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História antiga i: Fontes e Métodos Maringá 2010 editora da Universidade estadUal de Maringá Reitor Prof. Dr. Décio Sperandio Vice-Reitor Prof. Dr. Mário Luiz Neves de Azevedo Diretor da Eduem Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor-Chefe da Eduem Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini ConselHo editorial Presidente Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor Associado Prof. Dr. Ulysses Cecato Vice-Editor Associado Prof. Dr. Luiz Antonio de Souza Editores Científicos Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Prof. Dr. João Fábio Bertonha Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini Prof. Dr. Manoel Messias Alves da Silva Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Prof. Dr. Ronald José Barth Pinto Profa. Dra. Rosilda das Neves Alves Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis eqUipe téCniCa Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanamati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Edilson Damasio Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing Marcos Cipriano da Silva Comercialização Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima Maringá 2010 história e conhecimento história antiga i: fontes e métodos Renata Lopes Biazotto Venturini (ORGANIZADORA) 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Copyright © 2010 para o autor Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2010 para Eduem. História antiga I: fontes e métodos/ Renata Lopes Biazotto Venturini, organizadora. -- Maringá: Eduem, 2010. 144p. 21cm. (História e Conhecimento; n.3) ISBN 978-85-7628-230-3 1. História antiga. 2. Antiguidade clássica – Grécia. 3. Antiguidade clássica - Roma. 4. História antiga – Brasil. 5. História do Oriente próximo antigo. I. Venturini, Renata Lopes Biazotto, org. CDD 21.ed. 930 H673 Endereço para correspondência: eduem - editora da Universidade estadual de Maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3261-4103 / Fax: (0xx44) 3261-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br História e ConHeCiMento Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Tania Braga Guimarães Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio Júnior Bianchi Eliane Arruda Colaboração: Prof. Dr. Moacir José da Silva Prof. Dr. Christian Fausto M. dos Santos 3 Sobre os autores Apresentação da coleção Apresentação do livro CapÍtUlo i História Antiga: fontes e métodos Renata Lopes Biazotto Venturini CapÍtUlo ii História do oriente próximo antigo: uma introdução Ivan Esperança Siqueira Rocha CapÍtUlo iii Antiguidade Clássica: Grécia José Geraldo Costa Grillo / Pedro Paulo A. Funari CapÍtUlo iv Antiguidade Clássica: Roma Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi CapÍtUlo v Os avanços da História Antiga no Brasil Glaydson José da Silva CapÍtUlo vi Instrumentos de pesquisa Renata Lopes Biazotto Venturini > 5 > 7 > 9 > 13 > 31 > 49 > 73 > 95 > 129 umárioS 5 Andrea Lucia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi Docente de História Antiga da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, campus de Assis, desde o ano de 2002, graduada e pós-graduada na mesma universidade. É integrante do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais/UNESP, do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano/UNESP e do Núcleo de Estudos Estratégicos/UNICAMP. Atualmente desenvolve projeto de Pós-doutorado sob a supervisão de Pedro Paulo Abreu Funari, na UNICAMP. Glaydson José da Silva Professor de História Antiga do Departamento de História da Unifesp - Universidade Federal de São Paulo - e Diretor do Centro do Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica, da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas. Graduou-se em História pela Uanesp - Universidade Estadual Paulista, e fez mestrado, doutorado e pós-doutorado, também em História, pela Unicamp, universidade na qual lecionou disciplinas de Teoria da História. Ivan Esperança Siqueira Rocha Professor de História Antiga do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Assis. É coordenador do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da UNESP. José Geraldo Costa Grillo Pós-doutorando em Arqueologia no Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, Bacharel em História (Unicamp) e Doutor em Arqueologia (USP). Pedro Paulo A. Funari Professor titular da Unicamp, coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos, Bacharel em História (USP), Mestre em Antropologia Social (USP), Doutor em Arqueologia (USP), Livre-Docente e Titular pela Unicamp. Renata Lopes Biazotto Venturini Professora de História Antiga da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em História e Sociedade (UNESP - Assis), Doutora em História Social (USP). Integra o Laboratório de Estudos Antigos e Medievais - LEAM, do Departamento de História da UEM. obre os autoresS 7 A coleção História e Conhecimento é composta de 42 títulos, que serão utiliza- dos como material didático pelos alunos matriculados no Curso de Licenciatura em História, Modalidade a Distância, da Universidade Estadual de Maringá, no âmbito do sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que está sob a responsabilidade da Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES). A utilização desta coleção pode se estender às demais instituições de Ensino Su- perior que integram a UAB, fato que tornará ainda mais relevante o seu papel na for- mação de docentes e pesquisadores, não só em História mas também em outras áreas na Educação a Distância, em todo o território nacional. A produção dos 42 livros, a qual ficou sob a responsabilidade da Universidade Estadual de Maringá, teve 38 títulos a cargo do Departamento de História (DHI); 2 do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP); 1 do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE); e 1 do Departamento de Letras (DLE). O início do ano de 2009 marcou o começo do processo de organização, produção e publicação desta coleção, cuja conclusão está prevista para 2012, seguindo o cro- nograma de recursos e os trâmites gerais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Num primeiro momento, serão impressos 294 exemplares de cada livro para atender à demanda de material didático dos que ingressaram no Curso de Graduação em História a Distância, da UEM, no âmbito da UAB. O traço teórico geral que perpassa cada um dos livros desta coleção é o compro- misso com uma reconstrução aberta, despreconceituosa e responsável do passado. A diversidade e a riqueza dos acontecimentos da História fazem com que essa reconstru- ção não seja capaz de legar previsões e regras fixas e absolutas para o futuro. No entanto, durante a recriação do passado, ao historiador é dado muitas vezes descobrir avisos, intuições e conselhos valorosos para que não se repitam os erros de outrora. No transcorrer da leitura desta coleção percebemos que os livros refletem várias matrizes interpretativasda História, oportunizando ao aluno o contato com um ines- timável universo teórico, extremamente valioso para a formação da sua identidade intelectual. A qualidade e a seriedade da construção do universo de conhecimento desta coleção pode ser tributada ao empenho mais direto por parte de cerca de 30 organizadores e autores, que se dedicaram em pesquisas institucionais ou até mesmo presentação da ColeçãoA 8 História antiga i: Fontes e Métodos em dissertações de mestrado ou em teses de doutorado nas áreas específicas dos livros que se propuseram a produzir. Esta coleção traz um conhecimento que certamente marcará positivamente a for- mação de novos professores de História, historiadores e cientistas em geral, por meio da Educação a Distância, o qual foi fruto do empenho de pesquisadores que viveram circunstâncias, recursos, oportunidades e concepções diferentes, temporal e espacial- mente. Como corolário disso, seria justo iniciar os agradecimentos citando todos aqueles que não poderiam ser nominados nos limites de uma apresentação como esta. Roga- mos que se sintam agradecidos todos aqueles que direta, indireta ou mesmo longin- quamente, quiçá os mais distantes ainda, contribuíram para a elaboração deste rico rol de livros. Além do agradecimento, registramos também o reconhecimento pelo papel da Rei- toria da UEM e de suas Pró-Reitorias, que têm contribuído não apenas para o êxito desta coleção mas também para o de toda a estrutura da Educação a Distância da qual ela faz parte. Agradecemos especialmente aos professores do Departamento de História do Cen- tro de Ciências Humanas da UEM pelo zelo, pela presteza e pela atenção com que têm se dedicado, inclusive modificando suas rotinas de trabalho para tornar possível a maioria dos livros desta coleção. Agradecemos à Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aper- feiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), e ao Ministério da Educação (MEC) como um todo, especialmente pela gestão dos recursos e pelo empenho nas tramitações para a realização deste trabalho. Outrossim, agradecemos particularmente à Equipe do NEAD-UEM: Pró-Reitoria de Ensino, Coordenação Pedagógica e equipe técnica. Despedimo-nos atenciosamente, desejando a todos uma boa e prazerosa leitura. Moacir José da Silva Organizador da coleção 9 “Olho por olho, dente por dente”, na lei de Talião; os monumentos egípcios; a leitura de Aristóteles, Platão, Plutarco, Tácito, Homero; tudo