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O ESTADO PLURINACIONAL NAS NOVAS CONSTITUIÇÕES DA BOLÍVIA E DO EQUADOR Guilherme Andrade Silveira e Janaina Ferreira da Mata RESUMO: As novas constituições do Equador, de 2008, e da Bolívia, de 2009, dentro do marco do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, representam casos emblemáticos das transformações vivenciadas na região durante as últimas décadas. Essas constituições têm despertado grande interesse por parte de pesquisadores devido às importantes inovações apresentadas, sejam institucionais, como a redefinição das funções do Estado, seja em termos de direitos, como participativos e buen vivir. De forma mais destacada, esses textos constitucionais propõem uma refundação do próprio conceito de Estado, cunhado pela tradição liberal europeia como Estado-nação, em ruptura aos processos de colonização e a partir do reconhecimento dos povos indígenas, campesinos e originários. Este trabalho tem como objetivo discutir o conceito de Estado Plurinacional, destacando seu papel e importância nas lutas decoloniais em Abya Yala e sua imbricação com um novo e ampliado modelo de democracia, que inclui o fortalecimento da participação social e o desenvolvimento de instâncias comunitárias, em uma concepção aprofundada de autodeterminação dos povos. Além disso, pretende comparar os modelos de Estado Plurinacional implantados na Bolívia e no Equador, demonstrando suas principais características, perspectivas, instituições e atores envolvidos. Para tanto, o artigo perpassa as recentes transformações constitucionais dos países supracitados, destacando os processos de resistência e mobilização social, e se apropriando de literatura recente, produzida no Sul, acerca da democracia e decolonialidade. Palavras-chave: Estado Plurinacional, decolonialidade, democracia. EL ESTADO PLURINACIONAL EN LAS NUEVAS CONSTITUCIONES DE BOLIVIA E ECUADOR RESUMEN: Las nuevas constituciones de Ecuador, de 2008, e de Bolivia, de 2009, en el marco del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano, representan casos emblemáticos de las transformaciones vividas en la región durante las últimas décadas. Tales constituciones tienen despertado gran interés por parte de los investigadores debido a las importantes innovaciones presentadas, sean institucionales, como la redefinición de las ramas del Estado, sean en términos de derechos, como participativos y buen vivir. Con mayor destaque, esos textos constitucionales proponen una refundación de la propia concepción de Estado, acuñado por la tradición liberal europea como Estado-nación, en ruptura con los procesos de colonización y a partir del reconocimiento de los pueblos indígenas, campesinos e originarios. Este trabajo tiene como objetivo discutir el concepto de Estado Plurinacional, destacando su papel e importancia en las luchas decoloniales en Abya Yala y su imbricación con un nuevo y ampliado modelo de democracia, que incluye el fortalecimiento de la participación social y el desarrollo de instancias comunitarias, en una concepción profundizada de autodeterminación de los pueblos. Además, pretende comparar los modelos de Estado Plurinacional desplegados en Bolivia y Ecuador, demostrando sus principales rasgos, perspectivas, instituciones e actores involucrados. Para tanto, el artículo recorre a las recientes transformaciones constitucionales de los países citados arriba, destacando los procesos de resistencia e movilización social, y apropiándose de literatura reciente, producida en el Sur, acerca de la democracia e decolonialidad. Palabras-clave: Estado Plurinacional, decolonialidad, democracia. INTRODUÇÃO Os arranjos políticos e sociais, bem como os processos de transição, consolidação e reestruturação da democracia nos países latino-americanos têm sido fonte de intensa e constante investigação por parte de pesquisadores de diversas áreas, incluindo a Sociologia, Antropologia, Economia, Direito e Ciência Política. Recentemente, algumas experiências surgidas em nosso continente têm merecido maior destaque, dentro e fora da região, sobretudo, na literatura constitucional e sobre inovações democráticas. Desde o final do século passado e, sobretudo, nos primeiros anos do século XXI, a América Latina assistiu a um importante processo de mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais, protagonizado pela própria população, especialmente, pelos grupos tradicionalmente excluídos e marginalizados em todas essas dimensões, como os povos originários, que culminaram na positivação de novos e antigos direitos, por meio de processos de constituintes amplamente democráticos. Como resultado desse processo, as Constituições da Colômbia (1991), Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009)1 estão sendo analisadas como a construção de um arcabouço jurídico inovador e diferenciado, formando o que vem sendo chamado pelos estudiosos de “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”2 (SANTOS, 2009, MAGALHÃES, WEIL, 2010; VICIANO PASTOR, MARTÍNEZ DALMAU, 2010 e 2011; 1 Reconhecemos a existência de um importante debate acerca da inclusão dos casos da Colômbia e da Venezuela no paradigma do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Nos parece ser adequado o enquadramento que caracteriza as constituições desses dois países como percussora desse movimento, apresentando, no entanto, limitações profundas frente aos avançados representados pelos casos equatoriano e boliviano. Contudo, entendemos que esse debate deva ser feito de maneira robusta, algo que ultrapassaria os objetivos deste estudo, que analisa apenas os dois últimos casos, por serem os únicos em que o Estado foi concebido, em seu projeto constitucional, como plurinacional. 