
interpretou a amiga vingativa do filme anterior. O plano inicial de Costa era filmar integral-
mente No Quarto da Vanda no quarto epónimo, mas decidiu sabiamente estender o seu âmbito
a todo o Bairro das Fontainhas, um mundo claustral de toxicodependentes, bêbados e todo
o tipo de marginais, cercado por bulldozers e martelos pneumáticos, e em breve destinado
ao desaparecimento. O retrato de três horas que daí resultou possui uma densa plenitude;
é simultaneamente contido e coral, minimal nos seus meios mas prodigioso na sua visão. Ao
abandonar as afectações bressonianas de Ossos, Costa chega ao seu próprio estilo rigorosa-
mente empático, exigente, íntimo e intensamente observador. Inteiramente rodado com uma
câmara digital fixa– as figuras entram, saem e atravessam o enquadramento, e há sequências
inteiras que incluem a voz off de uma personagem que está, obviamente, próxima, mas fisica-
mente ausente do limite da imagem – e fotografado apenas com luz natural, mesmo na mais
escura das casas do bairro da lata, que são como grutas, No Quarto da Vanda alcança a
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austeridade a que Ossos aspirava e contradiz o desespero fácil do filme anterior com a mais
simples das verdades: a vida pode brindar estas pessoas com um “absoluto desprezo”, como
afirma uma das personagens, mas, através das relações ténues que estabelecem entre si num
mundo que está literalmente a desabar à sua volta, elas afirmam o seu valor, a sua bondade
e a sua dignidade. 
No seu quarto infestado de moscas, Vanda e a sua irmã Zita fumam heroína, raspando
ocasionalmente resíduos de droga das páginas de uma velha lista telefónica. Viciadas há muito
tempo, fumam e raspam droga durante o filme inteiro, mas também conseguem trabalhar;
Vanda, por exemplo, ganha a vida a vender couves e alfaces porta a porta. Após um par de
referências a uma mulher que tentou vender o seu bebé e depois o deixou, já morto, num
caixote de lixo (deduzimos que seja Tina, a mãe desesperada de Ossos), o filme abandona de
vez qualquer semelhança com a narrativa convencional e passa a acumular cenas aparente-
mente aleatórias de Vanda, da sua família e vizinhos e dos homens do bairro, pontuadas
por “pillow shots” influenciados por Ozu, cenas intersticiais do quotidiano do Bairro das
Fontainhas. O rachar, esmagar e triturar das infernais máquinas de demolição acompanham
por vezes estas imagens na rica paisagem sonora do filme, uma algazarra constante de cães,
miúdos e televisões barulhentas, de discussões, tosse e queixas. (Habitualmente, Costa evita
a música extra-diegética, mas tem um óptimo ouvido para “acidentes” que funcionam como
contraponto irónico; entre as composições que ouvimos fugazmente no esquálido mundo
de Vanda estão “Memories”, de Cats, o refrão “I’ve Got the Power” de “I’m Going to Get You”
e a mais bela das árias de Bach, “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi”, do fim da Missa em
Si menor.)
No Quarto da Vanda é normalmente considerado um documentário, o que é conveniente
mas difícil de sustentar. A intimidade surpreendente com que Costa filma as suas personagens
– e elas são personagens, ainda que estejam a representar-se a si próprias – é obtida com
esforço, e é o resultado de muitos ensaios. Costa tornou-se amigo e trabalhou durante muitos
anos com alguns membros da comunidade das Fontainhas, e a naturalidade e a franqueza
com que os “actores” se entregam à sua (pequena e discreta) câmara resulta claramente dessa
solidariedade. Os momentos não são roubados mas ensaiados, registados, e depois organi-
zados de uma forma não muito diferente das elipses narrativas de Ossos; os pedaços dispersos
de história vão-se tornando gradualmente coerentes e claros, nomeadamente a prisão de Nela,
a irmã de Vanda, a morte de uma traficante de droga chamada Geny, o destino de Pedro, um
toxicodependente recuperado. Este último é visto pela primeira vez no início do filme, com
o corpo apertado no canto inferior direito do enquadramento, segurando uma labareda de
flores vermelhas e cor-de-laranja, um plano aparentemente inexplicável e arbitrário, sem
ligação a qualquer outra imagem ou história, até que, uma hora mais tarde, volta subitamente
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a aparecer numa longa e comovente sequência em que ele e Vanda discutem a asma de
ambos. Poucos documentários procedem de um modo tão intencionalmente fragmentário.