isso nutriu a reflexão e o imaginário dos europeus durante longos anos. Personagens reais ou lendárias dessa história inspiraram poetas, dramaturgos, pintores, homens políticos, desde o Renas- cimento. Por outro lado, as divindades antropomorfas, a atmosfera masculina do mundo grego, os espetáculos de Roma suscitam, ainda nos dias de hoje, interpretações pre- conceituosas. Alguns clichês permanecem nas primeiras linhas dos livros didáticos ao tratar o Egi- to como “dádiva do Nilo”, e a Grécia como “berço da civilização”. Essas simplificações, somadas à erudição necessária ao estudo do mundo antigo, fizeram com que a história antiga fosse vista como uma “outra história”, repleta de especialidades. No nosso presente, entretanto, a própria história questiona seus métodos. Os des- dobramentos teórico-metodológicos desses questionamentos também atingiram os estudiosos da Antiguidade. Nas seis contribuições presentes nesse livro, encontra-se um exercício de reflexão historiográfica que combina as especificidades para o estudo da história antiga com uma discussão mais ampla a respeito da escrita da história. O primeiro capítulo tem uma proposta introdutória. Nele, Renata Lopes Biazotto Venturini apresenta discussões preliminares em torno da história antiga, suas fontes e seus métodos. As peculiaridades inerentes à compreensão da História do Oriente Próximo, da Grécia e de Roma, serão cuidadosamente tratadas nos três capítulos sub- sequentes. No domínio do Orientalismo, Ivan E. Siqueira Rocha indica instrumentos que pos- sam aprofundar o conhecimento sobre as civilizações que se desenvolveram no Orien- te Próximo. Reconhece as dificuldades de estudo, tanto pela diversidade quanto pela abundância de documentos inéditos. O mundo grego é objeto de reflexão no trabalho conjunto de Pedro Paulo A. Fu- nari e de José Geraldo Costa Grillo. São apresentadas noções introdutórias em torno da definição de documento, seguidas de uma proposta de análise documental para o conhecimento da história da Grécia antiga, por meio da indicação de fontes escritas e materiais, em particular a iconografia dos vasos gregos. presentação do livroA 10 História antiga i: Fontes e Métodos Roma Antiga, melhor conhecida quando se considera sua evolução em direção a um império que se quer universal, é analisada por Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi. Percorrendo os períodos da história romana, a autora demonstra as especificidades das fontes e indica algumas metodologias de abordagem documental. Glaydson José da Silva reflete sobre a escrita da história entre os próprios gregos e romanos. Questiona a respeito do lugar que a história antiga ocupa no campo da produção historiográfica e apresenta os avanços da pesquisa e do ensino no Brasil. O último capítulo, escrito por Renata Lopes Biazotto Venturini, é dedicado à apre- sentação de documentos, com o objetivo de proporcionar um exercício de reflexão por meio de atividades a serem resolvidas pelos acadêmicos, permitindo que se fami- liarizem com os testemunhos escritos sobre o mundo antigo. As diferentes abordagens que constituem a matéria deste livro convergem para um interesse comum. São interrogações em torno dos testemunhos à disposição do historiador, o modo de tratá-los, aquilo que podemos ou não conhecer, aquilo que “sabemos e o que provavelmente jamais saberemos” (FINLEY, 1989), sobre gregos, romanos e egípcios. Decorreram apenas alguns meses para a confecção dos estudos apresentados pelos autores. Foi exemplar a disposição dos colegas com relação ao curto prazo de entrega de seus textos. E eu gostaria de expressar-lhes minha especial gratidão. Renata Lopes Biazotto Venturini Organizadora do livro “Quanto aos escribas sábios,... que prediziam o que estava por vir, seus nomes durarão para sempre, embora tivessem partido, ten- do completado sua vida, enquanto todos os seus contemporâneos foram esquecidos...Eles não planejaram deixar herdeiros, crianças que conservassem seu nome, mas fizeram como herdeiros de si os livros e ensinamentos que escreveram... Sua lápide está coberta de areia e seu túmulo esquecido, mas seu nome é pronunciado por causa dos livros... Um homem morre, seu cadáver vira pó, todos os seus contemporâneos perecem, mas um livro faz com que seja lembrado na boca de quem o lê.” Papiro Chester Beatty, IV, ii - iii. Apud Emanuel Araújo, 2000 13 Renata Lopes Biazotto Venturini o pesqUisador e o doCUMento: disCUssões preliMinares A relação entre o pesquisador e o documento não é simples nem imediata. O qua- dro conceitual e as questões pertinentes se tornam evidentes quando se reconhecem as disciplinas e suas especificidades. As especificidades, tão alardeadas pelos historiadores em torno do estudo da Histó- ria Antiga, ganharam nova dimensão com a ampliação efetiva de suportes documentais. Segundo Jacques Le Goff (1992), trata-se de uma revolução documental não somente de ordem quantitativa, mas também qualitativa, que permite a valorização de novos objetos de pesquisa. O olhar do historiador questiona a tradição positivista diante de um fazer histórico novo. Os membros dos Annales opõem-se ao positivismo revalori- zando a história econômica, social, política, a história das mentalidades e do cotidiano; A história nova ampliou o campo do documento histórico; ela substituiu a histó- ria de Langlois e Seignobos,fundada essencialmente nos textos, por uma histó- ria baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, do- cumentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de primeira ordem (LE GOFF, 1990, p. 28). Todavia, Le Goff, um dos protagonistas dessa nova concepção de documento, não deixou de particularizar a pobreza documental da Antiguidade, que poderia conduzir apenas a uma nova erudição ou a reconstituições aventureiras: A história faz-se com documentos e idéias, com fontes e com imaginação. Ora o historiador da Antiguidade (eu pecava, claro está, pelo menos por exagero) parecia-me condenado a uma alternativa desencorajante: ou tinha de haver-se com o magro espólio do legado de um passado mal preparado para se poder perpetuar ou abandonar às seduções castradoras da erudição pura, ou tinha de entregar-se aos encantos da reconstituição ocasional (LE GOFF, 1993, p. 9). História antiga: fontes e métodos 1 14 História antiga i: Fontes e Métodos O mau posicionamento dos estudiosos da Antiguidade diante da quase impossibi- lidade de reflexão sobre o documento é lembrada por François Hartog, com a citação bem-humorada de Péguy; O historiador da Antiguidade atua na ausência de documentos. Ele bem que gostaria que alguns lhe fossem oferecidos, alguns poucos, para os cozinhar em banho-maria, para fazer avançar a ciência, para garantir as carreiras. Mas ele se arruinaria se lhe fosse oferecido tudo (PÉGUY, 1932, p. 197. apud HARTOG, 2003, p. 191). As particularidades e as limitações para o estudo da História Antiga são reconheci- das pela maioria dos pesquisadores, como Moses Finley, Arnaldo Momigliano, o pró- prio Hartog, entre tantos outros. Entretanto, isso não faz dela uma “outra história”. As singularidades de seu campo de investigação, tais como o conhecimento de línguas “mortas” e a erudição contribuíram para o isolamento da disciplina. Além dis- so, a ênfase positivista em documentos escritos oficiais deu voz somente às camadas superiores do mundo antigo que tinham acesso à educação. testeMUnHos e doCUMentos: antigUidade ClássiCa A raridade documental convive com a heterogeneidade dos documentos: são ins- crições, documentos escritos – literários e não-literários –-, e documentos materiais – moedas, cerâmica, estatuetas, construções. Eles exigem uma reflexão diferenciada, que respeite suas peculiaridades. Com a diversidade dos documentos, novos objetos de estudo foram propostos, o que levou à necessidade de um diálogo da história com a arqueologia, a epigrafia, a numismática, entre outras ciências denominadas pelos Annales de “disciplinas auxi- liares”. Contudo, esse diálogo tem vencido barreiras e preconceitos de forma lenta e gradual: [...] muitos arqueólogos criticam historiadores por constituírem narrativas a-te- óricas, enquanto os historiadores, por sua vez, reclamam do excesso de especia- lização e termos técnicos que os arqueólogos empregam em suas publicações (GARRAFONI, 2008, p. 50). Fonte: Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, 2009 O diálogo entre a história e a arqueologia deveria superar e reconhecer as diferen- ças metodológicas. Geralmente, a pergunta feita ao artefato é se ele confirma ou des- mente a tradição literária. Tal abordagem prioriza os testemunhos escritos. Para Moses Finley, esse debate está mal direcionado. Ele acrescenta; 15 Para começar, acredito que seja falso falar da relação entre a história e a ar- queologia. Não estão em questão duas disciplinas qualitativamente distintas, mas dois tipos de testemunhos relativos ao passado, dois tipos de testemunhos históricos. Portanto, não pode haver dúvida quanto à prioridade geral ou à su- perioridade de um tipo de testemunho sobre o outro; tudo depende, em cada caso, do tipo de testemunho disponível e das questões particulares a serem respondidas (FINLEY, 1989, p. 28). Coluna de trajano - mármore, roma, 113 d.C. Fonte: sociedade Brasileira de estudos Clássicos, 2009 A proposta de um estudo interdisciplinar também se estende à epigrafia. As ins- crições eram de tipos e formas variadas: grafites, pinturas, propaganda política, es- petáculos, inscrições honoríficas e jurídicas, inscrições eróticas e de cunho sexual -, constituindo um corpus documental bastante interessante. As informações apresentam uma considerável diversidade e expressam opiniões de diferentes camadas sociais, proporcionando uma visão mais ampla das sociedades an- tigas (CORASSIN, 1998/1999; GARRAFONI, 2008). São inscrições que atingiam maior público, permitindo ao pesquisador conhecer categorias sociais menos privilegiadas, falando em primeira pessoa, como, por exemplo, escravos, prostitutas, gladiadores, artesãos. História antiga: fontes e métodos 16 História antiga i: Fontes e Métodos óstraco de Címon, estadista ateniense, onde se lê o seu nome. pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:epigrafia Nos dias atuais, o pesquisador tem acesso às inscrições gregas e latinas editadas no Corpus Inscriptionum Graecarum (CIG) de Boekh, Franz, Curtius e Kirchhoff (1828-1877) e Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL). O CIG contém numero- sos epitáfios, decretos de assembleias, tratados internacionais, hinos em honra aos deuses, às vezes acompanhados da respectiva partitura musical, ex-votos, leis, gra- fites injuriosos ou obscenos, listas de soldados mortos em batalha, cartas oficiais de reis ou imperadores, tarifas, regulamento de cultos, contratos e vendas, atos de libertação de escravos, documentos hipotecários, desenhos arquitetônicos, tarifas de mercadorias. Trata-se de um conjunto de documentos preciosos e indispensá- veis para escrever a história do mundo grego antigo (ROUGEMONT, 1996/1997, p. 265-266). O CIL reúne a produção escrita em material durável, sobretudo pedra e metal, e inscrições em objetos de uso na vida privada, sob a rubrica Instrumentum do- mesticum, como telhas, canos, tijolos, colares de escravos e joias. Também infor- mam sobre a titulatura imperial, cargos municipais, propagandas dos espetáculos, candidaturas, manutenção de estradas, inscrições funerárias, profissões (artesãos em geral, prostitutas). São, como já destacamos anteriormente, um importante ins- trumento para o conhecimento das camadas populares e suas relações com outros grupos dirigentes de Roma e das províncias (CORASSIN, 1998/1999, p. 205 e 212). testeMUnHos e doCUMentos: o egito antigo Quando se consideram os estudos em torno do Egito Antigo, o diálogo entre a história, a arqueologia e a epigrafia se mostram necessariamente fecundos. Os testemunhos egípcios podem ser encontrados em diversos suportes. Eram utilizadas superfícies de paredes, colunas e portas dos templos, textos religiosos, 17 autobiografias, inscrições em vasos, sandálias, cadeiras, estatuetas e sarcófagos. To- davia, o principal suporte dos documentos egípcios era o papiro, planta abundante na região do Delta do Nilo (ARAÚJO, 2000, p. 27). Antes das descobertas de Jean François Champollion, o acesso direto aos docu- mentos do Egito Antigo se resumia a alguns testemunhos de autores gregos, entre eles Heródoto (485 ?-420 a.C.), Estrabão, Plutarco(45-125 ? d.C.), Diodoro Sículo (século I a.C.). Jean François Champollion (1790-1832) apud vercoutter, ver referências. Nos séculos XVII e XVIII viajantes franceses iniciaram várias expedições ao Egito, atraídos pela arquitetura, pelas riquezas, pelos tesouros dos túmulos, em grande parte saqueados por aventureiros e ladrões. Dentre os viajantes modernos destacam-se o parisiense Jean de Thévenot (1633-1667), Benôit de Maillet (1656- 1738), cônsul no tempo de Luis XIV, Claude Sicard (1677-1726), jesuíta em missão no Cairo,e Dominique Vivant Denon (1747-1825), barão e primeiro fidalgo na Câmara de Luis XV ( VERCOUTTER, 2002). No século XIX, as informações provenientes dos escritos gregos são somadas ao trabalho dos estudiosos da expedição de Napoleão Bonaparte. Amplia-se o inventário de documentos: são fragmentos de construções, estátuas, papiros, ins- crições. Todavia, permanece a dificuldade de compreensão da escrita egípcia. Os hieróglifos foram decifrados por Champollion, após a descoberta da Pedra de Ro- seta, em 1799. História antiga: fontes e métodos 18 História antiga i: Fontes e Métodos pedra de roseta monólito de basalto negro, contendo inscrições em hieróglifo, em demótico e em grego. trata-se de um mesmo texto que reproduz um decreto do rei ptolomeu v. decifrado por Champollion em 1822 Fonte: vercoutter, 2002. A leitura dos hieróglifos esclareceu vários problemas que envolviam a tradução da língua egípcia. Segundo Emanuel Araújo (2000, p. 23-24), também tornou possível periodizar as suas transformações em cinco períodos: 1. EGÍPCIO ANTIGO: situado no Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário. Contém textos administrativos, religiosos e autobiográficos; 2. EGÍPCIO MÉDIO: situado entre o final do Primeiro Período Intermediário, Rei- no Médio, Segundo Período Intermediário e início do Reino Novo. Encontram- se narrativas, ensinamentos, hinos, textos funerários (textos dos sarcófagos); 3. EGÍPCIO TARDIO ou NEO-EGÍPCIO: a partir da 18ª. Dinastia, início do Reino Novo (principalmente época raméssida e Terceiro Período Intermediário. Rico em textos administrativos, escritos de poesia lírica amorosa, textos literários e funerários.) (Livro dos Mortos); 4. DEMÓTICO: situado a partir do início do Período Tardio até o final do Período Romano. Contém matérias jurídica, administrativa e comercial, composições literárias e textos religiosos a partir do período ptolomaico; 5. COPTA: situado desde o século IV d.C. e suplantado pelo árabe a partir da se- gunda metade do século VII. Está associado à difusão do Cristianismo. 19 auguste Mariette (1821-1881) Fonte: www.paralibros.com/passim/p20-bio/bd2000eg.htm A compreensão da escrita, aliada às escavações em meados do século XIX, promo- veu um estudo sistematizado dos documentos e colocou fim à pilhagem dos objetos encontrados. Hoje são tratados adequadamente por especialistas, como filólogos, ar- queólogos e epigrafistas. No campo da arqueologia destacam-se as campanhas de Mariette. Nas palavras de Jean Vercoutter, “o que Champollion fez para a leitura dos hieróglifos, Mariette o fará para a arqueologia” (2002, p. 101). A partir do século XX as escavações são supervisio- nadas pelo Instituto Britânico. disCUssões MetodológiCas Como se vê, o que une os estudiosos do mundo antigo é o quadro conceitual. Todo documento é tributário do mundo onde foi concebido e conhecido. A relação entre os testemunhos e o contexto não é uma relação de causalidade. Um documento expressa os conflitos sociais e ideológicos de seu tempo. O autor é o mediador de duas forças, a saber: a do público e a da obra. Evidentemente, seu papel no interior da sociedade deve ser relevante para essa análise, posto que ele, em última instância, é o criador da obra. O pesquisador deve se questionar sobre a razão ou o motivo que levou à confecção do documento Essa pergunta não é feita com suficiente freqüência, pois presume-se incons- cientemente que os motivos e propósitos são evidentes por si mesmos, ou seja, são mais ou menos os mesmos que os nossos. Pelo contrário, eu argumentaria que, na Antiguidade, o objetivo de todos os documentos era comunicar algum tipo de informação(ou desinformação), ou registrar alguma coisa, mas não for- necer dados para a definição de políticas ou para uma análise, passada, presen- te ou futura (FINLEY, 1989, p. 44). Antes de extrairmos um significado substancial dos documentos é preciso especifi- car as características que envolvem sua constituição. Compreender a natureza de um História antiga: fontes e métodos 20 História antiga i: Fontes e Métodos testemunho é o primeiro passo, na ótica das pesquisas históricas; “os documentos, por si sós, não fazem perguntas, embora por vezes possam fornecer respostas” (FINLEY, 1989, p. 62). História antiga e História a História, num sentido conceitual e em oposição ao passado heroico presente nos poemas homéricos, nasce com Heródoto e Tucídides (460/455 – 400 a.C.). Co- mecemos pelo primeiro, cognominado de pater historiae pelo orador romano Marco Túlio Cícero (106- 43 a.C.). Logo nas primeiras linhas de Histórias (1985), diz-nos o propósito de seu empreendimento: Heródoto de Turioi expõe aqui suas investigações para que não se apague da memória, com o tempo, o que os homens fizeram e para que os grandes e mara- vilhosos feitos executados tanto pelos bárbaros como pelos gregos não cessem de ser renomados, em particular o que foi a causa de que gregos e bárbaros entrassem em guerra uns contra os outros (HERÓDOTO, 1985, p. 1). A asserção de Heródoto nos diz muito. A história é sinônimo de investigação e de um levantamento de informações na busca de reter a memória, preservando os feitos dos homens em sua causalidade. Há, portanto, uma articulação (uma causa) entre os fenômenos. Além disso, a constituição de uma memória representa o veículo que pos- sibilita ao acontecimento tornar-se conhecido no mundo dos homens. Heródoto e tucídides image from Classical art & architecture - copyright law Fonte: www.fflch.usp.br/.../herodototucidides.html O entendimento de Heródoto sobre a tarefa da história enraizava-se na concepção de memória e na experiência grega de natureza, que compreendia a existência de deuses imortais e de homens mortais. Ao serem os homens não presenteados com a imortalidade, o que dizer de seus feitos no mundo? A permanência de suas ações, o “ser-para-sempre” nas palavras de Hannah Arendt (1972, p. 70), somente pode ser produzido pela história. A história vem a ser a interrupção produzida pelos homens na 21 natureza. Ela secciona o curso cíclico da vida – nascer, crescer, morrer –-, por meio da intervenção feita pelos homens no mundo. A atmosfera na qual Heródoto começou a trabalhar estava impregnada de mitos. Muito antes de alguém sequer sonhar com a história, o mito deu uma resposta. Era uma de suas funções tornar o passado compreensível, selecionando e focalizando al- gumas de suas partes, pois ele se apresentava como uma massa incompreensível de dados incontáveis. Em certo sentido, o que Heródoto faz é estabelecer uma espécie de sequência aos fatos passados, aproximadamente a partir da primeira metade do século VII a.C.; “[...] tudo o que aconteceu antes continuou como estava quando ele começou seu traba- lho, contos épicos e míticos supostamente verdadeiros, pelo menos em essência, mas incorrigivelmente atemporais” (FINLEY, 1989, p. 11). Mesmo considerando as dificuldades de método enfrentadas por Heródoto, nele encontramos, segundo Hartog (2001, p. 17), “a audácia de perguntar, de discutir, e de confrontar pontos de vista”. Todavia, esses procedimentos devem ser situados nos séculos VI e V a.C., quando a sociedade grega ateniense buscava explicar o mundo e a finalidade de sua existência, e de sua preservação. Heródoto propõe a investigação dos fatos narrados. Tal investigação sistemática é designada por Hartog (2001, p. 36) como o desenvolvimento do hístor: “o historiador seria aquele que não economiza nem seu tempo, nem sua pena, nem seu dinheiro para percorrer espaços e ver com seus próprios olhos”. Trata-se, portanto, de uma preocupação com os testemunhos, mas recorrente na narrativa de Tucídides a respeito da guerra entre atenienses e espartanos, entre os anos 431-404 a.C. Na introdução da História da Guerra do Peloponeso (1986), Tucídides justifica seu esforço para interpretar osprimórdios da história da Grécia. Os testemunhos em que poderia se fundamentar eram apenas Homero, a tradição oral e as evidências con- temporâneas. Não obstante, ele sugeriu que havia uma continuidade na história dos gregos, desde os tempos mais antigos (míticos) até o século IV a.C.. É com hesitação que explica o início: Segundo as minhas pesquisas, foram assim os tempos passados, embora seja difícil dar crédito a todos os testemunhos nesta matéria. Os homens, na verda- de, aceitam uns dos outros relatos de segunda mão dos eventos passados, sem colocá-los à prova, ainda que tais eventos se relacionem com sua própria terra. (...) A tal ponto chega a aversão de certos homens pela pesquisa meticulosa da verdade, e tão grande é a predisposição para valer-se apenas do que está ao alcance da mão. À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os fatos na Antigüidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando seus temas, e de outro considerando o que os logógrafos compuseram com suas obras, mais História antiga: fontes e métodos 22 História antiga i: Fontes e Métodos com a intenção de agradar aos ouvidos do que dizer a verdade, uma vez que as estórias não podem ser verificadas, e eles, em sua maioria, com o passar do tempo, enveredaram pelo caminho da fábula, perdendo assim credibilidade. Deve olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, com base em informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas (TUCIDIDES, 1982, p. 20-22). Para Tucídides, o passado, por ser produto do tempo, é mítico, fabuloso (mythó- des), por isso torna-se incomprovado. A história não existe se a temporalidade que ela distingue é o passado, pois o saber sobre o passado é sempre subjetivo. A narrativa histórica se configura a partir de ações praticadas no presente, ou seja, o saber históri- co pressupõe o domínio dos acontecimentos do presente. Na narrativa histórica tucidiana a crença no mito dá lugar à razão (logos). A história se apresenta como um novo discurso, marcado pela objetividade e pela existência de um método que deve ordenar a reconstituição dos acontecimentos. O comportamento do historiador diante do mito torna-se ambíguo. Ele consiste numa atitude dúbia e dúplice de aceitar e de rejeitar o mito. Tucídides o rejeita, na medida em que o passado, para ele, é incompreensível e fabuloso. A elaboração desse novo discurso denominado de história apresenta quatro traços fundamentais. O primeiro se revela na mudança de sujeito no princípio e como prin- cípio do discurso: “Tucídides de Atenas descreveu a guerra começando desde que ela se instalou e prevendo que ela seria grande e a mais digna de estudo” (TUCÍDIDES, 1982, p. 27-28). Assim como Heródoto, Tucídides se coloca como sujeito de sua narrativa. Essa mu- dança inaugura um novo tipo de saber, cuja verdade é constituída de procedimentos que são atos do sujeito. Como segundo traço destaca-se a inversão da perspectiva temporal. Depois de res- saltar a grandeza da Guerra do Peloponeso, argumenta que em tempos passados não havia recursos econômicos que possibilitassem uma guerra de tal amplitude; “[...] ainda que os homens julguem ser maior a presente guerra em que se encontram, essa guerra mostrar-se-á, aos que examinam as próprias ações, maior que as antigas” (TUCIDIDES, 1982, p. 27). O terceiro traço na constituição do discurso histórico diz respeito à veracidade do discurso. Ele deve ser buscado no exame das palavras e das ações praticadas por homens mortais. Tucídides, quando examina as ações praticadas na guerra, descreve as que ele próprio presenciou. Quanto àquelas que não testemunhou, submete os re- latos a um exame minucioso, o mais perto possível do sentido completo das ilatências da fala; 23 Quanto aos discursos pronunciados nas proximidades da guerra, ou durante sua duração, era difícil de se conservar neles os termos precisos, sejam os que tivesse ouvido pessoalmente, sejam aqueles que me foram trazidos depois [...]. Para aquilo que era acontecimento da guerra, eu não me municiei nem de in- formações vindas primeiro, nem mesmo da minha opinião pessoal; acreditei que não devesse escrever nada sem ter submetido à investigação mais exata de cada um dos fatos [...]. Era difícil descobrir a verdade, pois aqueles que tinham assistido aos acontecimentos não se davam conta de suas aproximações, e seus dizeres seguem suas inclinações pessoais e a memória de cada um (TUCIDI- DES, 1982, p. 28). O quarto traço refere-se à causalidade. Se por um lado a guerra é uma ação pratica- da por homens mortais, o seu fundamento subjacente são os deuses, que determinam sua magnitude: sua longa duração, os atos violentos praticados por bárbaros e por gregos, as grandes secas portadoras de fome e a ruinosa e destrutiva peste. Tudo isso mostra o desfavor dos deuses para com os homens; “das ações antigas a maior foi a dos medos [...]. A duração desta guerra prolongou-se muito e trouxe, para a Grécia, sofrimentos como não houve outros em tempo igual” (TUCÍDIDES, 1982, p. 28). Para o historiador da guerra do Peloponeso, a história se faz com testemunhos que presenciaram os fatos, para que possam ser investigados. Mesmo diante da reconhe- cida presença da tradição oral entre os gregos, “no mundo antigo permaneceu, pre- dominantemente, o mundo da palavra falada e não da palavra escrita” (FINLEY, 1989. p. 43). A veracidade na narrativa produzida pelo historiador é possível, na acepção de Tucídides, desde que se investiguem os fatos contemporâneos. O estudo do passado não é possível pela ausência de documentos e pela tradição oral, característica do mundo antigo clássico. Existe um critério, um rigor que estabelece a confiabilidade dos testemunhos. No caso de Tucídides, ele é participante e, ao mesmo tempo, uma testemunha ocular dos fatos. Como enfatiza Hartog (2001, p. 99), se Heró- doto “queria preservar a memória que tinha se realizado ou dito”, Tucídides “se empenha em reduzir o distanciamento entre o que efetivamente aconteceu e o que se diz depois.” Considerações Finais Diferentemente de Heródoto e de Tucídides, o historiador de hoje está munido de um amplo quadro conceitual, capaz de dar confiabilidade aos dados disponíveis, com a utilização de técnicas adequadas de avaliação e de interpretação dos documentos. Convivemos com tipos diferenciados de testemunhos do passado, todos qualitativa- mente importantes. Nas palavras de Moses Finley, o que os une [os testemunhos escritos e materiais] é o quadro conceitual a partir do qual o historiador trabalha, um quadro que, como vimos antes, faltava ao historiador antigo para a investigação que agora nos preocupa, e que os historiadores de hoje possuem sobejamente (1989, p. 35). História antiga: fontes e métodos 24 História antiga i: Fontes e Métodos A união sugerida por Finley está na convivência de testemunhos escritos, literários ou não, testemunhos materiais, inscrições, pinturas, mosaicos, proporcionando um quadro de investigação peculiar, pela quantidade e diversidade das fontes. As preocupações de Heródoto e de Tucídides demonstram que a escrita da história, bem como a natureza e o uso dos testemunhos foram debatidos pelos historiadores do mundo clássico antigo, e continuam sendo alvo do estudioso da Antiguidade, nos dias atuais. doCUMentos de reFerênCia Bernadette Menu, l´obélisque de la Concorde O soerguimento, tão delicado e tão perigoso, do monumento na Place de La Concorde foi um grande espetáculo