2 Esse movimento tem recebido variadas denominações. Uma listagem bastante completa pode ser encontrada em Brandão (2015). GARAVITO, 2011; LINZÁN, FRANCO, 2011; GARGARELLA, 2012; PISARELLO, 2014). Essas constituições são fruto de um intenso processo de mobilização social frente à profunda situação de crise econômica, política e social experimentada por essas funções, sendo duas de suas causas mais notáveis a aplicação dos programas de ajustes estruturais de matriz neoliberal nos anos de 1970 e a forte condição de exclusão e desigualdade vivenciada por seus protagonistas. Diante da falta de habilidade do “velho” constitucionalismo para resolver os problemas fundamentais da sociedade, o Novo Constitucionalismo se distancia e representa uma ruptura em relação aos modelos prévios, sendo marco pela ampla participação e protagonismo popular durante o processo de elaboração e aprovação das cartas magnas. Entre as principais características desse paradigma constitucional estão a ativação direta do poder constituinte pelo povo, a ampliação de mecanismos de participação e controle popular do Estado, uma extensa carta de direitos e garantias, a integração de setores sociais historicamente marginalizados, especialmente os povos indígenas, o controle concentrado de constitucionalidade e a forte normatividade constitucional, bem como a definição de um papel mais ativo do Estado na economia, associado ao maior compromisso com a integração regional. Dentro do marco do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, as novas constituições do Equador, de 2008, e da Bolívia, de 2009, representam casos emblemáticos das transformações vivenciadas na região durante as últimas décadas. Além de contar com as características apresentadas anteriormente, essas constituições têm despertado grande interesse por parte de pesquisadores devido às importantes inovações apresentadas, sejam institucionais, como a redefinição das funções do Estado, seja em termos de direitos, como participativos e buen vivir. De forma mais destacada, essas constituições propõem uma refundação do próprio conceito de Estado, cunhado pela tradição liberal europeia como Estado-nação, em rupturaaos processos de colonização e a partir do reconhecimento dos povos indígenas, campesinos e originários. Se anteriormente a literatura destacava a influência da colonização na formatação dos países latino-americanos e a exclusão da população indígena na vida política do Estado-nação (DUSSEL, 1994; LOSURDO, 2008; WACHTEL, 1998), agora os estudos ser voltam para o processo de descolonização (CANQUI, 2010; MOLLINEDO, 2010) e para a mobilização dos povos originários em prol da transformação do aparato estatal (MOTA, 2008; GUIMARÃES, 2009; MAYORGA, 2014). Essas cartas passam a reconhecer a diversidade enquanto direito individual e também coletivo, na perspectiva da interculturalidade (YRIGOYEN FAJARDO, 2011), a autonomia dos povos, o pluralismo jurídico e a representação direta dos povos originários, segundo seus usos e costumes, nos diferentes níveis da estrutura do Estado. Diante disso, é preciso desenvolver a produção científica no sentido de buscar compreender os fatores, contextos e influências que propiciaram a substituição do modelo de Estado-nação, tipicamente excludente e homogeneizador, que perdurou durante séculos, pelo modelo de Estado Plurinacional. Este trabalho tem como objetivo discutir o conceito de Estado Plurinacional, destacando seu papel e importância nas lutas decoloniais em Abya Yala3 e sua imbricação com um novo e ampliado modelo de democracia, que inclui o fortalecimento da participação social e o desenvolvimento de instâncias comunitárias, em uma concepção aprofundada de autodeterminação. Além disso, pretende comparar os modelos de Estado Plurinacional implantados na Bolívia e no Equador, demonstrando suas principais características, perspectivas, instituições e atores envolvidos. Para tanto, o artigo perpassa as recentes transformações constitucionais dos países supracitados, destacando os processos de resistência e mobilização social, e se apropriando de literatura recente, produzida no Sul, acerca da democracia e decolonialidade. As novas experiências constitucionais na América Latina nos oferecem caminhos e possibilidades, que, como observado, geram avanços democráticos e populares nos rumos dos países que fizeram recentemente essa opção de convocar uma Assembleia Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição. Ao propor contribuir para o debate que se faz entorno desse paradigma constitucional, buscamos analisar os elementos que permitem aprofundar um projeto constitucional igualitário, capaz de lidar com o pesado legado deixado pelos duzentos anos de constitucionalismo conservador e liberal na região e superá-lo. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO Ao percorrer os mais de 200 anos de constitucionalismo latino-americano, o valor da igualdade parece assumir um papel central para aqueles que o desejam analisar a partir de um ponto de vista emancipatório. Durante a maior parte desse período, quiçá durante toda a história desse continente, a desigual distribuição do poder político, econômico e cultural, a exclusão de minorias e, muitas vezes, maiorias étnicas e a vulnerabilidade da região frente às ingerências de organismos externos foram e continuam sendo elementos decisivos na hora de se pensar a fragilidade dos textos constitucionais dos países latino-americanos desde essa perspectiva. 3 “Abya Yala, na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América. [...] Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente em oposição a América, expressão que, embora usada pela primeira vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX, adotada pelas elites crioulas para se afirmarem em contraponto aos conquistadores europeus, no bojo do processo de independência” (PORTO-GONÇALVES, 2009, p. 26). Entretanto, nas últimas décadas, uma nova tendência constitucional tem se mostrado como ponto de inflexão na história da região. As bases para a construção desse novo modelo podem ser encontradas ao longo de todo o constitucionalismo regional, marcado pela exclusão e pelo predomínio de modelos conservadores e liberais4 (GARGARELLA, 2010). Contudo, sua justificativa mais direta remonta à década de 1970, quando, após a caída dos regimes militares que assolaram todo o continente durante boa parte do século XX, a aplicação de políticas de ajustes estruturais de matriz neoliberal do Consenso de Washington5 e a difícil estabilização do sistema democrático, a região vivia uma intensa crise política, econômica, social e de direitos humanos, ainda diante de um intenso quadro de exclusão e negação de direitos. Em pouco tempo, se assistiu a uma forte mobilização social e a processos destituintes6, que levariam a queda de inúmeros chefes de governo7 e obrigariam a revisar uma série de aspectos da ordem constitucional vigente (PISARELLO, 2009). Por outro lado, outros dois importantes e simultâneos acontecimentos marcaram a vida política da América Latina nesse contexto: a proeminência de movimentos sociais e a eleição de um número significativo de governos orientados à esquerda ou centro-esquerda (PREVOST, CAMPOS, VANDEN, 2012), em um movimento convergente em direção ao progressismo político, nomeado por alguns teóricos como “giro a la izquierda”8 (PARAMIO, 2006). Esse período pode ser caracterizado, então, pela abertura à participação eleitoral, sobretudo, de 4 Uma das principais marcas das constituições promulgadas ao longo da história da América Latina é a diversidade de projetos políticos em disputa. Entre eles, três assumiram destacada importância: o conservador, o liberal e o republicano. Esses grupos foram protagonistas dos processos constituintes durante os mais de 200 anos de constitucionalismo latino-americano, oferecendo as principais respostas para os problemas experimentados no continente. Segundo Gargarella (2010), suas posições divergiam, sobretudo, frente a dois ideais fundacionais profundamente caros à trajetória política do continente: os ideais de autonomia individual e de autogoverno coletivo. 