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1ª edição - 2021 Recife/PE Ulysses Paulino de Albuquerque Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha Reinaldo Farias Paiva de Lucena Rômulo Romeu da Nóbrega Alves (Editores) ETNO BIO LO GIA MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA Primeira edição publicada em 2021 por NUPEEA www.nupeea.com Copyright© 2021 Impresso no Brasil/Printed in Brazil Editor-chefe: Ulysses Paulino de Albuquerque Revisão de normas técnicas Os autores Diagramação Erika Woelke | www.canal6.com.br Imagens da capa Alexander Sinn e Michail Dementiev/Unsplash É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa do editor. NUPEEA Recife – Pernambuco – Brasil Índice para catálogo sistemático: 1. Etnobiologia : Pesquisa de campo 304.2 Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 Métodos de pesquisa qualitativa para etnobiologia / [editores] Ulysses Paulino de Albuquerque...[et al.]. – 1.ed. – Recife, PE: Nupeea, 2021. 184 p. ; 21 cm. Outros editores : Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha, Reinaldo Farias Paiva de Lucena, Rômulo Romeu da Nóbrega Alves. Bibliografia. ISBN 978-65-88020-08-1 (e-book) ISBN 978-65-88020-07-4 (impresso) 1. Etnobiologia. 2. Graduação. 3. Método de pesquisa. 4. Pesquisa qua- litativa. I. Cunha, Luiz Vital Fernandes Cruz da. II. Lucena, Reinaldo Farias Paiva de. III. Alves, Rômulo Romeu da Nóbrega. CDD 304.2 M552 1.ed. 04-2021/88 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil) Esta obra contém capítulos traduzidos do inglês previamente publicados no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (Springer, 2019), sendo aqui reproduzidos com a autorização da editora. http://www.nupeea.com http://www.canal6.com.br 3APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO Em 2004 surgiu a primeira edição do livro Métodos e Técnicas na Pesquisa Etnobiológica e Etnoecológica, que tinha a inten- ção de preencher uma lacuna de materiais de referência e acessíveis em língua portuguesa. Nesse período existia uma carência muito grande de literatura que desse suporte teórico e metodológico para os novos alunos e investigadores que estavam se aventurando na et- nobiologia. Diante do sucesso da edição de 2004, nós resolvemos publicar novas edições, sempre aprimorando e aumentando o con- teúdo a cada nova edição. Nesse sentido, foram publicadas mais duas edições nos anos de 2008 e 2010, sempre incorporando novos capítulos e atualizando os anteriores. Passados 17 anos, o material ainda continua relevante, em face da cada vez maior comunidade de profissionais e estudantes de etnobiologia no Brasil. Como consequência disso, e a partir da terceira edição no ano de 2010, surgiu a versão em língua inglesa publicada pela Springer no ano de 2014. Essa edição trouxe também colaborações de pes- quisadores de outros países, ampliando cada vez mais o escopo do material. Em 2019, um novo volume é publicado pela Springer com capítulos inéditos que complementaram as abordagens do volume anterior. Essa edição, sem versão equivalente em português, gerou vários pedidos para um texto contendo os capítulos em língua portuguesa. 4 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Esta obra atende a essa demanda, trazendo novas contribui- ções, em especial as que tratam de métodos qualitativos, visando contribuir com o ensino e a pesquisa no Brasil e em outros países de língua portuguesa, servindo como referência para pesquisas que investigam as relações dos seres humanos com a biodiversidade. Ao longo dos anos a etnobiologia foi se fortalecendo no Brasil e, como resultado disso, temos a presença cada vez maior como disciplina acadêmica nos cursos de graduação e pós-graduação de diferen- tes universidades nas mais distintas regiões brasileiras. Assim, es- peramos que este pequeno livro siga sendo útil para todas as pes- soas que se fascinam com as complexas interações entre humanos e biodiversidade. Recife, 10 de abril de 2021. Os editores Sumário 7 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Sofia Zank Rafaela Helena Ludwinsky Graziela Dias Blanco Natalia Hanazaki 45 PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA Joelson Moreno Brito Moura Risoneide Henriques da Silva Nylber Augusto da Silva Daniel Carvalho Pires de Sousa Ulysses Paulino de Albuquerque 63 EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO Temóteo Luiz Lima da Silva Joelson Moreno Brito de Moura Juliane Souza Luiz Hora Edwine Soares de Oliveira André dos Santos Souza Nylber Augusto da Silva Ulysses Paulino de Albuquerque 77 ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS Daniel Carvalho Pires de Sousa Henrique Fernandes de Magalhães Edwine Soares de Oliveira Ulysses Paulino de Albuquerque 95 OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR? Juliana Loureiro Almeida Campos Taline Cristina da Silva Ulysses Paulino de Albuquerque 113 DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS Izabel Cristina Santiago Lemos de Beltrão Gyllyandeson de Araújo Delmondes Diógenes de Queiroz Dias Irwin Rose Alencar de Menezes George Pimentel Fernandes Marta Regina Kerntopf 135 COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL Henrique Fernandes Magalhães Regina Célia da Silva Oliveira Ivanilda Soares Feitosa Ulysses Paulino de Albuquerque 153 MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES Michelle Cristine Medeiros Jacob Ivanilda Soares Feitosa (in memoriam) Joana Yasmin Melo de Araújo Natalia Araújo do Nascimento Batista Temóteo Luiz Lima da Silva Virgínia Williane de Lima Motta Dirce Maria Lobo Marchioni Ulysses Paulino de Albuquerque 179 EDITORES 181 AUTORES 7CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Sofia Zank, Rafaela Helena Ludwinsky, Graziela Dias Blanco, Natalia Hanazaki Após anos de discussões sobre direitos humanos, ética na ciên-cia, acesso ao conhecimento e direitos dos povos indígenas e tradicionais, precisamos analisar as ferramentas que temos e como as usamos para garantir um compromisso ético na pesquisa (CBD 1992;ISE 2006; Albuquerque et al. 2013). O desenvolvimento de pes- quisas etnobiológicas e etnoecológicas deve respeitar as leis nacio- nais, os acordos internacionais e os preceitos éticos relacionados ao respeito ao ser humano, ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais (PICL) e agricultores familiares em relação aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e aos recursos genéticos que administram e inovam. Antes de abordar as questões éticas e legais, será apresentada uma visão geral do contexto que deu origem à legislação relacio- nada à proteção ambiental e ao patrimônio genético, aos direitos dos PICL e aos direitos humanos em geral. Assim, primeiro abor- damos um breve histórico da regulamentação dos aspectos éticos e legais da pesquisa etnobiológica por meio de marcos internacionais 8 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA e nacionais (Fig. 1). Posteriormente, apresentamos os procedimen- tos que devem ser seguidos pelos pesquisadores de acordo com as diretrizes éticas da Sociedade Internacional de Etnobiologia (International Society of Ethnobiology - ISE) e de outros documen- tos relacionados à legislação brasileira. É comum os pesquisadores que nunca trabalharam com seres humanos se sentirem confusos e até desestimulados pela quantidade de informações, procedimentos e dispositivos legais levados em consideração na pesquisa. Neste capítulo, apresentamos diretrizes práticas sobre esses procedimentos para pesquisa etnobiológica e forneceremos o passo a passo dos procedimentos com algumas ob- servações no final. Figura 1. Linha do tempocom os principais marcos legais internacionais e nacionais sobre procedimentos éticos e legais na pesquisa etnobiológica. 9CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Marcos internacionais O tripé formado pelo Código de Nuremberg (1947), a Declaração de Helsinque (1964) e as Diretrizes para Pesquisa em Seres Humanos do Conselho Internacional de Organizações de Ciências Médicas (International Council of Medical Sciences Organizations - ICMSO) (1993) dirige as discussões sobre liberdade e consentimento popular na pesquisa. A atenção ética e as preocu- pações com o consentimento da participação na pesquisa vieram em primeiro lugar nos estudos de saúde. O julgamento de crimes cometidos por médicos nazistas na segunda guerra mundial susci- tou discussões sobre a posição e a voz do paciente, uma vez que o juramento de Hipócrates havia sido quebrado em benefício de um Estado. Essas discussões resultaram no Código de Nuremberg em 1947, no qual o primeiro tópico manifesta o livre-arbítrio em par- ticipar da pesquisa (Shuster 1997; Sardenberg et al. 1999). Para ga- rantir este consentimento essencial, a declaração de Helsinki (1964) implementa os seguintes itens na rotina médica: uma explicação clara dos objetivos dos tratamentos aplicados, os riscos e benefícios, e o livre arbítrio para participar e retirar-se da pesquisa a qualquer momento. Em 1993, o Conselho Internacional de Organizações de Ciências Médicas em colaboração com a Organização Mundial da Saúde, criou comitês de ética para revisar projetos e protocolos de pesquisa (CIOMS 1993). Em uma convergência em relação aos preceitos éticos, o avanço das discussões sobre o acesso ao conhecimento tradicio- nal e à repartição de benefícios veio mais tarde com a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o Tratado Internacional (TI) da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Protocolo 10 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA de Nagoya. Os direitos dos povos indígenas são especificamen- te abordados na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração Americana dos Povos Indígenas e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A partir desses marcos internacionais, cada país signa- tário vem desenvolvendo sua legislação e procedimentos específicos para abordar essas questões. A CDB é um instrumento de direito internacional que foi acordado na reunião das Nações Unidas em 1992. A CDB aborda todas as questões que se relacionam direta ou indiretamente com a biodiversidade, servindo como uma estrutura legal e política para outras convenções e acordos ambientais específicos. Na CDB, pela primeira vez, foi reconhecida a importância dos PICL na conserva- ção da biodiversidade e dos direitos destes em relação aos conheci- mentos que produzem sobre a biodiversidade e sobre o patrimônio genético que conservam e inovam. Além de instituir a noção de que os países têm direitos soberanos sobre seus próprios recursos gené- ticos, esse marco também menciona a distribuição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos e do conhecimento associado (CBD 1992). O Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos de Plantas para Alimentação e Agricultura (TI) da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) foi assinado em Roma em 2001. Hoje, está intrinsecamente ligado à CDB. Enquanto a CDB lida com a biodiversidade nativa, a TI lida com a biodiversidade agrícola (FAO 2001). O objetivo do TI é a conservação e uso sustentável dos recursos genéticos, de plan- tas para alimentação e agricultura, e a partilha justa e equitativa dos benefícios derivados do seu uso para agricultura sustentável e segurança alimentar (FAO 2001). O Protocolo de Nagoya de 2010, 11CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA que está em vigor desde 2014, é um acordo suplementar para a CDB e busca alcançar os objetivos da CBD e do TI. O consentimento prévio informado e os acordos sobre a repartição justa e eqüitativa dos benefícios são elementos fundamentais, além do reconhecimen- to de leis e procedimentos consuetudinários e o uso e troca tradicio- nais de recursos genéticos (Gross 2013). O Protocolo de Nagoya foi assinado pelo Brasil, e ratificado apenas em agosto de 2020 e, desta forma, ainda não está em pleno vigor em nosso país. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada em 1989, é o mais importante documento de polí- tica internacional que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais. A Convenção 169 afirma os direitos relativos à identidade, aos territórios tradicionalmente ocupados e aos direitos de participação dos povos indígenas no uso, gestão e conservação de seus territórios, incluindo consultas livres, prévias e informadas. O Brasil ratificou a convenção em 2002 pelo Decreto 5051 de 2004. A declaração das Nações Unidas de 20 de dezembro de 2006 foi outro marco importante para os direitos dos povos indígenas na América Latina. Desde então, os direitos individuais de cada indígena são reconhecidos como iguais aos de todos os outros cidadãos de cada nação. Além disso, destacou a importância de salvaguardar e re- conhecer as distinções culturais das comunidades indígenas como únicas. Entre os deveres que os estados têm com seus povos indíge- nas estão a provisão de acesso a uma educação pública e saúde de qualidade e a proteção e incentivo de práticas culturais. Também relativa aos povos indígenas, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DADPI), da Organização dos Estados Americanos (OEA), promove e protege os direitos dos povos indí- genas nas Américas. Aprovada em 2016, essa declaração demorou 12 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA 17 anos para ser escrita e aprovada. O DADPI aborda quatro novos temas: 1) reconhecimento e respeito pela natureza multicultural e multilingue dos povos indígenas; 2) reconhecimento das diferentes formas de organização comunitária; 3) o reconhecimento e direito dos povos indígenas de manter e promover seus próprios sistemas familiares; e 4) liberdade de escolha para crianças indígenas, o que garante que cada criança tenha o direito de desfrutar de sua pró- pria cultura, religião ou idioma (ISA 2018a). Outro ponto importan- te está relacionado às comunidades indígenas que estão isoladas ou em estado de contato inicial e que têm o direito de permanecer nesta condição e viver livremente e de acordo com suas culturas. No âmbito dos estudos etnobiológicos, a Declaração de Belém (1988) é reconhecida como o principal marco internacional que nor- teia o código de ética da Sociedade Internacional de Etnobiologia (ISE). Essa declaração também influenciou outros documen- tos, como o Código de Ética da Sociedade Latino Americana de Etnobiologia (SOLAE) (Contreras et al. 2015) e o Código de Conduta Ética Tkarihwaié: ri (CBD 1992). Marcos Nacionais: O contexto brasileiro Apoiado pelas discussões do cenário internacional, o Conselho Nacional de Saúde (vinculado ao Ministério da Saúde) padronizou as diretrizes de pesquisa no campo da saúde e estabe- leceu comitês de ética em pesquisa humana desde 1988. Mais re- centemente, as diretrizes para pesquisa com os seres humanos na área da saúde foram estendidas à pesquisa com seres humanos em outras áreas, especialmente por meio das Resoluções do Conselho 13CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Nacional de Saúde 466/2012 e 510/2016. Esta última resolução, por exemplo, definiu regras aplicáveis à pesquisa em ciências sociais e humanas nas quais os procedimentos metodológicos envolvem o uso de dados obtidos diretamente dos participantes. No entanto, é comum encontrar artigos científicos em que o consentimento para participar da pesquisa não seja mencionado (Liporacci et al. 2015). Em relação ao meio ambiente, o marco legal da Constituição Federal de 1988 asseguraum capítulo específico (artigo 225) que impõe o dever de defender e preservar o meio ambiente pelo poder público e pela sociedade. As responsabilidades das autoridades pú- blicas incluem a preservação da diversidade e integridade do pa- trimônio genético do país, a supervisão de entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético e a definição de espa- ços territoriais e seus componentes para serem especialmente pro- tegidos. Parte dessas responsabilidades foram regulamentadas pela Lei 13.123/2015 e pelo Decreto 8.772 / 2016, que dizem respeito ao acesso ao patrimônio genético, proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade, e à repartição de benefícios pela conservação e uso sustentável da biodiversidade. Estes dois re- gulamentos exigem a realização de procedimentos legais por parte dos pesquisadores, que serão detalhados mais a frente. Essas res- ponsabilidades da autoridade pública também resultaram na Lei 9.985/2000, que estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). O estabelecimento do SNUC definiu critérios e padrões para a criação, implementação e gestão de áreas protegidas, ou unida- des de conservação, incluindo também áreas de uso sustentável. Entre as questões abordadas por esta lei, a comunidade científica é incentivada a articular o valor dos conhecimentos tradicionais no 14 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA desenvolvimento de pesquisas sobre a biodiversidade de áreas prote- gidas e sobre o uso sustentável. A pesquisa científica dentro de áreas protegidas depende de aprovação prévia e está sujeita à supervisão da instituição responsável pela sua administração. No nível federal, a instrução normativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) número 03/2014 estabeleceu e regula- mentou o Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (SISBIO). Através do SISBIO, os pesquisadores devem solicitar as au- torizações e licenças do ICMBio para atividades científicas ou didá- ticas que envolvam o uso da biodiversidade ou o acesso às unidades de conservação federais. Outro importante avanço da Constituição Federal de 1988 foi a inclusão de artigos voltados para os direitos indígenas. Os artigos 231 e 232, juntos, são ferramentas importantes que reconhecem e protegem os direitos e conhecimentos culturais dos povos indíge- nas do Brasil. Esses artigos asseguram o reconhecimento das práti- cas culturais e linguísticas dos povos indígenas; o reconhecimento e a legitimidade da presença multicultural dos povos indígenas