ao qual assistiram 200 mil pessoas, o rei Luis Felipe e sua família, ocupando o balcão do hotel da Marinha. [...] A opera- ção foi iniciada às 11h30 e terminou em menos de três horas. As despesas de transporte e de soerguimento alcançaram asoma de 1.350.000 francos. [...] A guarita para a sentinela que foi colocada ao pé do monumento, e que ficou lá por muitos anos, não deixou de alegrar a aridez do boulevard. Esta frase: [...] Um homem capaz de roubar um obelisco foi uma das brincadeiras correntes na época. O monólito tebano, tão estranhamente instalado no urbanismo mo- derno, hoje não desperta mais a curiosidade parisiense, mas é sempre contem- plado curiosamente pelos provincianos e pelos estrangeiros que visitam Paris e admiram os hieróglifos, sem ter a ambição de decifrá-los (apud VERCOUTTER, 2002, p. 137). Comentário: trata-se do Obelisco de Luxor, escolhido por Champollion para ser transferido para Paris. Seu erguimento na Place de La Concorde ocorreu em outubro de 1836. Auguste Mariette, la serapeum de Memphis A calma era extraordinária. Diante de mim se estendia a vila. Um nevoeiro es- pesso e pesado parecia ter caído sobre ela, envolvendo todas as casas até acima de seus tetos. Desse mar profundo emergiam 300 minaretes, como mastros de alguma frota submersa. Bem longe, ao sul, percebiam-se bosques de tamareiras que mergu- lham suas raízes nas paredes desmoronadas de Mênfis. A oeste, afogadas na po- eira dourada e no fogo do sol poente, levantavam-se as pirâmides. O espetáculo era grandioso, e me absorvia com uma violência quase dolorosa. Desculpem- me esses detalhes, talvez muito pessoais; se insisto, é porque o momento é de- cisivo. Tinha diante dos olhos Gizé, Abousir, Sakkara, Dahchour, Mut-Rahyneh. Este sonho de uma vida inteira se realizando. Havia ali, quase ao alcance da minha mão, todo um mundo de túmulos, de colunas, de inscrições, de estátuas. Que dizer além disso? No dia seguinte, aluguei duas ou três mulas para as bagagens, um ou dois as- nos para mim mesmo; comprei uma tenda, algumas caixas de provisões, todos 25 os impedimenta de uma viagem ao deserto, e, em 20 de outubro de 1850, durante o dia, acampei ao pé da grande pirâmide (apud VERCOUTTER, 2002, p. 138-139). Estrabão, geografia, Xviii-31 Mênfis possui diversos templos, dos quais um é consagrado a Ápis, isto é, a Osíris. Lá, em um enclave, é alimentado o touro Ápis, considerado uma divin- dade. O touro Ápis tem de branco apenas a testa e algumas outras pequenas manchas, no resto é todo negro; aí estão os sinais que, com a morte do titular, guiam sempre a escolha do sucessor. O recinto onde fica é precedido de um pátio, contendo outro recinto, que serve para alojar sua mãe. A uma deter- minada hora do dia, coloca-se Ápis nesse pátio, sobretudo para mostrá-lo aos estrangeiros, pois, mesmo que se possa avistá-lo por uma janela dentro de seu recinto, os estrangeiros acham melhor vê-lo assim em liberdade; mas depois de tê-lo deixado divertir-se e saltar algum tempo no pátio, fazem-no voltar para sua casa.[...] Na frente do templo de Ápis, na avenida que leva até ele, existe um monólito colossal (apud VERCOUTTER, 2002, p. 138). Comentário: A descrição de Mênfis, contida na obra de Estrabão, foi encontrada por Mariette. O pesquisador, que se inspirou nessa descrição para iniciar escavações na região, em novembro de 1851 chegou ao Serapeum. Heródoto, Histórias, 2, 14 Em todo o mundo, ninguém obtém os frutos da terra com tão pouco trabalho. Não se cansam a sulcar a terra com o arado ou a enxada, nem têm nenhum dos trabalhos que todos os homens têm para garantir as colheitas. O rio sobe, irriga os campos e, depois de os ter irrigado, torna a baixar. Então, cada um semeia o seu campo e nele introduz os porcos para que as sementes penetrem na ter- ra; depois, só tem de aguardar o período da colheita. Os porcos também lhes servem para debulhar o trigo, que é depois transportado para o celeiro (apud CAMINOS, 1994, p. 18). Comentário: em uma de suas viagens ao Egito Heródoto descreve, maravilhado, os efeitos das cheias do Rio Nilo, e apresenta uma descrição idealizada da situação agrícola do Egito. Tito Livio, ab Urbe Condita, i: 1, 3-4, 6-7 Se me terá valido escrever minuciosamente os feitos do povo romano desde os primórdios da cidade, não sei bem, nem, se soubesse, ousaria dizê-lo. 3.Seja como for, agradará pelo menos ter velado eu próprio, na medida dos meios humanos, pela memória dos feitos realizados pelo povo que é senhor da terra; e se, numa turba tão grande de escritores minha fama ficasse obscurecida, me consolaria a nobreza e a grandeza dos que fazem sombra a meu nome. 4. Além disso, trata-se de um assunto para uma imensa obra, já que se rememoram mais História antiga: fontes e métodos 26 História antiga i: Fontes e Métodos de setecentos anos, e a cidade, progredindo a partir de um início modesto, cresceu a ponto de agora se inquietar com sua magnitude – e não duvido mes- mo que, para a maioria dos leitores, as primeiras origens e o que está próximo delas ofereçam menos prazer, pois serão levados a esses tempos recentes em que as forças de um povo há muito tempo superior se esgotam por si mesmas. 6. Quanto às tradições que nos chegaram, que devem sua magnificência mais às lendas dos poetas que aos monumentos remanescentes do passado, sem altera- ção, não tenho a intenção de confirmá-las ou refutá-las.7. Faz-se essa concessão à Antiguidade a fim de que, misturando-se o divino ao humano, se tornem mais veneráveis os primórdios das cidades (TITE-LIVE, 1954). Comentário: Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) era originário de Pádua. Sua história de Roma se estendia desde as origens até os anos finais da República, século I a.C. Aristóteles, poética, 1451 a 36; 1451b, ii; 1459 a 21-24 É claro que, depois do que foi dito, que a característica do poeta não é relatar o passado real, mas antes o passado possível, levando em conta as possibili- dades dos acontecimentos segundo as verossimilhanças e a necessidade dos encadeamentos. O historiador e o poeta, com efeito, não diferem pelo fato de um narrar em verso e o outro em prosa – poder-se-ia ter transcrito em versos a obra de Heródoto e ela não seria menos história em verso do que em prosa. A verdadeira distinção é a seguinte: um narra o que aconteceu, o outro aquilo que poderia ter acontecido. Além disso, a poesia é mais filosófica e de um gênero mais nobre do que a his- tória, pois a poesia se eleva até o geral, enquanto que a história não é senão a ciência do particular. O geral, aquilo que este ou aquele tipo de homem faria ou diria segundo toda verossimilhança ou necessidade: é a isso que visa a poesia, embora dando nomes individuais aos personagens. O particular é o que fez Alcibíades, ou aquilo que lhe aconteceu. Inteiramente diversos são os relatos históricos habituais, nos quais, necessaria- mente, não se trata de mostrar uma unidade de ação, mas somente uma unida- de de tempo, juntando todos os acontecimentos, os quais, num determinado tempo, interessaram um ou mais homens e que não mantêm entre si senão uma relação causal (apud PINSK, 1991, 144). ARAUJO, Emanuel. Escrito para a eternidade: a literatura no Egito faraônico. Brasília: Editora da UNB, 2000. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. CAMINOS, Ricardo A. O camponês. In: DONADONI, Sergio (Dir.) O homem egípcio. Lisboa: Presença, 1994. p. 13-36. Referências 27 História antiga: fontes e métodos CORASSIN, Maria Luiza. O uso da escrita na epigrafia latina. 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Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 1) Diante do encantamento de Auguste Mariette, pesquise sobre a arqueologia egípcia de hoje, tanto no domínio das escavações quanto no trabalho de restauração das inscrições e dos monumentos. 2) A partir da narrativa de Bernadette Menu, disserte sobre o uso francês dos monumentos egípcios. 3) Considere as descrições do geógrafo Estrabão e do historiador Heródoto, e procure expli- car o olhar grego diante dos monumentos e do modo de vida do homem egípcio. 