5 A partir de 1979, com eleição de Margaret Thatcher na Inglaterra, seguida por Reagan, nos Estados Unidos (1980) e Khol, na Alemanha (1982), as políticas neoliberais ganharam força. Nesse período, governos de perfil conservador assumiram o poder em praticamente todos os países da Europa e levaram a cabo esse novo pacote de ajustes econômicos. 6 “El levantamiento zapatista en México del 1 de enero de 1994, fecha de entra del Tratado de Libre Comercio de América del Norte, marcó un hito en las resistencias populares a políticas vigentes” (PISARELLO, 2009, p. 6). Ver, por exemplo, CEDOZ, Centro de Documentación sobre Zapatismo. http://www.cedoz.org. 7 Um dos casos mais paradigmáticos desse período é o da Argentina, no ano de 2001, com a destituição de três presidentes democraticamente eleitos, frutos de intenso processo de mobilização social, diante de um cenário de crise econômica, social e de representação sem precedentes. “El gobierno de Alfonsín, Menem y De la Rúa generaron una profunda crisis del propio régimen democrático. La asociación de la democracia al conservadorismo liberal y a los malos resultados que esto generó puso en riesgo a supervivencia de la propia sociedad y de la política argentina” (SILVEIRA, 2013, p. 15). 8 “Giro a la izquierda” é a expressão para designar a chegada, pela via eleitoral, de governos que podem ser classificados como populares ou de esquerda na América Latina, durante o século XXI. São exemplos, Hugo Chávez (Venezuela, 1998), Lula (Brasil, 2002), Nestor Kirchner (Argentina, 2003), Tabaré Vázquez (Uruguai, 2004), Michelle Bachelet (Chile, 2006), Rafael Correa (Equador, 2006) e Alan García (Peru,2006). http://www.cedoz.org/ setores mais pobres e da classe média, e por uma alta heterogeneidade da agenda programática y da composição organizativa e histórica dos partidos que chegaram ao poder nesse período (RAMÍREZ GALLEGOS, 2006). Assim, “junto com a ampliação da democracia ou sua restauração, houve também um processo de redefinição de seu significado cultural ou da gramática social vigente” (SANTOS; AVRITZER, 2010). A resistência oferecida pelos movimentos sociais, como os movimentos indígenas, de mulheres, de direitos humanos, de ecologistas, entre outros, às ditaduras militares, às políticas neoliberais e aos regimes democráticos excludentes produziram, e vem produzindo, importantes avanços em termos de igualdade para o constitucionalismo da região (PISARELLO, 2009). Esses movimentos protagonizaram um importante processo de mudanças políticas, no qual a população passou a exigir do Estado o cumprimento de um papel mais forte frente à economia e a recuperação dos antigos direitos sociais ora esvaziados e a sanção de novos direitos, individuais e coletivos, incluindo os da natureza, que refletem novas concepções de direitos e aspirações de boa vida, desde diversas tradições culturais. Povos e comunidades tradicionais demandam ser reconhecidos não só como culturas diversas, mas como nações, nações originárias, isto é, sujeitos políticos coletivos, com direitos e garantias específicas. Conforme argumentam Nogueira e Dantas (2012), reformas constitucionais nos Estados Latino-Americanos tornaram-se necessárias a partir dos conflitos sociais criados, especialmente por instituições modernas, desde o período colonial e ao longo de toda a história do continente. Essas mudanças e o adensamento dos conflitos sociais foram importantes para as transformações constitucionais e políticas experimentadas desde o fim do século passado. De modo distintivo, casos como o da Colômbia (1990-1991), Venezuela (1999), Equador (2007-2008) e Bolívia (2006-2009), foram precedidos por crises estruturais especialmente profundas e logo levaram a mudanças constitucionais ainda mais inovadoras e radicais. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano, paradigma constitucional surgido a partir dos processos de reforma das constituições da Colômbia, Bolívia, Equador e Venezuela, tem como principais características a ativação direta do poder constituinte pelo povo, a ampliação de mecanismos de participação e controle popular do Estado, uma extensa carta de direitos e garantias, a integração de setores sociais historicamente marginalizados, especialmente os povos indígenas, o controle concentrado de constitucionalidade e a forte normatividade constitucional, bem como a definição de um papel mais ativo do Estado na economia, associado ao maior compromisso com a integração regional. Em Gargarella e Courtis (2009) podemos ver que, em geral, as constituições nascem em momentos de crise, tendo como objetivo resolver essa situação, ou “drama político-social fundamental”. Para eles, diferentemente das constituições ditadas a partir dos anos 80 na região, que classificamos como neoconstitucionais, que se dirigiram a combater a instabilidade política a partir da limitação do poder presidencial, uma das principais perguntas que as novas constituições, especialmente as cartas da Bolívia e Equador, vieram a responder é como solucionar o problema da “marginalização político-social dos grupos indígenas”9. Viciano Pastor e Matínez Dalmau (2011) demarcam os elementos formais e materiais comuns ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano10. Entre os elementos formais estão: su contenido innovador (originalidad), la ya relevante extensión del articulado (amplitud), la capacidad de conjugar elementos técnicamente complejos con un lenguaje asequible (complejidad), y el hecho de que se apuesta por la activación del poder constituyente