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APONTAMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL Autor: Xerardo Pereiro (antropólogo) Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) DESG (Departamento de Economia, Sociologia e Gestão) CETRAD (Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento) UTAD - Pólo de Chaves, Quinta dos Montalvões s/n, Outeiro Seco, Apartado 61, 5401-909-Chaves-Portugal Correio electrónico: xperez@utad.pt Web pessoal: www.utad.pt/~xperez/ ÍNDICE TEMAS Páginas TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 1.1. O que é a antropologia? -A origem etimológica -A antropologia hoje -O objecto de estudo da antropologia -A crise do objecto de estudo da antropologia -O que fazem os antropólogos -A antropologia: ciência ou arte? -A antropologia como espelho da humanidade 1.2. A antropologia e os seus campos de conhecimento. 1.3. Etnografia, Etnologia e Antropologia. 1.4. Os enfoques sectoriais. Bibliografia Sítios em Internet 1-12 TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 2.1. Cultura e Sociedade 2.2. A noção antropológica de cultura 2.2.1. A cultura é aprendida 2.2.2. A cultura é simbólica 2.2.3. A cultura liga-se com a natureza 2.2.4. A cultura é geral e específica 2.2.5. A cultura inclui todo 2.2.6. A cultura é compartida 2.2.7. A cultura está pautada 2.2.8. A gente utiliza criativamente a cultura 2.2.9. A cultura está em todas partes 2.3. Cultura material e imaterial 2.4. A noção sociológica e a noção estética do conceito de cultura 2.5. Os conteúdos do conceito antropológico de cultura 2.6. Os universais da cultura 2.7. A mudança cultural 2.8. A mudança social Bibliografia Sítios em Internet 13-42 TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 3.1. A antropologia e outras ciências humanas e sociais. -O estatuto epistemológico das ciências humanas e sociais. -A antropologia e a psicologia. -A antropologia e a sociologia. -A antropologia e o direito. -A antropologia e a geografia. -A antropologia e a história. -A antropologia e a filosofia. 3.2. Antropologia, folclore e cultura popular. -Antropologia e folclore 43-65 -A cultura popular 3.3. A invenção da tradição 3.4. A antropologia portuguesa. -O desenvolvimento histórico da antropologia portuguesa. -Os usos do popular na antropologia portuguesa. Bibliografia Sítios em Internet TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 4.1. Apresentação 4.2. Os primórdios da antropologia 4.3. O evolucionismo. 4.4. O difusionismo 4.5. O particularismo histórico 4.6. A escola de cultura e personalidade 4.7. O funcionalismo 4.8. O neoevolucionismo, a ecologia cultural e o materialismo histórico 4.9. O estruturalismo 4.10. A antropologia simbólica, a antropologia cognitiva e a antropologia semântica 4.11. A antropologia pós-moderna Bibliografia Sítios em Internet Anexo I: A antropologia moderna e pós-moderna Anexo II: Correntes da antropologia pós-moderna Anexo III: Antigos e novos paradigmas em antropologia Anexo IV: Quadro de síntese da história das teorias da cultura 66-103 TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 5.1. Enfoques da investigação antropológica. 5.2 A investigação antropológica enquanto projecto e processo. 5.3. O trabalho de campo antropológico. 5.4. Técnicas de investigação antropológica. 5.5. A observação etnográfica. 5.6. A entrevista oral. 5.7. A história de vida. 5.8. O antropólogo em contextos urbanos 5.9. A ética do trabalho de campo. 5.10. A escrita antropológica. Bibliografia Sítios em Internet 104-137 TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 6.1. Que é a antropologia linguística? 6.2. Qual é que é a estrutura da linguagem? 6.3. A gramática de transformação e generativa: Noam Chomsky. 6.4. Linguagem, pensamento e cultura: Edward Sapir e Benjamin L. Whorf. 6.5. A teoria do discurso. 138-153 6.6. Etnolinguística e Sociolinguística. 6.7. Metáfora e metonímia. 6.8. A Polisemia 6.9. O Ciberespaço. 6.10. A comunicação não verbal. 6.11. A construção social do idioma. 6.12. A língua como património cultural. Bibliografia Sítios em Internet TEMA 7: A PRODUÇÃO ECONÓMICA 7.1. Antropologia económica 7.2. A reciprocidade 7.3. A redistribuição 7.4. O intercâmbio de mercado 7.5. Modos de produção 7.6. Caça, pesca e recolecção 7.7. Pastorícia 7.8. Cultivos agrícolas: horticultura e agricultura 7.9. A sociedade industrial 7.10. A sociedade pós-industrial Bibliografia Anexo I: Alguns modos de produção Anexo II: Das sociedades pré-industriais às sociedades pós- industriais 154-182 TEMA 8: A ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL 8.1. Introdução -Sociedade -Estrutura social -Comunidade -Colectivo -Grupo -Grupo primário -Grupo secundário 8.2. A estratificação social -Estratificação social a) Escravatura b) Castas c) Sistema feudal d) Sociedade de classes -Mobilidade social 8.3. Dicotomias sociais clássicas -Status/ contrato: Henry J. S. Maine (1861) -Societas/ civitas: L.H. Morgan (1877) -Comunidade/sociedade: F. Tönnies (1887) -Solidariedade mecânica/ solidariedade orgânica: E. Durkheim (1893) -Solidariedade positiva/ solidariedade negativa: E. Durkheim (1893) -Relações comunais/ relações de associação: R.M. Maciver (1917) -Folk/ Urbano: R. Redfield (1941) 183-199 8.4. Críticas às dicotomias sociais clássicas -Oscar Lewis (1953) -Anthony Cohen (1989) Bibliografia Anexo I: Ficha de leitura sobre a imagem da comunidade Anexo II: Mudanças na estrutura social do Nordeste Transmontano TEMA 9: O PARENTESCO 9.1. Introdução: Que é o parentesco? 9.2. Grupos de parentesco 9.3. Tipos de família 9.4. O matrimónio 9.5. Os sistemas de descendência e herança Bibliografia Sítios em Internet 200-208 TEMA 10: AS IDENTIDADES COLECTIVAS E AS ETNICIDADES 10.1. Identidade e alteridade: Paradigmas 10.2. A identidade como constructo relacional 10.3. A noção de raça e a ideologia racial 10.4. Grupos étnicos e etnicidade 10.5. A percepção cultural dos grupos étnicos 10.6. Modelos de convivência intercultural 10.7. O conflito identitário 10.8. Os nacionalismos Bibliografia Sítios em Internet Anexo: Classificação de Linneo 209-230 TEMA 11: A POLÍTICA 11.1. Introdução: política, poder e autoridade 11.2. Os sistemas políticos nos bandos de caçadores e recolectores 11.3. Os sistemas políticos nos sistemas tribais 11.4. Os sistemas políticos nas chefaturas 11.5. Os sistemas políticos nos estados 11.6. Rituais, tradições e ordem social 11.7. O clientelismo Bibliografia Anexo: Formas de organização política e características sociais 231-244 TEMA 12: A RELIGIÃO E OS SISTEMAS DE CRENÇAS 12.1. Introdução. 12.2. Expressões da religião: - Animismo. - Maná e tabu. - Magia e religião. - Ritos de transição ou de passagem. - O Totemismo. - Os mitos 12.3. Religião e Cultura. 245-254 12.4. Religião e Mudança Cultural. Bibliografia TEMA 13: AS IDENTIDADES DE GÉNERO 13.1. O biológico 13.2. O cultural 13.3. A divisão do trabalho segundo o género 13.4. A socialização no género 13.5. As identidades de género 13.6. Género e antropologia do mediterrâneo Bibliografia Sítios em Internet 255-269 TEMA 14: OS URBANISMOS 14.1. Introdução: antecedentes da antropologia urbana. 14.2. Antropologia Urbana: Do estudo dos primitivos ao estudo das cidades e do urbanismo. 14.3. Os modelos de crescimento urbano: A Escola de Chicago. 14.4. Os modelos de expansão da cidade. 14.5. Os modelos de desterritorialização do urbano. Bibliografia Sítios em Internet 270-279 TEMA 15: ANTROPOLOGIA: MODO DE USAR. A APLICAÇÃO DA ANTROPOLOGIA 15.1. Introdução: Breve história da antropologia aplicada 15.2. A antropologia aplicada como campo próprio 15.3. A aplicação da antropologia 15.4. A antropologia aplicada como posição política 15.5. Áreas de aplicação 15.6. Ética da antropologia aplicada 15.7. Trabalhar em antropologia: A situação dos antropólogos em Portugal Bibliografia Sítios em Internet 280-298 APRESENTAÇÃO A história destes apontamentosnasceu no ano 1998, data em que ganhei um concurso par uma vaga de antropologia no pólo da UTAD em Miranda do Douro. Desde essa data, e algo insatisfeito com os manuais de antropologia em língua portuguesa, tenho-me dedicado a construir e organizar notas e reflexões para consulta dos nossos estudantes de antropologia. E ainda que não pretenderam ser, nem são, um manual de antropologia sociocultural, estes apontamentos oferecem um caminho e um percurso orientado para quem se inicie em antropologia sociocultural, representando um ritual de leitura iniciática para aqueles que procuram na antropologia um olhar holístico sobre os problemas humanos. Enquanto introdução à antropologia sociocultural, este conjunto de apontamentos representa também um diálogo da antropologia com outras ciências sociais, contextualizando neste jogo de espelhos a antropologia, os seus objectos tradicionais, as suas correntes de pensamento e os seus métodos de investigação. Apresentado de uma forma didáctica e não tanto erudita, não pretende esgotar os temas e os problemas abordados pela antropologia, porém discutir aquelas questões consideradas mais centrais à disciplina. A sua leitura não exime os alunos da consulta e leitura de manuais e outros textos complementares referenciados na bibliografia geral da unidade curricular “Antropologia Sociocultural”, leccionada por mim na licenciatura em Animação Sociocultural do pólo da UTAD em Chaves. A estrutura destes apontamentos, que servem de auxílio ao programa de antropologia sociocultural, é a divisão em quatro partes. Uma primeira que é a apresentação e fundamentação da antropologia enquanto ciência social e uma das humanidades, a reflexão sobre dois dos objectos centrais na disciplina (o cultural e o social), e também a relação com outras ciências sociais e com o folclore. Na segunda parte abordamos uma breve história das correntes teóricas e de pensamento em antropologia, e também a metodologia etnográfica. Na terceira parte aproximamo-nos de algumas problemáticas centrais na investigação antropológica, isto é, a comunicação, a produção económica, a estratificação social, o parentesco e a etnicidade. Na quarta parte apresentamos as abordagens antropológicas do poder, da religião, do género, dos urbanismos e concluímos com uma reflexão sobre a aplicação e utilidade da antropologia. Todos os temas abordados apresentam um estilo expositivo, com definição de objectivos, índice, apontamentos, tabelas – resumes, bibliografia e Webs de interesse para consulta complementar. A bibliografia de apoio citada apresenta-se, na sua maioria, em língua portuguesa, inglesa e espanhola, tendo em conta as possibilidades dos estudantes e também a formação transcultural do docente (na Galiza, em Espanha, no Reino Unido e em Portugal, especialmente nos seguintes departamentos: Departamento de Filosofia e Antropologia Social da Universidade de Santiago de Compostela, Departamento de Antropologia da Universidade Complutense de Madrid, Departamento de Antropologia da Universidade de Edimburgo, Departamento de Sociologia da Universidade de Milão, Departamento de Antropologia do ISCTE (Lisboa). O fio condutor destas anotações é o estudo do ser humano enquanto ser social e cultural desde a antropologia sociocultural, não limitando-se este estudo aos exotismos tradicionais da antropologia e aplicando esta ao estudo e intervenção nas sociedades complexas e globalizadas de hoje. Tendo em conta isto, ao longo destes apontamentos apelamos a um olhar holístico dos problemas humanos, tão característico da antropologia. Queria agradecer o contributo dos alunos da UTAD das licenciaturas em antropologia aplicada, trabalho social, turismo e animação sociocultural para a escrita destes apontamentos; os seus questionamentos e comentários serviram de desafio para melhor organizar e classificar reflexões dispersas e construídas ao longo da minha carreira profissional. Quero também agradecer aos colegas docentes do ex-pólo da UTAD em Miranda do Douro, aos colegas do CETRAD, do DESG e do pólo de Chaves que estimularam de uma ou outra forma a construção destes apontamentos. TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 1 © APONTAMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL 2011-2012- Prof. Dr. Xerardo Pereiro – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) - antropólogo- Correio electrónico: xperez@utad.pt Web: www.utad.pt/~xperez/ TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? Objectivos -Familiarizar o leitor com termos e conceitos básicos da antropologia. -Contextualizar a antropologia nos campos do saber. -Sensibilizar o discente para uma perspectiva antropológica. Índice 1.1. O que é a antropologia? -A origem etimológica -A antropologia hoje -O objecto de estudo da antropologia -A crise do objecto de estudo da antropologia -O que fazem os antropólogos -A antropologia: ciência ou arte? -A antropologia como espelho da humanidade 1.2. A antropologia e os seus campos de conhecimento. 1.3. Etnografia, Etnologia e Antropologia. 1.4. Os enfoques sectoriais. Bibliografia Sítios em Internet 1.1. QUE É A ANTROPOLOGIA? “Fomos os primeiros a insistir sobre uma série de coisas: que o mundo não está dividido entre o religioso e o supersticioso; que existem esculturas em florestas e pinturas em desertos; que é possível a ordem política sem o poder centralizado, e a justiça normalizada sem regras codificadas; que as normas da razão não foram fixadas na Grécia nem a evolução da moralidade consumada na Inglaterra. E o que é mais importante: fomos os primeiros a insistir em que vemos as vidas dos outros através de lentes por nós lapidadas, e que os outros vêem as nossas vidas através de suas próprias lentes, cuja lapidação foi feita por eles” (Geertz, 1984: 278) (tradução ao português de André Villalobos, em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_08/rbcs08_01.htm consultado o 11-02-2010). A origem etimológica A palavra “antropologia” deriva das palavras gregas “logos” (estudo) e “anthropos” (humanidade) e significa, literalmente, “estudo da humanidade”. Porém, a antropologia, na época antiga, não era exactamente o que é actualmente. Para os gregos e romanos, a “antropologia” era uma “ciência dedutiva”, isto é, uma discussão baseada em deduções abstractas sobre a natureza dos seres humanos e o significado da existência humana. O seu método de verificação do conhecimento era o método dedutivo, que consistia TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 2 em chegar a uma conclusão particular, partindo de premissas universais. Tratava-se, portanto, de um caminho que ai do geral ao particular. A verdade radicava no facto do particular ser uma parte mais do geral. Partia-se de uma teoria geral para testar hipóteses (propostas de relações entre variáveis – dados que variam caso a caso) derivadas dessa teoria. A antropologia hoje Podemos afirmar que a antropologia é hoje: 1. O estudo dos seres humanos enquanto seres biológicos, sociais e culturais. 2. Uma forma de olhar a diversidade, uma atitude ética de sensibilidade e empatia face os outros. 3. Uma profissão na qual se aplicam conhecimentos, métodos, técnicas, sensibilidades e olhares para melhor compreender e lidar com o mundo. Na profissão de antropólogo um dos seus exercícios fundamentais é a tradução intercultural e entre sistemas sociais. Em primeiro lugar, a antropologia é uma ciência que formula conclusões e abstracções sobre a natureza humana, tendo como base um conhecimento derivado da observação sistemática da diversidade cultural humana. Este conhecimento serve, assim, para a construção de teorias que interpretam os fenómenos socioculturais. Estes conhecimentos, tal como os métodos e as teorias da antropologia, servem para ser aplicados na melhoria das condições de vida das populações estudadas. Poderíamos afirmar que a antropologia é uma viviciência, como costuma denominar o antropólogo Miguel Vale de Almeida.Em segundo lugar, a antropologia actual é uma forma de olhar/perspectivar o “outro”, estudar as diferentes racionalidades (Gondar e outros, 1980), explorar e respeitar a diversidade sociocultural. Essa forma de olhar/perspectivar implica pensar a convivência intercultural e lutar contra a exclusão, a desconexão e a discriminação social. A antropologia desmascara e desconstrói a realidade para olhar desde o outro lado do espelho. A antropologia é falar dos outros a outros depois de percorrer a distância que nos separa deles, percebe-los, conhece-los, compreende-los, pôr-se no seu lugar e respeita-los. A antropologia é uma forma de conhecer-nos a nós próprios através dos outros (Bestard e Contreras, 1987: 5). Em terceiro lugar o antropólogo é um profissional “...que estuda as culturas das diversas populações em todas as suas manifestações (tecnologia, sistemas de valores e crenças, organização social) e as estruturas e modelos culturais em geral, com um método interdisciplinar...” (De la Fuente, 1998). Desde este ponto de vista a antropologia é uma profissão, com um corpus teórico-metodológico, uma ética deontológica e um conjunto de profissionais que a exercem enquanto profissão (De Pina Cabral, 1998). O objecto de estudo da antropologia Os modos de vida de outras partes do mundo costumam fascinar, estranhar ou gerar uma visão exótica. A antropologia oferece um conhecimento humano e comparativo do mundo e da sua diversidade cultural. Podemos estabelecer, TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 3 relativamente ao seu objecto de estudo, os seguintes tipos de definições – a antropologia: 1. Estuda os seres humanos em geral, e estabelece leis válidas para o conjunto da humanidade. 2. Estuda os produtos e as acções dos seres humanos: comportamento social, costumes, cultura, rituais, parentesco, vida quotidiana, cultura material, tecnologia, relações sociais, etc. 3. Estuda grupos humanos ou culturas de todas as épocas e partes do mundo. 4. Estuda alguns tipos de sociedades: “primitivas”, pré-industriais, simples, “complexas”, “tradicionais”, industriais, pós-industriais, não ocidentais, ocidentais... A crise do objecto de estudo da antropologia Anteriormente, a antropologia era pensada como o estudo das sociedades sem escrita, etiquetadas, sob uma perspectiva evolucionista, como “sociedades primitivas”. Nesta perspectiva, essas sociedades coincidiam basicamente com as sociedades não ocidentais. O termo de “primitivo” foi, no entanto, abandonado devido à sua notação pejorativa e ao falso binómio selvagem / civilizado. A partir de então, a antropologia foi pensada como o estudo de pequenas comunidades camponesas, nas quais as relações interpessoais e a falta de especialização económica eram muito importantes, assim como a sua homogeneidade e o seu equilíbrio internos. A antropologia virou-se assim para Ocidente. Posteriormente, a antropologia dos “primitivos” e dos camponeses passou a ser uma antropologia “no” e “do” espaço urbano e do urbanismo. Desta forma, a antropologia passou a ser uma ciência que estuda qualquer problema sociocultural, em qualquer parte do mundo. Em síntese, actualmente, podemos pensar a antropologia como uma disciplina que: Estuda a cultura inserida num contexto social. Estuda a conduta humana e o seu pensamento, no seu contexto social e cultural. Estuda as semelhanças e as diferenças entre as culturas: o que nos faz iguais e o que nos faz diferentes, relativamente “ao (s) outro (s)”. SUJEITO: HUMANO OBJECTO: HUMANOS TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 4 Estuda as formas de pensar, perceber e lidar com os múltiplos “outros”. Exemplo etnográfico: Existe um mito cherokee que descreve, da seguinte forma, a origem dos seres humanos: O criador pegou num pedaço de barro, fez uma figura e meteu-a no forno. Pouco tempo depois, tirou-a do forno. Uma vez que a figura tinha assado pouco tempo, saiu um ser humano branco com a face pálida –“os rostos pálidos”. De seguida, o criador fez outra figura e meteu-a, igualmente, no forno, deixando-a aí muito tempo. Dessa figura saiu um ser humano preto. Finalmente, voltou a fazer outra figura e meteu-a no forno o tempo justo, criando, assim, os cherokee. O que fazem os antropólogos? Além de comer, dormir, defecar e outras actividades humanas os antropólogos fazem: Trabalho de campo: Recolhem dados sobre a cultura e descrevem fenómenos socioculturais. O trabalho de campo é uma metodologia, inventada por antropólogos, que tem como base a integração no grupo humano estudado e como objectivo a compreensão das suas pautas culturais. Neste contexto, a observação participante emerge como a técnica de investigação fundamental, mas também como a atitude a adoptar. A antropologia não é uma ciência do exótico, praticada por académicos fechados numa torre de marfim: o antropólogo partilha muito tempo com as pessoas, a falar, ouvir, observar, gravar, participar, escrever, anotar, perguntar, etc. O antropólogo convive e partilha experiências humanas com as pessoas estudadas, como o objectivo de traduzir a sua experiência. Ler sobre a batalha de Normandia não é o mesmo do que ter participado nela. Comparam culturas: Comparam culturas com outras culturas, descrevendo as suas semelhanças e diferenças. Interpretam as culturas: Interpretam a realidade humana, descobrem os seus sentidos e significados e criam teorias socioculturais. Exemplos: a garrafa está meio cheia ou meio vazia?; o movimento do olho, é um tic ou um piscar de olhos a alguma pessoa?. Severo Ochoa distinguiu-se como um médico, chegando a ser “Prémio Nobel de Medicina”. Durante a sua vida académica, reprovou a algumas disciplinas. O que é que isto pode significar? a) que um mau aluno chegou a ser prémio Nobel; b) que um bom aluno pode reprovar... Aplicam a antropologia: Aplicam teorias, métodos e conhecimentos antropológicos, para melhorar as condições de vida das populações (aplicação e aplicabilidade da antropologia). A primeira aplicação da antropologia é no campo da educação. Ensinar antropologia é uma forma de aplicação da mesma. Portanto em antropologia faz-se investigação e também intervenção social. O que se pensa que fazem os antropólogos Coisas que fazem os antropólogos Os antropólogos desenterram Estudam cultura e culturas. TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 5 ossos. Os antropólogos medem crânios. Os antropólogos estudam povos estranhos. Os antropólogos são românticos, sonhadores e idealistas, mas não servem para nada. Fazem trabalho de campo. Desenham políticas públicas (ex.: agricultura, urbanismo...) Organizam os recursos humanos de muitas empresas. Os seus trabalhos diminuem o etnocentrismo e o racismo. Contribuem para a tolerância e para a convivência pacífica. Ajudam a minorar problemas como o SIDA, a toxicodependência, etc. A antropologia: ciência ou arte? A antropologia é, para alguns, uma ciência social que enfatiza a objectividade, a observação sistemática e a explicação. De acordo com esta perspectiva, a ciência é entendida como um modo de conhecer e de gerar afirmações sobre o mundo, mas também como uma forma de contrastar as afirmações sobre a verdade do mundo. A ciência não é, porém, o único modo de produzir conhecimento sobre o mundo. Conhecer é um modo de presença e de representar o mundo, é um modo de relação entre um sujeito e um objecto através de uma mediação (Hessen, 1961). Segundo Wallace (1980) os modos de produção de conhecimento podem ser classificados da seguinte forma: A) Modo autoritário: Conhecimento por referência aos produtores, socialmente qualificados. Exemplo: velhos, bispos e professores. B) Modo místico: Conhecimento que se baseia na referência a um ser natural ou sobrenatural. Exemplo: profetas, médiuns, deuses... Este tipo de conhecimento é alcançável através de rituais comoo transe. C) Modo lógico - racional: Neste caso, a produção de conhecimento fundamenta-se em regras da lógica formal; i.e.: premissa A, premissa B, portanto, conclusão C. É a aplicação do senso comum. D) Modo científico: É um processo que implica testar os enunciados, através da observação e dos dados produzidos, para alcançar generalizações empíricas e formular teorias. E se, para alguns, a antropologia é uma ciência social, para outros a antropologia é uma das Humanidades. Nesta perspectiva, a antropologia enfatiza a subjectividade, o relativismo cultural, a compreensão dos participantes e o significado que as acções socioculturais têm para as pessoas. O antropólogo faz parte da etnografia que observa: é uma pessoa que estuda outras pessoas, é um sujeito que estuda outros sujeitos humanos (objecto de estudo), o que implica uma inter-subjectividade na forma de produzir o conhecimento. Sob este ponto de vista, a antropologia pode ser considerada uma forma de arte. As leis da antropologia são diferentes das Ciências Naturais, aproximam-se mais do “certum” do que do “verum”. A antropologia TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 6 pode atingir a objectividade? Podemos ser objectivos quando o sujeito de investigação é a humanidade e o que esta tem de humano? As ciências sociais e as ciências em geral não estão isentas de valores e de subjectividades. Assim, por exemplo, um químico pode aplicar a química para construir uma bomba atómica ou para curar o cancro. Portanto, não pode existir ciência sem consciência e sem uma ética moralmente humanista. Outro exemplo é o do construtor de “futuro” Bill Gates: “A tradução por computador só é possível a um nível muito elementar. O imprescindível exercício de interpretação fica reservado aos humanos” (Gates 1999). No caso das ciências sociais, estas não podem chegar a ser puramente e absolutamente objectivas. Todas elas podem utilizar ferramentas, mecanismos e instrumentos que objectivam a intersubjectividade e a produção de conhecimento sobre a realidade humana. Portanto, podemos afirmar que a antropologia é uma ciência social que, às vezes, actua metodologicamente como se fosse uma arte. A antropologia enquanto espelho para a humanidade A antropologia é um espelho para a humanidade, isto é uma “ciência das semelhanças e das diferenças humanas” (Kluckhon 1944: 9), que da resposta ao dilema da convivência intercultural entre pessoas com modos de vida diferentes. Esta preocupação pela diversidade humana é uma das chaves da antropologia, pois ao observarmos os outros podemos ver-nos, mais claramente, a nos próprios. A antropologia tenta ver o mundo num grau da areia e também do outro lado do espelho, para de forma empática compreender melhor o ser humano. 