4) Com base nos fragmentos dos textos de Tito Lívio e de Aristóteles, reflita a respeito da escrita da história e compare com os procedimentos apresentados por Moses Finley em História Antiga. Testemunhos e modelos, ao destacar as singularidades para o estudo da História Antiga. GLOSSáRIO Óstraco - espécie de ficha (óstrakon) de pedra ou cerâmica onde se escrevia o nome do cidadão que poderia ser condenado ao ostracismo. Tal prática, característica da democracia ateniense, consistia em banir da cidade, durante dez anos, qualquer pessoa que represen- tasse uma ameaça aos princípios democráticos. Fontes e referenciais para o aprofundamento temático 29 História antiga: fontes e métodos Anotações 30 História antiga i: Fontes e Métodos Anotações 31 Ivan Esperança Siqueira Rocha O Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, idéia, personalidade e experiência de contraste. Edward Said introdUçÃo Sintetizar em um capítulo de livro a extensa história do Oriente Próximo Antigo não é uma tarefa simples. Como não é possível descer a detalhes sobre as características materiais, sociais e políticas das civilizações que ali se desenvolveram, o que aqui apre- sentamos são considerações gerais sobre o tema, indicando instrumentos que possam complementar e aprofundar os conhecimentos sobre elas. Os povos europeus e, consequentemente, os povos por eles colonizados possuem profundos vínculos com a maneira de viver dos gregos e romanos, e estes, por sua vez, foram precedidos pela longa experiência humana oriental caracterizada pelo desen- volvimento da escrita, da agricultura, do comércio, do uso do metal e pela criação dos primeiros centros urbanos, marcados por uma arquitetura monumental e por sistemas políticos sofisticados, que deram origem aos primeiros impérios de que temos notícia (DUNSTAN, 1998, p. xv). Edward Said vai mais longe: para ele, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, idéia, personalidade e experi- ência de contraste (SAID, 1990, p. 13-14). Essa ideia de contraste tem sua origem já nos autores clássicos, particularmente em Heródoto, que provocou uma polarização entre Ocidente e Oriente. Ao denominar os orientais de “bárbaros” (hoi barbaroi) ele iria alimentar inúmeros estereótipos, como o do despotismo oriental e o do imobilis- mo tecnológico e cultural oriental, sempre em oposição às características do mundo ocidental. A literatura de viagem moderna também contribui para esses estereótipos. Só recentemente abriu-se espaço para uma visão antropológica da diversidade, da historicidade e do relativismo cultural característicos da cultura moderna (LIVERANI, 2005, p. 7-8). História do oriente próximo antigo: uma introdução 2 32 História antiga i: Fontes e Métodos No entanto, por que a história oriental é tão pouco conhecida no Brasil? Uma primeira dificuldade a ser apontada é a ausência de livros traduzidos, o que, durante muito tempo, impediu o acesso às pesquisas sobre ela. Com raras exceções, não temos também museus que conservem documentos e artefatos da cultura oriental antiga como acontece na Europa e nos Estados Unidos, onde as crianças podem des- pertar desde cedo seu interesse por essa cultura. Uma dessas exceções é a Coleção Egípcia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, com, aproximadamente 700 peças, originada de aquisições de D. Pedro I e de doações recebidas por D. Pedro II. Des- tacam-se nessa coleção as múmias do sacerdote Hori (séc. XI a.C.), de Harsiese (séc. VII a.C.) e o esquife da dama Sha-Amun-En-Su (séc. VIII a.C.). Este último foi um presente recebido do Quediva do Egito, Ismail, pelo imperador D. Pedro II, quando de sua viagem ao Egito em 1876. Outras duas exceções, de menor proporção, são o acervo do MASP e o da Fundação Eva Klabin Rapaport, do Rio Janeiro. detalhe do rosto do caixão de sha-amun-en-su, cerca de 750 a.C. Fonte: Museu nacional do rio de Janeiro. Atualmente esse cenário está se modificando, pois as livrarias e bibliotecas co- meçam a se abastecer com um volume crescente de obras tanto traduzidas quanto produzidas por pesquisadores brasileiros, somando-se a isso o aparecimento de inú- meras revistas, sites, bases de dados e de imagens, peças teatrais, filmes e até novelas sobre o tema. Importantes museus começam a adotar uma política de divulgação e socialização de seus acervos, como ocorreu recentemente com o Museu do Louvre, que expôs valiosas peças de sua coleção egípcia no Brasil. Uma primeira exposição, denominada A arte no Egito no tempo dos faraós, foi feita no Museu de Arte Brasi- leira da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), de 02 de maio a 22 de julho de 2001, reunindo 56 peças do período do Novo Império (entre 1570 e 1185 a.C.). De 27 de setembro a 16 de dezembro de 2001, a exposição deslocou-se para o Museu 33 de Arte de São Paulo (MASP), com o tema Egito Faraônico, terra dos deuses, reu- nindo ali peças do acervo do Louvre, da coleção do MASP e da Fundação Eva Klabin Rapaport, do Rio de Janeiro, num total de 120 peças. De 15 de janeiro a 24 de março de 2002 foi a vez de a Casa França Brasil recepcionar a exposição sobre o Egito. a arca para os servidores funerários da dama pypya, que viveu entre 1295 e 1069 a.C. Museu do louvre. incluída na exposição da Faap. Esse crescente interesse pelo Egito, no Brasil, pode ser comprovado também pela pesquisa sobre egiptomania coordenada por Margaret Marchiori Bakos e que resultou, com a colaboração de outros autores, no livro Egiptomania: o Egito Antigo no Brasil (2004). Nele se analisa a influência da cultura egípcia em diferentes espa- ços da cultura brasileira, tais com logotipos de empresas, marcos comemorativos de cidades, arquitetura de edifícios públicos ou privados, dentre outros. Concorreram também para a modificação desse cenário os inúmeros conflitos ocorridos no Oriente desde meados do século passado, que despertaram, natural- mente, a necessidade de se conhecer melhor a história oriental contemporânea e suas bases antigas, buscando-se evitar visões estereotipadas sobre ela. Hoje, esse interesseé ampliado também pelas crescentes relações econômicas com a região. No entanto, há ainda carência de um conhecimento mais denso sobre o Oriente Próximo Antigo, o qual que se modifica permanentemente; nas últimas décadas esse conhecimento vem sendo profundamente enriquecido e modificado, tanto pelo surgimento de novos materiais arqueológicos e textuais quanto pela utilização de História do oriente próximo antigo: uma introdução 34 História antiga i: Fontes e Métodos métodos e técnicas mais avançados de pesquisa (LIVERANI, 2005, p. vii). O grande impulso dado ao conhecimento da História Oriental se deveu, inicial- mente, ao interesse que os estudiosos da Bíblia tiveram, em buscar informações que pudessem comprovar ou esclarecer fatos descritos no Antigo e no Novo Testamen- tos, dando-se início a inúmeras escavações, tanto na Palestina quanto em outras regiões do Oriente Próximo (KELLER, 1958). Na verdade, o Oriente Próximo Antigo, até meados do século XIX, tinha como principal fonte documental a própria Bíblia Hebraica (PRITCHARD, 1969, p. xix). Foi a partir desse momento que a descoberta e decifração de um número cada vez mais expressivo de documentos antico-orientais permitiu extrapolar os limites das informações bíblicas sobre a região. É importante frisar que, não obstante o fato de o Oriente Próximo Antigo ser comumente considerado o berço da civilização e da cultura europeia, não se devem excluir outras experiências culturais fora desse espaço geográfico, como é o caso das civilizações do Extremo Oriente (p.ex. Índia e China) e das pré-colombianas, evitando-se, assim, análises etnocêntricas (LIVERANI, 2005, p. 7-8; BRAVO, 1997, p. 22-23).1 A região do Oriente Próximo Antigo abriga o território de um grande número de estados modernos: Turquia, Iraque, Irã, Síria, Líbano, Israel, Jordânia, Arábia Saudi- ta. De forma aproximativa, pode-se dizer que a Palestina incluía a área atualmente ocupada por Israel e Jordânia; a Arábia, a área da Arábia Saudita e outros Estados da Península Arábica; a Fenícia, a área do Líbano; a Anatólia ou Ásia Menor, a área da Turquia; a Mesopotâmia a área do Iraque; a Pérsia, a área do Irã. O Egito, apesar de se situar no continente africano, é incluído no conjunto das civilizações orientais pela relação próxima que manteve com a região. Assim, pode-se dizer que a deno- minação Oriente Próximo Antigo possui uma identidade geográfica asiática e outra africana. Com relação ao território do Antigo Egito, identifica-se, praticamente, com o do Egito atual. 1 No prefácio da obra de Paul Garelli e V. Nikiprowetzky, Oriente Próximo Asiático: impérios mesopotâmicos, Israel. Trad,. Emanuel O. Araújo. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1982, p. xx) critica-se o fato de se ter dado pouca importância às regiões periféricas do Oriente Próximo, como Elam, Urartu e Fenícia. 35 principais sítios históricos e pré-históricos do oriente próximo As primeiras civilizações surgiram, por volta de 3500 a.C., em duas regiões banha- das por rios caudalosos: a Mesopotâmia, com os rios Tigre e Eufrates, e o Egito, com o Nilo. Na tradição historiográfica, a Mesopotâmia e o Egito constituem a chave do pro- cesso histórico do Oriente Antigo. Há um consenso a respeito da “origem da civiliza- ção” nessas duas áreas, em datas similares (em fins do IV milênio ou início do III), dado que ambas parecem se encaixar num mesmo padrão ecológico (BRAVO, 1997, p. 7). Nessas duas regiões, as planícies fluviais contrastam com áreas desertas, estepes e montanhas. No Egito, uma rápida viagem de balão, a partir de Tebas, permite visuali- zar com facilidade o cenário da maior parte do país: o rio Nilo e suas margens muito estreitas cobertas por plantações formam uma faixa ladeada de desertos e montanhas. Uma das diferenças em relação ao Egito antigo é que a irrigação natural das cheias, que ocorria entre setembro e outubro, foi modificada pela construção da barragem de As- suã, concluída em 1970. É interessante esclarecer que o represamento do Nilo provo- cado por essa barragem exigiu várias obras de salvamento de importantes monumen- tos, como os de Abu Simbel e de Philae, que foram realocados em espaços mais altos. História do oriente próximo antigo: uma introdução 36 História antiga i: Fontes e Métodos abu simbel. Foto ivan e. Fonte: (roCHa, 2006). O povoamento dessas regiões foi marcado pela presença de uma terra produtiva, pela disponibilidade de água e pela ação humana voltada para tornar a terra mais pro- dutiva, com uma utilização racional da água (LIVERANI, 2005, p. 39). O processo de urbanização e o controle sobre as águas da chuva e as fluviais foram associados à apari- ção do Estado, cujos depositários conseguiram a força necessária para impor-se sobre os outros membros rivais da comunidade primitiva. Há sinais de culturas protourbanas em períodos anteriores: Jericó (aprox. 