del pueblo ante cualquier cambio constitucional (rigidez). (VICIANO PASTOR, MATÍNEZ DALMAU, 2011, p. 15) Já entre os elementos materiais estão (a) o estabelecimento de mecanismos de legitimidade e controle sobre o poder constituído, por meio da ampliação de mecanismos de participação popular; (b) a extensa carta de direitos; (c) inclusão de setores historicamente marginalizados, como os povos indígenas; (d) o controle concentrado de constitucionalidade; e (e) a definição de um papel ativo do Estado na economia, traduzido em amplos capítulos econômicos nas constituições (VICIANO PASTOR, MATÍNEZ DALMAU, 2011). Em relação ao primeiro deles, uma das principais apostas do Novo Constitucionalismo está na redefinição das relações entre soberania e governo, que se estendem para além do processo constituinte. Em efeito, as novas constituições latino-americanas introduziram uma série de mecanismos de participação popular e controle social do poder, reconhecendo formas mais diretas de democracia, atento às camadas mais postergadas e excluídas da população. O novo paradigma constitucional também é marcado pela presença de uma extensa declaração de direitos, entre os quais estão os de proteção ao meio ambiente, cultura, saúde, educação, alimentação, moradia e trabalho. Boa parte deles destinam-se explicitamente aos setores historicamente marginalizados, como é o caso dos povos indígenas. Outra dimensão que pode ser destacada por esses novos textos é o controle concentrado de constitucionalidade. Nas palavras de Viciano Pastor e Matínez Dalmau (2011, 9 Para os autores, essas constituições também serviram para a reeleição daqueles que as promoveram, algo que será muito importante para o que discutiremos mais adiante. 10 Conforme demonstramos anteriormente, para os autores, o primeiro elemento comum a este paradigma constitucional é a natureza das assembleias constituintes, bastante democráticas, assumindo a necessidade de legitimar amplamente um processo constituinte revolucionário (VICIANO PASTOR, MATÍNEZ DALMAU, 2011). p. 25), “las nuevas constituciones huyen del nominalismo anterior y proclaman el carácter normativo y superior de la Constitución frente al resto del ordenamiento jurídico”. Por fim, o modelo econômico dessas constituições privilegia um modo solidário e soberano, baseado em uma relação harmoniosa com a natureza (ACOSTA, 2009; SANTOS, 2010). A preocupação com os setores sociais mais vulneráveis pode ser percebida em amplos capítulos econômicos, que demarcam uma orientação para a superação de desigualdades e de defender constitucionalmente o papel do Estado na economia. “Ello no niega que la economía capitalista sea acogida en la Constitución, pero impide (y ya bastante) que las relaciones capitalistas globales determinen la lógica, la dirección y el ritmo del desarrollo nacional” (SANTOS, 2010, p. 83). Essa característica do Novo Constitucionalismo está relacionada, ademais, a uma outra dimensão desse paradigma, referente à integração regional. De forma mais avançada, as constituições da Bolívia e do Equador têm como grande marco o protagonismo indígena e o giro descolonizador e plurinacional do Estado. Conforme afirma Brandão (2015, p. 40), “tornar visível o que era invisível, entender a lógica dos povos ancestrais e positivar na Constituição seus conhecimentos, essa, sem dúvida, parece-nos a maior contribuição desse novo movimento político e constitucional surgido em nuestra America”. A composição do Estado Plurinacional é tratada por diversos autores como o elemento mais importante do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, apresentando rupturas e potenciais emancipatórios refundantes para o contexto da região. Para analisar melhor os significados dessa nova institucionalidade, a próxima seção discute o conceito de Estado Plurinacional, destacando seu papel e importância nas lutas decoloniais latino-americanas e sua imbricação com um novo e ampliado modelo dedemocracia. DO ESTADO MODERNO AO ESTADO PLURINACIONAL O Estado Moderno possui um largo debate conceitual, especialmente no campo teórico do Direito, da Sociologia e da Ciência Política. O nosso objetivo aqui é apenas confrontar o núcleo duro desse conceito com a concepção do Estado Plurinacional, dando ênfase aos aspectos que o diferenciam do primeiro. Em sua origem e essência, a noção de Estado Moderno passa pela ideia da conquista, da força e do poder, podendo ser caracterizado como uma “instituição social, que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim de organizar o domínio do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões intestinas e agressões estrangeiras” (OPPENHEIMER, 1954 apud BONAVIDES, 2000, p. 76). Essa mesma perspectiva será utilizada por Max Weber para demonstrar como o Estado racionalizou e legitimou o emprego da violência, podendo ser caracterizado, então, pelo monopólio da violência física legítima. Tal origem reverbera nos elementos que se tornaram constitutivos do Estado, que acabou por não se desvincular da teoria de Oppenheimer. Dallari (1998), por exemplo, demonstra que, apesar da diversidade de opiniões em relação aos elementos característicos do Estado Moderno, a maioria dos autores parece convergir quanto à centralidade de dois elementos materiais: o território e o povo. Em geral, os teóricos incluem um terceiro elemento, com maior variabilidade entre as diferentes concepções de Estado, das quais prevalece sua identificação com o poder ou alguma de suas expressões, tais como a soberania, o governo ou a autoridade. Duguit (1901 apud BONAVIDES, 2000, p. 76) destaca esses dois elementos principais como de ordem material, em que o elemento humano, ou o povo, se apresenta em termos demográficos (população), jurídicos (povo) e culturais (nação), e o elemento território pode ser compreendido como o espaço em que o referido grupo humano encontra-se fixado. De ordem formal, por sua vez, Duguit considera o poder político, que, de acordo com o autor, surge do domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. Nessas definições, contudo, pode-se desvelar os aspectos mais perversos do Estado Moderno. Conforme nos demonstra Magalhães (2002), o conceito de povo é dotado de uma forte carga emocional, que surge, dentro desse modelo de Estado, com a criação do sentimento de pertinência. Entretanto, esse sentimento, que releva a própria ideia de nação, é formado por aspectos históricos, étnicos, psicológicos e sociológicos, de cunho eminentemente