no Brasil; a proteção e os direitos à terra, água e recursos naturais; e a legitimação dos povos indígenas como organizações independentes, podendo atuar em defesa de seus próprios direitos e interesses. No Brasil, consideramos povos indígenas como de origem ameríndia (ou descendentes de habitantes pré-colombianos). O órgão público responsável pela permissão de pesquisa com indíge- nas é chamado de Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A FUNAI foi criada em 1967, durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Este período inicial de operação da FUNAI foi marca- do por duas situações: por um lado, foram criadas estratégias para atrair indígenas para áreas de interesse, como batalhões de defesa, 15CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA e; por outro, foram afastadas de outras áreas estratégicas (por exem- plo, menor liberdade no autogerenciamento de suas terras) (Cunha 1987; ISA 2018b). Essa situação foi alcançada devido ao monopólio das relações tutelares, no qual atividades como o acesso à educação e à saúde foram centralizadas na FUNAI. Essa situação deixou os indígenas com pouca ou nenhuma liberdade de ação, tornando-se extremamente dependentes da FUNAI para qualquer tipo de ação. Estruturalmente, a FUNAI foi dividida (e continua até hoje) em três níveis espaciais: nacional, regional e local. A partir das décadas de 1970 e 1980, movimentos sociais e indígenas começaram a surgir com mais força no Brasil e no mundo. Esses movimentos fomenta- ram o surgimento de instituições e de legislações em favor das comu- nidades indígenas, o que influenciou algumas mudanças na FUNAI (Santilli 1991; ISA 2018b). A Funai, a partir do Decreto Presidencial nº 7.056, passou por uma grande reestruturação administrativa em 2009. A partir deste momento, técnicos qualificados começaram a desenvolver atividades e planos, com a participação e atuação dos povos indígenas. No entanto, o grande desafio da FUNAI hoje é, com pouco recurso e falta de profissionais, poder lidar com uma grande diversidade de povos indígenas com demandas diversas. Além disso, a Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT), instituída pelo Decreto 6040/2007, reconheceu formalmente as co- munidades tradicionais brasileiras e estendeu a esses grupos os di- reitos que antes eram reservados aos indígenas e quilombolas, se- gundo a Constituição Federal de 1988. Os Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) são definidos neste decreto como segue: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que 16 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmi- tidos pela tradição.” Entre os povos e comunidades tradicionais do Brasil estão quilombolas, ciganos, matriz africana, pescadores artesanais, serin- gueiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, ribeirinhos, caiçaras, sertanejos, açoria- nos, campeiros, pantaneiros, entre outros (veja também o Decreto 8.750/2016, o qual estabelece o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais). O PNDSPCT visa reconhecer, fortale- cer e garantir os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômi- cos e culturais dos povos e comunidades tradicionais, com respei- to e valorização por sua identidade, suas formas de organização e suas instituições. Entre esses direitos estão aqueles relacionados ao reconhecimento e proteção de conhecimentos, práticas e usos tra- dicionais, que são o foco da pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Lei 13.123 e Decreto 8.772 A Lei 13.123 e o Decreto 8.772 (em vigor desde 2015 e 2016, respectivamente) fixam o marco legal atual relacionado à CDB, de- terminando o acesso ao patrimônio genético, proporcionando pro- teção e acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversi- dade e estabelecendo a repartição de benefícios para a conservação e uso sustentável da biodiversidade (Brasil 2015; 2016). O Brasil ratifi- cou a CDB em 1994, que se tornou lei, mas não se tornou operativa sem regulamentação. 17CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA O primeiro regulamento para operacionalizá-lo foi a Medida Provisória (MP) 2.186-16, aprovada em 2001. Esta MP criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e determi- nou que o acesso e a remessa de patrimônio genético e acesso ao conhecimento tradicional associado no país dependia da autoriza- ção deste conselho. Esta MP foi controversa (Liporacci et al. 2015) e criticada devido à sua excessiva burocracia (Pedrollo & Kinupp 2015); no entanto, ao longo do tempo, as resoluções e deliberações do CGEN criaram condições para que o sistema funcionasse de maneira um pouco mais ágil, visando adequar a regulamentação à realidade da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico (Besunsan 2017). A MP esteve em vigor por quase 15 anos, quando foi substituída pela Lei 13.123/15. Esta lei trouxe avanços e retroces- sos em relação aos direitos dos povos indígenas, povos e comunida- des tradicionais e dos agricultores tradicionais. De acordo com a Lei 13.123/15, em relação à pesquisa cientí- fica, o acesso ao patrimôniogenético ou conhecimento tradicional associado realizado exclusivamente para esse fim, não requer au- torização prévia. No entanto, os pesquisadores precisam se regis- trar eletronicamente no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SISGEN, que está em operação desde 2017. A lei trata do conhecimento tradicio- nal associado ao patrimônio genético de populações indígenas, co- munidades tradicionais e agricultores tradicionais, ocorrendo uma adaptação do termo PICL utilizado na CDB para manter a coerên- cia com as demais normativas brasileiras. Cabe ressaltar que os seg- mentos afetados pela lei criticaram estas denominações, pois eles se reconhecem como povos indígenas, povos e comunidades tradicio- nais e agricultores familiares. Desde a promulgação da Lei 13.123/15, 18 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA é necessário o registro ou autorização para acesso ao conhecimento tradicional, mesmo que obtido de fontes secundárias (por exemplo, feiras, publicações, inventários, filmes, artigos científicos, registros e outras formas de sistematização e registro desse conhecimento). Além disso, as pesquisas que não envolvem o acesso ao conhecimen- to tradicional, mas acessam o patrimônio genético, ou “informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do me- tabolismo destes seres vivo”, também precisam ser cadastradas no SISGEN. A Lei divide o conhecimento tradicional associado ao pa- trimônio genético em duas categorias: 1) origem identificável; e 2) origem não identificável. O conhecimento de origem identificável é aquele ao qual é possível identificar pelo menos um povo ou co- munidade que o detém. O de origem não identificável seria aquele que não é possível identificar um povo ou comunidade que o detém. Segundo o decreto nº 8.772/16, “Qualquer população indígena, co- munidade tradicional ou agricultor tradicional que cria, desenvol- ve, detém ou conserva determinado conhecimento tradicional as- sociado é considerado origem identificável desse conhecimento”. Este conceito corrobora com o consenso existente entre os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores tradicio- nais sobre o fato de que todo conhecimento tradicional é de “origem identificada”(Miranda 2017) (Quadro 1). 19CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Quadro 1. Qual a consequência de considerar um conhecimento como de origem não identificável? De acordo com a Lei 13123, para este tipo de conhecimento, o consentimento prévio informado não é obrigatório. Em outras palavras, uma empresa ou pesquisador pode acessá-lo sem o consentimento prévio informado. Além disso, o compartilhamento de benefícios decorrentes do acesso a esse tipo de conhecimento seria destinado ao Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Em que outros casos há isenção de consentimento prévio? Isso ocorre em casos de acesso ao patrimônio genético da variedade tradicional local ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula para atividades agrícolas. ...mas a ausência de consentimento prévio do PICL ou agricultor familiar que cria, desenvolve, mantém ou preserva variedade ou raça é considerada uma violação dos direitos humanos! Uma das inovações da lei foi a criação do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB), que visa valorizar o patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado e promover seu uso de forma sustentável. No entanto, um dos pontos controversos da re- partição de benefícios é a existência de várias isenções que levaram a distorções nos fundamentos da CDB e no marco legal internacional. De acordo com a Lei da 13.123/15, a repartição de benefícios ocorre somente quando há exploração econômica de um produto acabado ou material reprodutivo decorrente do acesso ao patrimônio genéti- co ou conhecimento tradicional associado. A lei isenta os fabrican- tes de produtos intermediários, microempresas, pequenas