É claro que Costa também não está nada interessado em qualquer tipo de “ar” de docu-
mentário enquanto falso indicador de autenticidade. Trabalhando digitalmente pela primeira
vez, o que permite liberdade mas limita a precisão, Costa esforça-se por garantir que a ilumi-
nação e as composições sejam imaculadas, explicitamente belas: muletas encostadas a uma
parede, a brilharem sob uma luz escassa; um homem nu a lavar-se durante a demolição, com
cortinas de vapor soltando-se do seu corpo castanho e esguio; uma composição cubista de dois
rostos, usando espelhos que se cruzam; uma montagem poética de quartos vazios; um balde
de plástico vermelho cheio de isqueiros gastos, aninhados num saco verde-vivo; e uma
justaposição espantosa de dois cubos de luz azuis, um deles uma televisão tremeluzente, o
outro a porta aberta de um quarto distante, a flutuar na escuridão doméstica. Apesar de muito
se perder no crepúsculo dos interiores do bairro da lata de Costa – por vezes os rostos mal se
distinguem na escuridão – ele consegue evitar o negrume digital, transformando, por exemplo,
uma sequência de toxicodependentes a injectarem-se à luz da vela num Georges de La Tour
em versão submundo.
Ao contrário de Ossos, qualquer desespero em No Quarto da Vanda teria de ser conquis-
tado, considerando aquilo que vemos da imobilidade e pobreza destas vidas. Apesar de um
homem proclamar “Nós os beras nunca morremos, quem morre são os inocentes”, e de a
própria Vanda dizer “É triste, realmente este, o nosso país é o mais pobre e é mesmo, e o mais
triste”, o desespero parece um luxo na sua dura existência quotidiana. A atitude de Costa é
escrupulosamente isenta de julgamentos morais, e aborda a toxicodependência como nada
mais que um facto; um homem continua a limpar a sua barraca, com uma agulha pendurada
no braço, enquanto outro diz que vai pôr o lixo lá fora depois de se injectar. A pior coisa que
a heroína parece ter trazido a Vanda são os espasmos de tosse asmática. No Quarto da Vanda
também não é desprovido de humor. Um toxicodependente, de alcunha Blondie, está sempre
a arranjar o cabelo, enquanto outro se queixa de subir cinco lanços de escadas para pedir
esmola a uma velhota, que no final lhe dá dois iogurtes; enquanto desce, vai rezando para que,
pelo menos, sejam de morango. Dois drogados conversam acerca dos seus hematomas –
“Eu era um hematoma andante”, diz um deles – como donas de casa a compararem receitas.
A mãe de Vanda e de Zita ralha-lhes pela desarrumação dos quartos, como se elas fossem
Cindy e Marcia Brady, e elas respondem com maus modos, entre baforadas dos cigarros
carregados de heroína. Na sequência final, Zita brande uma pequena pistola e conta como
viu uma actriz sacar de uma arma semelhante das mamas gigantescas em Academia de Polícia.
Mas as gargalhadas não duram muito. Pouco depois, Zita está deitada na cama, pedrada, e o
barulho dos martelos pneumáticos, que estão a demolir o mundo dela e da irmã, fica cada vez
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mais próximo e mais alto. Ela desperta do seu torpor para brincar com uma criança cega,
seguindo-se um demorado plano da ruína de um edifício demolido que termina num ecrã
negro – uma escuridão repentina e envolvente, em que imaginamos os habitantes do Bairro
das Fontainhas a transformarem-se em fantasmas.
Em Juventude em Marcha, esses habitantes foram realojados no novo bairro lisboeta do Casal
da Boba, e muitos vivem em casas decentes de baixo custo, incluindo Vanda. Agora a tomar
metadona, Vanda ainda sofre de uma asma atroz, e o queixume agudo da sua voz contribuiu
sem dúvida para a fuga em massa da imprensa em Cannes quando ela se lança, logo no início
do filme, num longo monólogo acerca do nascimento da filha. No entanto, Juventude em
Marcha não lhe pertence a ela mas a Ventura, um velho trabalhador cabo-verdiano cuja mulher
– o seu nome, Clotilde, é um eco da personagem interpretada por Vanda em Ossos – o aban-
dona no princípio do filme. Uma alma perdida, a quem o nome Ventura assenta que nem
uma luva, empreende uma odisseia, vagueando de casa para barraca, de quarto para quarto,
ouvindo as histórias dos vários “filhos”, cujaverdadeira relação com ele nunca é clarificada.