político. Em geral, a aceitação de um modelo de Estado-nação foi feita, historicamente, por cima dos próprios sentimentos nacionais preexistentes, como se pode verificar apenas em casos como o da Espanha, Reino Unido, Bélgica, e a antiga Iugoslávia. Por isso, Magalhães (2002, p. 55) argumenta que “o sentimento de pertinência a um estado nacional é uma criação histórica para a formação de um Estado unificado”. Para o autor, os Estados-nações se formaram a partir do encobrimento de nacionalidades já existentes, por meio de um processo de criação artificial (ou de imposição) do sentimento de pertinência a novos valores “compartilhados” pelo povo que faz parte do território. A formação do Estado Moderno, nesse sentido, é fruto de um contrato desigual entre as nações. Conforme argumenta Boaventura de Sousa Santos (2010), el Estado moderno ha pasado por distintos órdenes constitucionales: Estado liberal, Estado social de derecho, Estado colonial o de ocupación, Estado soviético, Estado nazi-fascista, Estado burocrático-autoritario, Estado desarrollista, Estado de Apartheid, Estado secular, Estado religioso y, el más reciente (quizá también el más viejo), Estado de mercado. Lo que es común a todos ellos es una concepción monolítica y centralizadora del poder del Estado; la creación y control de fronteras; la distinción entre nacionales y extranjeros y, a veces, entre diferentes categorías de nacionales; la universalidad de las leyes a pesar de las exclusiones, discriminaciones y excepciones que ellas mismas sancionan; una cultura, una etnia, una religión o una región privilegiadas; organización burocrática del Estado y de sus relaciones con las masas de ciudadanos; división entre los tres poderes de soberanía con asimetrías entre ellos, tanto originarias (los tribunales no tienen medios para hacer ejecutar sus propias decisiones) como contingentes (la supremacía del Ejecutivo en tiempos recientes); aun cuando en la práctica el Estado no tiene el monopolio de la violencia, su violencia es de un rango superior una vez que puede usar contra “enemigos internos” las mismas armas diseñadas para combatir a los “enemigos externos”. (SANTOS, 2010, p. 69) Na América Latina, como sabemos, os Estados Modernos, nacionais, foram criados por uma lógica ainda mais perversa, a partir dos processos de invasão, luta e dominação dos povos originários de Abya Ayala. Os Estados-nações latino-americanos se formaram a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX, construídos para uma parcela minoritária da população. Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 60) afirma, ainda, que o processo formativo da região se deu “por medios tan diversos como el genocidio, la evangelización, la tutela estatal de los “menores” indígenas, el asimilacionismo y el mito de la democracia racial”. Dessa forma, os povos originários, assim como os imigrantes forçados africanos, escravizados, foram radicalmente excluídos de qualquer ideia de nacionalidade (MAGALHÃES, 2002), ou, pelo menos, de suas próprias nacionalidades. A lógica excludente e integralista foi predominante. “O direito não era para essas maiorias, a [nova] nacionalidade não era para essas pessoas” (MAGALHÃES, 2002, p. 22). Essa perspectiva, marcada “por un largo proceso de hegemonización, está encarnada en las normas, instituciones y prácticas del Estado, hasta ahora organizado como un Estado uninacional y monocultural” (TRUJILLO, 2013, p. 306). Atualmente, um dos grandes entraves e desafios para a região, e, especialmente, para aqueles que defendem um projeto de Estado e um projeto constitucional mais igualitário, é o de lidar com as instituições criadas sob essa lógica (GARGARELLA, 2010), fortemente arraigadas no arcabouço jurídico latino-americano, comprometidas com a reprodução de uma ordem desigual e excludente. Conforme demonstra Yrigoyen Fajardo (2005), la juridicidad republicana que emerge de los procesos de Independencia en el s. XIX en Latinoamérica es una juridicidad de y para los criollos, esto es, en función de los intereses de los descendientes de los conquistadores y encomenderos. En este sentido, la nueva institucionalidad jurídica no sólo excluye la participación de los pueblos indígenas, sino que busca completar la obra de la Conquista, esto es, la sujeción indígena, y sin el freno que la Corona había impuesto a los encomenderos (YRIGOYEN FAJARDO, 2005, p. 93). Fundamental aqui remarcar que o modelo constitucional prevalecente em toda a história da América Latina, o modelo liberal-conservador, esteve fundamentado na negação de um compromisso igualitário, em que apenas uma pequena elite da sociedade tinha acesso aos direitos políticos. Para Gargarella (2010, p. 110), “la reparación de ese quiebre crucial de la igualdad, requiere de una reflexión nueva sobre el tipo de diseño institucional que se quiere, y sobre los fundamentos últimos del mismo”. A concepção de Estado como plurinacional, levada a cabo na região pelas experiências constitucionais recentes do Equador e da Bolívia, pretende contribuir substancialmente para a superação das bases uniformizadoras e excludentes do modelo nacional e moderno de Estado. Para Magalhães (2010), a grande revolução do Estado Plurinacional está na possibilidade de rompimento com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucionale democrático representativo, tradicionalmente excludente daqueles grupos que não se encaixam nos valores e culturas dominantes, inclusive determinados nas próprias constituições nacionais em termos de direitos. Esse rompimento, segundo ao autor, está associado ao reconhecimento da democracia participativa como base da democracia representativa, de modo a garantir a coexistência de distintas formas de vida e manifestações de valores dos diversos grupos sociais. O reconhecimento de um país como multicultural e pluriétnico não faz dele um Estado Plurinacional, visto que, apenas expressar no texto constitucional a existência de diferentes etnias, línguas e costumes culturais não é o suficiente para que exista um concreto reconhecimento das nações originárias como parte efetiva do Estado. As Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), nesse sentido, propõem “uma refundação do Estado a partir do reconhecimento explícito das raízes milenárias dos povos indígenas”, não apenas como “culturas diversas”, mas como “nações originárias” ou nacionalidades com autodeterminação ou livre determinação (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 