1.2. A ANTROPOLOGIA E OS SEUS CAMPOS DE CONHECIMENTO CAMPOS DA ANTROPOLOGIA As diferenças entre os vários campos da antropologia baseiam-se, essencialmente, nos objectos de estudo e problemáticas de análise, mas também no que concerne às teorias, métodos de estudo e tradições académicas concretas. A. Antropologia Filosófica. O seu objecto de estudo é a pessoa humana como ser genérico; aquilo que as pessoas têm em comum. Estuda generalidades e utiliza conceitos muito abstractos. O seu método é geralmente introspectivo: dedica-se ao interior da pessoa humana e trabalha sobre “o conceito do conceito”. B. Antropologia Física. Estuda a evolução biológica humana, isto é, a relação entre a evolução biológica e a cultural; utiliza métodos como a paleoantropologia (estudo dos antepassados humanos; é uma tentativa de desvelar a evolução biológica dos humanos, desde o primeiro momento do aparecimento dos primatas até aos nossos dias), a antropometria (medições anatómicas), a anatomia comparativa (estudo comparativo de fósseis humanos) ou a raciologia (classificação das raças humanas). Actualmente, utilizam métodos próprios da genética molecular para distinguir aos primates dos humanos. Nos E.U.A., e relativamente a este uso da genética molecular, os antropólogos físicos preferem ser chamados “antropólogos biológicos”. C. Antropologia Sociocultural. Estuda as diferenças entre humanos e animais (os humanos criam e têm culturas). TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 7 C.1. Antropologia Cultural. É uma terminologia norte-americana. O seu fundador Franz Boas, um alemão emigrado aos E.U.A. que converteu a museística (etapa prévia à antropologia cultural) norte-americana em ciência. Boas formou-se numa escola neokantista e o seu esquema teórico de referência é o da Ilustração. A Ilustração da Alemanha reage, teoricamente, ao mundo medieval (teocentrismo: Deus centro de todo), e propõe como alternativa o antropocentrismo (o humano como centro do mundo). O objectivo era ultrapassar os esquemas das crenças para chegar aos esquemas da razão. É preciso converter o ser humano num ser científico. Para a Ilustração alemã o ser humano é duplo: a) Por um lado, comparte características biológicas com o resto dos seres vivos. É necessário, portanto, uma ciência que estude os humanos como um animal, a antropologia física. b) Por outro lado, os humanos são capazes de elaborar coisas que os animais não podem criar: a linguagem, a tecnologia, símbolos, etc. Este conjunto de coisas que os humanos produzem e aprendem, enquanto membros de uma sociedade, é aquilo que os alemães chamam “KULTUR” (cultivar: algo que só podem fazer os humanos). O estudo da “kultur” é a antropologia cultural. Quando Franz Boas chegou aos E.U.A., empenhou-se em divulgar estas ideias, definindo a antropologia cultural, no sentido de obras materiais e espirituais especificamente humanas. C.2. Antropologia Social. É um termo que nasce no Reino Unido, depois de superar, igualmente, uma fase museológica. Para os britânicos, a referencia não foi a Ilustração, mas o francês Emile DURKHEIM que elaborou um modelo de pensamento de reacção á Ilustração. Segundo Durkheim, se queremos estudar os seres humanos, não podemos basearmos, exclusivamente, nos seus produtos, porque os produtos são determinados pela sociedade em que esses produtos são criados. Nada garante que os produtos culturais continuam a ter a mesma significação que tinham aquando da sua elaboração e utilização. Portanto, não é possível estudar os produtos humanos sem estudar a sociedade que os gera. Caso contrário, não teríamos garantias de conhecer o sentido e significado desses objectos ou produtos culturais. A antropologia social britânica defendeu que era necessário estudar, primeiramente, a sociedade, para depois fazer uma análise dos produtos humanos (“kultur”). Esta perspectiva sublinha mais alguns conceitos como os de: estrutura social, instituição familiar, formas de organização política e económica, controlo social, etc. Na actualidade, a diferença não existe na prática, pois os antropólogos estudam tanto as relações sociais, como os produtos culturais. A única diferença que pode surgir relaciona-se com uma questão de ordem. Estamos perante o que denominamos por antropologia sociocultural. D. Antropologia Aplicada. A contribuição da antropologia, para as culturas TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 8 que estuda, tem sido muito importante. O reconhecimento do seu serviço público motivou a origem de uma outra subdisciplina, a antropologia aplicada que trata da aplicação de dados, teorias, perspectivas e métodos antropológicos para identificar, avaliar e resolver problemas sociais contemporâneos. Algumas das suas áreas são: a saúde e a enfermagem; a planificação familiar; o desenvolvimento económico; a animação sociocultural; o turismo, os museus, a planificação urbana, etc.. Neste sentido, a antropologia aplicada estuda a cultura, para depois elaborar projectos de acção, intervenção e mudança cultural, dentro de um sistema de referência concreto. Além disso, a antropologia também pratica a investigação-acção partipada e a co- investigação.A ANTROPOLOGIA NOS EUA Nos E.U.A., a Antropologia inclui 5 subdisciplinas: -Antropologia sociocultural ou cultural. -Antropologia arqueológica (estudo das culturas do passado, através das suas permanências materiais). Divide-se em pré-história (sociedades sem registos escritos) e arqueologia histórica (sociedades com registos escritos, sobre a sua história). -Antropologia biológica. -Antropologia linguística. -Antropologia aplicada. Todas elas se incluem nos departamentos de antropologia. A antropologia norte-americana nasceu do interesse pela história e pelas culturas das populações nativas (“os índios norte-americanos” -Mito cherokee da criação dos humanos:...), permanecendo certa unidade entre as 4 subdisciplinas. A ANTROPOLOGIA NA EUROPA “Antropologia Social” (Reino Unido) “Etnologia” (França) “Etnografia” (Rússia) Na Europa, não foi desenvolvida uma antropologia tão unificada. As anteriormente chamadas subdisciplinas existem de uma forma independente. Ainda que as paisagens mudam algo de país a país, penso que podemos afirmar que a arqueologia está mais próxima da História, a antropologia física mais próxima da biologia e da medicina e a antropologia sociocultural mais próxima da sociologia e de outras ciências humanas e sociais. A ANTROPOLOGIA NO REINO UNIDO (Fonte: Lienhardt, 1982) 1837: Buxton e Hdogkin fundaram a Sociedade Protectora dos Aborígines. 1840: Fundou-se a Sociedade Etnológica de Londres, que elaborou um questionário de costumes tribais para viageiros e militares. Também TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 9 criou um diário tipo para descrever as outras culturas visitadas. Entre 1863 e 1865 a Sociedade Antropológica de Londres passou de 11 a 500 associados. No ano 1908, James Frazer, autor de “O Ramo Dourado”, chegou a ser o primeiro catedrático de antropologia social do Reino Unido, na Universidade de Liverpool. A ANTROPOLOGIA NA FRANÇA 1. Denominada, inicialmente, “Etnologia”. 2. Desenvolvida, como disciplina de ensino, a partir de 1927, no “Institut d´Ethnologie del Musée de l´Homme” (Paris). Antropologia física. Tecnologia. Pré-História. Linguística. Etnologia. 3. O “Musée de l´Homme” dependia do Museu de História Natural, porque se pensava que a antropologia era uma subdisciplina da história natural. Havia um determinismo biológico de acordo com o qual se considerava que as diferenças culturais eram fruto das diferenças biológicas entre os humanos. 4. O “Centre d´Ethnologie Française” (CEF) é uma secção do CNRS (algo parecido com CSIC espanhol ou com o ICS português) que está associado ao Museu Nacional de Artes e Tradições Populares (Paris). O CEF é, actualmente, dirigido por Martine Segalen, especialista em antropologia da família europeia. O CEF publica a revista “Ethnologie Française”. 5. Mision du Patrimoin Ethnologique (1979 - ). Possibilitou a emergência de etnólogos regionais, sob os auspícios do Ministério de Cultura. 1. 3. ETNOGRAFIA, ETNOLOGIA, ANTROPOLOGIA De acordo com o antropólgo Claude Lévi Strauss (1992) há três níveis de interpretação das culturas: 1º. Etnografia: simples descrição e narração da cultura. -Etno: cultura, costumes,... -Grafia: escrever, descrever, etc. Exige investigação de terreno com observação directa. A etnografia é uma retórica que constrói a realidade, a partir de uma reflexividade dialógica entre o antropólogo e os humanos estudados. 2º. Etnologia: Nível da procura de razões e comparações de costumes e culturas. Não se relega à mera descrição dos factos. -Etno: Costumes... TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 10 -Logia: razão, tratado de... Classifica povos, de acordo com as suas características culturais, e explica a distribuição de traços culturais. Coimpara culturas, grupos humanos, traços culturais, territórios, regiões, áreas culturais. Compara o passado e o presente de um grupo humano, numa perspectiva etnohistórica. 3º. Antropologia: Nível de interpretação global e holística (a totalidade da experiência humana: biologia, cultura, história, economia...) dos fenómenos culturais. Estuda o comportamento sociocultural (ex.: através de instituições como a família, os sistemas de parentesco, a organização política, os rituais religiosos, etc.) de grupos humanos passados e presentes. Estuda as regularidades e regras culturais da vida em sociedade. Na realidade, estes três níveis convergem e interagem. Mas, no que concerne ao processo de investigação, ensina-se os alunos que este se deve iniciar com a etnografia, seguindo-se a etnologia e, depois, a antropologia. Na França, o termo “Etnologia” e o termo “Antropologia” são sinónimos, embora esta acepção não esteja isenta de controvérsia: o antropólogo Claude Lévi-Strauss defendeu que estes conceitos não eram sinónimos, afirmando que a etnologia procurava estudar os sentidos de uma cultura de uma área particular e que a antropologia procurava os sentidos dos comportamentos culturais comuns a toda a humanidade. Exemplo etnográfico: ETNOGRAFIA ` Os índios guayakis (Paraguai) abandonam os seus velhos, pintam os seus corpos com linhas oblíquas e rectângulos curvos, praticam a poliandria, comem os seus mortos e batem às meninas que têm a primeira menstruação com pénis de tapir...” (Pierre Clastres: Chronique des indiens Guayaki). ETNOLOGIA Guayakis Portugueses - Abandonam os mais idosos quando estes não conseguem valer-se a si próprios. - Cuidam dos mais idosos até estes falecerem. ANTROPOLOGIA - Redução da distância entre as gerações de netos e avós, no interior do grupo doméstico da mãe. - Obrigação sociocultural de prestar cuidados aos pais: relação com a herança post-mortem e com a segurança da conservação do património. TEMA 1: QUE É A ANTROPOLOGIA? 11 1.4. OS ENFOQUES SECTORIAIS Dentro da antropologia sociocultural, há uma série de enfoques de abordagem ou subdisciplinas. Estes procuram estudar, em profundidade, algumas dimensões do comportamento humano: Os humanos vivem em meios ecológicos diferentes que afectam aos comportamentos culturais. A subdisciplina que trata das relações entre os humanos e o meio ambiente é a “Antropologia Ecológica”. Além disso, os humanos necessitam produzir uma série de bens para a sua subsistência e consumo: esta é a perspectiva da “Antropologia Económica”. Os humanos necessitam de regras e formas de organização para viver: as regras e organizações políticas são estudadas pela “Antropologia Política”. O mundo simbólico e cognitivo é estudado pela “Antropologia Cognitiva e Simbólica”. Poderíamos continuar a enumerar uma série de subdisciplinas, com um campo especializado de estudo, com perspectivas e teorias próprias, mas todas se baseiam e constroem, simultaneamente, a antropologia, como disciplina académica. BIBLIOGRAFIA -BERNARDI, B. (1974): Introdução aos estudos etno-antropológicos. Lisboa: Edições 70. -BESTARD, J. E CONTRERAS, J. (1987): Bárbaros, paganos, salvajes y primitivos. Una introducción a la Antropología. Barcelona: Barcanova. -DE LA FUENTE GÓMEZ, C. (1998): Todos los estudios y carreras. Barcelona: Planeta. -DE PINA CABRAL, J. (1998): “A antropologia e a questão disciplinar”, em Análise Social vol. XXXIII (149), pp. 1081-1092. -GATES, B. (1999): “El maestro y el ordenador”, em http://www.el- mundo.es/navegante/99/octubre/03/entrevista.gates.html -GEERTZ, C. (1984): “Distinguished Lecture. 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México: FCE. -LOMBARD, J. (1997, or. 1994): Introducción a la Etnología. Madrid: Alianza. -MAIR, L. (1973, or. 1965): Introducción a la Antropología Social. Madrid: Alianza. -MAGAZINE NOTÍCIAS(Ed.)(2000): “O fascínio pela diferença. Entrevista a Paulo Mendes”. Porto: Jornal De Notícias n.º 412, 16-4-2000, pp. 8-12. -NADEL, S.F. (1974, or. 1951): Fundamentos de Antropología Social. Madrid: FCE. -OMOHUNDRO, J.T. (1998) Career advice for undergraduates. General Anthropology n.º 4(2), pp. 1-6. -ROSSI, I. E O´HIGGINS, E. (1981, or. 1980): Teorías de la cultura y métodos antropológicos. Barcelona: Anagrama. -SCHERURMAUN, E. (Comp.)(1996, or. 1975): Los Papalagi. Discurso de Tuiavii de Tiavea. Barcelona: Integral. -TUAVII (1997, or. 1929): Papalagui: Discursos de Tuiavii, chefe da tribo de Tiavea nos Mares do Sul. Lisboa: Brochado. -WALLACE, W. L. (1980): La lógica de la ciencia de la sociología. Madrid: Alianza. SÍTIOS EM INTERNET http://www.antropologi.info/links/Main/Journals (Revistas de antropologia de acceso livre) http://www.aaanet.org/publications/anthrosource/ (Revistas de antropologia certificadas pela American Anthropological Association) http://www.easaonline.org (Associação de Antropologos Europeus) http://www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html (Web do Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva, Universidade de São Paulo) http://www.louisville.edu/a-s/anthro/whatis.htm (Departamento de Antropologia da Universidade de Louisville) http://www.ub.es/antropo/estrada/ASEstudiants.html (Departamento de Antropologia da Universidade de Barcelona) TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 13 © APONTAMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL 2011-2012- Prof. Dr. Xerardo Pereiro – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) - antropólogo- Correio electrónico: xperez@utad.pt Web: www.utad.pt/~xperez/ TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE Objectivos: -Que o aluno compreenda a noção de cultura e a sua interligação com o social. -Que o aluno se familiarize com os conteúdos conceituais e as dinâmicas das culturas. -Dialogar com a turma e colocar a questão nas suas mentes. -Problematizar os conceitos com exemplos etnográficos. -Debates sobre as definições de cultura Guião: 2.1. Cultura e Sociedade 2.2. A noção antropológica de cultura 2.2.1. A cultura é aprendida 2.2.2. A cultura é simbólica 2.2.3. A cultura liga-se com a natureza 2.2.4. A cultura é geral e específica 2.2.5. A cultura inclui tudo 2.2.6. A cultura é compartida 2.2.7. A cultura está pautada 2.2.8. A gente utiliza criativamente a cultura 2.2.9. A cultura está em todas partes 2.3. Cultura material e imaterial 2.4. A noção sociológica e a noção estética do conceito de cultura 2.5. Os conteúdos do conceito antropológico de cultura 2.6. Os universais da cultura 2.7. A mudança cultural 2.8. A mudança social Bibliografia Sítios em Internet 2.1. CULTURA E SOCIEDADE “As pessoas querem cultura, delimitada, reificada, essencializada e atemporal, algo que hoje em dia as Ciências Sociais rejeitam em geral” (Sahlins, 1999: 399). A antropologia, enquanto ciência social e humana que é, estuda o ser humano como um animal social e cultural. Cultura e Sociedade são palavras sinónimas na fala: “Pertencemos à sociedade portuguesa”, “vivemos dentro da cultura portuguesa”. Mas os científicos sociais tentam definir de uma maneira mais exacta, porque é preciso ter conceitos afinados para analisar correctamente os fenómenos sociais e culturais. Em realidade não são sinónimos, pois dentro de uma sociedade podem coexistir diversas culturas. Portanto podem entrar em conflito sociedade e cultura. TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 14 SOCIEDADE Há um consenso á hora de considerar a sociedade como “um grupo de pessoas”, “que interligam entre si” e “que estão organizados e integrados numa totalidade” para atingir algum objectivo comum. No interior de uma sociedade podem coexistir e existem varias culturas e subculturas. A diversidade cultural é cada vez mais inerente a todas as sociedades devido ao aumento dos contactos interculturais. Sócrates (in Carrithiers, 1995: 13) já se perguntava cómo devemos viver e a antropologia faz uma pergunta semelhante: como viver juntos?. De aí que o conhecimento da diversidade cultural seja um bem por ele próprio. A Sociedade está organizada através de um sistema. RELAÇÕES SOCIAIS As relações sociais são tipos de acção pautada, e os antropólogos sociais estão interessados nas pautas de interacção social que existem no interior dos grupos, pelos papéis sociais (expectativas de conduta dos indivíduos que realizam alguma tarefa) e a estrutura social (a ordenação dos componentes ou grupos de cada sociedade). As pessoas fazem coisas com, para e em relação com outras pessoas. A estrutura social é um quadro para a acção (Firth, 1964: 35). CULTURA → Modo de vida (Linton, 1945: 30): pensar, dizer, fazer, fabricar Cultura é um dos conceitos mais difíciles de definir no vocabulário antropológico. Em 1871, o antropólogo E.B. Tylor (1975) definiu a cultura como: “esse todo complexo que incluí conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes e toda a série de capacidades e hábitos que o Homem adquire enquanto que membro de uma sociedade dada”. Esta definição, criada no século XIX e à qual sempre olhamos como referência, trata das qualidades que temos os humanos enquanto membros de uma sociedade: -Cultura não material (“Ideofacto”): crenças, normas e valores. São os princípios acordados de convivência. -Cultura material (“Artefacto”): tecnologia. São as técnicas de sobrevivência. Mas estas qualidades não são inatas (biológicamente herdadas), porém são adquiridas como parte do crescimento e desenvolvimento de uma determinada cultura. HOLISMO Na actualidade é próprio dos antropólogos tentar explicar cada elemento da cultura concreta pela sua relação com os outros. É esta perspectiva denominada “holística”, pois intenta ligar os aspectos culturais e os aspectos sociais, uns são incompletos sem os outros e ao revés. Acontece que os antropólogos socioculturais podem salientar alguns aspectos mais do que os outros, porém na realidade os valores e as crenças são inseparáveis da estrutura social e a organização social. Marcel Mauss (1988: 200) chamava a isto “facto social total” ou “geral”, porque põe em movimento a totalidade da sociedade e das suas instituições. Estes fenómenos são, a um tempo, jurídicos, económicos, religiosos, estéticos, morfológicos, sociais, etc. TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 15 Exemplo: Um operário de uma fábrica de Verim, no fim do seu trabalho saia dela em bicicleta, caminho de Chaves era parado e inspeccionado por um guarda em Feces, mas como não levava outra coisa nela, deixavam-no passar, assim durante várias semanas, até que se descobriu que o que roubava eram bicicletas. O guarda só olhava uma parte, não o todo. ↔ Parentesco ↔ ↔ Economia ↔ ↔ Organização social ↔ ↨ ANTROPOLOGIA ↨ ↔ Política ↔ ↔ Identidades ↔ ↔ Meio ambiente ↔ 2.2. A NOÇÃO ANTROPOLÓGICA DE CULTURA Numa obra dos antropólos Alfred Kroeber e C. Kluckhohn (1963) foram reunidas 164 definições do conceito de cultura. Mais recentemente o antropólogo brasileiro Roque de Barros Laraia (2009) e o antropólogo espanhol Ángel Díaz de Rada (2010) realizaram reflexões profundas sobre este conceito tão complexo.Apresentamos neste ponto o que têm em comum estas definições e as características da noção antropológica de cultura. Vamos analisar agora algumas definições que representam a diversidade e a complexidade deste conceito e que nos podem ajudar a entender melhor as características da noção antropológica de cultura: E.B. TYLOR (1975, or. 1871) “A cultura ou civilização, num sentido etnográfico alargado, é aquele tudo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e qualquer outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem em quanto que membro da sociedade” (Tylor, 1975: 29). F. BOAS (1930) "La cultura incluye todas las manifestaciones de los hábitos sociales de una comunidad, las reacciones del individuo en la medida en que se ven afectadas por las costumbres del grupo en que vive, y los productos de las actividades humanas en la medida en que se ven determinadas por dichas costumbres” (Boas, 1930:74; citada por Kahn, 1975:14). B. MALINOWSKI (1931) "Esta herencia social es el concepto clave de la antropología cultural, la otra rama del estudio comparativo del hombre. Normalmente se la denomina cultura en la moderna antropología y en las ciencias sociales. (...) La cultura incluye los artefactos, bienes, procedimientos técnicos, ideas, hábitos y valores heredados. La organización social no puede comprenderse verdaderamente excepto como una parte de la cultura" (Malinowski, citada por Kahn, 1975:85). W.H. GOODENOUGH (1957) TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 16 “La cultura de una sociedad consiste en todo aquello que conoce o cree con el fin de operar de una manera aceptable sobre sus miembros. La cultura no es un fenómeno material: no consiste en cosas, gente, conducta o emociones. Es más bien una organización de todo eso. Es la forma de las cosas que la gente tiene en su mente, sus modelos de percibirlas, de relacionarlas o de interpretarlas” (Goodenough, 1957:167; citada por Keesing, 1995: 56). C. GEERTZ (1966) "La cultura se comprende mejor no como complejos de esquemas concretos de conducta —costumbres, usanzas, tradiciones, conjuntos de hábitos—, como ha ocurrido en general hasta ahora, sino como una serie de mecanismos de control — planes, recetas, fórmulas, reglas, instrucciones (lo que los ingenieros de computación llaman "programas")— que gobiernan la conducta" (Geertz, 1987: 51). L.R. BINFORD, L.R. (1968) “Cultura é todo aquele modelo, com formas que não estão baixo o controlo genético directo... que serve para ajustar aos indivíduos e os grupos nas suas comunidades ecológicas”, (Binford, 1968: 323; citada por Keesing, 1995: 54). R. CRESSWELL, R. (1975) "[A cultura é] a configuração particular que adopta cada sociedade humana não só para regular as relações entre os factos tecno –económicos, a organização social e as ideologias, porém também para transmitir os seus conhecimentos de geração em geração (Cresswell, 1975: 32). M. HARRIS (1981) "La cultura alude al cuerpo de tradiciones socialmente adquiridas que aparecen de forma rudimentaria entre los mamíferos, especialmente entre los primates. Cuando los antropólogos hablan de una cultura humana normalmente se refieren al estilo de vida total, socialmente adquirido, de un grupo de personas, que incluye los modos pautados y recurrentes de pensar, sentir y actuar" (Harris, 1982:123). A. GIDDENS (1989) "Cultura se refiere a los valores que comparten los miembros de un grupo dado, a las normas que pactan y a los bienes materiales que producen. Los valores son ideales abstractos, mientras que las normas son principios definidos o reglas que las personas deben cumplir" (Giddens, 1991:65). P. WILLIS (2003) “... es un sistema relativamente coherente de acciones materiales y de sistemas simbólicos engranados que, con respecto a cada área, tienen sus propias prácticas y objetivos; y que estas prácticas y objetivos constituyen el medio ordinario de la vida social” (Willis, 2003: 448). N. GARCÍA CANCLINI (2004) `Cultura como o conjunto de processos sociais de significação, de produção, circulação e consumo da significação na vida social´ (García Canclini, 2004: 34). ANGEL DÍAZ DE RADA TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 17 `A cultura é a forma de vida social, o conjunto de regras das relações sociais, o conjunto de regras da acção social, a descrição dessas regras, as regras para relacionar-nos em cada situação concreta, um discurso ´(Díaz de Rada, 2010: 19). Características da noção