empresas e microempreendedores individuais de compartilhar benefícios. A Lei garante os direitos dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais de ter: 1) reconhecida sua 20 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, em qualquer forma de publicação, utilização, exploração e divulgação; 2) ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todas as publicações, utilizações, explora- ções e divulgações; perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, nos termos desta Lei; 3) participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento; 4) usar ou vender livremente pro- dutos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradi- cional associado; 5) conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimô- nio genético ou conhecimento tradicional associado. Procedimentos éticos e legais na pesquisa etnobiológica Procedimentos éticos Antes das preocupações com procedimentos legais, é essen- cial que os pesquisadores sejam esclarecidos e orientados sobre pro- cedimentos éticos na pesquisa etnobiológica. Usamos aqui como re- ferência o código de ética ISE, desenvolvido ao longo de mais de uma década e produto de uma série de fóruns de discussão baseados em consenso envolvendo membros do ISE (ISE 2006). Escolhemos este documento por sua importância histórica, mas enfatizamos as convergências com o Código de Ética da SOLAE e o Código de Conduta Ética Tkarihwaié: ri. 21CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Um conceito importante é o de “atenção plena”, ou mindfulness, chamando a atenção para a obrigação de estar “plenamente conscien- te do conhecimento e da omissão, do fazer e do não fazer, da ação e da inação” (ISE 2006). Os 17 princípios, alinhados com o cumprimen- to da legislação nacional e internacional e práticas consuetudinárias (Quadro 2), descrevem a condução da pesquisa ou a organização de coleções, publicações, bases de dados e gravações de áudio ou vídeo, entre outros produtos de pesquisa e atividades relacionadas. Apesar de uma direção política bem marcada, sabemos que a absorção de tais princípios pelos pesquisadores etnobiológicos ainda é tímida. Quadro 2. Princípios para a pesquisa etnobiológica com povos indígenas, socieda- des tradicionais e comunidades locais (PICL) (Adaptado de ISE 2006). 1. Direitos e responsabilidades prévios PICL possuem interesses, responsabilidades e direitos de propriedade prévios sobre todos os recursos naturais que se encontram dentro de locais tradicionalmente habitados ou utilizados por tais povos, como também sobre todo o conhecimento e propriedade intelectual associado a esses recursos. 2. Princípio de autodeterminação O PICL tem o direito à autodeterminação (ou determinação local para comunidades tradicionais e locais), e os pesquisadores e organizações devem reconhecer e respeitar esses direitos em suas relações com esses povos e comunidades. 3. Princípio da Inalienabilidade Os direitos dos PICL em relação aos seus territórios tradicionais e aos recursos naturais dentro deles e aos conhecimentos tradicionais associados são inalienáveis. Esses direitos são coletivos por natureza, 22 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA mas podem incluir direitos individuais; e a natureza, escopo e alienabilidade de seus respectivos regimes de direitos de recursos devem ser determinados por eles mesmos. 4. Princípio da Custódia tradicional A humanidade tem uma interconexão holística com os ecossistemas de nossa Sagrada Terra e a obrigação e responsabilidade do PICL de preservar e manter seu papelcomo guardiões tradicionais desses ecossistemas, através da manutenção de suas culturas, identidades, línguas, mitologias, crenças espirituais e leis e práticas consuetudinárias. 5. Princípio da Participação Ativa É crucial que os PICL participem ativamente de todas as fases da pesquisa e atividades relacionadas, desde o início até a conclusão, bem como na aplicação dos resultados da pesquisa. A participação ativa inclui a colaboração em projetos de pesquisa para atender às necessidades e prioridades locais e a análise prévia dos resultados antes da publicação ou divulgação. 6. Divulgação integral Os PICL têm o direito de serem plenamente informados sobre a natureza, o escopo e o objetivo final da pesquisa proposta (incluindo objetivo, metodologia, coleta de dados e disseminação e aplicação dos resultados). Esta informação deve ser dada em formas que são entendidas e úteis a nível local, considerando as preferências culturais e modos de transmissão desses povos e comunidades. 7. Princípio do Consentimento Prévio Informado e Esclarecido O consentimento prévio informado e esclarecido é obrigatório antes que qualquer pesquisa seja realizada nos níveis individual e coletivo, conforme determinado pelas estruturas de governança da comunidade. O consentimento prévio informado é um processo contínuo baseado em um relacionamento e mantido em todas as fases da pesquisa. Os PICL possuem o direito de dizer não. 23CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 8. Princípio da Confidencialidade Os PICL, a seu exclusivo critério, têm o direito de excluir da publicação e / ou manter confidencialidade qualquer informação relativa à sua cultura, identidade, idioma, tradições, mitologias, crenças espirituais ou genômica. 9. Princípio do Respeito Este princípio reconhece a necessidade dos pesquisadores respeitarem a integridade, moralidade e espiritualidade da cultura, tradições e relações do PICL com seus mundos. 10. Princípio da Proteção ativa Os pesquisadores devem tomar medidas ativas para proteger e melhorar as relações dos PICL com o seu ambiente e, assim, promover a manutenção da diversidade cultural e biológica. 11. Princípio da Precaução Ações proativas e antecipatórias são necessárias para identificar e prevenir danos biológicos ou culturais resultantes de atividades ou resultados de pesquisa, incluindo a responsabilidade de evitar a imposição de conceitos e padrões externos ou estrangeiros. 12. Princípio da Reciprocidade, Benefício Mútuo e Compartilhamento Equitativo Os PICL possuem o direito de participar e se beneficiar dos processos e dos resultados que se obtêm, direta ou indiretamente e a curto e a longo prazo, da pesquisa etnobiológica e das atividades relacionadas que envolvem seus conhecimentos e seus recursos. 13. Princípio de Apoio à Pesquisa Indígena Este princípio reconhece e apoia os esforços dos PICL em empreender suas próprias pesquisas com base em suas próprias epistemologias e metodologias. Para tanto, a capacitação, o intercâmbio de treinamento e a transferência de tecnologia para os PICL devem ser incluídos na pesquisa sempre que possível. 24 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA 14. Princípio do Ciclo interativo dinâmico A pesquisa e as atividades relacionadas não devem ser iniciadas, a menos que todas as etapas possam ser concluídas: (a) preparação e avaliação; (b) implementação total; (c) avaliação, divulgação e retorno dos resultados; e (d) treinamento e educação como parte integral do projeto. Todos os projetos devem ser vistos como ciclos de comunicação e interação continuada. 15. Princípio de Ação de remediação Todos os esforços serão feitos para evitar quaisquer consequências adversas para os PICL dos resultados de pesquisa e de atividades relacionadas. Qualquer ação corretiva pode incluir restituição, quando acordada e apropriada. 16. Princípio de devido reconhecimento e mérito Os PICL devem ser reconhecidos de acordo com sua preferência e dado o devido crédito em todas as publicações acordadas e outras formas de divulgação de suas contribuições tangíveis e intangíveis para atividades de pesquisa. A coautoria deve ser considerada quando apropriado. Isso se estende a usos e aplicações secundárias ou posteriores. 