149, tradução nossa). Essas cartas se inserem no que a autora chama de terceiro ciclo de reformas constitucionais dentro do horizonte pluralista, que se dá no contexto de aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, entre 2006 e 2007, redefinindo a forma de reconhecimento das populações indígenas e originárias nestes países e garantindo sua autodeterminação. Las Constituciones de Ecuador y Bolivia se proponen una refundación del Estado a partir del reconocimiento explícito de las raíces milenarias de los pueblos indígenas ignorados en la primera fundación republicana, y por ende se plantean el reto histórico de poner fin al colonialismo. Los pueblos indígenas son reconocidos no sólo como “culturas diversas” sino como naciones originarias o nacionalidades con autodeterminación o libre determinación. Esto es, sujetos políticos colectivos con derecho a definir su destino, gobernarse en autonomías y participar en los nuevos pactos de Estado, que de este modo se configura como un “Estado plurinacional”. Al definirse como un Estado plurinacional, resultado de un pacto entre pueblos, no es un Estado ajeno el que “reconoce” derechos a los indígenas, sino que los colectivos indígenas mismos se yerguen como sujetos constituyentes y, como tales y junto con otros pueblos, tienen poder de definir el nuevo modelo de Estado y las relaciones entre los pueblos que lo conforman. (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 149) Neste sentido, o constitucionalismo plurinacional não se restringe a prover direitos consagrados em acordos11 internacionais, vai além e incorpora a perspectiva indígena nos novos direitos sociais e políticos, afirma o princípio do pluralismo jurídico e reconhece “o direito dos povos indígenas ou originários à autodeterminação (Equador) ou livre determinação dos povos (Bolívia)” (YRIGOYEN FAJARDO, pp. 149-150, tradução nossa). Para Boaventura de Sousa Santos (2010) a plurinacionalidade envolve o reconhecimento de um conceito de nação diferente daquele do Estado Moderno, que a compreendia como um conjunto de habitantes localizados em um certo espaço geopolítico, para a ideia de nação enquanto pertencimento comum a uma etnia, cultura ou religião. Por esse motivo é que o autor ressalta que esse processo de refundação do Estado é, sobretudo, uma demanda civilizatória, que exige um diálogo intercultural entre diferentes nações, e, dessa forma, etnias, culturas e religiões. Segundo Boaventura, “para que tenga lugar este diálogo intercultural es necesaria la convergencia mínima de voluntades políticas muy diferentes e históricamente formadas más por el choque cultural que por el diálogo cultural, más por el desconocimiento del otro que por su reconocimiento” (SANTOS, 2010, p. 70). Face ao exposto, ressaltamos a definição de plurinacionalidade apresentada pelo sociólogo e atual vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera (apud SCHAVELZON, 2012, p. 137): “es la igualdad de derechos de pueblos, de culturas en nuestro país. No es nada más que eso. Todo en el marco de una sola identidad nacional [...]. Somos una nación de naciones”. Essa definição vai ao encontro do que Santos (2007, pp. 31-35) estabelece como conceito de nação comunitária, que é desenvolvido pelos povos indígenas, abrangendo a autodeterminação e combinando diferentes conceitos de nação dentro de um mesmo Estado, o que se contrapõe ao conceito apresentado de Estado Nação (uma nação, um Estado) e consolidando um constitucionalismo intercultural, plurinacional e pluricultural. Para finalizar nosso recorrido sobre a definição do Estado Plurinacional em contraposição ao Estado Moderno, apresentamos os elementos que Oscar Vega Camacho (2010) apresenta como fundamentais do conceito de Estado Plurinacional. O primeiro deles 11 Das quais merecem destaque o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas; de 2007. seria o caráter coletivo da construção da proposta de um Estado Plurinacional, que chama a atenção para os processos de mobilização e ação coletiva protagonizados pelos movimentos sociais e povos indígenas como fatores explicativos chave para a consolidação desse novo projeto. Um segundo elemento é a centralizadas das lutas pela descolonização do Estado, entendendo a situação atual desses povos como resultado de um processo de dominação e exclusão que não foi finalizado quando do fim da colonização política da América Latina, “sino su persistente y eficaz refuncionalización a través del tiempo histórico y su actualización permanente en los poderes constituidos estatales, pero también en las denominadas esferas civiles de la sociedad y en los ámbitos privados” (CAMACHO, 2010, p. 111). O terceiro elemento de Camacho (2010) é a redefinição do âmbito público, em uma contraposição à separação típica entre público e privado, dotando uma visão política sobre o âmbito “não estatal”, notadamente o comunitário. A relação entre o Estado e a sociedade aparece, para o autor, como o quarto elemento do Estado Plurinacional, tendo em vista a necessidade iminente de superação das desigualdades estruturais causadas pelo modelo moderno de institucionalidade. Por fim, está o quinto elemento, que é a construção de um modelo alternativo de Estado, com uma nova institucionalidade, “que sea descolonizador en una sociedad racista, anti-imperialista, cuando estamos subsumidos en potentes dependencias geopolíticas, económico-culturales y anti-capitalistas, persistiendo en las lógicas del desarrollo del capital” (CAMACHO, 2010, p. 113). Por fim, cabe chamar atenção a outros dois aspectos. Como sexto elemento, Camacho (2010) destaca a distinção entre governo e Estado, o que, quando não realizada, acaba por silenciar um campo de lutas que faz parte não só do governo, mas do Estado, invisibilizando o papel da cidadania na sustentação e legitimidade dos poderes instituídos. O último elemento, por sua vez, apresenta a forma comunitaria “y su rol en el desempeño de las nuevas estructuras del Estado, en las formas de gobiernos territoriales y en el modelo económico” (CAMACHO, 2010, p. 114). A construção de um Estado Plurinacional implica, portanto, em reformar as relações entre o Estado e a sociedade. Para Luis Tapia (2010, p. 136), as novas estruturas estatais devem tratar de se articular com estruturas sociais “provenientes de diferentes matrices de sociedad, además de poblaciones que se han socializado o formado en diferentes conjuntos de relaciones