antropológica de cultura 2.2.1. A Cultura é aprendida A definição de Tylor incide nesta ideia fundamental, a cultura não é adquirida através da herança biológica, porém é adquirida pela aprendizagem (consciente e inconsciente) numa sociedade concreta com uma tradição cultural específica. O processo através do qual as crianças aprendem a sua cultura é denominado inculturação. Ainda que as crianças não são uma página em branco na qual escrever, a inculturação é um processo de interiorização dos costumes do grupo, até o ponto de fazer estes como próprios. Este processo é fundamental para a sobrevivência dos grupos humanos, assim por exemplo os esquimos tem de aprender a proteger-se do frio. O processo de inculturação produz-se fisicamente (gestos, formas de estar, de comer...), afectiva e sentimentalmente (por causa da acção de reforço ou repressão da nossa cultura) e também intelectualmente (esquemas mentais de percepção do mundo). Os agentes de inculturação são a família, as amizades, a escola, os media, os grupos de associação, etc.. Eles têm como missão introduzir o indivíduo na sua sociedade através da aprendizagem da cultura. A cultura organiza-se em cosmologias, isto é, em teorias sobre a ordem do mundo como um todo; a cosmologia é uma forma de classificar o mundo e definir os seus princípios. Segundo Margaret Mead (2001), os tipos de aprendizagem das culturas podem classificar-se em: a) Culturas pós-figurativas: Aquelas nas quais os filhos aprendem com os pais e o futuro dos filhos é o passado dos pais. b) Culturas pré-figurativas: Aquelas nas quais os adultos aprendem com os filhos e os mais novos. c) Culturas co-figurativas: Aquelas nas quais todos aprendem com todos. Alguns animais (i.e.: primates) também têm alguma capacidade de aprendizagem, incluso para distinguir plantas, mas a diferença dos humanos, os animais não podem transmitir culturalmente a informação cultural acumulada, nem podem registar (ex.: escritura,...) codificadamente a informação cultural. Exemplo etnográfico: Os macacos de Kosima (Japão): Em 1953 biólogos japoneses realizaram uma experimentação com macacos na praia de Kosima. Enviaram por mar batatas-doces para a praia. Ao chegar as batatas eram comidas pelos macacos, mas apanhavam salitre e um macaco começou a lavar e limpar de salitre as batatas. Cinco anos depois todo o grupo tinha aprendido o comportamento de limpar a batata antes de comer. Criou-se assim o conceito de “cultura animal”. TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 18 A cultura é informação herdada através da aprendizagem social, portanto diferente da “natura” (herdada geneticamente) e com uma especificidade baseada no cérebro que é a linguagem. A linguagem permite aos humanos articular, transmitir e acumular informação aprendida como nenhuma outra espécie pode fazer. Em relação com esta característica da noção de cultura, o antropólogo Clifford Geertz (1987) define a cultura como ideias baseadas na aprendizagem cultural de símbolos. A gente converte em seu um sistema previamente estabelecido de significados e de símbolos que utilizam para definir o seu mundo, expressar os seus sentimentos e fazer os seus juízos. Este sistema guia o seu comportamento e as suas percepções ao longo da sua vida. A cultura transmite-se através da observação, da imitação, da escuta, etc.; nesse processo de aprendizagem fazemos consciência do que a nossa culturadefine como bom e mau (princípios morais). Mas a cultura também se aprende de maneira inconsciente, é o caso das noções culturais a manter com as pessoas quando falam entre si, a distância da conversa e a linguagem não verbal. Por exemplo, os latinos mantêm menos distância nas conversas pela sua tradição cultural. Neste sentido, para Clifford Geertz (1987) a cultura é: Uma fonte ou programa extrasomático de informação. Um mecanismo de controlo extragenético. Um sistema de significados. Um “ethos”. Um conjunto de símbolos que veiculam a cultura. Um conjunto de textos que dizem algo sobre algo (interpretações de interpretações). No sentido gertziano a cultura é um conjunto de “modelos de” representação do mundo e da realidade, mas também um conjunto de “modelos para” actuar no mundo (padrões, guias para a acção, o que está bem e o que está mau). Clifford Geertz é muito ontológico e pouco fenomenológico, esquece que as formas culturais não são só pautas de significado, senão que estão inseridas em relações de poder e conflitos. Segundo o antropólogo Carmelo Lisón Tolosana (1974: 11), podemos entender o ethos (Weltanschauung) como os sistemas de valores e normas morais, aquilo que a gente pensa que deve ser, os estilos e modos de vida aprovados em um grupo humano, os hábitos emotivos, as atitudes, tendências, preferências e fins que conferem unidade e sentido à vida, os aspectos morais, religiosos e estéticos do grupo. O ethos era definido por Gregory Bateson como os comportamentos específicos que expressavam um sistema padrão de atitudes emotivas (Bateson, 1990: 286). Face ao ethos, o pathos representaria as emoções e as paixões, os sentimentos que se expressam nas acções humanas. A estes dois conceitos, seguindo o esquema aristoteliano do livro segundo da “Arte Retórica”, haveria que acrescentar o logos, isto é, a razão e argumentação que o ser humano utiliza. 2.2.2. A Cultura é simbólica O pensamento simbólico é exclusivamente humano. A capacidade para criar símbolos é só humana. Que é um símbolo? Um símbolo é aquilo que TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 19 representa uma coisa, está em lugar de algo, e esta conexão pode ser simbolizada de maneira diferente segundo as culturas: Português Francês Inglês Swahili Espanhol Cão Chien dog Mbwa Perro Por tanto de alguma maneira esta associação é arbitrária e convencional, socialmente aceite e compartida. O símbolo serve para veicular uma ideia ou um significado que tem um significado social (sentido atribuído e intencionado compartido socialmente). A diferença do resto dos seres vivos, que se comunicam de forma diádica (estímulo-resposta), os humanos estabelecem comunicação de forma triádica por meio de signos e símbolos que são abertos, arbitrários, convencionais e que requerem descodificação (emisor-mensagem-receptor) e tradução. 2.2.3. A Cultura liga-se com a natureza O debate sobre o binómio natureza-cultura é histórico. Não podemos negar a importância da cultura em todos os aspectos da vida humana, mas hoje a ciência tem demonstrado que existem mecanismos inatos complexos que permitem a inculturação, portanto cultura e natureza não se excluem (Gómez Pin, 2005). E ainda que a natureza tenha as suas regras próprias, os seres humanos, enquanto seres culturais, regulamentamos e pautamos o seu uso. Observemos um exemplo para compreender estas características: “Quando eu cheguei a umas colónias de verão á beira do mar eram as 13:30 horas, e tinha desejos de tomar um banho nele, mas o regulamento das colónias não permitia tomar banho nessa hora; o mar é parte da natureza, mas estava submetido a uma ordenação cultural, os mares naturais não fecham ás 13:30 horas, mas sim os mares culturais”. As pessoas têm que comer, sem embargo a cultura ensina-nos que, como e quando. A gente tem que defecar, mas não todos o fazem da mesma maneira (i.e.: Bolívia /Europa). A cultura, entendida como sistema de signos, é contraposta à natureza (Lévi-Strauss, 1982), ao biológico e ao inato. O ser humano é um ser biológico, mas o que o faz completamente humano é a cultura, especificamente humana e constitutiva do humano. A biologia é uma condição absolutamente necessária para a Cultura, mas insuficiente, incapaz de explicar as propriedades culturais do comportamento humano e as suas variações de um grupo a outro (Sahlins, 1990), de aí que possamos falar em certa autonomia, mas também em interdependência entre cultura e natureza. CULTURA NATUREZA Andar de bicicleta. Fazer somas, ler, cultivar tomates, fritar ovos, etc. Informação transmitida por aprendizagem social. Respiração. Circulação do sangue, etc. Informação transmitida geneticamente. 2.2.4. A Cultura é geral e específica (Cultura –Culturas) TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 20 Num sentido geral todos os humanos temos “Cultura” (“universal humano”), mas num sentido particular a “cultura” descreve um conjunto de diferenças de um grupo humano específico com outros. A humanidade partilha a capacidade para a Cultura (todo o criado pelos seres humanos), é este um carácter inclusivo; porém a gente vive em culturas particulares (modos de vida específicos e diferentes) com certa homogeneidade, uniformidade e harmonia internas, mas também com condicionantes ecológicos e socio-históricos particulares. 2.2.5. A cultura inclui todo Para os antropólogos ter cultura não é a mesma coisa que ter formação académica (cultivo intelectual), refinamento, sofisticação e apreciação das belas artes... Todo o mundo tem cultura no sentido antropológico do termo. É assim como a antropologia tem uma perspectiva holística que presta atenção a todas as manifestações e expressões culturais. 2.2.6. A cultura é partilhada A cultura é partilhada pelas pessoas enquanto membros de grupos. A cultura é aprendida socialmente, une às pessoas, está expressada em normas e valores, e também é intermediária no sistema da personalidade pelos actores sociais. Assim, a cultura converte-se num sinal de identidade grupal. No interior duma cultura a distribuição dos bens imateriais pode ser tão assimétrica e desigual como a dos bens materiais. 2.2.7. A cultura está pautada A cultura é aprendida normativamente. Quer dizer que está formada por umas regras ou normas integradas. Dispõe de um conjunto de valores centrais, chaves ou básicos organizados num sistema. A conduta humana governa-se por padrões culturais, mais do que por respostas inatas. Podemos afirmar que as pessoas temos um “piloto” (a cultura) que nos orienta nas nossas vidas. ` A cultura é uma pauta ou um conjunto de padrões coerentes de pensamento e acção, uma organização coerente da conduta que inclui a totalidade duma sociedade. A cultura é hereditária e aprendida, não genética; tende à integração e à coerência, constitui configurações articuladas, é plástica e realiza a função de atar e unir aos seres humanos ´. (Benedict, 1971). 2.2.8. A gente utiliza criativamente a cultura As regras culturais afirmam que fazer e como, as pessoas interiorizam essas regras ou normas, mas não sempre seguimos o seu ditado. As pessoas podem manipular e interpretar a mesma regra de maneiras diferentes, utilizando criativamente a sua cultura, em vez de segui-la cegamente (Ex.: Transgressão dos limites de velocidade). Neste ponto podemos distinguir entre o nível ideal da cultura (o que a gente deveria fazer e o que diz que faz) e o nível real da cultura (o que fazem realmente no seu comportamento observável). Mas não por isso o nível ideal deixa de pertencer à realidade. Desde este ponto de vista podemos falar da cultura como produtora de mudança e conflito, mas também como “caixote de ferramentas” (“tool kit”) de TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 21 valor estratégico para a acção social (Swidler, 1986). Portanto, a cultura podemos pensa-la como algo externo que condiciona as nossas vidasou como algo que como sujeitos (pessoas) criamos em colectividades, isto é como um processo e um conjunto de estratégias. Nesta linha podemos afirmar como a cultura é uma invenção social, isto é, uma construção histórica constante (Wagner, 1975), portanto não é uma essência ou uma coisa. 2.2.9. A cultura está em todas as partes “Comprei um tapete persa made in Taiwan numa loja de chineses da Suíça” A globalização faz questão sobre a relação entre cultura e território, criando uma nova cartografia cultural. Cai por si própria a ideia tradicional de cultura como comunidade fechada, de acordo com a qual cada indivíduo só pode pertencer a uma cultura. Hoje em dia o entre – cruzamento de culturas é uma realidade. A ficção duma cultura uniformemente partilhada pelos membros de um grupo é pouco útil em muitos casos. O conceito de cultura deve incluir heterogeneidade, mudança rápida, empréstimos culturais e circulações interculturais. O conceito de cultura acaba por fazer referência a 2 tipos de cultura: 1. Ao conjunto de especificidades duma comunidade territorialmente delimitada. 2. Aos processos de aprendizagem translocais. Hoje dissolvem-se muitas fronteiras entre culturas antes territorialmente delimitadas. É por isso que as culturas volvem-se mais porosas. Vivemos numa economia-mundo (Wallerstein, 1974) e a “a cultura está en todas partes” (Hannerz, 1998: 55). É o indivíduo quem escolhe o seu repertório cultural. Na actualidade podemos falar em sobremodernidade dos mundos contemporâneos (Augé, 1992) que se caracterizaria pelo seguinte: a) Uma transformação mundial que alterou os conceitos de espaço, alteridade, identidade, etc. que a antropologia vinha utilizando. b) Excesso de Tempo (aceleração do tempo e encolhimento do espaço). c) Excesso de Espaço (acessibilidade total, deslocalização do social, não lugares). d) Excesso de Indivíduo (tendência à individualização e perca das narrativas colectivas). Hoje, o local intensifica a sua inter - conexão com o global a partir do marco do Mercado, do Estado, dos movimentos e das formas de vida (Hannerz, 1998). Robertson (1995) chega a falar em glocal como a síntese relacional entre o local e o global, ultrapassando assim esta dicotomia. Esta forma de caracterizar a noção de cultura leva a alguns antropólogos a estudar as dinâmicas de viagem e não só as de residência, e de ai que se sublinhem as “zonas de contacto” (Clifford, 1999). Outros falam em culturas híbridas (García Canclini, 1989), interligando assim estrutura e processo, mas também salientando o papel do agente social na dinâmica entre estrutura e acção. Assistimos hoje a TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 22 uma mudança da afirmação de identidades culturais diferenciadas para a afirmação da interculturalidade. Hoje, corremos o risco de que o conceito de cultura seja utilizado como uma forma de racismo (Benn Michaels, 1998), já que substitui muitas vezes a biologia como argumento base da distinção entre os grupos humanos, mas não é menos essencialista por isso. Podemos afirmar o seguinte: “O indivíduo é um prisioneiro da sua cultura, mas não precisa de ser a sua vítima” (Ferguson, 1987: 12) Em síntese podemos afirmar o seguinte da noção antropológica de cultura: O conceito antropológico de cultura afirma a dignidade equivalente de todas as culturas. O conceito antropológico de cultura tenta diminuir o etnocentrismo e o elitismo do ocidentalismo. O respeito às diferenças culturais deve ser a base para uma sociedade justa (Kuper, 2001: 14). O conceito antropológico de cultura defende o carácter local do conhecimento. Muda a maneira de olhar a realidade (uma diversidade criativa). O significado antropológico de cultura como modo de vida global nega a simples redução da cultura à actividades ligadas às belas artes. O significado antropológico de cultura é como o açúcar diluído em água. 2.3. A CULTURA MATERIAL E IMATERIAL “Para explicarnos a nosotros mismos nuestras ideas, necesitamos fijarlas en las cosas materiales que las simbolizan” (Durkheim, 1993: 375) A cultura é uma característica especificamente humana que tem duas componentes: 1. Uma componente mental: produtos da actividade psíquica ora nos seus aspectos cognitivos ora nos afectivos, significados, valores e normas. 2. Uma componente material: artefactos e tecnologia. Porém, esta divisão tem motivado alguns debates que se podem resumir na seguinte questão: Devem os artefactos e a tecnologia ser considerados como parte da cultura?. Alguns antropólogos como Robert Redfield, Ralph Linton, Murdock e outros têm identificado a cultura só com os aspectos cognitivos e mentais: ideias, visão do mundo, códigos culturais. Estes antropólogos consideraram a cultura material como um produto da cultura e não cultura em si mesma. Esta postura é difícil de defender porque a cultura material (exemplo: os avances tecnológicos) exercem uma influência muito grande nos aspectos cognitivos e mentais, ao mesmo tempo que geram novos valores e crenças. A tecnologia permite que os humanos se adaptem ao nosso contorno, do mesmo modo que os valores e as ideias. As catedrais medievais e as pirâmides egípcias reflectem determinados interesses, fins e ideias da cultura na qual nasceram. São a manifestação de ideias religiosas, políticas e científicas. Os TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 23 dois aspectos (materiais e não materiais) devem ser considerados como partes integrantes da cultura, os dois estão estreitamente ligados. Maurice Godelier (1982) chegou a afirmar que todo o material da cultura se simboliza e que todo o simbólico da cultura se pode materializar. Marshall Sahlins (1988) destaca como o carácter constitutivo da cultura invalida a distinção clássica entre cultura material e imaterial, plano económico e cultural. Ele integra os dois pólos, pois os seres humanos organizam a produção material da sua existência física como um processo significativo que é o seu modo de vida. Todo o que os humanos fazem está cheio de sentido e de significado. Por exemplo, cortar uma árvore (para lenha, para construir uma canoa, para criar uma escultura, para fazer pasta de papel) pode significar modos culturais específicos. O valor de uso não é menos simbólico ou menos arbitrário que o valor da mercadoria. Assim o sublinha Sahlins: “As calças são produzidas para os homens e as saias para as mulheres em virtude das suas correlações num sistema simbólico, antes que pela natureza do objecto per se, ou pela sua capacidade de satisfazer uma necessidade material...” (Sahlins, 1988 ). Exemplo etnográfico: Os bosquimanos do deserto do Kalahari, cazadores- recolectores, mostram um carácter integrador na caça de animais, pois as técnicas e estratégias de caça estão unidas aos rituais religiosos. Dançavam e entravam em trance para superar as ansiedades da sua pobre tecnologia. É assim como os elementos materiais e não materiais apoiam-se como elementos inseparáveis da adaptação dos bosquimanos ao seu meio. Todos eles contribuem á sobrevivência material do grupo humano. 2.4. A NOÇÃO SOCIOLÓGICA E A NOÇÃO ESTÉTICA DO CONCEITO DE CULTURA “No sé cuantas veces he deseado no haber oído nunca la maldita palabra” (Raymond Willians, citado em Díaz de Rada, 2010: 17). Raymond Willians (1976) distingue três maneiras de entender e utilizar o conceito de cultura: a) Antropológica. b) Sociológica. c) Estética. Se a perspectiva antropológica de cultura entende a cultura como impregnada em tudo, o sociológico entende a cultura como um campo de acção específico juntamente com outros –economia, política-, que estão estratificados de acordo com determinados critérios. Se a perspectiva antropológica de cultura entende a cultura como o açúcar diluído, o conceito sociológico de cultura é o pacote de açúcar sem dissolver. O conceito sociológico de cultura entende esta como um campo deconhecimento dos grupos humanos. A noção sociológica de cultura fala da cultura como produção e consumo de actividades culturais, daí a sua ligação com as políticas da cultura. Deste ponto de vista a cultura passa a ser entendida como espectáculo, como política de cheque, como produção e TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 24 consumo. Para a noção antropológica a cultura é um processo resultante da participação e da criação colectiva, não é um assunto de artistas e intelectuais, mas para a noção sociológica a cultura é uma “indústria cultural”. Os primeiros a utilizar este conceito foram Adorno e Horkheimer (1979) em 1947. Segundo estes teóricos da Escola de Frankfurt, os produtos culturais passaram a ser produzidos da mesma maneira que outros bens de consumo e também consumidos pelas massas. Nesta linha, Gilles Lipovetsky (2004) ao analisar o passo das sociedades modernas às hipermodernas afirma que nos anos 1980 as sociedades desenvolvidas eram sociedades vazias e hiperconsumistas, pois à diferença da cultura clássica, que tinha como fim elevar o ser humano, as indústrias culturais hiperconsumistas tentam distrair este. Já o uso estético do conceito de cultura descreve actividades intelectuais e artísticas como por exemplo a música, a literatura, o teatro, o cinema, a pintura, a escultura e a arquitectura. Este conceito define a criação artística como forma de cultivo humano do espírito. É sinónimo de “Belas Artes” e exige niveis de instrução educativa formal. Por extensão pensa-se que uma pessoa que conhece e pratica estas manifestações artísticas tem que ser diferente da gente comum, atribuindo-lhe a categoria de culto, em oposição ao “inculto” ou de “pouca cultura”. Portanto, a noção estética de cultura entende-se como “alta cultura” (ex.: ir à ópera), a produção cultural de uma minoria para uma elite letrada de iniciados. Esta perspectiva elitista, promovida na Europa refinada do século XIX, é criticada pela noção antropológica de cultura, pois confunde niveis de instrução com conhecimento e capacidade criativa, refinamento com habilidades culturais para dar resposta aos problemas quotidianos. Contudo é certo, que hoje quebram-se as distinções entre “alta cultura” e “baixa cultura”, cultura de elite e cultura de massas, cultura culta e cultura popular, ficando os limites muito ambíguos. Isto não significa que não devamos programar alternativas de produção cultural críticas e moralmente defendíveis. Por outro lado, importa destacar que a cultura lixo (Bouza, 2001), muitas vezes promovida pelos “mass média”, já não é popular (do povo), mas para o povo (de massas, mediática), o que é muito criticável pela sua falta de ética e pela falta de humanismo. Verifica-se hoje um processo de mercantilização e politização da cultura que deve ser explorado e reflectido na sua complexidade. 2.5. OS CONTEÚDOS DO CONCEITO ANTROPOLÓGICO DE CULTURA NOÇÃO DE CULTURA SOCIOLÓGICA ANTROPOLÓGICA ESTÉTICA TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 25 Alguns elementos integrantes da noção de cultura são: as crenças, as ideias, os valores, as normas e os signos culturais. Pela sua grande importância debrucemo-nos um momento sobre deles. As crenças e as ideias Em primeiro lugar, qual é a diferença entre uma crença e uma ideia? As crenças são definições sociais sobre o mundo e a vida. Assim o afirmou o filósofo Ortega y Gasset: “En efecto, en la creencia se está, y la ocurrencia se tiene y se sostiene. Pero la creencia es quien nos tiene y sostiene a nosotros” (Ortega y Gasset, 1968: 17). Portanto, as ideias têm-se, nas crenças estamos. As crenças não podem ser submetidas á proba de verificação com os factos, pois é uma verdade indiscutível e sem dúvidas para quem a defende. No momento em que uma crença é considerada susceptível de confrontar com os factos passa a converter-se numa ideia. As ideias são formas de sabedoria susceptíveis de contrastar-se empiricamente com os factos observáveis, podemos comprovar a sua verdade ou falsidade. Tanto as ideias como as crenças são modos cognitivos de apreender a realidade, de conhece-la. Nos processos de mudança há ideias e crenças que perdem terreno em benefício de outras. As ideias podem converter-se em crenças por repetição ou por convencimento da ideia, cristalizando e internando-se na mente das pessoas. Por exemplo, na auto-estrada não vai circular nenhum carro em sentido contrário pela nossa via. Dentro de cada cultura as crenças tendem a formar um sistema relativamente coerente, com reforços mútuos, isto não quer dizer que não haja contradições internas e rupturas, só que há uma tendência à coerência interna. As ideias são cada vez mais reconhecidas como elemento fundamental da cultura, assim temos como grupos humanos como os ianomami do Amazonas reivindicam direitos culturais sobre as terras, as células e o seu ADN mas também sobre a propriedade intelectual das ideias. Igualmente uma parte dos membros do Congresso Geral da Cultura Kuna (Panamá) rejeita a ideia de que a sua cultura possa ser candidatada a património da humanidade, pois pensa-se que a sua cultura é deles e não de toda a humanidade. Os valores Para a antropologia, os valores são juízos de desejabilidade e aceitabilidade, isto é, aquilo que as pessoas estimam como mais importante. Os valores são princípios morais incutidos na vida das pessoas. Os valores partilhados geram identidades comuns e orientam a vida social (Sanmartín, 1999). Do mesmo modo também existem contravalores correlativos, assim por exemplo: Igualdade Desigualdade Solidariedade Individualismo Liberdade Dependência TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 26 Os juízos de rejeitamento e oposição expressam também valores de uma maneira não explícita. Eles são princípios ou critérios que definem o que é bom e mau para um determinado grupo. A partir destes princípios básicos ou valores geram-se um conjunto ideativo e normativo pelo qual se guia, orienta e controla a conduta dos indivíduos. Mas igualmente, os valores também são criadores de possibilidades e de novas realidades. Os valores não são qualidades das coisas, porém são relacionais, são valores para alguém. São um critério de selecção da acção. Os valores que mantêm um grupo social tendem a formar um sistema coerente. Este é um sistema de preferências (Sanmartín, 1999: 4). Há uma axiologia ou hierarquia de valores dentro da conexão entre os mesmos. Exemplo: Individualismo na cultura norte-americana, conectado com o esforço e o êxito. As normas culturais As normas são regras para comportar-se de um modo determinado, e indicam o que especificamente devem ou não devem fazer as pessoas em situações sociais. Estas normas sociais são diferentes das leis jurídicas, ainda que as leis são parte também destas normas sociais. As normas sociais estão inspiradas em valores. Não estão formalizadas juridicamente mas ainda assim mantêm um poder coercitivo. Na sua base estão um conjunto de valores articulados socialmente, que orientam e guiam a acção humana. Os símbolos A cultura, entendida como comunicação, conforma-se através da criação e utilização de símbolos culturais. Estes incluem sinais, signos e símbolos. Os sinais (sinais de trânsito) são símbolos que incitam, convidam ou obrigam a uma acção (STOP). Os indicadores (exemplo: o fume, que indica a existência de lume) não obrigam a uma resposta imediata como os sinais. Os signos são aqueles símbolos com um significante que representa um significado por uma associação ou analogia consciente e arbitrária (exemplo: cadeira=cadeira). Os símbolos apresentam uma relação metafórica ou metonímica entre o significante e o significado. Um símbolo é uma coisa que está em lugar de outra ou uma coisa que evoca e substitui a outra (exemplo: Vieira: Peregrinação a Santiago de Compostela) (O Pintor holandês O Bosco pintava conchas de mexilhões, ameixas, etc. junto comdesenhos de burros, galos ou cervos. As primeiras simbolizavam o sexo feminino, os segundos a sexualidade masculina. Tratava o pintor de expressar a través de símbolos a fornicação). Portanto, um símbolo requer de 3 coisas: 1ª. Um significante. 