A qualidade coral de No Quarto da Vanda é amplificada em Juventude em Marcha; as muitas
vozes dos tristes e espoliados que contam a Ventura as suas histórias têm qualquer coisa de
polifonia primitiva, cujo cantus firmus é a canção frequentemente repetida por Ventura, onde
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conta o que faria reconquistar Clotilde. (Para este efeito, Costa recorre a uma carta que o
surrealista francês Robert Desnos enviou do campo de Flöha, também uma inspiração para
Casa de Lava.) Ao contrário da promessa irónica do título português do filme, Juventude em
Marcha – uma frase exclamada num raro momento de alegria em Casa de Lava –, parece
bastante evidente que a juventude nunca estará em marcha no Casal da Boba.
Cada um dos supostos filhos de Ventura trouxe a sua história a Costa – muitas envolvendo
famílias destroçadas ou oportunidades perdidas – e tendo Costa filmado 320 horas (segura-
mente um recorde como rácio de filmagem!) ao longo de quinze meses, ensaiou rigorosamente
os actores, fazendo por vezes trinta takes para chegar à interpretação que desejava. (Nisto é
como Bresson, embora o objectivo deste fosse a mais completa neutralidade, e o de Costa uma
espécie de naturalismo estilizado.) Costa mantém a abordagem visual de No Quarto da Vanda,
mas restringe-a ainda mais. Filmadas com câmara fixa e luz natural, as takes de Juventude em
Marcha duram frequentemente muitos minutos. (A predilecção de Costa por grandes planos
de fechaduras de portas, mãos e corpos truncados ao estilo de Bresson regressa, desde Ossos.)
De vez em quando, Costa deixa ficar os erros, como quando Ventura chama “Zita” a Vanda
por engano – Zita que, descobrimos, morreu depois de No Quarto da Vanda –, e gosta que
a câmara registe detalhes inconsequentes mas agradáveis, como uma fila de garrafas que
estremecem com os passos pesados de Ventura. Uma mistura semelhante de acaso e rigor
é aplicada à banda-sonora, um denso acréscimo de sons registados em DAT com um ou
dois microfones: um vento enervante, o guincho agressivo de uma serra, gás a silvar para
dentro de um apartamento, cartas de jogar a serem batidas sobre uma mesa.
Ainda mais do que No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha concentra-se na beleza.
Num certo sentido, o filme é sobre a luz e a sua ausência; nos seus interiores inacabados ou
em degradação, uma luz pálida, que mal consegue entrar, vai mudando, estagnando e recuando,
e Costa chama a atenção para este efeito, repetindo composições com diferentes tipos de
luminosidade. (Em No Quarto da Vanda, usa um eclipse para conseguir uma ênfase seme-
lhante.) Nos planos exteriores, comparativamente poucos, a luz agressiva do sol varre tudo,
decompondo edifícios de apartamentos brancos em planos construtivistas. Quando Costa
diz que os filmes de Mikio Naruse influenciaram Juventude em Marcha, pensamos primeiro
nas vidas pobres e marginais de algumas das personagens acossadas de Naruse (apesar de,
comparadas com as de Costa, estarem relativamente confortáveis). Mas depois lembramo-nos
do historiador de arte André Scala, que relaciona o cinema quotidiano de Naruse com a pintura
de género holandesa do século XVII e os seus parâmetros formais. Apesar da sua decrepitude,
os espaços fechados muito bem filmados por Costa, com a fonte de luz a surgir frequentemente
de uma janela ou ombreira de porta à esquerda, parecem versões actualizadas desses mesmos
interiores holandeses; poder-se-ia chamar aos seus grandes planos tronies. As composições
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de Costa – Paulo na cama do hospital, por exemplo – são frequentemente rentes ao chão,
com as personagens situadas no terço inferior do enquadramento, uma vasta parede branca
acima delas, e os mais impressionantes são os planos de Vanda, Ventura e do marido de
Vanda à mesa de jantar, com um candelabro em filigrana a marcar delicadamente a parte
central superior da imagem. (O estranho e deslocado globo terrestre atrás de Vanda é muito
Vermeer.)