17. Princípio da Diligência Espera-se que os pesquisadores tenham uma compreensão ativa do contexto local antes de entrar em relações de pesquisa com uma comunidade e conduzir pesquisas no idioma local na medida do possível. Procedimentos legais Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos Atualmente, organizações internacionais e agências de fomen- to à pesquisa em todo o mundo desenvolveram seus próprios proto- colos de submissão de projetos (Vandebroek 2017). Recomendamos estudar a legislação e os protocolos atuais específicos para o país 25CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA no qual a coleta de dados ocorrerá. Lembramos que os protocolos podem mudar, mas as informações prévias e o consentimento para participação na pesquisa permanecem como uma base sólida. No Brasil, de acordo com os marcos legais da área de saúde para pesquisa com seres humanos, que também se aplicam à pes- quisa fora da área da saúde, os projetos de pesquisa devem ser previamente aprovados por um comitê de ética em pesquisa de uma universidade ou instituição de pesquisa (Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, CEPSH) e ser consentida pelos cola- boradores da pesquisa. O CEP é um órgão institucional que tem o papel de revisar projetos de pesquisa científica, além de possuir um papel consultivo e educacional (Freita & Hossne 2002; Brasil 2004). Um ponto crucial nesta aprovação por um CEP é a prepara- ção de um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE). O TCLE, também conhecido como consenti- mento prévio, tem o papel de esclarecer e proteger o colaborador da pesquisa, bem como o pesquisador (Brasil 2012). Esses procedimen- tos convergem com alguns dos requisitos da Lei 13.123/15, os quais são tratados no item seguinte deste texto. Em seguida, no quadro 3, resumimos uma lista de verificação com diretrizes para as etapas anteriores à condução da pesquisa e para a elaboração de um TCLE, de modo a garantir os preceitos éticos que norteiam os estudos com seres humanos. No caso do acesso ao conhecimento dos PICL e dos agricultores familiares, que devem seguir a Lei 13.123/15, é neces- sário incluir os impactos resultantes da realização da pesquisa, os direitos e responsabilidades de cada parte, o direito de negar acesso, e no caso de pesquisas com viés econômico, informações sobre a re- partição de de benefícios (artigos 16 do Decreto 8.772/2016). 26 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Quadro 3. Diretrizes e checklist das etapas obrigatórias na preparação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no Brasil. 1. Convite para participar da pesquisa A participação em um projeto de pesquisa não é obrigatória. Nesse momento, o pesquisador deve tentar estabelecer uma relação de confiança entre o pesquisador e o colaborador da pesquisa. Assim, o convite para participar é essencial. 2. Identificação da pesquisa Título da pesquisa, objetivos, justificativa e procedimentos devem ser identificados, sempre escritos de forma clara e objetiva. 3. Métodos de Pesquisa Como os dados serão coletados? Quem vai fazer as entrevistas? O que será incluído na entrevista? Como esses dados serão gravados ou registrados? 4. Direito de não participar O documento deve deixar claro o direito de recusa da participação na pesquisa em qualquer momento ou etapa da pesquisa. 5. Acompanhamento de pesquisa Além do pesquisador, quem mais fará a pesquisa? O pesquisador deve fornecer o nome do seu orientador e das pessoas que ajudarão na coleta de dados e suas respectivas instituições. 6. Sigilo O pesquisador precisa explicar como os dados serão armazenados e garantir o anonimato do entrevistado.7. Publicações e uso da informação Forneça uma breve explicação de como os dados serão usados (publicações de artigos, desenvolvimento de drogas, cosméticos, etc.). Encorajamos uma menção sobre o compartilhamento de benefícios e 27CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA o retorno dos dados aos colaboradores da pesquisa e como isso deve acontecer. 8. Riscos e Benefícios Riscos da pesquisa são comumente negligenciados na formulação do TCLE. Mesmo que sua coleta de dados envolva uma entrevista, é necessário considerar o cansaço e o tédio durante a participação na pesquisa, bem como constrangimento, desconforto e até mesmo quebra de confidencialidade. Este último, mesmo que involuntário, deve ser incluído no TCLE. Reembolso e indenização também devem ser garantidos no caso de qualquer dano resultante da pesquisa. Quanto aos benefícios, espera-se que toda a pesquisa científica traga algum benefício para a sociedade. Podemos então explicar o que esperamos alcançar em relação a benefícios tangíveis e intangíveis a curto e longo prazo. Além disso, dependendo do tipo de benefício, como aqueles que resultam em resultados monetários da pesquisa, você precisará descrever em detalhes como isso será assegurado ao colaborador. 9. Consentimento / acordo O TCLE deve conter um campo para registro da aceitação para colaborar com a pesquisa. Quando o colaborador for menor de idade, analfabeto ou apresentar alguma deficiência intelectual, o documento deverá solicitar o consentimento dos pais ou responsável legal. O TCLE não precisa necessariamente ser obtido por escrito: outras mídias são permitidas (ver CNS 510/16). 10. Assinatura do pesquisador A assinatura do pesquisador é uma forma de demonstrar legalmente o compromisso de cumprir os termos do código etnobiológico de ética e a atual resolução relacionada à pesquisa com seres humanos utilizados no país (p. Ex., CNS 466/12 no Brasil; lembre-se sempre de citar estes documentos). 11. Como contatar o pesquisador ou o comitê de ética? Inclua informações sobre como entrar em contato com o pesquisador, grupo de pesquisa ou laboratório e o comitê de ética que aprovou o projeto (endereço, telefone do pesquisador e supervisor e endereços de e-mail). 28 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA No Brasil, a submissão de um projeto de pesquisa é feita atra- vés de um portal online chamado Plataforma Brasil (http://platafor- mabrasil.saude.gov.br). Através deste portal, todos os documentos relacionados à pesquisa devem ser enviados, e as avaliações podem ser monitoradas (Quadro 4). Quando o projeto é aprovado, relató- rios anuais ou finais (dependendo da duração do projeto) devem ser enviados para a plataforma como forma de acompanhamento da pesquisa. No caso de não aprovação do projeto pela indicação de questões pendentes, é necessário ler atentamente a avaliação para fazer uma nova submissão. O projeto deve ser aprovado antes do início da coleta de dados. Quadro 4. Checklist para inserção de documentos na Plataforma Brasil. 1. Projeto de pesquisa. 2. Modelo do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE); veja as diretrizes no Quadro 3. 3. Autorizações de organismos competentes no caso de coleta da flora e fauna. 4. Autorização de líderes comunitários (se aplicável). 5. Declaração de autorização da(s) instituição(ões) participante(s): declaração da(s) instituição(ões) envolvida(s) autorizando a pesquisa assinada pelo responsável da(s) instituição(ões). 6. Preenchimento do formulário com detalhes da pesquisa na Plataforma Brasil. 7. Folha de rosto gerada dentro da Plataforma Brasil: ao final do preenchimento do formulário, será disponibilizada uma folha de rosto, que deverá ser assinada pelo coordenador da pesquisa e pela pessoa responsável pela instituição proponente. http://plataformabrasil.saude.gov.br http://plataformabrasil.saude.gov.br 29CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Acesso ao conhecimento tradicional associado, aos recursos genéticos e a repartição equitativa de benefícios: Para o cumprimento da Lei 13.123 e Decreto 8.772, nós apre- sentamos as etapas para o desenvolvimento de uma pesquisa que não visa a exploração econômica de um produto pelo usuário (pes- quisador, empresa, governo etc.), que é a realidade da maioria das pesquisas etnobiológicas. No entanto, no caso de pesquisas com ex- ploração econômica, é necessário que o leitor busque informações detalhadas sobre o processo de autorização da pesquisa e sobre a re- partição equitativa dos benefícios (Brasil 2015, Brasil 2016). O primeiro passo no desenvolvimento da pesquisa é a obten- ção do consentimento prévio e informado da comunidade a ser in- vestigada, o que, como mencionado anteriormente, é convergente com os objetivos da obtenção do consentimento livre e esclarecido (TCLE) (Quadro 3). De acordo com a lei, o consentimento prévio e informado pode ocorrer mediante assinatura de termo de consen- timento prévio, obtenção de registro audiovisual do consentimento, averiguação de opinião do órgão oficial competente ou reconheci- mento através do protocolo da comunidade. Os protocolos comu- nitários são regras internas criadas pelas próprias comunidades que dizem como o governo, empresas, pesquisadores e outros interes- sados em acessar seu conhecimento tradicional associado devem proceder de maneira que respeite os costumes, usos e tradições. O instrumento de comprovação do consentimento deve ser preparado em linguagem acessível, contendo a descrição do processo de con- sentimento, a organização e representação da comunidade estuda- da, as informações sobre a pesquisa (objetivo, duração, orçamen- to, financiamento, etc.), o uso que se pretende dar ao conhecimento 30 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA associado, a área de cobertura do projeto e as comunidades estu- dadas, e se a comunidade recebeu assessoria técnica e jurídica no processo (Artigos 17 do Decreto 8.772/2016). Embora seja possível na legislação brasileira comprovar o consentimento prévio e infor- mado por meio da opinião de um órgão oficial competente, é impe- rativo que ocorra uma consulta prévia e informada com as pessoas ou comunidades a serem estudadas, sem violar os preceitos éticos e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos (ISE 2006; OIT 2011). Acreditamos que toda pesquisa etnobiológica e etnoecológi- ca deve seguir os preceitos éticos do Código de Ética do ISE (ver seção Procedimentos éticos) e os instrumentos legais internacional- mente reconhecidos sobre os direitos