2ª. Um significado. 3ª. A significação: Relação entre o significante e o significado. Esta relação é definida por um código, que deve ser conhecido e aprendido pelos sujeitos. Precisa também de 3 elementos: EMISSOR (Com um código de emissão baseado em símbolos)MENSAGEM (Com um código de descodificação)DESTINATÁRIO (Ser humano) Exemplo: O vestido. -Significados (mais além do evidente, banal ou superficial): TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 27 1. Protecção do clima. 2. Hábito, adaptação ás normas e costumes pautadas num grupo humano (ex.: vestido de um homem, vestido de uma mulher, vestido de drag-queen). 3. Adorno, sentido decorativo ou posta em cena da aparência ou imagem do eu. Pode haver uma pluralidade de significados ao descodificar a mensagem. Qual é que será o significado mais importante? A resposta é conforme os casos específicos e o contexto cultural. Outros conceitos básicos para melhor compreender a noção antropológica de cultura, desde uma perspectiva de produção histórica das relações sociais, são os seguintes: a) Ideologia (Williams, 1977). A ideologia é uma visão da realidade composta de ideias e valores organizados num sistema que trata de essa realidade e que tenta reproduzir ou transformar esta. Esta tentativa de reprodução ou de mudança não está isenta de lutas ideológicas e de conflitos. b) Outro conceito associado ao anterior é o de legitimação, que é uma proposição normativa utilizada no controlo social: “Por legitimação entende-se um conhecimento socialmente objectivado, que serve para justificar e explicar a ordem social. De outro modo, as legitimações são as respostas a qualquer pergunta sobre o por quê de cada solução institucional diferente... As legitimações não só lhe dizem à gente o que deve ser. Às vezes limitam-se a propor o que é.” (Berger, 1999: 52). c) Habitus (Bourdieu, 1980 ; 1988). O habitus é para Bourdieu (1980 : 88) o seguinte: “Sistemas de disposições duradouras e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e de representações”. Assim o habitus é o que caracteriza uma classe ou um grupo social, materializa a memória colectiva e incorpora uma moral e uma visão do mundo naturalizada socialmente. É desde este ponto de vista um dispositivo para a acção, um conjunto de esquemas geradores de práticas e percepções que se expressam nos gostos, hábitos de consumo e nas representações da realidade. d) Capital simbólico (Bourdieu, 1999: 172). O capital simbólico é uma propriedade dos indivíduos, uma força, uma riqueza e um valor percebido, conhecido e reconhecido. Este capital detenta uma eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1969), uma espécie de força mágica que responde a umas expectativas colectivas e que geralmente não se questiona. Este capital, junto com outros como o económico, é necessário para a reprodução social. TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 28 e) Capital cultural (Bourdieu, 1999). O capital cultural é a capacidade para interpretar e compreender os códigos culturais. Esta capacidade está desigualmente distribuída entre as classes e os grupos sociais. Estes grupos lutam por obter poder cultural através do exercício dos “gostos” e procurando dividendos que afirmem o “correcto” e o “legítimo”. Através do capital cultural tenta-se justificar certa dominação. Assim o parque de “Asterix”, na França, nasce para combater o domínio da banda desenhada dos EUA e também de Eurodisney. 2.6. OS UNIVERSAIS DA CULTURA Entre a diversidade de culturas é possível achar alguns traços comuns. Neste ponto, a antropologia não só estuda as diferenças como também as semelhanças entre os seres humanos. Não podemos ver as diferenças culturais como barreiras enfranqueáveis, porém como expressões da diversidade cultural humana em acção que se podem comunicar, traduzir e articular. Face ao relativismo mais absoluto que defende a incomunicabilidade entre culturas, adoptamos um certo universalismo que promove a compreensão do outro, um inventário do transcultural, do mestiço e do parentesco entre culturas (Balandier, 1993). Neste sentido, alguns traços culturais existem em todas ou em quase todas as sociedades e denominam-se universais culturais, que são aqueles que distinguem os humanos das outras espécies: 1. A unidade psíquica dos humanos. No sentido de que todos os humanos têm a mesma capacidade para a cultura. 2. A linguagem. 3. Viver em grupos sociais como a família e compartir alimentos. 4. A exogamia e o tabu do incesto, regra que proíbe as relações sexuais e o casamento entre parentes próximos. Excepções ao tabu do incesto: Irmão com irmã nos casos da realeza de Egipto, Havaí e os Incas. Nestes casos o casamento exigia-se entre seres da linhagem porque casar com mortais era uma corrupção da divindade. Era também um meio de conservar a propriedade dentro da família. Cleopatra mandou matar o seu irmão de 12 anos, logo de casar com ele, para depois casar com Júlio César e Marco António. -Middleton, R. (1962): “Brother-Sister and Father Daughter Marriage in Ancient Greece”, em American Sociological Review, vol. 27, pp. 603-611. Citado em Adamson Hoebel, A e Frost, E. L. (1984, or. 1976): Antropologia Cultural e Social. São Paulo: Cultrix, p. 179. 5. O matrimónio, entendido como relação social estável e duradoura entre pessoas. TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 29 6. A divisão sexual do trabalho. 7. A família. Esto não implica que seja igual em todas partes. 8. O etnocentrismo cultural. O conceito de etnocentrismo foi criado pelo sociólogo William Graham Sumner, quem viveu entre 1840 e 1910 (Shone, 2004). O etnocentrismo é uma tendência a aplicar os próprios valores culturais para julgar o comportamento e as crenças de pessoas doutras culturas. A gente pensa que os seus costumes são os únicos, correctos, apropriados e morais. As visões etnocénctricas entendem o comportamento diferente como estranho e “selvagem”, mas também como inferior. As pessoas pensam que as suas normas representam a forma “natural” de comportar-se e os outros são julgados como negativos. O etnocentrismo é uma visão das coisas de acordo com a qual o próprio grupo é o centro de todo, e todos os outros se medem por referência a ele. Cada grupo alimenta o seu próprio orgulho e a sua vaidade, proclama a sua superioridade, exalta as suas próprias divindades e mira com desprezo aos outros. O etnocentrismo pode manifestar-se em diferentes níveis: tribo, aldeia, minoria étnica, área cultural, classe, pessoa, indivíduo... O problema do etnocentrismo é a intolerância cultural face à diversidade e o fechar as portas à curiosidade pelo conhecimento. O etnocentrismo cultural é uma atitude que pode derivar numa ideologia com práticas racistas. Em relação com este conceito temos o de “tempocentrismo” (Brian O´Neill, conferencia no ISCCSSPP, Lisboa, 4-06-2007) segundo o qual o nosso tempo e a forma de entender este seriam destacados como os melhores e os mais apropriados com relação aos outros. Aqui temos que fazer uma chamada de atenção. A noção de cultura pode, politicamente e etnocentricamente, ser utilizada para separar grupos humanos, mas desde um ponto de vista humanístico deveria servir para melhorar a convivência e construír uma sociedade democrática justa. É o que se denomina “novo etnocentrismo” (Sánchez Durá, 1996), isto é, pensar o mundo como um conjunto de identidades impenetráveis que afirmam sempre a sua particularidade face a outras. O oposto ao etnocentrismo é o relativismo cultural, uma das ideias chave da antropologia.O relativismo cultural afirma que uma cultura deve ser estudada e compreendida em termos dos seus próprios significados e valores, e que nenhuma crença ou prática cultural pode ser entendida separada do seu sistema ou contexto cultural. O comportamento numa cultura particular não deve ser julgado com os padrões de outra. O relativismo cultural não só é uma teoria antropológica como uma atitude, um olhar e uma prática antropológica, e também uma forma de lidar com os outros em respeito pela diversidade. Esta atitude implica que os nossos preconceitos não distorçam o conhecimento de outras culturas, mas também uma atitude de diálogo aberto. Podemos entender o relativismo cultural de duas maneiras, uma como algo aberto e que defende a equivalência entre culturas seguindo uma tolerância pela pluralidade das sociedades humanas; outra como algo fechado e que defende a singularidade intransponível das culturas (Gandra, in Cuche, 1999: 13). TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 30 No Ocidente consideramos o infanticídio um crime, mas na cultura chinesa tradicional as bebés eram às vezes estranguladas porque consideravam-se uma carga para a família. Os judeus não comem porco, os hindus não comem vaca. Em Ocidente beijar-se em público pode ser considerado algo normal mas noutras culturas é desconhecido ou pensado como desagradável. Tem limites o relativismo cultural? A Alemanha nazi deve ser valorada igual de neutro que a Grécia clássica? Desde o ponto de vista do relativismo cultural estremo sim, porque defende que não há uma moralidade superior, internacional ou universal, que as regras éticas e morais de todas as culturas merecem igual respeito. Esta perspectiva pode levar a um niilismo. Porém, desde o ponto de vista desde o relativismo cultural ético há e deve haver limites válidos para toda a humanidade. Não podemos tolerar todo, pois a tolerância sem limites equivale à supressão de toda regulamentação do comportamento humano. Não toda diversidade cultural significa enriquecimento moral para a humanidade e algumas vezes a sua idolatria pode servir para discriminar os outros (Garzón Valdés, 1997). Como deveria utilizar o antropólogo o relativismo cultural? Um uso dogmático e absoluto do relativismo cultural pode levar a entender os outros como entidades absolutamente diferentes, intraduzíveis e sem os mesmos direitos que nós. O antropólogo deve apresentar informes e interpretações dos fenómenos culturais, para entender estes na sua complexidade, porém o antropólogo não tem que aprovar costumes como o infanticídio, o canibalismo e a tortura. Exigem portanto uma condena moral e uns valores internacionais e humanos de justiça e moralidade que nos fazem mais humanos. O relativismo cultural mais estremo equivale à eliminação de toda regulamentação do comportamento humano e pode cair no risco de justificar e/ou permitir a violência. Declarações de princípios como a dos direitos humanos (http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm) podem servir como orientação e guia, ainda que com compreensão das moralidades e as suas diversidades. O antigo questionamento e até rejeição antropológica deles pelo seu privilégio dos direitos individuais sobre os direitos culturais dos grupos, tornou-se hoje em apoio explícito ao seu reconhecimento alargando estes ao meio ambiente, a emancipação das mulheres e outros. E face às críticas do relativismo (subjectivismo, niilismo, incoerência, maquiavelismo, cegueira estética, inexistência de universalismos), o antropólogo Clifford Geertz (1984) escreve um texto intitulado “anti- antirelativismo”, no que critica o medo do relativismo cultural. Sem pretender defender o relativismo, sim que combate os seus críticos por não entender bem o esforço antropológico pela compreensão da diversidade cultural. Segundo Geertz esta noção não irá desaparecer a menos que desapareça a antropologia. Em síntese, de um relativismo clássico mais extremo que predicava a tolerância como relativismo cultural (ex. a perspectiva de Herskovits) contra o racismo, passamos a partir da década de 1970 a defender um estatuto transcultural de racionalidade que colocava limites à tolerância e os direitos humanos mais alargados (Brown, 2008). 2.7. A MUDANÇA CULTURAL TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 31 A mudança cultural é o aspecto dinâmico da cultura, o “panta rei” (todo se move, todo muda) dos gregos. É inquestionável que nenhuma cultura é totalmente estática e de que a cultura construi-se através de processos sociais. As culturas podem intercambiar traços mediante o empréstimo ou a difusão. A difusão é um mecanismo de câmbio cultural acontecido durante toda a história da humanidade, porque as culturas nunca estiveram isoladas. Os contactos culturais sempre existiram. Ex.: o vidro das janelas ocidentais foi inventado pelos egípcios, a porcelana procede da China, a tortilha espanhola é feita com batata procedente de América, o tabaco é fruto do contacto europeu com as culturas pré-colombinas da América Latina. A aculturação é outro mecanismo de mudança que consiste no contacto e intercâmbio entre duas ou mais culturas. O conceito foi criado em 1880 pelo antropólogo norte-americano J. W. Powell (in Cuche, 1999: 92) para designar a transformação dos modos de viver e pensar dos imigrantes nos EUA. Um exemplo são os pidgins (mistura de inglês com línguas nativas de diversas zonas do mundo). Este contacto intercultural pode provocar três efeitos (Panoff e Perrin, 1973): a) Assimilação da cultura dominada pela dominante. É um processo de desculturação ou perca a través do qual um grupo culturalmente dominado incorpora-se a uma cultura dominante. b) Integração ou combinação de culturas, tendo como resultado novas culturas num certo plano de equidade. c) Subculturas ou coexistência de culturas dominantes com dominadas. A invenção independente é um modo criativo de resolver problemas culturais. Ex.: A invenção independente da agricultura no México e no Oriente Meio. A globalização é outro motivo de mudança, pois vincula a pessoas de todas as partes do mundo através dos meios de comunicação: “A globalização está na boca de todos; a palavra da moda transforma-se rapidamente num fetiche, um conjuro mágico, uma chave com o destino de abrir as portas a todos os mistérios presentes e futuros. Alguns consideram que a “globalização” é indispensável para a felicidade; outros que é causa de infelicidade. Todos entendem que é o destino irredutível do mundo, um processo irreversível que afecta da mesma forma e igual medida à totalidade das pessoas” (Bauman, 1999:7) A globalização pode parecer um fenómeno novo, mas, para alguns teóricos, como Wallerstein (1974) ou Ortiz (1998), a sua origem não é recente. De acordo com Wallerstein (1974), a “economia-mundo” forjou-se no final da Idade Média e definiu centros, semi-periferiais e periferias. Este é, portanto, um fenómeno histórico, que atinge alguns períodos de auge no século XIX, de intensa globalização e face a qual se produziram reacções de localização (ex.: nacionalismos), ou seja, forças centrífugas que se confrontam com forças sociais centrípetas. Neste sentido, o trabalho do antropólogo Jonathan Friedman (1994) demonstra como a homogeneização é inerente ao processo de globalização, mas também a fragmentação, a segmentação, a diversidade cultural e a reorganização das identidades locais como reacção face ao TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 32 processo de globalização. Para Friedman (1994), a globalização representa uma fase mais da dinâmica do sistema capitalista. Desde outra perspectiva, a globalização é, na actualidade, um processo complexo que provoca mudanças socioculturais, pois vincula pessoas de todas as partes do mundo, através dos meios de comunicação, do turismo, do comércio, da Internet e dos fluxos. A globalização intensifica interrelações e interdependências entre os grupos humanos, comprimindoo espaço e o tempo. O teórico Ulrich Beck (1988) distingue dois aspectos deste processo: a) o globalismo, que define como a ideologia que tenta substituir a Política pelo domínio do Mercado e que significa combater a diversidade cultural e criar uma homogeneização cultural (algo que, segundo o autor, não é desejável para este autor); b) a globalidade, que significa mais intercâmbios culturais, mestizagem cultural e trabalhar por um mundo mais justo e solidário. Sintetizamos esta diferença na tabela a seguir: GLOBALISMO GLOBALIDADE GLOBALIZAÇÃO É a ideologia que tenta substituir a política pelo mercado. Significa ir contra a diversidade cultural e também a homogeneização das culturas. Não desejável. Não há nenhum país, povo, localidade, etc. que possa viver isolado dos demais. Significa mais intercâmbios culturais, mestiçagem cultural e trabalhar por um mundo mais justo e solidário. Processos de inter- relação e interdependência entre as nações. Na linha do conceito de globalidade de Beck, o antropólogo Arjur Appadurai (2007: 9) fala da globalização das bases, isto é, da globalização desde abaixo protagonizada por movimentos sociais e organizações não governamentais de activistas a prol dos direitos humanos, o feminismo, a luta contra a pobreza, o meio ambiente e a saúde. Appadurai (2007: 10) propõe colocar a globalização ao serviço dos mais necessitados e dos pobres, tendo ele esperança na globalização e na globalização da esperança. No seguimento desta linha, o antropólogo Isidoro Moreno (2005) diferencia entre mundialização e globalização. O primeiro conceito define como os seres humanos se encontram mais próximos, em espaço e tempo, mas também como se cria a interculturalidade e se estabelecem os diálogos entre culturas. O segundo define a extensão de uma lógica única e absoluta que encerra diversos fundamentalismos: a) a religião, entendida como verdade única revelada que deve expandir-se a toda a humanidade; b) o estado-nação, como única forma de organização sociopolítica desejavel; c) o socialismo, como única alternativa ao capitalismo liberal; d) o mercado, com base na racionalidade capitalista e apresentado como absoluto sacral. A globalização não tem os mesmos efeitos sobre diferentes contextos culturais, daí que não possamos pensá-la como uma força exclusivamente vertical e linear. Boaventura de Sousa Santos (1997) diferenciou quatro elementos fundamentais nos processos de globalização: a) o localismo globalizado, isto é, a globalização com sucesso de um fenómeno local; b) o globalismo localizado, quando se produzem práticas transnacionais com sucesso em condições e contextos locais; c) o cosmopolitismo, quando se cria uma organização transnacional na defesa de interesses comuns; d) o TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 33 património comum da humanidade, que responsabiliza todos os seres humanos pela tutela de determinados bens. Desde esta perspectiva das relações local-global, o conceito antropológico de cultura recebe um novo repto. Hoje, o local intensifica a sua interconexão com o global, a partir do marco do Mercado, do Estado, dos movimentos e das formas de vida, e de ai que possamos falar em transnacionalismo (Hannerz, 1998). O antropólogo Arjun Appadurai sublinha a importância do estudo dos fluxos de pessoas, informação, produtos e capital – ethnoscapes, technoscapes, finanscapes, mediascapes, ideoscapes- (Appadurai, 1990; 2004). Robert Robertson (1995) pensa a globalização como um tipo de difusão cultural e chega a falar em “glocal”, isto é, a síntese relacional entre o local e o global. Esta forma de caracterizar a noção de cultura conduz alguns antropólogos a estudar as dinâmicas de viagem e de movimento e não apenas as de residência e localidade, as rotas e não só as raízes, os processos de produção do global e não só os de produção do local, daí que se sublinhem as “zonas de contacto” (Clifford, 1999). Outros falam em culturas híbridas (García Canclini, 1989), interligando assim estrutura e processo, mas salientando também o papel dos agentes sociais nas dinâmicas entre estrutura e acção. De facto, a globalização é um processo que se associa à uniformização cultural, assimetrias, imperialismos, desigualdades e desconexões, mas isso não significa que estas sejam sempre as suas consequências, nem que estas sejam as mesmas em todos os contextos. Face à globalização produziu-se também uma emergência do que Manuel Castells (2000: 30) denomina identidades de resistência (ex.: movimentos sociais anti-globalização, ambientalistas, etc.) e identidades projecto (ex.: regionalismos, nacionalismos, etc...). Estas identidades estão protagonizadas por actores sociais que, em muitos casos, lutam em prol da diversidade cultural e da interculturalidade, do respeito pelo meio ambiente e do combate à pobreza e extrema desigualdade social. Assim vista, a globalização converte-se num desafio planetário e numa oportunidade para resolver problemas globais. O global nem sempre substitui o local e o modo neoliberal de globalização não é o único possível. Na mesma linha, Renato Ortiz (1998: XXII-XXIV) afirma que a globalização da economia não significa homogeneização da cultura e da conduta humana, pelo contrário, produz-se um renascimento das reivindicações locais, o mundo também se fragmenta em mosaicos e particularismos. Particularismos e globalização não são dicotómicos, pois diversidade e semelhança caminham juntos. Um aspecto importante da mudança cultural é a mestizagem, os sincretismos e hibridismos. Estes podem produzir-se entre diferentes partes, mas também entre o velho e o novo, entre o actual, o de antes e o de antigamente. Para entender melhor estes processos de contacto e mudança cultural é preciso ter em conta vários níveis da cultura: TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 34 Na cultura internacional as tradições culturais estendem-se mais além dos limites nacionais. Nas culturas nacionais os seus traços são partilhados pelos nacionais e nas subculturas os padrões culturais estão associados a subgrupos específicos dentro de uma sociedade. 