Costa fez um documentário brilhante, Onde Jaz o Teu Sorriso?, sobre a dupla de realiza-
dores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet enquanto estavam a montar o seu filme Sicilia!
(1999), e a influência da sua estética materialista é evidente em todo o Juventude em Marcha, e
certamente nas suas rigorosas imagens, filmadas no formato clássico, quase quadrado, de 1.37
– literalmente desajustado no cinema contemporâneo, posto que são poucas as salas que
ainda estão equipadas para projectar neste formato caído em desuso. Os monólogos em
Juventude em Marcha parecem inspirar-se nos filmes recentes de Straub e Huillet, como
Operai, Contadini (2001), em que camponeses italianos declamam de pé, numa paisagem. E os
breves planos de Arcádia urbana de um parque, árvores, água, sol, pássaros, uma auto-estrada
que Costa vai alternando na sua procissão de interiores parecem aqui menos herdeiros de
Ozu que os de No Quarto da Vanda; aqui lembram mais as cenas marítimas e de nuvens
esvoaçantes que Straub e Huillet intercalam com os interiores do século XVIII de Chronik der
Anna Magdalena Bach (1968).
Alguns críticos em Cannes queixaram-se de que Juventude em Marcha, além de ser um
aborrecimento cheio de pessoas desinteressantes e um gesto de turismo na favela tornado
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grande arte, era, na verdade, anti-cinema. Não há actores, não há movimentos de câmara, não
há música, ergo não há cinema, foi o raciocínio. A paciência vale ouro em Cannes, a derrisão
é a reacção mais fácil e, portanto, a grande obra de Costa foi, previsivelmente, objecto de troça
ou ignorada. Mas Ventura perdura de um modo mais tenaz na memória do que qualquer
outra personagem de Cannes, e nenhum outro filme no festival se aproximou da emoção
evocada por uma sequência em que ele está agachado, sem que lhe vejamos o rosto, a ouvir
um velho gira-discos portátil, ou pelo seu belíssimo gesto de parar a mão de um homem que
arranha freneticamente a superfície de uma mesa, para que ambos se possam sentar e
contemplar os seus destinos. No inesquecível grande plano final do filme, Ventura está deitado
numa cama enquanto toma conta do bebé de Vanda. Estamos novamente “no quarto da
Vanda,” com Costa a repetir conscientemente o plano final de Zita e da criança em No Quarto
da Vanda. Um realizador menor teria tornado o velho e a criança numa representação das
“idades do homem” ou numa banalidade do género “a vida continua”, mas o plano final e
demorado de Costa acumula simplesmente um sentido de imobilidade e de exaustão, de uma
vida suspensa no passado, desferindo um golpe com uma força tão serena que, no fim,
Juventude em Marcha [Colossal Youth no título inglês] parece mesmo colossal, um épico de
arte povera.
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STRAUB ANTI-STRAUB 
Tag Gallagher
Pedro Costa define o seu Onde Jaz o Teu Sorriso? como “anti-straubiano. É o oposto da forma
como (Danièle Huillet e Jean-Marie Straub) fazem as coisas”.1
E, no entanto, o filme é também sobre “a forma como os Straub fazem as coisas – e talvez
seja o melhor filme alguma vez feito sobre o processo de fazer filmes”.2
É óbvio que Pedro Costa adora os Straub. “De repente, Godard pareceu-me muito velho,
quando vi [...] os filmes dos Straub. Eram os mais rápidos e furiosos, belíssimos, sensuais,
antigos, modernos.”3
Mas, ao vermos os primeiros filmes de Costa, podemos não nos aperceber disso. As
cores “bem marcadas” (é assim que ele lhes chama) de Casa de Lava e Ossos podem dever-se
ao facto de ter visto Dalla nube alla resistenza (1979) dos Straub e She Wore a Yellow Ribbon
(1949) de John Ford “completamente pedrado”.4 Mas mais que os Straub, as primeiras três
longas-metragens de Costa evocam Robert Bresson, Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu,
Alain Resnais, Jacques Tourneur, Jean Renoir, CharlieChaplin, Howard Hawks, Jean-Luc
Godard, Kenji Mizoguchi – e séculos de pintura. Apesar de as telas de Costa evocarem a
tradição, ele quer que tudo pareça novo, “como as primeiras coisas a aparecer no mundo”,
nas suas próprias palavras.5 De facto, os seus filmes transbordam de entusiasmo em fazer
cinema. E os três foram filmados com toda a parafernália da produção tradicional: dezenas
de pessoas e camiões com equipamento.