do PICL (ver seção Marcos in- ternacionais), mesmo nos casos em que a Lei 13.123/15 sugere que o acesso ao conhecimento de origem não identificada não requer consentimento prévio informado. Em outras palavras, toda pesqui- sa deve solicitar o consentimento prévio e informado da comuni- dade e respeitar a organização coletiva (por exemplo, mesmo que a pesquisa trabalhe com especialistas locais, é importante obter uma autorização coletiva para a pesquisa através de sua organização co- munitária). É importante também que no consentimento já seja acordado com a comunidade o prazo para a realização do cadastro no SISGEN, respeitando a regra geral da legislação vigente. O pes- quisador deve estar ciente de que a comunidade tem o direito de negar acesso ao conhecimento tradicional associado, e essa decisão deve ser respeitada. Depois de obter o consentimento prévio informado da co- munidade a ser estudada, o pesquisador pode realizar o registro no SISGEN (ver lista de verificação no Quadro 5). Por mais que a 31CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA legislação brasileira só exija o cadastro de pesquisas com povos in- dígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, nós sugerimos que as pesquisas com comunidades locais também sejam registradas, como uma forma de salvaguardar os conhecimen- tos destes grupos que no futuro podem vir a ter exploraçãoeconô- mica. Deve-se notar que a pesquisa com dados secundários também deve ser registrada no SISGEN. De acordo com a lei, o registro deve ser feito antes da divulgação de resultados (finais ou parciais) em meios científicos; do envio de amostras para terceiros; do pedido de direito de propriedade intelectual sobre um processo, produto ou cultivar desenvolvido a partir do acesso; da notificação ao CGEN do produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido como re- sultado do acesso; e da comercialização do produto intermediário. No caso de pesquisas que não acessem o conhecimento tradi- cional dos povos e comunidades citados na lei, mas acessem patri- mônio genético, também precisam realizar o cadastro no SISGEN. Quadro 5. Checklist para o registro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Ge- nético e do Conhecimento Tradicional Associado, SISGEN. 1. Informações básicas sobre a atividade de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico, incluindo: • Resumo da atividade e seus objetivos. • Setor de aplicação, no caso do desenvolvimento tecnológico. • Resultados esperados ou obtidos, dependendo do tempo de registro. • Equipe de pesquisa, incluindo informação sobre estudantes ou bolsistas. • Outras instituições nacionais que participam na realização da pesquisa, quando aplicável, incluindo instituições internacionais. • Quando a atividade aconteceu ou vai acontecer. 32 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA • Qual foi o patrimônio genético acessado (identificação no nível taxonômico mais estrito possível). • declaração se o patrimônio genético é variedade tradicional local ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula, ou se a espécie consta em lista oficial de espécies ameaçadas de extinção. • Quem forneceu o conhecimento tradicional associado e uma descrição das fontes desse conhecimento (incluindo fontes secundárias). • Onde o estudo foi feito (coordenadas geo-referenciadas), exceto para conhecimento de origem não identificável. • Registro prévio ou número de autorização no caso de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado após 30 de junho de 2000. 2. Testemunho para obter o consentimento prévio informado do provedor de conhecimento tradicional associado de origem identificável. 3. Se necessário, solicite a confidencialidade das informações apresentando a fundamentação legal relevante e um resumo não confidencial. 4. Quando aplicável, declarar o enquadramento em hipótese de isenção legal ou de não incidência de repartição de benefícios. Se as informações fornecidas ao SISGEN forem alteradas, o pesquisador deve atualizar os dados relevantes pelo menos uma vez por ano. Os pesquisadores devem indicar a fonte do conhecimento tradicional associado em divulgações e publicações. Esta é uma ma- neira de reconhecer o conhecimento tradicional e, mais importante, é um direito dos PICL que deve ser respeitado. O sistema ainda precisa ser melhorado, pois atualmente alguns pontos dificultam a legalização das pesquisas pelos pesqui- sadores, como a inserção no CPF ou no CNPJ de informantes de pesquisa realizados desde 2000 ou a necessidade de inserir manual- mente as informações de conhecimento tradicional para cada recur- so genético acessado. Assim, o pesquisador deve estar ciente de que 33CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA muitos ajustes no sistema ainda são esperados, mas dependem dos gestores do SISGEN. A legislação determina multas por infrações, tais como: a) acesso ao conhecimento tradicional de origem identificável sem obter consentimento prévio e informado, ou em desacordo com ele; b) divulgar resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou de comunicação sem registro prévio; c) deixar de indicar a origem do conhecimento tradicional associado de origem identificável em publicações, usos, acervos e divulgações resultantes do acesso; e d) apresentar informação total ou parcialmente falsa ou enganosa, seja nos sistemas oficiais ou em qualquer outro procedimento adminis- trativo relacionado ao patrimônio genético ou conhecimento tradi- cional associado. Pesquisa com Povos Indígenas No Brasil, as instituições responsáveis por autorizar a pesqui- sa com povos indígenas são aquelas já mencionadas neste texto (CEP, CGEN, SISGEN, SISBIO e FUNAI). Para obter autorização, o pes- quisador pode iniciar os procedimentos com um CEP e a FUNAI, ao mesmo tempo. Os projetos com povos indígenas submetidos aos comitês locais de ética (CEP) através da Plataforma Brasil serão en- caminhados à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Para iniciar o processo de autorização pela FUNAI, o pes- quisador deve enviar uma série de documentos por correio con- vencional, sendo que o passo-a-passo dos documentos a serem en- caminhados estão listados no Quadro 6 (a lista de verificação dos documentos necessários para enviar à FUNAI) (FUNAI 2018). Após 34 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA o registro do projeto na Plataforma Brasil e a aceitação dos docu- mentos fornecidos, o pesquisador poderá enviar o parecer técni- co da CONEP para a FUNAI. Em seguida, a FUNAI é responsável por coletar as assinaturas da comunidade indígena e por apresen- tá-los o projeto. No entanto, é importante notar que essa estrutura de aquisição de autorizações para trabalhar com povos indígenas muitas vezes se torna impraticável dentro da realidade do pesquisa- dor, que tem tempo limitado para realizar sua pesquisa. A FUNAI é dividida estruturalmente em nacional, regional e local, todavia, devido ao grande número de aldeias no Brasil, esta prática de coleta de assinaturas é muito complexa, o que dificulta a obtenção formal da autorização. Por esta razão, a coleta de autorizações é frequente- mente passada e realizada pelo próprio investigador (a), mesmo que, em teoria, não seja permitido entrar na aldeia antes da obtenção da autorização. Além disso, a falta de comunicação entre instituições como a FUNAI e os comitês de ética locais torna o processo ainda mais lento e difícil. Além dessas autorizações, no caso de coleta de material botâ- nico, animal, microbiológico ou fúngico, bem como quando a aldeia está localizada dentro de uma área protegida, o pesquisador deve se registrar no SISBIO e, no caso de realizar acesso ao conhecimento tradicional associado ou recursos genéticos, o pesquisador também deve registrar a pesquisa no SISGEN (ver seção Acesso ao conheci- mento tradicional associado, aos recursos genéticos e a repartição equitativa de benefícios). 35CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Quadro 6. Checklist dos documentos que devem ser enviados à FUNAI 1- Carta do pesquisador solicitando permissão para entrar no território indígena, dirigida à Presidência da FUNAI, especificando a terra e a aldeia indígena, o povo indígena, o período de entrada, informações de contato do pesquisador e uma lista de membros da equipe, se houver. 2 - Carta do orientador da pesquisa, apresentando o pesquisador. 3 - Declaração de vínculo formal com a instituição de pesquisa. 4 - Projeto de pesquisa. 5 - Currículo do pesquisador. 