2.8. A MUDANÇA SOCIAL “Quando vos digam que é impossível mudar nada, perguntar-vos quem o diz e por quê o diz” (Ulrich Beck, La Voz de Galicia, 1-04-2006, p. 2, Culturas). A preocupação pela mudança sociocultural é muito antiga. Já na Grécia clássica face à ideia de Parménides, quem afirmava que o mundo é estático e organizado, Heráclito defendeu a ideia de que o mundo está em permanente mudança, que todo flui e nada fica. A partir do século XIX, esta preocupação pela mudança social acentua-se nas ciências sociais. Depois de ter vivido uma época de revoluções, os cientistas tentaram explicar as mudanças e as suas leis racionais dentro da nova organização da sociedade. Uma parte dos teóricos sublinharam os aspectos estáticos (ex. Comte, Durkheim), e outros os seus aspectos dinâmicos, os conflitos e as transformações (ex. Marx). Qual o peso da estrutura e qual o da acção social na mudança? Comte respondeu a esta pergunta com a distinção entre “estática” e “dinâmica”, o que se relaciona com a diferença entre mudanças graduais e a de mudanças radicais. Radcliffe-Brown (1957) distinguiu entre “desajustes” (mudanças que não modificam a estrutura social) e “mudanças de tipo” (que mudam de uma estrutura a outra). As teorias sociológicas clássicas defendem a crença da evolução para uma sociedade humana melhor, por meio da sucessão de etapas, em termos SUBCULTURAS CULTURAS NACIONAIS CULTURA INTERNACIONAL TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 35 de progresso pensado como necessário, natural e numa única direcção. Ex.: A passagem da solidariedade mecânica à orgânica defendida por Durkheim. Isto foi posto em causa logo da segunda guerra mundial, contexto no qual se questionou que o progresso tecnológico não fosse acompanhado de ummaior humanismo e fraternidade entre as culturas e povos do planeta, que fomentasse uma cultura de paz. Sobre este problema da mudança social, o materialismo histórico descreve a evolução social como uma sucessão de modos de produção: produção primitiva, escravatura, feudalismo e capitalismo. Cada modo de produção corresponderia a um grau de desenvolvimento. Quando as relações de produção já não são válidas para o crescimento das forças produtivas, acontece um período de conflito social crescente que acaba numa revolução social e no nascimento de um novo modo de produção e umas novas relações de produção. Assim a revolução burguesa produziu-se quando as relações de produção feudais converteram-se num obstáculo para a expansão económica, abrindo passo ao capitalismo. A fase mais avançada da evolução social seria o comunismo, na qual o máximo desenvolvimento das forças produtivas permitiria uma abundância material e o dar a cada pessoa de acordo com as suas necessidades. Nessa fase comunista, as relações de produção seriam igualitárias e não existiria propriedade privada dos meios de produção. As relações de produção expressam-se na realidade social como lutas de classes (ex.: camponeses e senhores feudais, proletários e capitalistas). A mudança social, política e cultural é explicada pela mudança do sistema produtivo. Uma crítica que se lhe pode fazer à interpretação marxista da mudança social é que o marxismo não considerou a existência de limites ecológicos à expansão material da civilização, portanto não pensou seriamente nos limites ao intercâmbio entre a cultura e a natureza. Noutra linha algo diferente, a sociologia compreensiva de Max Weber (1969) analisa a realidade social por meio da construção de tipos ideais (aqueles que descrevem como teria acontecido uma acção se os meios utilizados fossem racionais para alcançar o fim proposto). Weber argumentou a influência central dos valores religiosos, em especial os da ética protestante de inspiração calvinista, para o desenvolvimento e a evolução do capitalismo em Europa. A mudança social é para Weber resultado de duas coisas: 1) O progressivo desenvolvimento de uma nova estrutura social, a partir do esgotamento das formas de dominação e da sua legitimidade carismática, procedendo à substituição por umas novas formas de dominação e legitimidade. 2) O crescente processo de racionalização do sistema de crenças da cultura ocidental (ex.: a passagem da magia para a ciência). Contributos de Weber foram as seguintes ideias: 1. Face aos factores estruturais, especialmente de base económica no materialismo histórico, Weber introduz os factores socioculturais no centro mesmo dos processos de mudança sociocultural, demonstrando a importância dos valores religiosos como factores da origem do capitalismo. Por que o capitalismo originou-se em Europa e não em China (mais tecnologia que em Europa)? Pela atitude face a riqueza (poupança do puritanismo calvinista). TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 36 2. Os factores económicos, políticos ou culturais não exercem uma acção exclusiva, porém operam interligadamente nas transformações sociais. 3. A importância relativa dos factores da mudança variam de acordo com as circunstâncias históricas. Uma outra visão é a do estrutural-funcionalismo, que tem como antecedente fundamental, Émile Durkheim, quem estava muito preocupado como o equilíbrio e a estabilidade da estrutura social. Para Durkheim, a causa da mudança sociocultural na época moderna era a divisão do trabalho. Para o estructural-funcionalismo de W.E. Moore (1974) e S.N. Eisenstadt (1972), a mudança é produto da modernização, é dizer, da passagem de uma sociedade tradicional para uma moderna. A modernização é para eles um processo de passagem de um estado a outro, de uma forma de organização social tradicional para uma forma de organização social moderna (família nuclear, poucos filhos por família, autoridade política legalista, mobilidade vertical alta, ...). O modelo define-se como linear, e portanto, pretende homogeneizar de acordo com um único modelo de modernidade. CARACTERÍSTICAS DA MODERNIDADE 1) Desenvolvimento das comunicações. 2) Hedonismo, consumismo, secularização, individualismo. 3) Preponderância dos grupos associativos (escola, sindicato, partido, etc. ) face aos comunitários. 4) Autoridade legalista e racionalidade burocrática. Consolidação do Estado. 5) Industrialização e urbanização. 6) Institucionalização do conflito e das mudanças na estrutura. Críticas ao estrutural-funcionalismo seriam: 1. A dificuldade para aplicar todos os atributos da modernidade e o seu etnocentrismo (traços próprios da sociedade europeia e norte-americana). 2. A arbitrariedade das classificações: tradicional, em transição, moderno. Classificações sem teorias interpretativas ou explicativas. 3. A dificuldade de escolher factores determinantes da mudança. 4. A impossibilidade de estender por todo o mundo os modelos de consumo ocidental, em relação com as desigualdades, a pobreza, a limitação dos recursos naturais, etc. A mudança social também está interligada com a permanência e a sua importância para a sobrevivência e adaptação humanas. Na sua relação com a permanência a mudança pode ser de três tipos (Gondar, 1981): 1. Substituições. Quando os objectivos que se tratam de satisfazer e a forma permanecem inalterados. Ex.: Substituir o carro usado. Construir uma casa nova. Este tipo de mudanças motiva poucos problemas, mudam o conteúdo ou as formas, mas as categorias onde repousa o sentido não mudam drasticamente. 2. Crescimento. O funcionário que sobe no quadro, o camponês que incrementa o capital com uma aliança matrimonial ou uma boa venda, etc. Aqui a situação não é especialmente desequilibradora, pois o crescimento é quantitativo e amplia as estratégias a utilizar. TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 37 3. Ruptura com o anterior. A mulher à qual lhe morre o esposo (derrubamento do apoio económico, do apoio na educação dos filhos, das anteriores relações com vizinhos, amigos e parentes). O emigrante que migra a outro país muito diferente do seu (novo sistema normativo, simbólico e de comportamento). Se nos dois tipos anteriores as pessoas podem perfeitamente valer-se em tais situações, neste último caso o comportamento é totalmente diferente: incompreensão, desconcerto, agressividade, etc. Estas mudanças costumam ser problemáticas e nalguns casos traumáticas. Nalguns casos as mudanças sociais producen-se de forma muito rápida, pelo que as pessoas e os grupos humanos reagem de diferentes formas. No caso da Galiza, estudado pelo antropólogo Marcial Gondar (1981), este afirma que quando se produz o “boom” da emigração nos anos 1960 transformam-se os valores, as pautas sociais e as formas de vida (tanto as dos camponeses que permanecem como as dos que emigram). Relacionando cultura e personalidade, as formas de reagir face a essa situação podem resumir-se em quatro tipos: 1. Afogados: A esta categoria pertencem todos os que não compreendem a nova situação - a maioria velhos -. São pessoas que dizem: "Este mundo não há quem o entenda!". "Tudo anda do revés". "Não sei onde imos parar". A consequência estrema desta situação é o suicídio. A Galiza ocupa uma das mais altas taxas de suicídio em Espanha. 2. Avestruzes: São gente quase sempre velha, geralmente com muito carácter, que se resiste a aceitar a mais mínima mudança que altere o modelo "tradicional" (tendente a permanecer) no qual foram socializados. Ex.: O pai que se opunha à compra de um tractor pelo filho (mecanização), argumentando que nem os seus pais nem os seus avôs necessitaram de tal coisa e que "nunca faltaram batatas nem milho". É como na cena de Dom Quixote lutando contra os moinhos de vento pensando que eram gigantes. É ir contra a potência da sociedade tecnológica moderna. 3. Novos ricos: Aqueles, geralmente novos,que quando se confrontam com modelos urbanos de comportamento fazem um esforço por apagar ao máximo as suas origens (os velhos esquemas camponeses nos quais foram socializados), interiorizando os novos esquemas urbanos o mais apresa possível. Ex.: Galegos urbanizados que falam castelhano com “gheada” e sotaque rural. Neste último caso a divisão está dentro do próprio sujeito. As pautas nas quais um indivíduo foi educado desde a sua infância é algo que não pode ser apagado da noite para o dia como se fosse um quadro escrito. A tensão que vive o novo rico passa por tentar constantemente apagar as formas da sua socialização primeira, que eles consideram de inferior categoria. Mas a tensão radica em que não conseguem apagar essas formas primeiras, e só podem ocultar as mesmas. Isto provoca um comportamento traumático de uma pessoa que é alienígena de si próprio e que se reconhece como tal. 4. Camaleões. São os que afirmam coisas do tipo "Alemanha è boa para ganhar dinheiro, mas não é boa para levar aos filhos". Desdobra assim o emigrante os aspectos económicos, considerados positivos, dos aspectos sociais e afectivos, considerados como negativos. Os cemitérios galegos TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 38 das aldeias estão cheios de panteões que medram ao mesmo tempo que se abandonam as aldeias. Esto é densamente significativo do sistema de valores em jogo. É uma "cultura para a morte", o panteão é símbolo resumo do mundo no qual o emigrante foi socializado de criança. O panteão é símbolo da "casa", não do indivíduo, é por isso que no mundo rural a pergunta chave é: de que casa es?, e não qual é o teu nome? ou como te chamas? Na actualidade a pergunta que se faz aponta ao futuro: que queres ser quando sejas grande? À hora de fazer fronte à mudança, estes emigrantes camaleões praticam uma integração entre passado e presente, a diferença dos outros tipos, não esgaçam o passado e o presente. Aceitam o presente sem esquecer o significado do passado. A identidade mantém- se desta maneira mais saudável socialmente. No meu ponto de vista, a estes quatro tipos haveria que acrescentar o dos “bravú”, que são aqueles, fundamentalmente jovens, que estão orgulhosos das suas origens rurais e das suas práticas culturais actuais, qualificadas como rurbanas. Podem viver na aldeia, ainda que não propriamente da agricultura, e sentem-se identificados com determinados elementos da tradição (passado que tende a permanecer) que revitalizam com força (ex.: língua, música, etc.). O nível de integração entre o passado e o presente procura uma interpretação do sentido e da racionalidade que tem um mundo em processo de mudança, são conscientes dos sentidos e das potencialidades dos elementos da sua cultura de origem. Compreendem a importância do local e os seus valores, junto com a interligação com um mundo global, face o qual matizam novos sentidos e novos estilos de vida, resistindo-se à uniformização cultural e à hegemonia de certos valores dominantes. BIBLIOGRAFIA -ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. 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TEMA 2: CULTURA E SOCIEDADE 42 -WILLIANS, R. (1977): Problems in Materialism and Culture. London: Verso. -WILLIS, P. (2003): “Producción cultural no es lo mismo que reproducción cultural, que a su vez no es lo mismo que reproducción social, que tampoco es lo mismo que reproducción”, em Velasco, H.M.; García Castaño, F. J. E Díaz de Rada, A. (eds.): Lecturas de Antropología para educadores. El ámbito de la antropología de la educación y de la etnografía escolar. Madrid: Trotta, pp. 431- 461. -ZUBIETA, A M. (2000): Cultura popular y cultura de masas. Conceptos, recorridos y polémicas. Barcelona: Paidós. SÍTIOS EM INTERNET http://www.un.org/popin/ (Web da ONU sobre a população no mundo). TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 43 © APONTAMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL 2011-2012 – Prof. Dr. Xerardo Pereiro – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) – antropólogo – Correio electrónico: xperez@utad.pt Web: www.utad.pt/~xperez/ TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS Objectivos: -Compreender a identidade da antropologia sociocultural, em relação a outras ciências humanas e sociais. -Esclarecer a relação entre a antropologia e folclore. -Apresentar o desenvolvimento histórico da antropologia em Portugal em dialéctica com outras disciplinas. Guião: 3.1. A antropologia e outras ciências humanas e sociais. -O estatuto epistemológico das ciências humanas e sociais. -A antropologia e a psicologia. -A antropologia e a sociologia. -A antropologia e o direito. -A antropologia e a geografia. -A antropologia e a história. -A antropologia e a filosofia. 3.2. Antropologia, folclore e cultura popular. -Antropologia e folclore -A cultura popular 3.3. A invenção da tradição 3.4. A antropologia portuguesa. -O desenvolvimento histórico da antropologia portuguesa. -Os usos do popular na antropologia portuguesa. Bibliografia Sítios em Internet 3.1. A ANTROPOLOGIA E OUTRAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS O estatuto epistemológico das ciências humanas e sociais Seguindo o pensamento do antropólogo Adolfo Yañez Casal (1996), podemos afirmar que as Ciências Sociais aparecem, enquanto exercício profissional, no século XIX. Este aparecimento não se dá por acaso, uma vez que é nessa altura que se consolida a sociedade burguesa e a modernidade e que aparecem novos problemas na relação entre o indivíduo e o grupo. As Ciências Sociais e Humanas têm em comum a relação entre sujeito (humano) e objecto (humanos) de estudo, o que implica falar de um estatuto epistemológico próprio, diferente do das ciências naturais. Esta postura não se encontra, porém, isenta de um forte debate científico que remonta à origem das ciências humanas e sociais. Durkheim (1995) considerava que as ciências humanas e sociais deveriam imitar as ciências naturais e considerar os fenómenos sociais como naturais. Esta perspectiva resume-se na expressão durkheimiana: “os factos sociais como coisas” (Durkheim, 1995). Autores como Dilthey (1839-1911), Max Weber (1864-1920) e Peter Winch defenderam, TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLOREE CIÊNCIAS SOCIAIS 44 contrariamente, que as ciências sociais deveriam ter um estatuto epistemológico próprio, porque a acção humana é radicalmente subjectiva. Para estes autores, situados numa linha “compreensiva”, as ciências sociais devem compreender os fenómenos sociais, a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas acções. Esta perspectiva defende a ideia de que devamos utilizar métodos diferentes das ciências naturais, basicamente qualitativos e indutivos, que nos levem a explicar e/ou compreender a realidade sociocultural. Um exemplo disto é o seguinte (Schütz e Luckman, 1977): Se vemos a uma pessoa abrir a porta de uma vivenda, podemos interpretar que está entrando na sua casa, mas pode ser que nos enganemos e talvez seja o cerralheiro, é por isso que é melhor perguntar aos participantes e ir mais além do senso comum. Portanto, o auto-conhecimento e o conhecimento intersubjectivos caracterizariam as ciências humanas e sociais, desde o ponto de vista epistemológico. Dilthey (1992) chegou a afirmar que as ciências sociais devem centrar-se não nas causas dos fenómenos sociais, mas nas representações, sentimentos e interpretações dos mesmos. Karl Popper (1986) foi um participante importante neste debate: afirmou a inexistência de oposição entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais. Para ele, a verdadeira oposição existe entre ciências empíricas e os sistemas metafísicos. Ao contrário da metafísica, a ciência caracterizar-se-ia por submeter as suas proposições e teorias à falsidade (refutação). Embora esteja consciente de que a ciência é sempre provisória, Popper reconhece o direito da mesma a procurar leis gerais. Esta validade limitada significaria pensar o conhecimento científico não como uma verdade irrefutável e absoluta, mas como um conhecimento –“certum” - validade limitada. Thomas Kuhn (2000), em oposição a Popper, distinguirá as ciências paradigmáticas (ciências naturais) das ciências pré-paradigmáticas (as ciências sociais). Porquê? Segundo este autor, não existe um paradigma sobre a natureza humana que seja aceite por toda a comunidade científica. Isto significa uma clara diferença relativamente às ciências humanas e sociais pois, se bem que paradigmas como os de Newton ou os de Einstein (relativismo) tenham sido aceites por todas as ciências naturais, em ciências humanas, a diversidade de teorias e princípios sobre a natureza humana é tão ampla que não nos permite falar de paradigma. Paradigma é entendido como o conjunto de teorias e princípios sobre a estrutura e a natureza das coisas; conjunto aceite, por unanimidade, por toda a comunidade científica. Sem entrar a fundo nesta discussão sobre pre-paradigmas e paradigmas (não é este o objectivo desde tema), é, porém, importante situar as ciências humanas e sociais, nomeadamente a antropologia na organização da produção social do saber. De acordo com Kuhn (2000) a história da ciência não é um processo cumulativo de conhecimento (talvez isto seja certo em Medicina), porém um processo construído a saltos, revoluções, mudanças radicais no paradigma cientifico de explicação. Um paradigma é um conjunto de ideias que uma comunidade científica partilha sobre metodologias e teorias. Mais tarde a hermenêutica filosófica recupera o significado, a interpretação e a compreensão humana do social (Gadamer, 1992). A compreensão está interligada com os preconceitos, a pre-compreensão do intérprete. Outra influência importante foi o pós-estruturalismo de Derrida e Foucault. Derrida (1975), através da sua estratégia de desconstrução do saber, TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 45 questionará a autoridade do investigador social, afirmando que os investigadores constroem o conhecimento através da subjectividade da linguagem e de estratégias retóricas. Mais do que factos externos ao texto, o conhecimento é uma construção textual do investigador. Negam assim o realismo, defendendo a ideia que a investigação é um fenómeno sócio-histórico que é parte do processo de vigiar e controlar, é portanto um exercício de poder. Michael Foucault (2003) afirmará que todo saber está intimamente ligado ao poder, e como toda produção de saber é uma forma de exercer poder. Desde uma perspectiva antropológica humanista, mais ligada ao conhecimento compreensivo, as características da produção do conhecimento são as seguintes: 1. Temos que reconhecer que existem outras formas de conhecimento – arte, poesia, literatura, fotografia... – com legitimidades diferentes. 2. A realidade constrói-se socialmente através de processos históricos. 3. Os humanos são seres significantes, que dotam de sentido tudo o que fazem, pensam e dizem. Os objectos são conhecidos, através da meditação do sujeito e da sua linguagem. 4. A verdade absoluta não existe, apenas existem algumas certezas – certum. Isto não significa que se pode controlar, cientificamente, a subjectividade característica das ciências humanas. 5. Todo conhecimento científico está exposto a princípios éticos e valores. Os resultados de uma investigação científica deveriam responder a duas questões: para quem servem? Para quê? Não têm igual valor ético o químico que trabalha na criação de uma bomba atómica e o que trabalha para descobrir uma medicina que cure o cancro. 6. É impossível publicar um livro de ciências sociais que não influa, dalguma maneira, na sociedade. 7. Qualquer realidade social não pode ser entendida apenas através da quantificação matemática. Questões como a felicidade, a tristeza, a dor, os sentimentos, os afectos não podem ser reduzidos a uma quantificação. O que distingue as ciências humanas e sociais é, portanto, o seu estatuto epistemológico próprio. No entanto, a relação intersubjectiva com o objecto de estudo também pode determinar algumas diferenças. Braudel (1976) afirma: “O que muda é o observatório, a paisagem é sempre a mesma”. Qual é o papel e o estatuto da antropologia em relação às outras ciências sociais e humanas? Anedota: -Qual é a diferença entre um antropólogo, um sociólogo e um jornalista? -Resposta: O antropólogo anda a pé ou de bicicleta, o sociólogo sempre de carro e o jornalista de avião. A anedota anterior pode representar, metaforicamente, as várias abordagens metodológicas que as diferentes ciências humanas e sociais apresentam, em relação ao seu objecto de estudo. Mas, na prática, produz-se um entrecruzamento de métodos e empréstimos teórico-conceptuais. Muitas subdisciplinas comunicam intensamente entre si. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 46 A Antropologia e a Psicologia No seguinte quadro, podemos observar, detalhadamente, a relação entre a antropologia e a psicologia: Indivíduo Sociedade Cultura Indivíduo Psicologia Psicologia Social Antropologia Psicológica Sociedade Antropologia Social e Sociologia Sociologia e Antropologia Social Antropologia Sociocultural e Sociologia Cultura Antropologia Cultural Antropologia » « Psicologia A realidade social assenta numa realidade psicológica e biológica –bioquímica-. O humano não se reduz só ao psicológico (ex.: atracção sexual entre duas pessoas). Experiencialismo. Estuda como o cultural e o social modelam o psicológico e vice-versa. “Facto social total” (Marcel Mauss). A antropologia pratica uma integridade na análise sociocultural. O biológico é um aspecto humano com sentido, que actua, através da cultura na sociedade. “Shock cultural”. -Identifica os traços psicológicos do indivíduo e explica os processos e mecanismos psíquicos intraorgânicos. -Conceitos: impulso, repressão, reflexos, condicionamentos, ego, personalidade, motivação... -Método: experiências de laboratório, testes psicométricos,... -A psicologia experimental tenta determinar as bases psicológicas da conduta individual. -Tenta descobrirum humano abstracto existente em todas as culturas. -PSICOLOGIA SOCIAL: estuda como o psicológico modela o social. A Antropologia e a Sociologia Anedota: Um antropólogo é capturado por uma tribo de canibais que o colocam numa panela gigante juntamente com batatas, sal, legumes... Pouco depois, o antropólogo grita: “Mais batatas, mais legumes...” (O antropólogo tinha começado a comer tudo) Antropologia » « Sociologia Nasceu como uma espécie de “sociologia dos outros” e dos “primitivos”. Inicialmente pensada como uma -Sociologia de “nós” e do nosso. -Os factos sociais explicam-se em função de outros factos sociais TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 47 microsociologia e uma sociologia comparada (Radcliffe-Brown). Tem uma epistemologia própria. Os “outros” foram incorporados no “nós” e o objecto de estudo entrou em crise, diversificando- se. A antropologia não é uma parte da sociologia: pensar desta forma seria uma ingenuidade. Os factos, estudados pelos antropólogos, não podem ser exclusivamente considerados sob uma perspectiva social. Ex.: a religião não cumpre, apenas, funções sociais: o problema não se esgota aí. Objecto de estudo: 1. Estuda a cultura humana e a forma como esta é vivenciada, em sociedade. 2. Estuda culturas e etnias, dentro da sociedade. 3. Estuda culturas diferentes. Métodos: observação participante; entrevistas em profundidade; comparação – histórica e diversidade cultural; compreensão holística, para desvendar aspectos essenciais da vida humana muitas vezes inconscientes. Estudos mais micro. Teorias e conceitos diferentes. Ex.: relativismo cultural, etnocentrismo,... Conhecimento dos outros e de nós mesmos. Finalidade: descobrir a natureza humana. Mais histórica. Deixa falar as pessoas, escuta- as e dá-lhes voz. Implica um modo de estar com as pessoas. Tem em conta as teorias nativas. (Durkheim). -Objecto de estudo: 1. O comportamento social de um grupo humano, de acordo com as variáveis: idade, sexo, profissão, classe, prestígio, papel, mudança,... 2. A sociedade em si mesma. 3. A sociedade em geral e as suas leis gerais. 4. A sua própria sociedade. -Conceitos: estrutura social, relações sociais... -Métodos: inquéritos, entrevistas… (recorre mais aos métodos quantitativos do que a antropologia) (utiliza com maior frequência a observação exterior e os estudos macro). -Mais ahistórica e presentista. -Muitos empréstimos conceptuais e teóricos à antropologia e vice-versa. Fala das pessoas em seu nome. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 48 ANTROPOLOGIA SOCIOLOGIA Interesse pelo Qualitativo Mais interesse pela medição quantitativa. Observação participante de práticas declaradas e práticas efectivas Método típico do inquérito estatístico, por questionário fechado. Técnica da objectividade oficial, comprovativa da separação entre sujeito e objecto. (TEIXEIRA LOPES, J. (1997): “Antropologia e Sociologia: Duas disciplinas em diálogo”, em Iturra, R. e Oliveira Jorge, V. (coords.): Recuperar o espanto. O olhar da antropologia. Porto: Afrontamento, pp. 39-44. A Antropologia e o Direito Antropologia e Direito Os primeiros antropólogos eram advogados. B. Malinowski: Crime e Costume na Sociedade Selvagem. Esta obra é dedicada à lei. Paul Bohanan: Tiv (Nigéria). É outra obra sobre a criação de leis na cultura tivs. A Antropologia e a Geografia Antropologia e Geografia As semelhanças entre estas duas disciplinas foram evidentes, desde Franz Boas, nomeadamente desde a publicação da sua teoria do “determinismo geográfico” (inspirada em Ratzel) e do determinismo geográfico-climático. Boas aplicou esta teoria nos seus estudos sobre os esquimós do Canadá. As semelhanças destas duas ciências passam também pelo uso e criação de mapas, como representação do espaço e do território. Os mapas e os relatórios geográficos são apoios logísticos fundamentais na investigação antropológica. Conceptualmente, são importantes os paralelismos entre “área cultural” (Cf. Brown: 2001) e o conceito geográfico de “região”, mas também o de “fronteira”. Este último conceito foi utilizado, pela primeira vez em antropologia, por Clark Wissler, em 1918, no seu estudo sobre a fronteira entre os colonos e os indígenas dos EUA. Em termos teóricos, as influências entre estas disciplinas foram mútuas, desde há muito tempo. Por exemplo, a teoria do lugar central do geógrafo Walter Christaller influenciou a antropologia. Em antropologia, a preocupação por uma análise do espaço está bem representada pelo antropólogo E.T. Hall que estudou a forma como as pessoas utilizam culturalmente o espaço. As geografias pós-modernas, como por exemplo os trabalhos de Eduardo Soja, incidem muito na antropologia urbana. Apesar das semelhanças, também existem diferenças conceptuais, teóricas e metodológicas. O trabalho de campo antropológico é específico da antropologia. A geografia tende a realizar, sobre o terreno, uma observação mais exterior dos fenómenos sociais. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 49 A Antropologia e a História Antropologia e História Os antropólogos evolucionistas e difusionistas (século XIX) fizeram uma história especulativa e conjectural. Os antropólogos funcionalistas tenderam a excluir a história e aproximaram-se da sociologia. A antropologia marxista recuperou a história. Metodologicamente, há muitas aproximações: trabalho de campo antropológico e história oral. Actualmente, os antropólogos também trabalham com documentação escrita. A Antropologia histórica trabalha com documentos e memórias orais. A História tende a dar maior importância aos documentos escritos. A antropologia tenta compreender as relações entre passado, presente e futuro, que podem convergir metaforicamente no presente. A história tende a reconstruir, eventualmente, o passado. A antropologia interpreta as representações do passado, as amnésias e os esquecimentos. ANTROPOLOGIA (Sec. XVI-XIX) HISTÓRIA (Sec. XVI-XIX) Nasce do encontro do Ocidente com sociedades não ocidentais, “selvagens”, “bárbaras”. Sociedades sem escrita, dominadas pela oralidade. Sociedades “civilizadas” ANTROPOLOGIA (Sec. XIX) HISTÓRIA (Sec. XIX) SOCIOLOGIA (Sec. XIX) Práticas culturais não ocidentais. “Sobrevivência” das instituições que teriam existido na Europa, há séculos. (a Europa teria evoluído para a Civilização). A antropologia estudava o exotismo da Índia, do Japão e da China. Estudava a “civilização” europeia ocidental (com modos de vida baseados no Estado e na escrita). Sociedades urbanas e industriais ocidentais. Também estudaria alguns aspectos das sociedades não ocidentais (urbanismo, indústrias, poder). Em Godelier, M.,1996,”Antropología social e historia local”, em Sociológica n.º 1, pp. 9-30. Segundo o antropólogo Maurice Godelier (1996: 13), as pontes entre antropólogos e historiadores foram feitas em trabalhos de “etnohistória” e TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 50 “antropologia histórica”. Qual o trabalho do antropólogo, relativamente à história? Godelier (1996: 22) responde a esta questão: “... de vuelta a la práctica del antropólogo, cuya tarea consiste en reconstruir las genealogías, y a través de las genealogías las historias de clanes y familias, y las historias de vida, ya sea de individuos ilustres o de hombres y mujeres ordinarios de los que há permanecido la memoria. Recordemos que, en función de cual sea la sociedad de la que tratemos, la memoria genealógica puede variar entre un mínimo de tres generaciones más allá de nuestro informante (es decir la generación de sus abuelos y la de sus bisabuelos) hasta un máximo de quince. Pues bien, tres generacionescorresponden a cien años, lo que significa que cuando un antropólogo desarrolla una investigación no solamente se enfrenta a los acontecimientos contemporáneos, sino que se sumerge en una duración de más de un siglo...” Há que considerar que, hoje, existe uma certa convergência metodológica, mas também uma necessária interdisciplinariedade. Segundo o antropólogo Ulf Hannerz (1979: 3-4), “as fronteiras disciplinares não se devem tornar vacas sagradas”. Persistem, no entanto, algumas diferenças, muitas vezes mais ligadas a identidades corporativas de organização académica e profissional do saber, utilizadas para uma conquista dos mercados de emprego. A Antropologia e a Filosofia Para alguns autores, a origem da antropologia encontra-se na filosofia grega. Os contributos da filosofia foram e são muito importantes para a antropologia. A filosofia contribuiu para a reflexão sobre as condições de produção do conhecimento antropológico, enquanto problema epistemológico. A filosofia deu azo à análise antropológica (por exemplo, a filosofia hermeneútica de Gadamer - 1992). A filosofia também chamou a atenção da antropologia para a forma como os seres humanos pensam e apreendem. A filosofia deu um grande contributo para o pós-modernismo. Sobre esta questão, recomendamos a magnífica obra do antropólogo Adolfo Yañez Casal (1996). A diferença entre antropologia e filosofia e antropologia é também metodológica, assim a filosofia tende a ser mais dedutiva e a antropologia mais indutiva e com base empírica. 3.2. ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CULTURA POPULAR Folclore, Folclorismo e folclorização Por folclorismo entendemos um conjunto de ideias, atitudes e valores que enaltecem a cultura popular e as suas manifestações. Por folclorização entendemos o processo de construção e institucionalização de práticas performativas da cultura “popular” (Castelo Branco e Freitas Branco, 2003: 1). O folclore pode ser considerado um campo social, no sentido bourdieuano, uma cultura expressiva e performativa difundida intensamente desde o século XIX e com inspiração no mundo rural. O seu paradoxo vai ser que o seu conteúdo ruralista cria-se a partir de um quadro urbano e ele leva TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 51 associado, historicamente, políticas culturais e certificações científicas da sua pretendida autenticidade (Castelo Branco e Freitas Branco, 2003). Os processos de folclorização levam consigo associados processos de objectivação da cultura que recompõem a relação entre tradição e modernidade, criam novas modalidades de celebração do património cultural, elaboram novos catálogos emblemáticos identitários e põem em circulação mercantil algumas expressões culturais (Raposo, 2004: 137). O folclore tem sido utilizado com fins políticos de dominação (ex.: Estado Novo, Estado franquista em Espanha), como com fins emancipatórios. No primeiro caso o que se pretendia era perpetuar uma tradição inventada (Hobsbawn e Ranger, 1983) politicamente e no segundo de diferenciar-se face a uma hegemonia. Seja como for, o folclore, enquanto produção cultural, tem sido utilizado politicamente para integrar as populações rurais na nação (Kirshenblatt-Gimblett, 1998) e com a queda das ditaduras e ascensão das democracias o seu revivalismo adquire novas formas e significados. Recentemente este tem-se convertido numa mercadoria cultural mais (Kirshenblatt-Gimblett, 1998; 2001; Raposo, 2004) cada vez mais urbana enquanto a grupos e implantação geográfica. O folclore e as críticas da antropologia A fins do século XVIII e primeiros do século XIX o “povo” ou “folk” começou a ser estudado pelos intelectuais europeus, num momento de desaparição da cultura popular –por causa da revolução industrial-. Os camponeses foram surpreendidos nas suas casas pelas classes médias urbanas que lhes pediam para cantar e contar contos (Burke, 1996: 35). O interesse pela literatura oral tradicional fez parte de um movimento geral de “descobrimento do povo” e que incluía também a religião popular, a festa popular, a música popular, costumes, etc. (Burke, 1996: 40). Ainda que a antropologia, enquanto semiótica da cultura, tenha incorporado os estudos do folclore e dos costumes, o processo histórico de relacionamento entre antropologia e folclore foi desigual, ao longo da história. O termo folclore foi criado por W. J. Thoms em 1846 (González Reboredo, 1999) na revista Athenaeum, substituindo ao anterior de “antiguidades populares”, e na mesma época a antropologia começa a organizar-se como disciplina académica. Desde uma óptica ibérica e de acordo com Honorio Velasco (1988: 13), a antropologia esteve, durante a sua história em Espanha, muito ligada ao Folclore (estudo da cultura popular). Porém, o folclore experimentou uma desqualificação como disciplina científica académica. O interesse social pela “cultura popular” aumentou no sec. XIX. Na época, assistia-se ao auge do Nacionalismo, que procurava traços culturais diferenciais para justificar a existência e a identidade das novas nações. Nesse contexto político, apareceram as “sociedades de folclore”, já, na altura, conhecedoras dos textos de antropólogos evolucionistas como Morgan e Tylor. O trabalho das sociedades de folclore foi, em muitos casos, muito importante, sobretudo pela grande recolha de dados, através de questionários sobre o folclore. Assim o expressava a escritora Emilia Pardo Bazán no discurso da sessão de abertura da Sociedade “El Folklore Gallego” em 1884: TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 52 “El Folk-lore quiere recoger esas tradiciones que se pierden, esas costumbres que se olvidan y esos vestigios de remotas edades que corren peligro de desaparecer para siempre. Quiere recogerlos no con el fin de poner otra vez en uso lo que cayó en desuso... sino con el de archivarlos... y formar con ellos, por decirlo así, un museo universal donde puedan estudiarlos doctos la historia completa del pasado...” (Em González Reboredo, 1999: 44). Um exemplo do papel destas sociedades de folclore é a Sociedade de Folk-lore Andaluz, que editava a Revista de Folk-lore Andaluz e que tinha os seguintes objectivos (Machado y Álvarez, 1981: 5): “A la simple lectura de esa primera base -el estudio del saber popular obsérvase cuáles son los principales ramos de conocimiento que abraza nuestra Sociedad, los cuales pueden reducirse a cinco grandes grupos: primero, lo que hasta cierto punto podríamos llamar ciencia popular o sease los conocimientos que el pueblo ha adquirido por medio de su razón natural y de su larga experiencia; segundo, literatura y poesía populares, propiamente dichas; tercera, Etnografía, Arqueología y Prehistoria; cuarto, Mitología y Mitografía; y quinto, Filología, Glottología, Fonética: que todas estas ciencias son verdaderos auxiliares del Folclore”. O folclore significava, para eles, recolher contos, baladas, etc. Usava-se o conceito de “povo” como “verdadeiro conservador da linguagem” (Velasco, 1988: 17). Os folcloristas eram indivíduos urbanos, que pouco tinham de “povo” ou classe baixa, embora considerassem que pensavam como estes. Os folcloristas chegaram a ser, no sec. XX, amadores e nostálgicos do romantismo do sec. XIX que predicam a urgência da recolha face ao que eles consideram perca de tradições e costumes. Outro paradoxo é o facto de se ter introduzido uma palavra inglesa e alemã (“folclore”) para designar o mais genuinamente espanhol, andaluz, extremenho ou português (Velasco, 1988: 18). O folclore era pensado, pelos folcloristas, como uma Ciência, uma paixão e uma missão nacional. Com Velasco (1988: 19) podemos concordar em que: “O folclore é uma recuperação rural que a sociedade industrial realiza nos seus tempos de lazer”. Em tempos mais recentes do sec. XX, outras associações tiveram como objectivo especial uma parcela do folclore: as danças e as canções. Estas novasformas de institucionalização mostram um processo de escolha orientado para o espectáculo. Abandonou-se assim, parcialmente, o primeiro objectivo científico (Velasco, 1988: 20). Desde o ponto de vista da antropologia, o folclore tem muita plasticidade e está acomodado a diversas dinâmicas sociais, sendo dependente do conceito de cultura. O folclore, enquanto movimento cultural, não partiu do povo: foi uma recriação, um descobrimento da cidade, da burguesia e da modernidade. O povo, a gente do rural acabou por descobrir que tinha folclore, sem saber do assunto (Velasco, 1988: 21). Os difusores do folclore tiveram um papel de mediadores, entre o povo e outros sectores sociais. Esta mediação não era totalmente descomprometida. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 53 Podemos afirmar que era uma espécie de mercadoria para sectores urbanos, com a etiqueta de “cultura popular” (Velasco, 1988: 22). A maioria dos folkloristas eram dos grupos dirigentes e descreviam o povo como natural, simples, iletrado, instintivo, irracional, tradicional, ancorado na terra, comunitário, sem sentido da individualidade (Burke, 1996: 43). Podemos falar num culto ao povo e ao que se considerava como primitivismo cultural, que levava nalguns casos a imitar este por razões estéticas, intelectuais e políticas. Este culto foi devido, segundo Peter Burke (1996: 45), a uma reacção contra o elitismo da Ilustração e nalguns casos contra a França (na Alemanha e em Espanha utilizou-se a cultura popular contra o gosto francês). É bem conhecida a associação entre o estudo do folklore e o nacionalismo. O folklore serviu como justificação e conteúdo na construção das nações. O conceito de nação foi um invento de intelectuais que se impus ao povo com o qual desejavam identificar-se, mas os camponeses e artesãos tinham nos começos do século XIX mais consciência identitária local e regional do que nacional (Burke, 1996: 48). Além mais a visão que os intelectuais burgueses tinham do povo costumava ser ambivalente. Por um lado pensavam que o povo era atrasado e supersticioso (conceito pejorativo), mas por outro admiravam nele pela sua simplicidade, hospitalidade e imaginação (Burke, 1996: 51). O folclore apoiou-se na etnografia, mas a etnografia não é uma ciência, é um conjunto de técnicas de investigação antropológica. Os folkloristas estudam o “folclore como saber” e não o “folclore como viver”. Estudam o pensamento e a imaginação como “popular” e não estritamente o humano, tal como a antropologia (Velasco, 1988: 25). Os folcloristas pensavam que era no povo que sobreviviam temas passados, porque não estavam incorporados à modernidade. Esta concepção relaciona-se com as teorias da antropologia evolucionista. Quando se fala de povo, fala-se de nação. Actualmente, as recuperações do “popular” encerram três aspectos (Velasco, 1988: 26-27): 1. Um fundo que abastece determinado povo com traços de identidade. 2. Reclama a diferença. 3. Marca a identidade, em oposição à uniformidade. Uma posição crítica e esclarecedora do folclore é a do antropólogo espanhol Julio Caro Baroja (1968: 353): “Así, por ejemplo, en nuestros días (...), un autor famoso, ya muerto, el profesor Robert Redfield, acuñó la expresión Folk-Society y definió luego a ésta como una sociedad pequeña, aislada, iletrada (illiterate) y homogénea, con sentido estrecho de la solidaridad de grupo, definición que parece muy clara. La cuestión es encontrar tal sociedad. Personalmente he de confesar que, según mi experiencia, no existe en España, ni ha existido en puridad desde hace mucho. Cuando me he lanzado al field-ward, al llegar al último rincón de Andalucía o de Vasconia (...), me he encontrado con que el aislamiento, la homogeneidad, el agrafismo, etc., eran cosas tan problemáticas que no valía la pena insistir sobre ellas demasiado. En cambio, si tenía que estudiar ordenanzas municipales, ordenanzas de montes, reglamentos de cofradías, programas de fiestas, leyes generales y documentos escritos de diversa índole, que implican un género de investigación histórica.” TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 54 A antropologia é diferente do folclore: logrou maior prestígio académico (universitário), mas partilha com ele uma ideia de cultura não elitista. Tanto com a antropologia como com o folclore, a cultura e o seu conceito alargaram- se (narrações, danças, vestidos, etc.). Podemos ainda afirmar que existiu uma certa continuidade e/ou influencia entre os estudos de ambas as disciplinas. Portanto, as diferenças relacionam-se mais com perspectivas metodológicas e teóricas do que com o objecto e a tradição organizativa do saber. As divergências entre ambas remontam à rejeição dos estudos folclóricos por parte da antropologia social britânica. Esses estudos foram, porém, repescados pela Literatura e a História Social. Marcel Mauss também insistiu na distinção entre “Folklorismo” e “Antropologismo” (Luque Baena, 1989: 51). Segundo Luque Baena (1989: 52), o folclorismo retiraria determinada actividade ou objecto. Descontextualizaria muito mais do que a antropologia cujo objectivo é estudar a cultura, nos seus contextos de significado específico. Os textos dos folcloristas só falam de pessoas que dançam, vestem, narram contos e lendas. Os textos dos antropólogos desenham pessoas cinzentas, que não dançam nem cantam. Para os folcloristas, os fenómenos culturais são produtos acabados, “coisas”, o que implica uma reificação e uma museística das pedras. Esses fenómenos são, muitas vezes, impessoais (Ex.: Dança-se, Come-se...), distanciando-se do indivíduo criador, pessoal e fisicamente. O folclorismo é, portanto, uma torpe e errada objectivação da Cultura; trata-se de ingenuidade e falsidade (Luque Baena, 1989: 53). Para os antropólogos os fenómenos culturais são processos criados pelos grupos humanos e “...los estereotipos, los tópicos, los clichés o los slogans, son buenos objetos de investigación, pero dudosos o sospechosos cuando los transformamos en herramientas conceptuales o heurísticas.” (Luque Baena, 1989: 54). Segundo Luque Baena (1989: 55-56), são três as criticas que podem ser apontadas ao folclore: a sua simplificação, os reduzionismos meio- ambientalistas e a ausência de interpretação da expressividade social (exemplo: a retórica como persuasão, através de um discurso subliminal, quase imperceptível; a transmissão de sentidos e significados; os trocadilhos; as metáforas; as metonímias, etc.). Outras críticas foram apontadas pelo historiador da cultura Peter Burke (1996: 58-60). No seu ponto de vista os folcloristas do século XIX não utilizaram um método de classificação que diferenciasse entre rural e urbano, o camponês e o nacional (eu diria o burguês), o primitivo e o medieval. Também utilizaram erroneamente três conceitos: primivitivismo, comunitarismo e purismo. Os folcloristas tenderam a localizar historicamente a cultura popular num período primitivo pré-cristão e a defender a ideia de que não tinham sofrido mudanças, algo totalmente falso. Os folcloristas pensavam que as criações da cultura popular eram comunitárias, obviando que existiram criadores individuais reproduzidos posteriormente por outros, também com estilos individuais. Os folcloristas acabaram por definir o povo e a nação por uma das suas partes, os camponeses, mais próximos da natureza e menos influenciados pelos modos estrangeiros. Este foi um exercício social metonímico que utilizou grupos subalternos como os camponeses para TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 55 representar toda a nação. Foi assim como se ignorou a relação entre urbano e rural, letrados e iletrados. Excluíram-se os habitantes das cidades dos estudos sobre a cultura popular. As diferenças entre antropologia e folclore poderiam sintetizar-se da seguinte forma (Dolores Juliano, 1986): ANTROPOLOGIA FOLCLORE Ciência Socialque estuda a Cultura. Estuda a diversidade humana, desde um nível de abstracção. Origem teórica no Evolucionismo. Cultura: Conjunto de regras e normas geradas socialmente. Disposições adquiridas pela aprendizagem. Campo mais restrito: sectores rurais da sociedade industrial, expressões tradicionais e populares de uma área geográfica particular. É uma área específica da antropologia. Origem teórica no Romantismo. Definições: a) Pelos conteúdos. b) Pela forma de transmissão dos conteúdos (oralidade). Cultura: Conceito essencialista e reificador. “Alma popular”, “Criação colectiva do folclore”. “Inconsciente colectivo” (Jung). Essência materializada nalgumas actividades. DOLORES JULIANO, M. (1986): Cultura Popular. Barcelona: Anthropos, pp. 3- 6. A cultura popular De acordo com o historiador da cultura Peter Burke (1996: 20) as elites tentaram historicamente reformar a cultura popular. Noutros casos renunciaram a ela, e noutros descobriram ou redescobriram a cultura do povo, especialmente a dos camponeses, com a qual convergiram de algum modo. Isto último foi bem demonstrado pelo antropólogo William Christian, para quem na Espanha do século XVI os ex-votos, as relíquias e os santuários como forma de religiosidade eram tão característicos da família real como dos camponeses analfabetos (Christian, 1981). De acordo com Peter Burke (1996: 25) as elites da Europa moderna eram “biculturais”, isto é, participavam da cultura popular e conservavam a sua própria cultura. Historicamente a cultura popular tem-se definido pela negativa, isto é, pela cultura que não era oficial, a cultura dos que não eram membros da elite (Thompson, 1987), dos subordinados em sentido gramsciano. Na actualidade o conceito de cultura popular redefiniu-se, e segundo John Storey (2002) podemos entender a cultura popular como: A que é acolhida por muita gente, isto é, como cultura de massas. Estaria associada aos médios e as suas mensagens legitimadas, e também às criações para consumo de multidões. Esta perspectiva seria, no nosso entender semelhante ao que Abraham Moles denomina como TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 56 “cultura mosaico” (Moles, 1976). Esta cultura mosaico anularia cognitivamente o espectador e uma possível interpretação relacional da realidade. Hoje a cultura de massas pode ser contextualizada como “indústria cultural” (Adorno e Horkheimer, 1979). O que não é “alta cultura” e é inferior a esta. Nesta perspectiva, temos que introduzir o conceito de “distinção”, para entender esta diferença. As distinções culturais apoiam distinções de classe e de estatuto. O gosto é uma categoria ideológica de classe, mas também uma categoria socioeconómica e de qualidade. O consumo da cultura encontra-se “predisposto, consciente e deliberadamente ou não, para cumprir uma função social de legitimação de diferenças sociais” (Bourdieu, 1984: 5). A “alta cultura” seria o resultado de um acto individual de criação adoptado por uma elite para defesa da sua continuidade. A “alta cultura” seria elitista, refinada no gosto, requintada e própria do apreço das classes superiores. A cultura comercial para o consumo de masas. Este consumo é entendido como passivo, alienado e alienante e, simultaneamente, manipulador. Esta cultura popular foi inventada nos EUA e produz um processo de “norte-americanização” do mundo. Representa uma ameaça para a Direita, pois ataca os valores tradicionais da “alta cultura”, mas também para a Esquerda, pois ataca os modos de vida tradicionais dos povos e das classes mais baixas. Nesta óptica, a cultura popular seria, para o estruturalismo, uma máquina ideológica que reproduziria a ideologia dominante. Para o pós-estruturalismo, a cultura popular teria também um papel activo por parte do actor, encerrando também contradições, resistências... A que tem origem na gente. Seria a cultura folclórica da gente para a gente, mas também a da classe trabalhadora e trabalhista, como protesto simbólico contra o capitalismo. Esta postura tem algumas fraquezas, pois a cultura popular não é espontânea e as matérias-primas que utiliza são obtidas no mercado capitalista. O que inserimos na categoria “gente”? De ai que a cultura popular como “cultura das classes trabalhadoras” seja um conceito difícil de delimitar, por causa do seu aburguesamento (ex.: camponeses, operários), um processo analisado por Richard Hoggart (1973) no caso inglês. A cultura popular como terreno de luta política. Esta perspectiva integra o conceito gramsciano de “hegemonia” (Gramsci, 1998: 210). A hegemonia é o modo como os grupos dominantes da sociedade, tentam alcançar, através de um processo de liderança intelectual e moral, o consentimento dos grupos subordinados da sociedade. A cultura popular seria, portanto, um local de luta ideológica, entre a resistência dos grupos subordinados da sociedade e as forças dos grupos dominantes. Esta luta implicaria intercâmbios e negociações, entre os dois grupos. Assim, a cultura popular é entendida como um conceito político inserido num processo histórico e aplicado a diferentes objectos. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 57 A cultura popular entendida como igual ou semelhante à “alta cultura”. Segundo o pós-modernismo, assistimos, hoje, à extinção do elitismo, mas também à vitória final do comércio sobre a cultura. Desta forma podemos questionar a dicotomia entre alta e baixa cultura, pois em realidade são universos intimamente relacionados. Assim por exemplo, os dramas de Shakespeare e as comédias de Lope de Veja foram criadas para o consumo massivo. Outro exemplo, Dostoievski e Victor Hugo escreveram as suas obras em formato fascículo. E outro, a ópera nasceu como um espectáculo popular, ainda que logo tornou-se elitista. Podemos afirmar que a marcação de diferenças é causada pela distinção entre classes, a étnica e também a afirmação nacionalista. É muito complexo falar em cultura popular, pois subjaz sempre a necessidade de haver um termo de contraste (ex.: cultura popular/ alta cultura) e, como já foi referido, essas dicotomias são muito ambíguas ou até mesmo falsas. Estos e outros motivos levam-nos a afirmar que se bastantes problemas apresenta o conceito antropológico de cultura, muitos mais o de cultura popular. O antropólogo Néstor García Canclini (1989) questiona-se também sobre o facto da cultura popular ser uma criação espontânea do povo ou uma memória convertida em mercadoria e um espectáculo exótico que a indústria reduz a curiosidade para turistas. García Canclini (1989: 15-21) coloca, assim, no centro do debate, os processos de mercantilização e festivalização da cultura, além da participação colectiva em propostas culturais. Desta forma o problema do significado continua, isto é, a actuação de um rancho folclórico pode não ter o mesmo significado para as classes baixas do que para as médias e altas. Isto implica que devemos estudar não apenas os elementos culturais considerados “populares”, porem os caminhos e vias pelas quais esses elementos são apropriados pelos grupos sociais 3.3. A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO Ainda que os antropólogos já levavam várias décadas analisando tradições e descobrindo como se construíam socialmente como forma de combate do essencialismo, em 1983 os historiadores britânicos Eric J. Hobsbawm e Terence Ranger (1983) popularizaram o conceito de “invenção da tradição”. Segundo eles o que definimos como tradição teria uma origem mais recente do que pensamos e não uma origem na noite dos tempos, e além mais seria inventada ou fabricada socialmente num tempo determinado por pessoas e grupos de poder determinados com interesses bem concretos. De acordo com eles uma tradição inventada seria um conjunto de práticas e normas, implícita ou explicitamente aceites, com uma natureza ritual ou simbólica e com o intuitode inculcar valores e normas de comportamento repetitivo continuados desde o passado. Nas tradições inventadas o passado histórico é oportunamente seleccionado para continuar no presente. Isto contrasta com a inovação e a mudança contínua do presente mundo moderno. A tradição inventada costuma ser apresentada como um atributo imóbil e imutável, algo que não é bem certo, pois em realidade ela é inventada e re- inventada para adaptar-se ao presente. A tradição não é bem costume, pois o costume é a prática de leis e hábitos, mas a tradição é fruto da toga, da admoestação e de comportamentos formais e práticas ritualizadas. Os dois conceitos estão interligados más TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 58 definem diferentes realidades. A tradição é uma convenção simbólico-ritual e a invenção dela é um processo de ritualização e formalização com referência ao passado para impor uma certa repetição. As tradições inventadas podem recorrer-se de antigos usos e formas adaptadas às novas condições do presente com novos fins, é o que costuma fazer a Igreja católica, os tribunais de justiça, os exércitos e as universidades. E também podem recorrer-se de símbolos e instrumentos de todo novos, é o exemplo dos símbolos dos estados nacionais (bandeiras, hinos, etc.). Seguindo aos autores citados, as tradições inventadas logo da Revolução Industrial apresentam-se em três tipos: a) Aquelas que simbolizam a coesão social, a pertença a um grupo ou comunidade, ainda que foram mais ou menos artificiais. b) Aquelas que fundamentavam ou legitimavam uma instituição, um estatuto ou uma referência de autoridade. c) Aquelas que se relacionavam com a socialização, que pretendiam ensinarem crenças, sistemas de valores e convenções de comportamento. 3.4. A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA O desenvolvimento histórico da antropologia portuguesa A antropologia, em Portugal, embora ainda em processo de desenvolvimento, tem presença, como curso de licenciatura e pós-graduação, nas seguintes universidades: Licenciatura Universidade Antropologia Social Universidade Nova de Lisboa (UNL) Antropologia Cultural Universidade Técnica de Lisboa- Instituto Superior de Ciências Sociais (ISCSP) Antropologia Social Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento (abriu em 1998/1999; suspensa hoje) UTAD-Pólo de Miranda do Douro Antropologia Universidade de Coimbra-Faculdade de Ciências e Tecnologia Antropologia (curso suspenso em 1999/2000, abriu um Centro de Estudos de Antropologia Aplicada e uma licenciatura em Estudos Culturais em 2006-2007) (particular) Universidade Fernando Pessoa (Porto) Antropologia (Abriu em 1999/2000. Curso suspenso actualmente) (particular) Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa) A antropologia que se ensina, em Portugal, é fundamentalmente social e cultural. Só no Museu e Laboratório Antropológico de Coimbra se assume a tentativa de integrar a investigação em antropologia física ligada à antropologia social e cultural. A formação em arqueologia está ligada às faculdades de História. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 59 Na actualidade, a formação em antropologia reflecte as diversas influências das escolas internacionais (Pina Cabral, 1986: 12). Em que fase se pode dividir a antropologia portuguesa? Segundo João de Pina Cabral (1991: 15-36) estas fases seriam: 1ª A cultura burguesa e o interesse pelos "costumes populares" Desde a subida ao poder da burguesia, na 1ª metade do s. XIX, o estudo dos "costumes populares" foi considerada uma questão de interesse fundamental. Criou-se o seguinte esquema mental: "CULTURA POPULAR"= "AUTENTICIDADE", "O POVO" = Identidade nacional "CULTURA BURGUESA"= "NAO AUTENTICIDADE" No s. XIX e 1ª metade do s. XX, a etnografia associa-se à procura de uma identidade nacional. A identidade nacional deve ser encontrada entre "o povo" e não entre as classes urbanas no poder (que não conformam o autenticamente português, por não serem rurais, apesar de poderem ter uma existência muito antiga). Nesta fase, estabeleceram-se as seguintes associações simbólicas: AUTÉNTICO↔ ÚNICO PARA UM POVO ↔ O QUE TEM LONGA EXISTÊNCIA ↔PRIMITIVO↔COSTUME POPULAR↔TÍPICO Acontece que o popular de hoje é rejeitado como má cultura e o popular de ontem é definido como "tradicional". Curiosamente o que antes era só hegemónico e burguês é agora considerado como "popular". Estes processos sociais relacionam-se com a constante redefinição e com a necessidade de perpetuação da burguesia. Há uma constante necessidade de redefinição, de procura dessa autenticidade fugida, que a sociedade burguesa não encontra em si mesma. Isto não significa uma subvalorização de si própria, mas uma relação de amor-ódio perante as camadas sociais no seio das quais a sociedade burguesa procura autenticidade. 2.ª Os românticos Os ciclos de renovação da antropologia foram sempre impulsionados por uma importação de modelos analíticos desenvolvidos no estrangeiro: Anos 20 do século XIX (OS ROMÂNTICOS) Almeida Garret e Alexandre Herculano (Exilados políticos na Inglaterra, durante as lutas liberais) Fascínio romântico pelas "antiguidades populares" para uma definição de uma nova nacionalidade. Recolhera m contos e canções populares. 3ª A «Belle Époque » (1871-1920) TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 60 Intensa criatividade científica de uma geração que acompanhou a gestação da República: Oliveira Martins, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Rocha Peixoto, Leite de Vasconcelos,... Desenvolveram, de forma académica, pela primeira vez, o estudo da cultura e das artes. Para eles, a cultura popular era uma sobrevivência de crenças antigas. A burguesia procurava, na história e na cultura popular, uma grandeza nacional perdida (o império de ultramar). Segundo João de Pina Cabral (1991) nunca se chegou realmente a desenvolver uma tradição colonial da antropologia. 1875 SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA (Serpa Pinto: 1881, sobre as suas explorações na África) (Lopes Mendes: 1886, sobre as posses portuguesas na Índia) (Manuel Ferreira Ribeiro:1877, sobre Santo Tomé e Príncipe). Anos 1920 ESCOLA DE ESTUDOS COLONIAIS (associada á Sociedade de Geografia de Lisboa) Nesta época, apenas se escreveu uma monografia sobre as colónias: -JUNOD, Henri (1962, or. Fra. 1898): The Life of A South African Tribe. Sobre os Thonga de Moçambique, um dos clássicos do africanismo. O seu autor foi um missionário metodista suíço. 4ª O pós-guerra A partir de 1935, o regime ditatorial instituiu o estudo das colónias, com o objectivo de elaborar mapas etnológicos. Isto foi bem definido no Primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial (Porto, 1934). Um dos seus autores foi Mendes Correia que utilizou um método antropométrico de campo. Foram enviadas missões para todas as colónias portuguesas, nomeadamente para África. Entre os impulsores destas missões destaca-se Joaquim do Santos Júnior (Pereira, 1988). Esta antropologia representava as tendências mais conservadoras das ideologias coloniais do regime. A partir de finais de 1950 produz-se uma nova antropologia colonial, protagonizada por Jorge Dias, que distancia, cada vez mais, do grupo de Mendes Correia (Porto). 1952 Jorge Dias mudou-se para Coimbra, onde leccionou Etnologia e História da Geografia 1956 Integrou-se na Escola de Administração Colonial. Fez uma viagem à Guiné, Moçambique e Angola 1957 Jorge Dias foi convidado para dirigir as Missões de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português. Os seus assistentes foram: Margot Dias (esposa dele) e Manuel Viegas Guerreiro. O objectivo era realizar descrições etnográficas, mas também relatórios confidenciais sobre as condições sociais e políticas das colónias. 1961 A Escola de Administração Colonial passoua denominar-se Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Aqui leccionou Antropologia Cultural, Etnologia Regional e Instituições Nativas Leitor de língua portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 61 Jorge Dias estudou os chopes do Sul de Moçambique, os Bóeres e Bosquímanes do Sul de Angola, mas o seu trabalho central foi dedicado aos macondes do Norte de Moçambique, escolha influenciada pelo facto do seu professor, o alemão Richard Thurnwald, ter estudado, nos anos 30, os macondes de Tanganica (Tanzânia tornou-se independente em 1964). A tensão política era intensa e, em 1964, começa o movimento pela independência de Moçambique. Marvin Harris também trabalhou em Moçambique com os thongas (1959), mas foi expulso, nesse ano. Em 1960, Charles Wagley (também da Columbia University) foi convidado, pelo Ministério, para substituir Harris, como acto de relações públicas e de reduzir a má impressão da expulsão de Harris. Jorge Dias acompanhou a Wagley por Angola e Moçambique. Em 1960, inicia-se, no planalto maconde, o levantamento de Mueda. Nestas circunstâncias, o trabalho etnográfico tornou-se inviável. Viegas Guerreiro continuou, contudo, a estudar o sul de Angola, nos verões europeus de 1962-63 e 64. Segundo João de Pina Cabral (1991: 35-36), Jorge Dias nunca conseguiu ultrapassar as limitações teóricas de base e não compreendia a teoria sociológica nem a antropológica. 5ª O pós 25 de Abril Um autor e uma obra inauguram a antropologia sociocultural contemporânea em Portugal: -Cutileiro, José (1977): Ricos e pobres no Alentejo. Uma Sociedade Rural Portuguesa. Lisboa: Livraria Sá da Costa. José Cutileiro, formado em Oxford, introduz, em Portugal, os métodos modernos da antropologia social. Outros autores consolidaram esse caminho: Brian O´Neill, Jõao de Pina Cabral, Joaquim Pais de Brito, Raúl Iturra, Jorge Crespo e muitos outros que pertencem já à geração pós 25 de Abril. Os usos do popular na antropologia portuguesa Segundo Paulo Castro Seixas (2000), estas seriam as mudanças na utilização e no estudo da cultura “popular”, em Portugal: A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA FINS DO S. XIX- 1º XX 1940, 50 1970- Ex.: José Leite de Vasconcelos Paradigmas: etnografia e etnologia; difusionismo e evolucionismo. “Estudo do povo português” “Paixão lusitanista” Popular: oraliteratura (contos...) Estudam o que as pessoas dizem. Ex.: Jorge Dias Paradigma: antropologia Interesse científico pelo folclore. Espaço de estudo: aldeia e cidade (rituais aldeãos em espaço urbano). Folclore como género da antropologia. Objectos de estudo preferenciais: Ex.: José Cutileiro, Brian O´Neill Antropologia social tematizante. Espaço: a aldeia (presente com diferenças e conflitos) e a cidade. Abandono da noção de “popular”, pela antropologia, pois não é um universo simbólico autónomo. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 62 Recolhas de dados nas férias e nas viagens. Espaço de estudo: a aldeia, o rural, o “primitivo” e o “comunitário”... Idade dos informantes: os mais velhos. Sem preocupação pela estrutura social e pela posição dos informantes na estrutura de poder. O passado era entendido como igualitário. A “cultura popular” era uma sobrevivência de um passado remoto, cuja sobrevivência estava ameaçada. Interesse social e político: demonstrar a origem lusitana ou celta da nação portuguesa. Existência de alguns etnógrafos da cultura aldeã, na cidade. tecnologia e ritual, pois o Estado Novo pretendia monumentalizar o trabalho e a fé. Monografia: cultura popular, enquanto viver e não só saber. Passagem da cultura popular à cultura quotidiana. Interesse político: legitimar o Estado Novo. O que era a “cultura popular” converteu-se numa estratégia eficaz para legitimar uma região, cidade, vila, grupo profissional, estrato social, família, casa... O que era a “cultura popular” legitima a “cultura urbana”. Converte-se a denominada “cultura popular” em recurso estratégico do desenvolvimento local. Em CASTRO SEIXAS, P. (2000): “Usos do Popular: da paixão ao desenvolvimento estratégico”, em Actas do Congresso Cultura Popular. Maia: Câmara Municipal da Maia, pp. 277-284. De acordo com João Leal (2000), a cultura popular, em Portugal, foi entendida como ruralidade e testemunho do passado. A imagem que os trabalhos sobre esse tema trespassavam era textual e historicista (ex. literatura oral), mas, posteriormente, essa imagem converte-se em táctil e objectual (ex. tecnologias tradicionais). Nela, o povo era o guardador de textos criados anonimamente, em remotos tempos étnicos. Este era um olhar decorativista que se coreografou, no Estado Novo, com António Ferro. Naquela altura, a cultura popular era entendida como um substrato da nacionalidade (Leal, 2000) . Sobre esse tempo, Kymberly DaCosta Holton (2005) vai estudar os ranchos folclóricos e os usos políticos dos mesmos no Estado Novo. Os ranchos folclóricos eram grupos de músicos e dançantes amadores que foram utilizados como emblema identitário nacional português e propaganda do regime. Com a queda da ditadura recuperaram um papel importante tanto em Portugal como nos seus contextos de diáspora. TEMA 3: ANTROPOLOGIA, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS 63 BIBLIOGRAFIA -AA. VV. (1991): O Confronto do Olhar. Lisboa: Caminho. -ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. (1979, or. 1947): Dialectic of Enlightenment. London: Verso. -BOURDIEU, P. (1984): Distinsction: A social critique of the judgement of taste. Cambridge: Harvard University Press. -BOXER, Ch. R. (2003): Opera Minora. XV vols. Lisboa: Fundação Oriente. -BRAUDEL, F. (1976): História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença. -BROWN, N. (2001): “Friedrich Ratzel, Clark Wissler, and Carl Sauer: Culture Area Research and Mapping”, em http://www.csiss.org/classics/content/15 (Consultado em 20-03-2003). -BURKE, P. (1996, or. 1978): La cultura popular en la Europa moderna. Madrid: Alianza Universidad. -CARO BAROJA, J. (1968): Estudios sobre la vida tradicional española. Barcelona: Península. -CASTILLO GÓMEZ, A (ed.) 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Índice: 4.1. Apresentação 4.2. Os primórdios da antropologia 4.3. O evolucionismo. 4.4. O difusionismo 4.5. O particularismo histórico 4.6. A escola de cultura e personalidade 4.7. O funcionalismo 4.8. O neoevolucionismo, a ecologia cultural e o materialismo histórico 4.9. O estruturalismo 4.10. A antropologia simbólica, a antropologia cognitiva e a antropologia semântica 4.11. A antropologia pós-moderna Bibliografia Sítios em Internet Anexo I: A antropologia moderna e pós-moderna Anexo II: Correntes da antropologia pós-moderna Anexo III: Antigos e novos paradigmas em antropologia Anexo IV: Quadro de síntese da história das teorias da cultura 4.1. APRESENTAÇÃO “A teoria é o par inseparável da etnografia” (Peirano, 2006: 7). De acordo com Ubaldo Martínez Veiga (2008: 14) a primeira história da antropologia é obra de Haddon em 1910, o que demonstra já uma antiga preocupação dos antropólogos por construir a história da disciplina, uma forma de reforçar a identidade dela. Neste capítulo abordamos de forma breve uma história da antropologia desde as teorias da cultura. Centramos mais nas escolas teóricas, na biografia de alguns representantes dessas escolas e da sua conquista metodológica e teórica. Interessa-nos ver de que forma o conceito antropológico da cultura foi- TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 67 se construíndo e de que forma a perspectiva teórica condiciona os métodos de trabalho de campo do antropólogo. Ao longo do capítulo abordaremos o olhar que a antropologia foi construíndo sobre os “outros” e o reconhecimento da diversidade cultural, uma das grandes virtudes da antropologia. Não entraremos no debate sobre a origem histórica da antropologia como ciência, mas sim que, sucintamente, faremos referência aos primórdios e a uma proto- antropologia científica, sublinhando que a história da antropologia não é a história da humanidade (Martínez Veiga, 2008: 20). Pensamos que a história da antropologia ajuda a ver como as ideias actuais são algo efímeras, não apenas a construir uma genealogia intelectual dos seus autores e correntes de pensamento. Além mais a história das teorias antropológicas em particular ajuda a contextualizar estas no tempo e no espaço em que foram criadas,voltando assim sobre si própria de uma forma reflexiva e não apenas cronística. Para realizar este exercício de uma forma aprofundada recomendamos a leitura da obra do antropólogo e historiador da antropologia George Stocking (1982, 1992, 1996), a do antropólogo Adam Kuper (1973) e também a do antropólogo Ubaldo Martínez Veiga (2008). 4.2. OS PRIMÓRDIOS DA ANTROPOLOGIA Nos livros sagrados da humanidade, hebreus, muçulmanos e hindus, encontramos documentação sobre os costumes de muitas sociedades da antiguidade. Essa documentação permitiu que, posteriormente, antropólogos estudassem essas sociedades. No entanto, é apenas com os gregos que surgem as primeiras reflexõe sobre os encontros entre culturas (lembremos que os gregos colonizaram amplas áreas do Mediterrâneo). No século V a.C., os trabalhos de Heródoto mantêm um interesse antropológico muito desenvolvido. Herodoto viajou e visitou outros povos e culturas, interessando-se especialmente pelos costumes do casamento e os modos de subsistência. Descreveu, entre outras, a sociedade egípcia, comparando-a à sociedade grega. Heródoto é considerado também o pai da história. Escreveu sobre os “bárbaros”: considerava-os inferiores aos gregos, chegando a descreve-los como figuras com um só olho e com os pés virados para atrás. Desde o ponto de vista teórico, relacionou zonas climáticas e culturais. Também Platão, Aristóteles (sobre as cidades gregas), Jenofonte (sobre a Índia) e outros se dedicaram à descrição dos costumes doutras culturas. Entre os romanos podemos também observar uma especulação antropológica. O poeta Lucrécio tentou descobrir as origens da religião, das artes e do discurso. Tácito descreveu as tribos germanas, baseando-se nos relatos dos soldados e viageiros; a sua visão é compreensiva, salientando o vigor dos germanos em contraste com os romanos da sua época. Com a chegada do cristianismo, é introduzida, na escrita sobre outras culturas, uma perspectiva etnocêntrica. Santo Agostinho, um dos pilares teológicos da nova época, descreveu a Roma e a Grécia clássicas como “pagãs” e moralmente inferiores ás sociedades cristianizadas. A sua obra transparece uma intuição do “tabu do incesto” como norma social que garante a coesão da sociedade. No entanto, procurou, constantemente, explicações sobrenaturais para a vida sociocultural. Na Idade Media, o domínio absoluto no mundo das ideias foi da Igreja Católica, ficando a especulação antropológica reduzida a considerações TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 68 teológicas. Até ao final do feudalismo o renascimento antropológico não se verificou. Nos séculos. XVI e XVII, aumentam, consideravelmente, os descobrimentos geográficos e os contactos dos europeus com outras culturas. Será nesta altura (século XVI), quando se confirme a esfericidade do planeta com a primeira volta ao mundo de Juán Sebastián El Cano e Juán de La Cosa. Nessa época, as viagens ultramarinas incluiam, nas suas expedições, escritores encarregados de elaborar uma etnografia com fins administrativos, económicos e missionários. Foi este o caso do administrador francês Jean Bodin (1530-1596) que estudou os costumes dos povos conquistados, para explicar as dificuldades que os franceses tinham para administrar esses povos. Outro exemplo foi o dos missionários jesuítas na América (ex.: Bartolomé de las Casas e o Padre Acosta) que escreveram as “Relaciones Jesuíticas” e elaboraram a “teoria do bom selvagem”, segundo a qual os índios tinham uma natureza moral pura que devia ser aprendida pelos ocidentais. Esta teoria idealizava, com nostalgia, uma cultura mais próxima do estado“natural”. A expansão foi justificada por motivações económicas e religiosas, assim o confirma Vasco da Gama na sua primeira viagem à Índia, afirmando aos locais que vinha para arranjar “cristãos e especiarias”. A visão europeia era que estos povos não tinham lei, nem fé, nem senhor (Bestard e Contreras, 1987; Loureiro, 1991). No século XVI, o viageiro Marco Polo elaborou informações críticas sobre Oriente. Outro pensador social importante foi Gianbattista Vico (1668- 1744) que defendeu que os humanos podiam reconhecer a sua própria história porque eram autores da mesma (compreender o passado, recreando-o imaginativamente). A Ilustração francesa aderiu às teorias da evolução unilinhar e do progresso social. Todas as sociedades passariam por uma série de estádios fixos: primitivismo, selvagismo e civilização. Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Condorcet (1743-1794), Adam Smith (1723-1790), Adam Ferguson (1723-1816) e William Robertson (1721-1793) foram os autores de maior destaque. Montesquieu escreveu “Lettres Persanes” (1721) e “L´Espirit des Lois” (1748), obras em que defendeu a diversidade de instituiçoes e de governos existentes e onde afirma a ideia de que cada cultura é um conjunto lógico. Outro autor importante foi J. J. Rousseau (1712-1778) que publicou a obra “Émile” (1762) e defendeu, de novo, a “teoria do bom selvagem”, segundo a qual os humanos são intrinsecamente bons: a sociedade é que os corrompe. Para recuperar a bondade primitiva e original dos humanos é preciso voltar à natureza. Todos estes autores procuravam justificar a nova sociedade industrial. Os ilustrados pensavam que era possível encontrar leis gerais, como nas Ciências Naturais, para explicar a sociedade (da física). Durante o século XIX, aumentaram os estudos empíricos de povoações primitivas. Outros aspectos da mudança de atitude relativamente a outras culturas foram o aparecimento de sociedades etnológicas (na Europa e na América), a criação de museus e de revistas antropológicas. 