O que era um problema.
“Vi apenas 20% das coisas que devia ter visto diariamente porque o meu olhar era atraído
para a equipa de filmagem e assim; os meios e os fins não foram devidamente pensados. Foi
então que percebi que tinha de fazer as coisas de outra maneira. E percebi também que a
forma habitual de fazer filmes é completamente errada.”6
Assim, no seu filme seguinte, No Quarto da Vanda, Costa reduziu esta parafernália a
uma pequena câmara de vídeo, reflectores (em vez de projectores) e um operador de som.
Durante um ano, o realizador foi todos os dias para um bairro de lata de Lisboa, as Fontainhas,
que estava em demolição, e aí viveu com os seus habitantes. “De certa forma, este é o meu
primeiro filme, porque é a primeira vez que encontro a possibilidade de uma família.”7 Costa
filmou os seus actores ao longo de 130 horas, representando cenas e conversas baseadas em
acontecimentos das suas vidas naquela altura.
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Isto era liberdade, mas a arte precisa de restrições. Por isso, Pedro Costa nunca mexe a
câmara, e grande parte das sequências são filmadas em plano-sequência, num espaço pequeno
e limitado – uma sucessão de planos como os dos Lumière compostos para a sua câmara, e sem
contracampos, como em Hawks. E apesar de o estilo neo-Lumière ser “anti-straubiano”,
porque os Straub, na sua busca de clareza, constroem cenas a partir de vários planos (e contra-
campos), também pode ser “straubiano”, como explica Jean-Marie em Onde Jaz o Teu Sorriso?:
“Há quem se cinja à realidade e não use a imaginação, a imaginação limitada de criaturas
limitadas. E depois há quem distorça a realidade em nome da suposta riqueza da sua imagi-
nação.”
Straub desaparece atrás da porta, mas volta:
“O facto é que [...] a imaginação está muito mais limitada no trabalho da segunda famí-
lia do que no da primeira. É porque há menos paciência no trabalho da segunda família e,
como alguém disse um dia, o génio humano não é mais do que uma boa dose de paciência.
Porque quando se possui essa boa dose de paciência, com ela vêm também as contradições. De
outra forma, não haveria tempo para contradições. A paciência duradoura está necessariamente
imbuída de ternura e violência. [...] 
Primeiro tem-se a tentação de mostrar uma montanha. […] Depois, um belo dia, percebe-
mos que o melhor é ver o menos possível.
Dá-se uma espécie de redução que não é bem uma redução, é antes uma concentração,
que acaba por nos dizer mais. Mas isto não se consegue de um dia para o outro! É preciso
tempo e paciência. Depois, até um suspiro se pode transformar num romance.”
Também em Costa, como em Ford, olhar para pessoas que olham é mais interessante do
que olhar para o que elas vêem. E, em No Quarto da Vanda, Costa dedica-se a deixar que a
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pessoa se mostre, contrariamente às suas tentativas bressonianas iniciais de apanhar as
pessoas em fragmentos.
E há ainda uma ênfase renovada na clareza. Se os Straub procuram ser “claros, inteligentes
e interessantes”, Costa tem por hábito ser inteligente, interessante e desafiador – desafiando
o espectador a encontrar a ligação entre um plano e o seguinte. Estaremos no mesmo lugar?
No mesmo ano? Será esta a mesma pessoa? Homem ou mulher? Só a correspondência certa
fará sentido – talvez. Se o enredo do seu filme mais recente e mais straubiano, Juventude em
Marcha (montado a partir de 340 horas de gravações feitas ao longo de 15 meses com as
pessoas de No Quarto da Vanda), não é imediatamente “claro”, talvez seja por não percebermos
português, mas será decerto porque Costa nos quer desafiar, porque a consciência do herói
é surreal e porque (ao contrário dos seus filmes em película) é raro vermos os rostos clara-
mente, e quase nunca os olhos.