6 - Cópia dos documentos de identificação pessoal do pesquisador e da equipe. No caso de um pesquisador estrangeiro, uma cópia do passaporte com identificação e vistos de entrada no país. 7 - Autorização publicada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) quando é pesquisador estrangeiro. Coleta de material biológico e pesquisa em áreas protegidas Muitos pesquisadores etnobiológicos também precisam cum- prir as normas relacionadas à coleta de material biológico (animais ou plantas) em áreas protegidas como unidades de conservação. A autorização para coleta de material biológico e para pesquisa em áreas protegidas e cavernas federais é realizada através do SISBIO (http://ibama.gov.br/sisbio/sistema/). Os pesquisadores devem cadastrar e atualizar continuamen- te seus dados pessoais, a identificação da instituição científicare- levante e seu currículo na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para registro no SISBIO, além do projeto, o pesquisador deve fornecer outros de- talhes, como os táxons que serão coletados, capturados, marcados http://ibama.gov.br/sisbio/sistema/ 36 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA ou transportados; o destino pretendido para o material coletado; quando a coleta vai acontecer; e se haverá acesso ao patrimônio ge- nético ou conhecimento tradicional associado. No caso de coleta de materiais botânicos, fúngicos ou micro- biológicos que não estejam em unidades de conservação e espécies que não estejam ameaçadas de extinção, não é necessário solicitar autorização via SISBIO. Conclusão: Passo a Passo para a Pesquisa Etnobiológica Cumprindo as Questões Éticas e Legais Para ajudar o leitor na compreensão da complexidade das questões legais, apresentamos um resumo das etapas que os pesqui- sadores da área de etnobiologia e etnoecologia devem realizar para conduzir suas pesquisas de acordo com a legislação brasileira (Fig. 2). Para o uso deste fluxograma, estamos assumindo que as pesqui- sas acessam conhecimento e que todas as instituições e sistemas en- volvidos estão em pleno funcionamento. 37CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Figura 2. Resumo dos passos para o cumprimento dos procedimentos legais na pes- quisa etnobiológica. 38 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Entendendo a realidade local Antes de iniciar qualquer atividade de pesquisa, deve haver uma boa compreensão do contexto local, das instituições represen- tativas da comunidade e do seu interesse pela pesquisa, bem como do conhecimento dos protocolos comunitários da comunidade. Consentimento prévio e informado O consentimento prévio e informado deve ser estabelecido antes de realizar qualquer atividade de pesquisa. Este consentimen- to deve ser desenvolvido com as pessoas ou instituições deliberati- vas identificadas como as autoridades mais representativas de cada comunidade potencialmente afetada. Além disso, no caso de pro- jetos envolvendo mais de uma comunidade, este processo deve ser realizado com cada comunidade em estudo. É essencial enfatizar que, antes de qualquer obrigação legal, existe um dever ético de so- licitar o consentimento prévio informado. Processo de autorizações legais O pesquisador precisa solicitar autorização do CEP ou da CONEP (por meio da Plataforma Brasil). Após a aprovação, o pro- cesso de consentimento prévio informado pode ser iniciado. Se a co- munidade autorizar o projeto, os próximos passos podem ser segui- dos: a) Se a pesquisa acessar patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado de povos indígenas, povos e comunidades tra- dicionais e agricultores familiares sem interesse econômico, deve ser 39CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA registrado no SISGEN. Nós recomendamos que todas as pesquisas etnobiológicas sejam cadastradas, como uma forma de salvaguar- dar o conhecimento de comunidades locais, por mais que não exista essa exigência na lei brasileira. No caso de pesquisa com interesse econômico, isso deve ser notificado no SISGEN, e o procedimento de repartição de benefícios deve ser realizado. b) Se material zoo- lógico for coletado ou material botânico, fúngico e microbiológico ameaçado de extinção ou dentro de área protegida for coletado, o pesquisador precisará da autorização do SISBIO. Após o projeto ter sido autorizado pelo CEP ou pelo CONEP e pelo SISBIO e estar registrado no SISGEN, os pesquisadores devem estar atentos aos prazos dos relatórios e atualizar as infor- mações quando necessário. No caso de pesquisas com povos indí- genas, as autorizações devem ser enviadas para a FUNAI e CONEP concomitantemente. Conduzindo a pesquisa usando de boa-fé A pesquisa deve ser conduzida usando boa fé, respeitando e agindo de acordo com as normas culturais e a dignidade de todas as comunidades potencialmente afetadas, e respeitando as normas e os sistemas de crença relevantes das comunidades seguindo um con- texto holístico. Divulgação e publicação de resultados Nesse estágio, é importante especificar a atribuição, o cré- dito, a autoria, a coautoria e o devido reconhecimento a todos os 40 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA colaboradores dos processos de pesquisa e seus resultados, reco- nhecendo e valorizando especialistas locais e também especialistas acadêmicos. Além disso, todos os usos educacionais dos materiais de pesquisa devem ser consistentes com boa fé e respeito à integri- dade cultural e desenvolvidos em colaboração com tais comunida- des para uso mútuo. Os pesquisadores devem estar atentos a outros acordos necessários antes das publicações e divulgação dos resulta- dos, tais como o uso de fotos e partes de entrevistas ou mesmo dados sobre espécies e usos baseados em conhecimentos tradicionais. Compartilhando resultados As formas de compartilhar os resultados, mesmo quando não enquadradas nas estipulações legais para a repartição de benefícios, devem ser acordadas com as comunidades. Esse processo deve de- finir o formato, as informações e os resultados que serão compar- tilhados com cada comunidade afetada. É importante oferecer su- porte a sistemas de gerenciamento de informações da comunidade, como registros locais e bancos de dados locais. Às vezes, produzir materiais que possam ser usados nas escolas locais pode ser uma maneira de colocar o conhecimento tradicional em primeiro plano, ou produzir materiais impressos usando linguagem acessível, cur- tas-metragens ou outras formas de disseminar os resultados entre os sujeitos da pesquisa. Os pesquisadores devem ser criativos e se preocupar com a realidade local. *** No momento do fechamento do texto deste capítulo, é im- portante enfatizar que o sistema legal ainda apresenta problemas 41CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA operacionais que podem minar o propósito inicial por trás dessas discussões, que são os direitos dos PICL. Resolver esses proble- mas é um desafio para as instituições governamentais envolvidas, e também requer o posicionamento e opiniões informadas de pesqui- sadores de etnobiologia. Finalmente, enfatizamos a importância de etnobiólogos e etnoecólogos, sejam ou não membros de sociedades científicas, de assegurar que as propostas de projetos, planejamento e orçamento sejam apropriados para a colaboração de pesquisa in- terdisciplinar e multicultural e que estejam de acordo com os prin- cípios éticos que orientam as pesquisas etnobiológica. Desta forma, devemos também sensibilizar agências de financiamento e insti- tuições acadêmicas sobre o aumento de tempo e custos que podem estar envolvidos na adesão a esses princípios éticos. A pesquisa et- nobiológica deve envolver não apenas as etapas convencionais de racionalidade teórica / coleta de dados / discussão de resultados / publicação, mas também a incorporação adequada de elementos es- senciais anteriores, tais como consentimento prévio informado e autorizações legais, e elementos subsequentes, como a dissemina- ção de resultados. e compartilhamento de benefícios. Não se trata apenas de seguir as normas legais; trata-se principalmente de res- peitar os direitos humanos fundamentais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais e locais. Agradecimentos Somos gratas à toda equipe do Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica da UFSC por discussões criteriosas sobre os tópicos deste capítulo. RHL e GDB agradecem à CAPES para 42 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA bolsas de doutorado. NH agradece ao CNPq por uma bolsa de pes- quisa (309613 / 2015-9). Agradecemos ainda a Springer pela per- missão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032130275897). Referências AlbuquerqueUP, Hanazaki N, Santilli J. 2013. Acess and benefit-sharing in Brazil: towards the appropriation of the commons. In: Boef WS, Subedi A, Peroni N, Thijssen M, O’Keeffe MTE. (eds.) 