sociales, cosmovisiones, lenguas y también bajo diferentes estructuras de autoridade”. Coloca- se em questão, nesse sentido, a própria condição estatale a possibilidade de se pensar uma estrutura distinta daquela existente, herdada de fora, que perdurou durante tantos séculos em nossa região segundo uma lógica de exclusão, de eliminação e invisibilidade. O ESTADO PLURINACIONAL NA BOLÍVIA E NO EQUADOR Nesta seção buscamos diferenciar, em seu cerne, as matrizes em que se fundam os modelos de Estado Moderno, ou Estado-nação, e o Estado Plurinacional. Tal mudança está fundamentada sob uma nova forma de olhar para a população existente no território e entende- la como diversa, como formada por nações distintas e que merecem ser respeitadas nas suas diferenças, segundo seus próprios olhares e práticas, o que destaca a necessidade de um novo pacto com o Estado, uma nova forma de organização dessa institucionalidade. Para tanto, as dificuldades e as possibilidades são diversas. As recentes transformações constitucionais observadas na Bolívia e no Equador foram fruto de processos de mobilizações intensas, de batalhas políticas não isentas de violência, que perdurou durante anos de resistência e reclamos sociais na América Latina. Os processos de refundação do Estado não começaram com a eleição dos atuais presidentes desses países, Evo Morales e Rafael Correa, e, certamente, não terminaram com a promulgação das constituições equatoriana, em 2008 e boliviana, em 2009. Esses acontecimentos fazem parte de um processo histórico, amplo e complexo, que envolve resistências, mobilizações e também adaptações dos povos originários, que infelizmente, não serão o foco de análise deste artigo. Contudo, cabe ressaltar que os processos de constituição do Estado Plurinacional desenvolvidos até aqui “son de carácter irreversible en los imaginarios colectivos de la sociedad, por lo cual generan diversos y, sobre todo, antagónicos posicionamientos que a final de cuentas develan las perspectivas asumidas y los horizontes trazados” (CAMACHO, 2010, p. 112). Nas linhas que se seguem, procuramos apresentar como o conceito de Estado Plurinacional se materializou nas constituições da Bolívia e do Equador e se estabeleceu segundo uma nova institucionalidade. Segundo nosso entendimento, o desenho de Estado expresso nessas duas cartas magnas pode ser sintetizado em quatro eixos, que congregam as principais inovações institucionais apresentadas por esses Estados: (a) reconhecimento de direitos próprios e da cosmovisão dos povos originários; (b) reconhecimento da autonomia territorial e formas de organização desses espaços; (c) ampliação dos espaços de participação e representação política no estado; e (d) pluralização do sistema de justiça. Reconhecimento de direitos próprios e da cosmovisão dos povos originários: Tanto o Equador como a Bolívia apresentam em suas novas constituições um extenso rol de direitos, consagrados nos princípios do buen vivir (Sumak Kawsay ou Suma Qamaña) e nos direitos da natureza (segundo a cosmovisão andina de Pachamama12). Conforme demonstra Pedro 12 Divindade indígena que representa a Madre Tierra. Brandão (2015, p. 150), a positivação do Sumak Kawsay possui um duplo objetivo: “no campo simbólico, dá destaque à visão de mundo daqueles que foram marginalizados e excluídos; no plano econômico, aponta os equívocos do desenvolvimentismo, a partir da realidade periférica”. A positivação do buen vivir deve ser entendida não apenas como um fim em si mesmo, mas como um princípio sólido, que se desdobra ao longo dessas constituições em seus diversos dispositivos e direitos, tendo uma função irradiante e transversal (BRANDÃO, 2015). Dessa forma, as constituições boliviana e equatoriana consagram os direitos à água e à segurança alimentar; articulam modelos de economia solidária e comunitária, inclusive, com limitação ao latifúndio e à dupla titulação de terra, reconhecem diferentes idiomas como oficiais e estabelecem modelos de educação intercultural e proteção à diversidade cultural. Além disso, declaram de interesse público os recursos naturais que fazem parte do Estado, garantindo direitos próprios à Pachamama e às formas de produção que preservem o Sumak Kawsay. Reconhecimento da autonomia territorial e formas de organização desses espaços: Sem dúvida, a democracia comunitária contempla os mais avançados mecanismos proclamados nas atuais constituições equatoriana de 2008 e boliviana de 2009. Sua existência planteia a viabilidade de uma verdadeira democracia intercultural, nos termos de Boaventura de Sousa Santos (2010), a partir da coexistência de diferentes formas de deliberação pública e critérios de representação democrática, bem como o reconhecimento de direitos coletivos aos povos e novos direitos fundamentais. De qualquer forma, para além das suas contradições e limites, conforme argumenta o autor, los diferentes derechos colectivos permiten resolver o atenuar injusticias estructurales o injusticias históricas y fundamentan acciones afirmativas necesarias para libertar comunidades o pueblos de la sistemática opresión o para garantizar la sustentabilidade de comunidades colectivamente inseguras. (SANTOS, 2010, p.101) Ao proclamar-se como plurinacional, a Bolívia e o Equador carregam consigo a ideia de autodeterminação e autogoverno, devendo garantir os direitos coletivos aos grupos minoritários, sobretudo ao reconhecimento, persistência de identidade cultural e a não discriminação. Em suas constituições, proclama-se aos povos originários, indígenas, campesino, afrodescendentes e montubios o direito de formarem circunscrições territoriais para defesa de sua cultura, sua autonomia, o reconhecimento de suas instituições e a consolidação de suas identidades territoriais. Além disso, é reconhecido seu direito a conservar a propriedade de suas terras comunitárias, em ambos os países tidas como inalienáveis, irrevogáveis e indivisíveis. As cartas magnas defendem o direito dessas nações e comunidades de desenvolver suas próprias formas de convivência e organização social, inclusive de geração e exercício de autoridade, construindo e mantendo organizações que os representem, participar, mediantes seus representantes, de organismos oficiais, na definição de políticas públicas que lhes afetem, bem como no desenho e decisão de prioridades nos planos e projetos do Estado. Por fim, garante-se o direito de que eles sejam consultados antes da adoção de uma medida legislativa que possa afetar