Os olhos são, de facto, quase tudo para cada um dos realizadores de que Costa gosta (e
que têm um papel importante no seu primeiro filme). Pense-se nos olhos esbugalhados de
Chaplin; a obsessão de Ford com os olhos. Os Straub até ensinam os seus actores como fixar
o chão de forma a que lhes consigamos ver os olhos, Costa mostra-os a contar isto em Onde
Jaz o Teu Sorriso?. Mas mesmo em Onde Jaz o Teu Sorriso?, só vemos Jean-Marie em planos
gerais pouco iluminados, e quase nunca os olhos de Danièle.
Ao longo de 6 semanas, Pedro Costa e Thierry Lounas, seu assistente, filmaram 150 horas
na sala de montagem dos Straub no Fresnoy, onde o casal, em 2001, aceitara, com relutância,
participar na série de televisão francesa Cinéma, de notre temps – mas sem iluminação.8
42 - TAG GALLAGHER
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O Fresnoy é um estúdio de artes multimédia situado perto de Lille. Os Straub, conta Costa,
montavam cinco cortes por dia “no máximo, e trabalhavam das 10 às 5”. Estavam a montar
ali porque lhes davam gratuitamente a sala, mais uma cópia do filme, em troca de um
seminário. “No primeiro dia, [apareceram] 30 pessoas, no segundo 15, no terceiro 5; no final
já só vinham duas.”9
Para Costa, foi como estar uma segunda vez no quarto da Vanda – um outro espaço limi-
tado. E tal como Vanda Duarte e os seus amigos “projectavam algo para fora das suas quatro
paredes [...], o Jean-Marie e a Danièle tinham um sonho, e estavam agora ali a montá-lo.”10
Assim, se Onde Jaz o Teu Sorriso? é, por um lado, o retrato de um casal notável e fascinante,
os maiores realizadores do último quarto de século, e uma análise da sua estética, por outro
lado é também um filme de Pedro Costa, que, como toda a sua obra, é a vários títulos “anti-
straubiano”.
Costa, para dar um exemplo, combina de forma criativa imagens e sons captados separada-
mente, como sempre fizeram os realizadores. Mas os Straub não. Quando, por exemplo, filmam
uma conversa num comboio em movimento, e alternam entre personagens, recusam a solução
mais fácil, que seria gravar sons do comboio e acrescentá-los à mistura mais tarde, para que
sejam contínuos ao longo de toda a cena. Em vez disso, propõem-se a tarefa impossível de
acertar os sons do comboio de plano para plano.
Porquê?
A mistura, explicam-nos os Straub, cria uma “sopa”, um caldo onde tudo se afunda, mistu-
rado. Nenhum dos elementos mantém a sua autenticidade. Mas a realidade é mais rica que a
nossa imaginação, e a arte só sairá empobrecida se despejarmos tudo para dentro de uma sopa.
Os Straub demonstram que a tarefa da montagem é clarificar: primeiro, através de uma
geometria coerente dos ângulos de filmagem; depois, cortando a meio do movimento; ou
então observando uma personagem antes de ela começar a falar, o que lhe realça a psicologia.
Será que precisamos de mais 35 ou 36 fotogramas para nos apercebermos daquele sorriso
escondido? Os Straub discutem durante horas, razão pela qual apenas têm tempo para cinco
cortes por dia. Mas o resultado é a clareza.
Costa, pelo contrário, usa os cortes para desafiar o espectador.
Também com os actores, o objectivo dos Straub é clarificar. Tal como Costa, os Straub
viveram com os seus actores. E falam-nos do seu esforço para suscitar o entusiasmo dos
actores por fazerem 30 takes, depois de longos dias de trabalho nos empregos habituais. Os
Straub contam-nos como ensinam os seus actores a, depois de ouvirem o som da claquete,
levarem o tempo necessário a “[…] acalmar-se, concentrar-se, pensar, meditar e entrar em
sintonia com o corpo. [...] As coisas só ganham existência quando têm um ritmo ou forma
próprios. É da forma do corpo que nasce a alma, não me canso de o dizer.”
STRAUB ANTI-STRAUB

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