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Na sociologia aplicada nos Estados Unidos, por exemplo, métodos biográficos, estudos de caso e métodos descritivos — todos em- pregados na pesquisa qualitativa — foram centrais durante toda a década de 1940, mas a medida em que a complexidade dos fenôme- nos estudados por essa ciência aumentou, o uso da abordagem qua- litativa diminuiu e houve uma maior procura por métodos quanti- tativos (Flick 2014). Foi somente a partir década de 1960 que houve uma forte crítica à utilização de métodos quantitativos, devido a sua falta de subjetividade para entender os seres humanos, o que fez res- surgir a relevância dos métodos qualitativos (ver Flick 2014). Algumas das características mais marcantes da pesquisa qua- litativa são a utilização de diferentes métodos e perspectivas teóricas, além da importância dada ao ponto de vista subjetivo do pesquisador 46 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA e das pessoas que estão sendo estudadas (Flick 2014). A abordagem qualitativa é frequentemente utilizada em estudos descritivos que in- vestigam as populações humanas de determinada região. Essas des- crições podem estar relacionadas aos costumes, as crenças e lingua- gem de algum grupo social. Além disso, a pesquisa qualitativa pode ajudar na descrição de como as pessoas estão lidando com eventos e circunstâncias em que estão envolvidas, tal como falta de alimento devido a alguma catástrofe (ver Paley 2014; Kelly 2016). Uma vez que se decide realizar uma pesquisa qualitativa, o pesquisadoriniciante deve ter uma compreensão considerável das abordagens existentes para identificar qual delas se aplica melhor ao seu questionamento. Ao fazer isso, o erro comum de não saber por onde começar ou não saber que dados coletar pode ser evitado. Nesse sentido, iremos mostrar os principais métodos e os passos ne- cessários para a realização de uma pesquisa qualitativa robusta e de qualidade. Preparação e execução da pesquisa qualitativa A preparação e execução de uma pesquisa qualitativa requer que alguns passos sejam seguidos, para evitar dificul- dades durante sua realização. Assim, mostramos abaixo duas importantes etapas para executar uma pesquisa de qualidade. Revisão bibliográfica e Pergunta de Investigação Antes de iniciar uma pesquisa qualitativa, uma etapa impres- cindível é a realização de uma revisão bibliográfica robusta para 47PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA entender o estado da arte do fenômeno a ser estudado. De acordo com Flick (2014), um erro comum nos livros didáticos sobre pes- quisa qualitativa é não abordar em seus capítulos a relevância de utilizar a literatura existente para direcionar os questionamentos do pesquisador. Isso é reflexo de uma compreensão antiga da pesquisa qualitativa, mais especificamente no seu surgimento, em que qual- quer aspecto estudado de uma população humana era novidade. É um equívoco pensar que existem áreas do conhecimento completa- mente novas para explorar, em que nada foi publicado anteriormen- te, e mesmo levando em conta que nem tudo foi pesquisado, quase tudo o que se quer pesquisar provavelmente vai estar interligado com um campo científico existente (Flick 2014). Fazer uma revisão de literatura é imprescindível, pois ajuda o pesquisador a compreender: os conceitos utilizados e discutidos; os debates teóricos e metodológicos ou controvérsias existentes na abordagem utilizada; o que ainda não foi investigado; a situação social da população de se pretende entrevistar ou observar entre outras vantagens (Flick 2014). Entender o estado da arte possibilita a identificação de lacu- nas — questões em aberto —, e com isso é possível formular uma pergunta de investigação relevante e pertinente para o avanço do seu campo de interesse. Essa é uma etapa fundamental que vai de- terminar o sucesso e guiar todo seu estudo (Flick 2014). Em toda pesquisa, para se obter êxito, a questão de investiga- ção deve determinar qual a melhor abordagem a ser utilizada — se qualitativa ou quantitativa, por exemplo, pois o método escolhido deve se ajustar a questão que pretendemos abordar como cientistas (Leppink 2017). 48 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Escolha do local da pesquisa e Questões Éticas Trabalhar com seres humanos demanda uma atenção espe- cial para as questões éticas. O pesquisador deve, antes de iniciar seu estudo, obter todas as autorizações legais necessárias para a reali- zação da pesquisa em determinado local. As autorizações podem variar de acordo com a região ou país, mas na esfera da ética, algo que o pesquisador não pode deixar de obter é o consentimento das pessoas que aceitarem participar do seu estudo, sendo esse um re- quisito universal (Hammersley 2013). No Brasil, por exemplo, para realizar pesquisa envolvendo seres humanos é necessário: elaboração de um protocolo de pesqui- sa; aprovação do protocolo por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP); obtenção do consentimento do participante por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que esclareça o objetivo da pesquisa, riscos, benefícios, permissão para divulga- ção os resultados entre outros esclarecimentos. Tendo em vista as diferentes exigências para obter certas au- torizações, além do tempo necessário, ao escolher um local de pes- quisa deve-se levar em conta a viabilidade de conseguir as autoriza- ções pertinentes. Certas populações humanas, como as indígenas, possuem particularidades que exigem autorizações específicas dife- rentes das exigidas para se estudar uma população e pescadores tra- dicionais, por exemplo, e isso pode vir a inviabilizar toda a pesqui- sa. Assim, a questão de como obter acesso ao campo — ou seja, ao local de pesquisa — e às pessoas é crucial em um estudo qualitativo (Flick 2014). 49PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA Métodos para desenvolver pesquisa qualitativa Método pesquisa-ação Pesquisa-ação é um método das ciências sociais que utiliza uma maneira cíclica ao refletir sobre os aprimoramentos e/ou so- luções à problemas práticos que ocorrem durante uma ativida- de de pesquisa (Hannigan 1997). Assim, por possuir característi- cas intervencionistas, geralmente é utilizada por professores que buscam entender e superar as dificuldades que surgem no processo de aprendizado (Bath 2009; Wilson 2013; Laudonia et al. 2017). Essa ferramenta envolve a participação de vários tipos de atores sociais, e pode ser considerado bastante útil na solução dos problemas “ime- diatos” que necessitem de soluções “urgentes” (Engel 2000). Os objetivos desse método podem ser caracterizados em duas diferentes perspectivas: i) auxiliando o pesquisador na organização de um conjunto de etapas para guiar o aprimoramento de suas prá- ticas de campo (Tripp 2005) — por exemplo, adaptar a forma de conduzir as entrevistas para melhorar a coleta de dados sobre de- terminado domínio de conhecimento —; e ii) como ferramenta de mudança social do grupo humano pesquisado, analisando critica- mente suas estruturas de poder e investigando as melhores manei- ras de empoderamento e transformação social (Oliveira e Oliveira 1990). Após a identificação de um “problema”, o praticante1, uti- lizando ou não técnicas de pesquisa já estabelecidas na literatura, planeja as melhores alternativas de ação que devem ser realizadas, 1 Nesse texto, os “praticantes” são os atores envolvidos na realização de qualquer prática de pesquisa, ensino ou extensão. 50 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA monitora os resultados obtidos dessas ações e então avalia quais foram os mais eficientes e porquê. Assim, após refletir sobre quais mudanças foram as melhores ou não, utilizam ou recomendam uma “solução” (Tripp 2005; Bath 2009; Beal 2011). Esse processo envolve a utilização de abordagens sistemáticas na identificação de informa- ções para tomadas de decisão e pode, assim, auxiliar alguns estudos etnobiológicos na construção de soluções práticas que podem surgir durante o exercício das atividades de pesquisa. Segundo Tripp (2005), são três os principais tipos de pesqui- sa-ação: i) técnica, em que a solução é testada tomando emprestado outra ferramenta metodológica, aplicando-a diretamente na própria esfera prática em que se busca efetuar a melhora; ii) prática, que uti- liza-se do ciclo da pesquisa-ação no desenvolvimento das mudanças realizadas para alcançar o determinado objetivo, sendo o pratican- te estimulado a questionar o quê, como e quando realizar e aplicar essas mudanças, buscando sempre incluir todos os atores sociais en- volvidos; e iii) política, quando o objetivo é ter a intenção de trans- formar o conhecimento ou crenças do grupo em relação a mudanças de seus sistemas culturais — como, por exemplo, a ressignificação de preconceitos sociais. A escolha da melhor abordagem depende da situação da qual a pesquisa está inserida e de como os pesquisadores articulam os questionamentos cooperativamente entre si ou entre o objeto de estudo (Wilson 2013). Etnografia A etnografia pode ser entendida como um método para coleta de dados baseado no contato direto do pesquisador com os 51PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA indivíduos ou grupos de pessoas que se deseja estudar, durante um determinado período, em que a observação participante e/ou as en- trevistas são utilizadas para investigar e descrever fenômenos em determinado contexto (Almagor e Skinner 2013; Creswell 2013). O termo, originário da fusão das palavras “pessoas” — ethnos — e “representação escrita”
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