7700 a.C.), na Palestina, e Çatal Hüyük (aprox. 6500 a.C.) na Anatólia; no entanto, não houve ali um avanço na direção de uma “revo- lução urbana” (BRAVO, 1997, p. 32-33). Algumas características passam a distinguir esses dois eixos civilizatórios com rela- ção às culturas pré-históricas: eficiência na produção de excedente de produtos agrí- colas baseada em técnicas sofisticadas de controle das águas fluviais; surgimento de Es- tados com controle regional de territórios; adoção de modelo teocrático de governo; economia baseada em acumulação centralizada de taxas e tributos; divisão em grupos sociais marcada por grandes diferenças de riqueza, com a presença de escravos e de uma reduzida elite dominante; desenvolvimento de inovações técnicas, particularmen- te com respeito ao transporte e à produção de armas; estabelecimento de comércio de longa distância; utilização da escrita estimulada pelo desenvolvimento do comércio e pela presença de uma arquitetura monumental na construção de templos, palácios e túmulos (DUNSTAN, 1998, p. 41-42). Os sumérios são considerados os protagonistas da civilização urbana nas cidades- estado mesopotâmicas. No entanto, sua origem e sua língua constituem ainda um mistério; muitas hipóteses têm sido levantadas a esse respeito, mas ainda se esperam maiores esclarecimentos, que possam advir de novas descobertas arqueológicas. Os sumérios foram suplantados por hordas de invasores de origem semita, conhecidos como acádios. Além do acádio o tronco lingüístico semita inclui outras línguas, como hebraico, árabe, fenício e eblaítico, em uso em outras regiões do Oriente Próximo Antigo (BRAVO, 1997, p. 37-39). 37 Um outro importante grupo de povos que deixou sua marca no Oriente Próximo Antigo, a partir de 2000 a.C., é conhecido como indo-europeu. Essa marca é princi- palmente lingüística: o indo-europeu influenciou a língua hitita, as línguas helênicas, indo-iranianas, báltico-eslavas, célticas, germânicas e itálicas, como o latim, e as línguas neolatinas, como o português. Um exemplo dessa influência fica evidenciado na pala- vra fogo: em hitita, agniš; em eslavo, *ogni; em sânscrito, agni; em lituano, ugnis; em latim, ignis; e no adjetivo português ígneo (relativo a fogo). O surgimento das fontes escritas é considerado um dos elementos que marcam os limites entre as fases pré-históricas e a fase histórica do Oriente Próximo Antigo. O início da escrita, no entanto, não deve ser considerado um fato isolado, mas como parte dos processos de especialização do trabalho e de diferenciação social, de consti- tuição de unidades administrativas e políticas complexas e de concentrações urbanas (LIVERANI, 2005, p. 13-14). Um risco em que se incorre na discussão sobre o Oriente Próximo Antigo é super- valorizar áreas mais bem documentadas em detrimento de outras menos documenta- das. Trata-se de um mundo em que 90% da população é constituída de analfabetos, localizados essencialmente em aldeias com economia agro-pastoril,e em que apenas uma minoria vivia ligada às cidades e palácios (LIVERANI, 2005, p. 17). Deve-se ressal- tar, ainda, que a maior parte da documentação produzida no Oriente Próximo Antigo surge no âmbito dos palácios e templos, representa uma visão oficial dos fatos e tem como argumento questões políticas, econômicas e religiosas: inscrições reais e anais são textos de caráter político e comemorativo, e principalmente focados na propa- ganda e na legitimação do poder, e que apresentam poucas informações sobre a vida quotidiana da maioria das populações envolvidas. No Egito, essas informações podem ser encontradas em relevos e pinturas dos túmulos, onde também se depositam reproduções em argila de cenas que retratam o contexto sociocultural do morto. Nas pinturas podem ser vistas cenas de preparação da terra com o arado, colheita, debulha e transporte de cereais; colheita da uva e pro- dução do vinho; criação de gado bovino e caprino; pesca com anzóis e redes; caça de animais; manufatura de utensílios, barcos, instrumentos musicais e objetos de arte; atividade metalúrgica; abate de animais para produção de carne; fabricação de pão e cerveja. Nos túmulos foram encontrados também objetos de uso do morto ou de seus familiares, como sandálias, cestos, tapetes, espelhos, pentes, bancos, carruagens, ca- mas, tabuleiros de jogos, joias, punhais, peças de vestuário, leques, dentre outros. Na Mesopotâmia, as informações sobre a vida quotidiana são mais escassas do que aquelas garantidas pela proteção dos espaços funerários egípcios. História do oriente próximo antigo: uma introdução 38 História antiga i: Fontes e Métodos pintura mural do túmulo do vizir rekhmire, aprox. 1500 a.C. Fonte: luxor A história do Egito ganhou um grande fôlego com a decifração da escrita hiero- glífica por Jean-François Champollion, a partir da inscrição trilíngue gravada em uma pedra encontrada em Roseta, no Delta do Nilo, em 1799, por soldados de Napoleão, conservada, atualmente, no Museu Britânico. Trata-se de um texto de 196 a.C., grafado em hieroglífico, demótico e grego, em comemoração ao aniversário de coroação do faraó Ptolomeu V, Epifânio. O ponto de partida dessa façanha foi a identificação dos nomes de Ptolomeu e Cleópatra nos textos. Após o séc. IV d.C., a língua hieroglífica tinha entrado em desuso, impedindo o conhecimento da riquíssima informação pre- sente em papiros, baixo-relevos, afrescos e monumentos egípcios. O Oriente Próximo Antigo é considerado como uma grande via de circulação não apenas de mercadorias, mas também de ideias, símbolos, valores éticos, estéticos, religiosos e jurídicos. O Antigo Testamento é um testemunho dessa circularidade: a descoberta e decifração, nos últimos dois séculos, de inúmeros documentos literários mesopotâmicos, egípcios, hititas e cananeus evidenciaram uma forte relação entre a literatura antico-oriental e a literatura israelita. Como já dissemos, o início das pesquisas sobre o Oriente Próximo Antigo deveu- se, particularmente, ao interesse em comprovar ou esclarecer fatos descritos na Bíblia. As profundas mudanças que ocorreriam no conhecimento da literatura e da história judaica antiga, que se identifica com o conteúdo do Antigo Testamento, foram preditas já em 1872, quando George Smith apresentou à Sociedade de Arqueologia Bíblica tra- duções da narração do dilúvio na tradição assíria, antecipando que deviam ser aguar- dadas muitas outras descobertas sobre a Antiguidade. A partir daí, acontece um fluxo contínuo de descobertas, traduções e aproximações de textos históricos e literários antico-orientais com o conteúdo bíblico. Em 1912, W. Rogers publica uma coleção dos textos cuneiformes relacionados ao Antigo Testamento. G. A. Barton, na sétima 39 edição de sua obra Arqueologia e Bíblia, incorpora inúmeros materiais epigráficos de interesse para os estudos bíblicos. O crescente volume de informações que chegavam das novas pesquisas sobre o Oriente levou James B. Pritchard, autor de uma das mais importantes obras que re- únem documentos antico-orientais que contribuem para os estudos bíblicos, a con- fessar que não foi fácil decidir-se frente a tantos documentos. Ele adota, então, dois critérios na seleção: em primeiro lugar incluiu textos amplamente reconhecidos em comentários, como paralelos e ilustrações de passagens do Antigo Testamento; em segundo lugar, selecionou textos que fossem representativos de cada uma das áreas linguísticas e culturais do Oriente Próximo Antigo (PRITCHARD, 1969, p. xix-xxi). Fo- ram selecionados textos egípcios, sumérios, acádicos, hititas, ugaríticos, assírios, pa- lestinos, aramaicos, os quais foram organizados em 10 seções: mitos, épicos e lendas; textos legais; textos históricos; rituais, encantamentos e descrições de festivais; hinos e orações; textos didáticos e sapienciais; lamentações; cantos e poemas leigos; cartas, e uma última seção, de textos variados. O cotejamento desses textos evidencia que a descrição da luta de Javé contra o dragão, atestada em Jó (7,12), Salmos (74,13-14; 89,10) e Isaías (51,9) é uma versão israelita da história narrada no mito ugarítico de Baal a respeito da vitória desse deus sobre o dragão Yam (Mar), e que encontra paralelos na história mesopotâmica do combate de Marduk com Tiamat, narrada no Enuma Elish; na história hitita do conflito entre o deus da tempestade e o dragão Illuuyankas; no mito sumério do triunfo de Ni- nurta sobre o monstro Asag; no mito egípcio de Ra, que luta contra Apep; e na história fenícia do combate primoridial entre Zas e Ophion. O mesmo acontece com outros relatos, como os da criação e do dilúvio. Há também uma grande semelhança entre o relato da saga de Moisés e a de Sargão I (ROCHA, 2004, p. 78-80). Se, de um lado, podemos afirmar que a literatura israelita é a mais desenvolvida no âmbito do Antigo Oriente, por outro, a proibição bíblica de utilizar imagens “Não farás para ti imagem [...]” (Êxodo, 20:4) impediu a visualização dos traços étnicos e a representação visual da sociedade israelita (ROCHA, 2004, p. 30-31). Podemos dizer, então, que o aniconismo somado ao monoteísmo – o de Akhenaton foi efêmero – constituem os dois grandes elementos distintivos de Israel frente aos seus vizinhos antico-orientais. O Egito, por sua vez, tem um canal privilegiado de