qualquer direito coletivo. Ampliação dos espaços de participação e representação política no Estado: Em ambos os países, o direito à participação política assume centralidade no ordenamento constitucional, exercida por meio de todos os órgãos do poder político e de formas de participação direta. Para o Boaventura de Sousa Santos (2010), o reconhecimento da plurinacionalidade está associado à noção de autogoverno e autodeterminação, o que implica o fim da homogeneidade do Estado e a adoção desse princípio pelas próprias instituições públicas, como o Parlamento e a Corte Constitucional, que assumem papel de grande importância nesse contexto. A participação é concebida com um direito e deverá ser considerada fortemente para a tomada de decisões, planejamento e gestão pública. O povo assume, então, importante papel no controle do Estado, garantindo maior legitimidade às ações do governo. Em respeito ao modelo de organização política particular de cada um desses grupos, também são consagrados os direitos à construção e manutenção de organizações representativas, participação, mediante seus representantes, em organismos oficiais na definição de políticas públicas afetas a eles, bem como no desenho e decisão de suas prioridades nos planos e projetos do Estado. Também passa a ser constitucional a obrigação de consultá- los antes da adoção de qualquer medida legislativa que possa afetar seus direitos coletivos. A participação política possui,ademais, um importante papel para a consolidação desse projeto de país e dessa nova institucionalidade. “É através dela que aqueles deixados à margem poderão ser incluídos dentro do processo democrático, colaborando na própria definição da comunidade a que estão inseridos” (PEREIRA, 2007, p. 11). Para controlar seus representantes, as constituições estipulam, ainda, dois mecanismos básicos: a ampliação do acesso às informações públicas e a revocatória de mandatos. Ambos correspondem a ações de accountability, que promovem maior responsividade do mandato em relação aos eleitores. Por fim, e não menos importante, estabelece novas formas de representação, autônoma em seus próprios territórios, e por meio de organizações sociais, e não só partidos, nos órgãos oficiais do Estado. Entre as grandes inovações institucionais apresentadas pela Constituição do Equador de 2008, merece destaque, ainda, a redefinição do conjunto de funções do Estado, instituindo, para além da Executiva, Legislativa e Judiciária, a Função Eleitoral e a Função de Transparência e Controle Social e a Função Eleitoral, sendo que essa última propõe um novo status e locus para a participação, passando agora a atuar de dentro do próprio aparelho do Estado. Pluralização do Sistema de Justiça: o fundamento do pluralismo jurídico nas constituições da Bolívia e do Equador está assentado sobre o reconhecimento do direito dos povos indígenas e originários à autodeterminação, no Equador, e à livre determinação dos povos, na Bolívia (YRIGOYEN FAJARDO, 2015). As constituições desses países reconhecem a legitimidade das decisões tomadas pelas autoridades indígenas, que devem ser respeitas pela Justiça ordinária (GRIJALVA JIMÉNEZ, 2013). Dessa forma, é garantida a essas comunidades aplicar suas próprias normas, construídas sobre suas próprias cosmovisões, a partir de suas próprias autoridades, inclusive ancestrais. Conforme ressalta Brandão (2015), é claro que não existe apenas um sistema de Justiça indígena, mas sistema(s) de Justiça(s) Indígena(s), tendo em vista que não há necessariamente uniformidade ou homogeneidade em seus procedimentos e sanções, que ocorrem sempre de acordo com tradições e costumes específicos. Seria um erro “moderno” entender que as diferentes comunidades indígenas dispõem de apenas um modelo de Justiça indígena (BRANDÃO, 2015, p. 196). CONCLUSÃO A refundação do Estado sob as bases de uma composição Plurinacional, em contraposição à visão moderna uninacional, representa hoje um dos estágios mais avançados de lutas políticas pela descolonização. “Porque son las luchas y memorias de la acción colectiva de los movimientos sociales las que produjeron esta oportunidad y posibilitaron este reto, [...]; es desde esta perspectiva que se debe trabajar y orientar el llamado a refundar el país y transformar el Estado” (CAMACHO, 2010, p. 111). Nesse cenário, o grande desafio é estabelecer um desenho institucional que seja capaz de dotar os povos originários, juntamente com o restante da população, como protagonistas do processo político, sem que isso acabe por restringir ou limitar suas formas de vida e de organização. Em nosso trabalho, reconhecemos que o modelo de Estado-nação é, per si, colonial, pois envolve a ideia de construção de uma nação única, mais ou menos homogeneizada, dentro de um determinado território de forma impositiva. Esse desafio refere-se às concepções de unidade do Estado, tradicionalmente forçadas pela cultura e valores ocidentais. Ao romper com a ideia de nação e reconhecer a coexistência de distintas nações, com seus próprios costumes e formas de organização, o Estado quebra suas primeiras amarras coloniais, abrindo espaço para um processo de descolonização. Em um Estado Plurinacional demanda-se, antes de mais nada, estratégias de reconhecimento dos povos originários, que lhes permitam se compreender como sujeitos de direitos, como parte do Estado, o que envolve a necessidade de reconhecer e de exumar as tradições coloniais do Estado. Um Estado Plurinacional precisa, portanto, lidar com o passado, isto é, a falta de memória é um mal para a construção de uma institucionalidade que se propõe decolonial. Só assim ele poderá superar os legados e os vícios de uma institucionalidade colonizadora. Conforme procuramos demonstrar aqui, as constituições do Equador e da Bolívia apresentam importantes inovações institucionais e principiológicas, que permitem levar adiante importantes processos de refundação democrática e decolonial do Estado. Essas inovações, contudo, não estão isentas de limites e contradições. A ideia, contudo, é a de que essas cartas magnas constituem um instrumento para a construção desse novo Estado, que não se concluiu com o término do processo constituinte, mas que segue em contínua construção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACOSTA, A. La participación se conquista con la lucha, si es preciso en las calles. Revista Rebelión. 19 de setembro de 2009. 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