comunicação: a literatura fu- nerária, ou melhor, a cultura funerária, pois o culto aos mortos envolvia mais que literatura: no cenário dos túmulos, sobretudo de reis e príncipes, não se encontravam apenas textos sagrados mas também um rico conjunto de representações que permi- tiram um amplo conhecimento da vida egípcia. É em um texto da literatura funerária, História do oriente próximo antigo: uma introdução 40 História antiga i: Fontes e Métodos conhecido como Livro dos Mortos (1982)2 que se encontra a imagem ideal de um príncipe egípcio que, por meio de uma Confissão Negativa, defende-se no tribunal de Osíris. Diante da Maat, a deusa da justiça, o príncipe, ou faraó, confessa: Eis que trago em meu coração a verdade e a justiça... Não causei sofrimento aos homens... Não substituí a justiça pela injustiça... Não freqüentei os maus. Não cometi crimes... Não intriguei por ambição. Não maltratei meus servidores... Não privei o indigente de sua subsistência... Não permiti que um servidor fosse maltratado pelo seu amo. Não fiz ninguém sofrer... Não fiz chorar os homens meus semelhantes. Não matei e não mandei matar. Não aumentei meus domínios empregando meios ilícitos nem tomando o cam- po dos outros. Não adulterei os pesos nem o braço da balança. Não tirei leite da boca de uma criança. Não me apoderei do gado nos prados [...]3 (LIVRO, 1982, p. 137-138) Trata-se, certamente, de um texto que deve ser considerado mais como uma fór- mula mágica de que como um espelho da realidade. É o quese depreende de A sátira das profissões4, redigida por um escriba do Império Médio (2050-1800 a.C.), e que descreve uma situação bem distante da anunciada no texto acima. Esse texto destaca o papel privilegiado da classe administrativa egípcia que vivia na corte (BRYCE, 1979, p. 138), e apresenta a difícil lida de outros profissionais egípcios: Não te recordas das condições do trabalhador, quando lhe taxam a colheita? Os insetos levaram a metade do grão e o hipopótamo comeu o resto. Os ratos são numerosos no campo, o gafanhoto chega de improviso, os animais co- mem, e os passarinhos devoram; que calamidade para o trabalhador! O que acaba restando é levado pelos ladrões. E (depois) chega o escriba (cobrador de impostos) ao porto com as taxas sobre a colheita... E têm ainda os agentes com seus bordões, os negros com seus tacapes de palmeira. E dizem: ‘Passa o grão’. Mas ele não tem mais. Então eles batem (no trabalhador) estendido por terra, o amarram e o jogam no fosso; ele cai na água de cabeça para baixo e atola (no barro). Sua mulher é amarrada diante dele, seus filhos são acorrentados [...]. 2 O Livro dos Mortos não é um livro, propriamente dito. Trata-se de uma coletânea de textos rela- tivos à vida além-túmulo gravados, inicialmente, nas paredes dos túmulos de reis e príncipes egíp- cios e posteriormente em papiro, e que tinham por objetivo orientar o morto no julgamento final. 3 LIVRO DOS MORTOS. S. Paulo: Hemus, 1982, p. 137-138. 4 BONNOURE, P. et al. (org.). Documents d’histoire vivante. Saint-Amand-Montroud: Édi- tions Sociales, 1962, v. 1. 41 O que se depreende do texto é que a vida do trabalhador no Egito Antigo não era nada fácil e que a maioria da população vivia subjugada à cobrança de taxas sobre o que produziam. As grandes obras faraônicas tiveram certamente um alto custo, cober- to em boa parte por um rígido sistema de coleta de impostos entre a população egípcia (ROCHA, 2004, p. 44). Na Mesopotâmia há evidentes traços da crença religiosa que permeava a vida de todos os grupos sociais, mas ali há também documentos administrativos e jurídicos relativos à compra e venda imobiliária, à venda e troca de escravos, a empréstimos e a códigos legais, dentre outros. Dentre eles se destaca o Código de Hammurabi (aprox. 1792-1750 a.C.). Trata-se de uma espécie de manual de jurisprudência para auxiliar os juízes em seu trabalho, gravado em uma estela. O documento permite conhecer detalhes da sociedade ba- bilonense do período de Hammurabi: ele indica a presença de três grupos sociais: homens livres, dependentes régios e escravos (DUNSTAN, 1998, p. 410). Destaca-se aí, no parágrafo 196, a lei do talião: olho por olho, dente por dente. Essa formula- ção indica, aparentemente, clareza no trato de ações criminosas; no entanto, muitos autores defendem que, desde o início, dificilmente teria sido colocada em prática, tendo sido substituída por sansões pecuniárias (ROCHA, 2004, p. 88-89). O código também regulamenta várias práticas como aluguel, trabalho assalariado e empréstimo (LIVERANI, 2005, p. 412). A estela foi colocada num templo do deus Shamash, em Sippar, e constituía um ponto de referência para a população, que devia ver no rei um defensor da justiça. Nela se lia: Todo homem oprimido, que esteja envolvido em um causa, venha à presença de minha estátua de “rei de justiça”, leia atentamente o que está escrito na minha estela, preste ouvidos às minhas preciosas palavras, a minha estela escla- recerá o teu caso[...] (LIVERANI, 2005, p. 413). Esse Código é considerado mais um conjunto de princípios que uma regra efetiva- mente seguida pelos juízes. Uma norma mais direta e eficiente é o edito de remissão de dívidas e libertação de atividades servis, como se verifica no Edito de Ammi-saduqa (1446-1626 a.C.): Quem emprestou cevada ou prata a um acadiano ou a um amorreu, com juros ou para obter renda se fez redigir um documento escrito (tabuinha de argila) dado que o rei estabeleceu a justiça no país, o seu documento não tem valor jurídico. A cevada e a prata não lhe será restituída em base a tal documento (art. 2) Pozzer (2000/2001, p. 278). analisa alguns documentos de compra, venda e troca História do oriente próximo antigo: uma introdução 42 História antiga i: Fontes e Métodos de imóveis urbanos e rurais produzidos no reinado de Rim-Sîn (de 1793 a 1763 a.C.), envolvendo mercadores. Neles estão indicadas as dimensões e a localização dos imó- veis, os nomes dos compradores e vendedores, assim como o valor e a forma de pagamento. Concluem com as cláusulas de irrevogabilidade e de possibilidade de retomada do imóvel, incluindo o juramento, a lista das testemunhas e a cláusula referente ao selo Esta é a composição de um deles: 1 iku (aprox. 3.600 m2) de pomar, ao lado do canal Nanna, o primeiro grande lado dá para Idiyatum e (o segundo) grande lado dá para Lamma. Amurrum- šemi e Hanubatum, sua esposa, compraram de LiptIštar, pagaram 5 siclos de prata por seu preço à vista. No futuro, para sempre ele não reclamará, eles ju- raram pelo nome do rei. Diante de Lamma, Balitûm, Ilšu-ibbi, filhos de Lapka, Sîn-gimlanni, filho de Lamma, Giš-ilî, filho de Sîn-illassu, šamaš-hazir. O selo das testemunhas (nº 1 -/IX/RS 33). Uma das mais ricas e mais recentes descobertas de documentação antico-oriental deu-se em Ebla, no norte da Síria, onde foram encontradas mais de 15 mil tabuinhas de argila, com escrita cuneiforme, datadas por volta de 2250 a.C., em língua suméria e eblaíta. O conteúdo da maioria das tabuinhas, ali encontradas, a partir de 1964, refere-se a questões econômicas, culturais e políticas do norte da Síria. Elas incluem relatos sobre a economia do Estado, cartas reais, dicionários sumero-eblaítas, textos escolares e documentos diplomáticos. Em conclusão podemos dizer que o conteúdo deste texto apresenta apenas alguns quadros da ampla e movimentada trama de construção das civilizações orientais na Antiguidade. O processo de urbanização, de organização social, política, econômica e mental envolve diferentes grupos humanos, em diferentes momentos e em diferentes relações. Há uma dança do poder, que passa de um grupo para outro ou que é reto- mado, às vezes, à custa de alianças e conveniências. A cronologia do Oriente Próximo Antigo, que pode ser vista no material complementar, apresenta uma linha histórica das movimentações em torno dos centros políticos e produtivos que acompanham os meandros dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. Essas movimentações têm também um caráter cultural. A documentação histórica e literária que se conhece, de diferentes grupos humanos orientais, trazem traços claros de uma interrelação cultural, política, simbólica e arquitetônica que se processa ao longo de toda a extensão do Crescente Fértil, um grande arco que vai desde o Vale do Nilo, no Egito, até a costa leste do Mediterrâneo, e daí até o Golfo Pérsico. Os textos indicados para leitura oferecem detalhes sobre os personagens deste imenso drama humano construído na geografia do Oriente Próximo Antigo: sumé- rios, acádios, amorreus, hurritas, elamitas, assírios, hititas, cassitas, egípcios, hebreus, 43 História do oriente próximo antigo: uma introdução BAKOS, Margareth. Egiptomania: o. Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004. BONNOURE, P. et al. (Org.). Documents d’histoire vivante. Saint-Amand- Montroud: Éditions Sociales, 1962. v. 1. BRAVO, Gonzalo. História do mundo antigo: uma introdução crítica. Madrid: Alianza Editorial, 1997. BRYCE, G. E. A legacy of wisdom: the egyptian contribution to the wisdom of Israel. Londres: Associated University Press, 1979. DUNSTAN, William E. O Oriente próximo antigo. New York: Harcourt Brace College Publishers, 1998. KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão. São Paulo: Melhoramentos, 1958. LIVERANI, Mario. Antico Oriente: storia, società e economia. Bari:
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