4.3. EVOLUCIONISMO Na segunda metade do séc. XIX, nasce a antropologia como campo profissional. Esta foi uma época de hegemonia mundial europeia (colonialismo), TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 69 em que predominva um clima intelectual evolucionista e uma influência das ciências naturais nas ciências sociais. Uma das teorias dominantes foi o evolucionismo uni-linhar que defendia uma evolução paralela. De acordo com esta teoria, as culturas foram criadas, independentemente, seguindo um percurso por estádios fixos: barbárie, primitivismo, selvagismo e civilização. Esta posição era similar à da Ilustração. Na Ilustração, a ideia de progresso foi central; e para o evolucionismo, as culturas encontravam-se em movimento, através de diferentes etapas de desenvolvimento, até alcançarem a etapa de desenvolvimento da cultura ocidental. Todas as culturas evoluiriam da mesma maneira e passariam pelos mesmos estádios. Seria, pois, necessário pensar numa evoluçao unitária do conjunto da humanidade. A evolução das culturas era resultado da evolução biológica, que tinha como princípio fundamental o princípio da sobrevivência dos mais aptos. Esta era uma ideia darwinista. Darwin (1809-1882) tinha escrito, em 1859, a obra “A Origem das Espécies”. Antropólogos evolucionistas: J.J. Bachofen (1815-1887), um jurista suíço, foi o primeiro a chamar a atenção para sociedades que seguem a linha de descendência através da mulher (culturas materlinhares). Imaginou que nessas sociedades não se reconhecia a paternidade; "construiu" um mundo greco-latino matriarcal. J.F.McLennan (1827-1881) (escocês) escreveu "Studies in Ancient History" e “Primitive Marriage” (1865). Nesta última obra, afirmou que a forma mais antiga de família era caracterizada pelo matriarcado. Observou a simulação do rapto da noiva pelo noivo, para logo atingir o casamento. A si se devem os termos “exogamia” (matrimónio fora do próprio grupo) e “endogamia” (matrimónio dentro do próprio grupo). Henry Sumner Maine (1822-1888) foi um etnólogo jurídico, membro do conselho britânico do vice-rei da Índia. Encontrou semelhanças entre as antigas leis de Roma, da Índia e da Irlanda (sociedades patrilinhares). O seu livro mais famoso é “Ancient Law” (1861),no qual defendeu que a mais antiga forma de família era a família patriarcal dos indo-europeus. Deixou-nos conceitos como: “agnação” (reconhecimento da relação por descendência, através dos varões) e “cognação” (reconhecimento da relação de descendência, através de um mesmo pai e uma mesma mãe). Defendeu que, na infância da humanidade, não havia nenhum tipo de legislação. Outra teoria que elaborou foi a do movimento de todas as sociedades do “status” para o “contrato”. O “status” seria uma condição própria das sociedades primitivas, de acordo com a qual as relações sociais se limitavam a relações de família (com supremacia do varão mais velho). Os indivíduos não seriam livres: estariam determinados pelo nascimento e não era possível mudar essa determinação com um acto de vontade pessoal. O “contrato” seria uma condição característica das sociedades progressivas e complexas. Os indivíduos, independentemente e separados do próprio grupo, formam parte de associações voluntárias, nas quais podem ocupar livremente a sua posição e determinar as suas próprias relações. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 70 Robertson-Smith (1846-1894) foi um erudito que interpretou o Antigo Testamento (um dos primeiros, no seu contexto histórico). No seu livro "The Religion of the Semites" (1889), diz que, nas religiões tradicionais não reveladas, o rito é mais importante que o dogma. James G. Frazer (1854-1941) foi o primeiro a consciencializar o público da importância da antropologia. No seu livro "Golden Bough", (“O ramo dourado”: um estudo sobre a magia e a religião, 12 vols.) mostra interesse pela religião e elabora a teoria da "magia simpática" – homeopática – (o simbolismo através do qual os ritos mágicos imitam o efeito que tentam produzir) e da “magia por contacto” (por relação de contacto, ex.: Vudú, nas Caraíbas). Estas teorias foram criticadas por Frazer como sendo pensamentos erróneos e ciência bastarda. -Etapas evolutivas da humanidade: MAGIARELIGIÃOCIÊNCIA LEWIS HENRY MORGAN (1818-1881), (EUA) Foi membro de uma sociedade de estudantes que se propunha imitar os rituais dos índios iroqueses, isto levou-o a conviver certo tempo com eles. Advogado Trabalho de campo com os índios seneca (iroqueses) (1851): League of the Iroquois. Estudo das danças, religião, vivendas, organização política, parentesco e família. (1870): Systems of Consanguinity and Affinity of Human Family. Estudo comparativo das terminologias de parentesco, em 139 sociedades. A sua teoria salienta a evolução de todas as sociedades da promiscuidade (poligamia) para a monogamia. (1877): Ancient Society (1971: La Sociedad Primitiva. Madrid: Ayuso) (1976: A Sociedade Primitiva. Lisboa: Presença). Influenciado pelo evolucionismo biológico de Darwin, defende a teoria de que, no desenvolvimento histórico das culturas, acontecem as seguintes mudanças: Selvagismo (caça e recoleção) Barbárie (cerâmica, agricultura) Civilização (escrita) O parentesco é o princípio organizador da sociedade. Engels apoiou-se nesse princípio para escrever os seus livros, sobretudo “A origem da família, a propriedade e o Estado”. Defendeu que a mudança tecnológica determinava a mudança social, mas não analisou essa mudança. Elaborou também uma teoria dicotómica sobre a “societas” e a “civitas” e a passagem obrigatória, em todas as culturas, de uma para a outra. Na “societas”, o princípio de parentesco fundamenta todas as relações estratégicas ou a maioria delas. Como forma de organização, é preciso pensar na “gens” ou na “tribo”. Na “civitas”, as realções ideológicas e económico- políticas orientam e limitam as funções de parentesco. Neste último caso, pensa-se no “Estado”, baseado num território e nas relações de propriedade. A TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 71 cidade seria, neste último caso, o fundamento do “Estado” e representaria a sua unidade. EDWARD BURNETT TYLOR (1832-1937) (Reino Unido) Criador da antropologia social britânica. Fundou o método comparativo em antropologia. 1861: Livro sobre México. 1871: Primitive Culture I 1874: Primitive Culture II 1884: Leitor de antropologia em Oxford. Chegou a ser conservador de museu e catedrático de antropologia social, em Oxford. Tylor, contrariamente de Morgan, não se preocupa com os mecanismos de mudança, mas sim com a "sobrevivência” de costumes e ritos antigos que, de acordo com ele, não tinham sentido comum. Defendeu uma reforma moral. Sublinhou que os aborígenes australianos eram sobreviventes da pré-história. Os “survivals” deviam ser identificados, através de um estudo histórico-cultural. Interessou-se, particularmente, pela religião e pelo animismo. A evolução da religião seguiria a linha: animismo►feiticísmo►idolatria►politeísmo►monoteísmo. Criou uma das definições mais divulgadas de cultura como objecto da antropologia: “A cultura ou civilização, em sentido etnográfico alargado, é aquele todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes, e quaisquer outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem, enquanto membro de uma sociedade.” Evans Pritchard (1987, or. 1980: Historia del pensamiento antropológico. Madrid: Cátedra), disse que Tylor pretendia converter a antropologia numa ciência de estatísticas, tabulações e classificações. Estudou 350 culturas, em fontes escritas, procurando as regras de matrimónio e descendência. Correlacionou também sistemas de casamentos e sistemas de residência (materlinhal, neolocal e paterlocal), para elaborar uma teoria da passagem de culturas maternas a culturas paternas e outra da sobrevivência de costumes de etapas anteriores. Tylor foi filho da sua época e, por isso, defendeu a missão de civilização do imperialismo britânico. Desconhecia o princípio do relativismo cultural e não pensou no direito de outros a conservar a sua própria cultura. Tylor influenciou o antropólogo Frazer que escreveu, em 1890, The Golden Bough. Neste livro, Frazer elabora a teoria evolucionista, segundo a qual os humanos percorrem as seguintes etapas: magiareligiãociência. A última etapa atribui um poder e validez superior. Frazer é conhecido porque, certa vez, lhe perguntaram se já tinha conhecido algum selvagem, ao que ele respondeu: “Livre-me Deus de semelhante atrocidade”. Visão crítica do evolucionismo Os dados não falam por si próprios: é preciso organizar os dados, em relação à teoria. Os dados são apenas barulho, se não aportam um contributo à teoria antropológica. Foram quase todos antropólogos de gabinete (só Morgan fez algo de trabalho de campo com os iroqueses), sem sair para o terreno. Trabalharam, fundamentalmente, com fontes documentais e com dados fornecidos por outros (misionários, agentes coloniais, viageiros, TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 72 comerciantes). Têm, contudo, o mérito de tentarem fazer da antropologia uma ciência de rigor. Introduziram o método comparativo, na antropologia. Foi o primeiro paradigma da antropologia. Um dos seus eixos foi o das semelhanças e as diferenças culturais. Ainda que os evolucionistas se tenham preocupado mais com as semelhanças do que com as diferenças entre os grupos humanos. É complicado abarcar um objecto tão alargado: é começar a casa pelo telhado. Para eles, as sociedades eram organismos naturais que evoluíam. O seu modelo de civilização era a sociedade vitoriana inglesa (Ocidente): o resto do mundo tinha um desenvolvimento inferior. Pensaram, erradamente, que os “povos primitivos” teriam que elaborar instituições semelhantes às da sua tecnologia. Partem muitas vezes de supostos etnocéntricos. A teoria da sobrevivência de costumes é uma perspectiva errada, porque, na realidade, muitos dos costumes foram inventados recentemente ou provocados pelos contactoscom ocidente. Os evolucionistas foram os primeiros a iniciar os grandes temas da antropologia: parentesco, religião, política, economia, etc. Estudaram mais de 300 sociedades, através do método comparativo. Este trabalho foi continuado, nos E.U.A., por Murdock no seu projecto “Humam Relations Area”. Os dados apresentados delatam um desejo de rigor, mas encontram-se, frequentemente, abstraídos do seu contexto. Os dados não são meramente empíricos: tem significado. Para os evolucionistas, para que aconteça uma mudança tem que haver um lugar, um espaço concreto, a identidade de um grupo em concreto: não a humanidade, no seu conjunto. A crença não é um erro, como afirmava Tylor. A crença dá sentido à experiência humana. A mente não pode esperar que a ciência resolva todos os seus problemas, daí que se alimente a crença (tal disse Durkheim). 4.4. O DIFUSIONISMO Foi uma reacção contra o evolucionismo, mas coexistiu com ele. Foi uma escola antropológica que tentou entender a natureza da cultura, em termos da origem da cultura e da sua extensão de uma sociedade a outra. O empréstimo cultural seria um mecanismo básico de evolução cultural. Defendeu que as diferenças e semelhanças culturais eram causa da tendência humana para imitar e a absorver traços culturais. A diversidade cultural explica-se pelas relações de empréstimo e não pela invenção independente. Bastian (1826-1905) (médico de um barco) interessou-se pelas crenças religiosas, mitos e rituais semelhantes. As suas conclusões levaram-no a falar de "unidade psíquica da Humanidade". Ratzel (1844-1904), oposto às teorias de Bastian, interessou-se mais pelos utensílios do que pelas ideias: utensílios inventados em lugares concretos e que se difundiam, para outros lugares, através das migrações. Procurou semelhanças entre objectos. Os difusionistas afirmaram que todos os objectos básicos e elementos TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 73 culturais, tais como o parentesco, o culto solar, a agricultura, a construção de pirâmides, etc., foram criados no Egipto. Outros autores: no Reino Unido, Grafton Elliot Smith (1871-1937, antropólogo físico), William James Perry (1887-1949). W.H. Rivers (1864- 1922) integrou a expedição que estudou os nativos do Estreito de Torres. Na Alemanha, destacam-se: Fritz Graebner (1877-1934) que publicou, em 1911, um manual de antropologia (“Methode del Ethnologie”); e o padre católico Fr. Wilhelm Schmidt (1868-1959), fundador da revista Anthropos, que inverteu as séries evolutivas dos evolucionistas, pois tentou demonstrar que a religião tinha origem no monoteísmo – ex.: pigmeus caçadores e recolectores. Os alemães postularam a formação de diversas culturas, a partir de poucos “círculos culturais”. Essas culturas estender-se-iam a outras culturas sob forma de traços, através da migração de populações e da melhoria dos meios de transporte. Crítica ao difusionismo: Apesar da sua grande importância na recolha de dados, salientou demasiado a forma (unicamente uma dimensão das características culturais), em detrimento do significado que cada característica tem para os membros de cada cultura em particular. Ignorou também as relações com outras características. 4.5. O PARTICULARISMO HISTÓRICO Escola norte-americana, dominada por Boas, que rejeitou o evolucionismo e dominou a antropologia durante a primeira metade do séc. XX. O paradigma fundamental era que cada cultura tem uma história particular e que a difusão de traços culturais pode ter lugar em qualquer direcção. A evolução pode acontecer também do complexo para o simples. O relativismo cultural é uma afirmação antropológica básica e a investigação antropológica deve estar baseada no trabalho de campo, no terreno do próprio antropólogo. FRANZ BOAS (1858-1942), alemão de origem judaica, emigrou para os E.U.A., onde desenvolveu a sua carreira científica. Formado na Alemanha, como geógrafo e psicofísico, estudou geografia com Friedrich Ratzel (1844-1904) que afirmava que o meio ambiente era o factor determinante da cultura. Viajou até ao Árctico e descobriu que diferentes grupos de esquimós controlavam e exploravam meios semelhantes de maneiras diferentes. Deu aulas na Universidade de Columbia e foi director do American Museum of Natural History (New York). Chegou a formar antropólogos como Melville Herskovits, Alfred L. Kroeber (1876-1960), Robert Lowie (1883-1957), Edward Sapir (1884-1931), Margaret Mead (1901-1978), Ruth Benedict (1887-1948) e Clyde Kluckhohn (1905-1960). Para Boas, a tarefa do antropólogo era investigar as tribos primitivas que careciam de história escrita, descobrir restos pré-históricos, estudar tipos humanos e a linguagem. Cada cultura teria a sua própria história. Para compreender a cultura teríamos que reconstruir a história de cada cultura. Defendeu que não há culturas superiores nem inferiores (relativismo cultural). Os sistemas de valores devem compreender-se dentro do contexto de cada cultura e não de acordo com os padrões da cultura do antropólogo. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 74 Estudou as teorias da evolução, sobre as quais se mostrou céptico, e defendeu a difusão da cultura. Impulsionou a ideia de que os antropólogos deviam dominar as línguas dos povos estudados, com o objectivo de conhecer o mapa da organização básica do intelecto humano. Criticou o evolucionismo e defendeu que os mesmos efeitos poderiam dever-se a diferentes causas. Também defendeu que muitas das semelhanças culturais eram originadas pela difusão, mais que pela invenção independente, e que, em muitos casos, a evolução não avança do simples para o complexo, antes o contrário (ex.: formas de arte, linguagem, etc.). Esforçou-se por estudar as culturas índias dos EUA, porque estavam em risco de extinção. Em vez da prática evolucionista de enquadrar dados etnográficos em categorias pré-definidas, Boas salientou a necessidade de um cuidadoso e intensivo estudo em primeira-mão, livre de todo prejuízo ou preconceito. As generalizações e as leis surgiriam depois de ter os dados apropriados. Em contraste com os difusionistas alemães, Boas defendia que a difusão não se processava, apenas, do centro para a periferia, mas em qualquer direcção, entre os diversos grupos humanos. DISCÍPULOS DE FRANZ BOAS CLARK WISSLER (1870-1947) elaborou uma teoria sobre a distribuição da cultura por áreas circulares. De acordo com este autor, as culturas marginais apareciam onde os traços culturais de fronteira se interrelacionam. PAUL RADIN (1883-1959). Foi o mais crítico com Boas. O seu principal argumento era que os boasianos salientavam muito os aspectos materiais da cultura, ignorando o significado humano da cultura como importante elemento de interpretação. CLYDE KLUCKHOHN (1905-1960). Defendeu o estudo global da cultura. Criou o conceito de valores orientadores ou princípios básicos que ordenam e orientam a cultura no seu conjunto. Esta perspectiva também aparece com os funcionalistas britânicos. R. LOWIE (1883-1957) 4.6. ESCOLA DE CULTURA E PERSONALIDADE Escola dos E.U.A. coetânea ao funcionalismo britânico (Malinowski e Radcliffe Brown). Fundada por discípulas de Franz Boas: Ruth Benedict e Margaret Mead, inspiradas em Sigmund Freud (psicanálise) e no filósofo Nietzsche. Tentaram interpretar as culturas em termos psicológicos de personalidade básica. O seu paradigma central é que uma personalidade básica é partilhada por todos os membros de uma cultura. De acordo com Margaret Mead (1968) existiriam 3 tipos de culturas: a) Culturas pós-figurativas: onde os filhos aprendem, em primeiro lugar, com os pais. O novo é uma continuação e repetição do velho, negando- se a mudança. Os velhos e os avôs têm muita importância. A mobilidade social é reduzida e o passado forma um continuum com o presente e o futuro.Cultura da família extensa. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 75 b) Culturas co-figurativas: quebram o sistema pós-figurativo. Os jovens rejeitam o modelo dos adultos e aprendem formas culturais inovadoras. Os adultos acabam por verificar que os seus métodos são insuficientes ou pouco adequados à formação do jovem e à sua integração na vida adulta. Os jovens conseguem a mobilidade social por si desejada; ignoram os padrões dos adultos ou são-lhes indiferentes. Cultura da família nuclear. Os velhos e os seus conhecimentos deixam de ser pensados como necessários. c) Cultura pré-figurativas: os adultos aprendem com os seus filhos. Nesta nova sociedade, só os jovens estão à vontade, pois dominam os progressos científicos. Em extremo, os adultos não tem descendentes e os filhos não têm antepassados. O futuro é agora e produz-se uma quebra entre uns e outros. O que interessava aos adultos já não interessa aos jovens. Ruth Benedict (1971; 1977), seguindo ao filósofo Nietszche, distinguiu dois tipos de culturas, entre os índios norte-americanos: CULTURAS DE TIPO “APOLÍNEO” CULTURAS DE TIPO “DIONISÍACO” Ex.: Índios “pueblo”, os zuni. Conformistas. Pacíficos. Solidários. Respeitadores de outrem. Comedidos na expressão dos seus sentimentos. Símbolo da lógica, a razão e a ordem. Destacam pelo seu equilíbrio. Ex.: Índias das planícies, os kwakiutl. Ambiciosos. Individualistas. Agressivos e violentos em ocasiões. Desmessura em termos afectivos. Símbolos da emoção, a apreciação dos excessos e o prazer. Destacam o extâse. Um conceito chave desta escola é o de configuração (Benedict, 1971), que definia o conjunto de ideias que possui uma cultura, são os protótipos culturais de um determinado grupo social. Na mesma linha George M. Foster (1976) criou o conceito de orientação cognitiva para definir as propostas que fazem com que as pessoas vejam as coisas de uma ou outra forma, isto é, tenham uma visão do mundo. E em relação com esse conceito também é preciso situar o de eidos (Bateson, 1990), que define os princípios gerais que dão coerência a um sistema de crenças, um padrão de conhecimento que faz com que as crenças funcionem, ainda com contradições. 4.7. O FUNCIONALISMO Os sociólogos franceses e a sua influência Influeciam, profundamente, os antropólogos britânicos do ínicio do século XX (como Malinowski e Radcliffe-Brown). Provocaram o abandono da arqueologia e da antropologia física pela antropologia social. Émile Durkheim (1858-1917) foi um grande inspirador dos estudos antropológicos. Na sua revista "L´Année Sociologique"(1898-...), seguiu o TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 76 sociólogo britânico Herbert Spencer, afirmando a independência dos factos sociais (regras de comportamento, normas, critérios de valor, expectativas dos membros) relativamente à consciência dos indivíduos que formam a sociedade. Na expressão da individualidade, quebramos as normas, quer por impulso, quer de forma calculada. As normas são diferentes das expressões da individualidade: podem ser sociais (o que a gente acredita que deveria acontecer) ou estatísticas (o que normalmente acontece). O comportamento social apropriado é uma reacção ante pressões complexas. Durkheim escreveu "De la Division du Travail Social"(1893) e "Formes Elémentaires de la Vie Religieuse"(1912). Nesta última obra, dedicada aos aborígenes australianos, afirma que o totemismo é a religião mais antiga e que o ritual reflecte a ordem social e venera a sociedade. Foram contemporâneos de Durkheim: Marcel Mauss (estudou o intercâmbio de prendas como princípio das relações sociais, processo actualmente denominado “reciprocidade”), Van Gennep (estudou vários tipos de rituais, sobretudo os rituais de passagem) e Max Weber (1864-1920). Marcel Mauss era sobrinho de Durkheim e aluno dele, erudito do sânscrito e historiador das religiões. Mauss era judeu e na segunda guerra mundial foi molestado pelos nazis durante a ocupação de França. Em antropologia é incontornável o seu estudo sobre a “dádiva”. Um dos seus discípulos foi o famoso antropólogo Louis Dumont (Evans-Pritchard, 1987: 240-244). A introdução dos estudos de campo No final do séc. XIX, generalizou-se a ideia da procura de dados próprios, em vez da análise de documentação elaborada por terceiros (ex.:viageiros). Entre 1883 e 1884, Franz Boas estudou os esquimós, e, entre 1897 e 1902, Jesup North Pacific estudou a relação entre os aborígenes da Ásia Norte-oriental e os ameríndios da América do Norte. Em 1898, efectua-se uma expedição britânica ao Estreito de Torres e Nova Guiné, na qual participou W.H. Rivers que teorizará os conceitos de “descendência” (pertença ao grupo social da mãe ou do pai), “sucessão” (transmissão do estatuto ou do cargo) e “herança” (transmissão da propriedade). Segue-se a expedição de Malinowski às Ilhas Trobiand (Pacífico). Malinowski introduziu a ideia do trabalho de campo, com duração mínima de um ano como mínimo (preferivelmente 2, com um intervalo para ordenar os resultados e ver que perguntas faltaram por fazer). O conceito de função Herbert Spencer (1820-1903) foi o primeiro sociólogo britânico a usar este conceito. Viu um estreito paralelismo entre as sociedades humanas e os organismos biológicos (na forma de evolução e conservação), porque ambos existem graças à dependência funcional das partes. As funções seriam obrigações, nas relações sociais. Influenciou Marcel Proust. Émile Durkheim (1858-1917) relaciona o facto social com as necessidades que cumpre e satisfaz – função (exemplo: o castigo do delito, a divisão do trabalho). O social só poderia explicar-se pelo social e não por constituição biológica ou por psicologia individual. Este autor estava preocupado com o problema da ordem e da estabilidade social e pelo modo como se poderia evitar a desintegração da sociedade, sob a pressão dos interesses egoístas dos seus componentes. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 77 B. Malinowski (1884-1942) criou a autodenominada “Escola Funcionalista”. Parte de Durkheim (os costumes inúteis e sem significado deixam de existir). Um fenómeno social serve o povo que o pratica. Relacionou a organização social com as necessidades biológicas (alimento, abrigo, reprodução). Essas necessidades são, porém, diferentes das necessidades dos animais, as necessidades humanas são satisfeitas através da cooperação numa sociedade organizada que fala, pensa, transmite experiência, conhecimentos, valores e regras de conduta. São também diferentes das necessidades dos animais porque requerem educação (dispositivo para transmitir a herança de conhecimentos e valores morais) e uma fonte de confiança na rectitude das suas normas e da continuidade da sua existência. Esta confiança deriva da religião. Malinowski critica Durkheim e afirma que as necessidades do organismo individual ou da espécie (abrigo, calor, liberdade de movimento) são diferentes das necessidades da sociedade (instituições sociais como a família ou o matrimónio são dispositivos sociais que atendem as necessidades sociais). A R. Radcliffe-Brown (1881-1955) insistirá no facto de que a função não deve ser usada no sentido de "intenção", "finalidade" ou "significado". A proposição "todo uso social tem uma função" pode converter-se facilmente em "todo uso social é bom". Para Radcliffe-Brown, a funçao é o que sustenta a estrutura social, ou seja, a coesao dentro de um sistema de relaçoes sociais. Por exemplo, a magia tem a funçao de actuar como um mecanismo de solidariedade social. BRONISLAW MALINOWSKI (Cracovia,1884-New Haven,1942) De origem polaca. Trabalho de campo nas Ilhas Trobriand. Introduziu o método moderno do trabalho de campo (duração mínima de um ano). 1922: Argonauts of the Western Pacific. 1966: Diário de campo na Melanésia. Descriçãodescarnada dos nativos e do antropólogo. Inicia uma cisão na antropologia académica e nas ciências sociais, pois, graças às suas contribuições, debateu-se, com mais força, o cariz pessoal e a subjectividade do antropólogo. O seu diário está cheio de: observações etnográficas, metodológicas, paisagísticas, exotismo, ódio contra os nativos (que tanto escandalizou aos fariseus da antropologia). Manifesta, cruamente, a observação participante. Influenciado pela obra de E. Durkheim: criticou a sua rejeição dos factores explicativos individuais e psicológicos. Malinowski salientava a base psicobiológica da cultura. Distinguiu necessidades humanas básicas: -Parentesco: resposta cultural à necessidade básica de reprodução. Também diferenciou necessidades derivadas: -Necessidade de socializar as crianças, de acordo com as pautas da sociedade correspondente. Para Malinowski, a função da magia era ajudar o indivíduo a evitar medos e superar ansiedades. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 78 Defendeu a interdependência entre as diversas partes da cultura. Assim, para explicar o “kula” (sistema de trocas das Ilhas Trobriand) estuda a sua ligação a outros aspectos da cultura, como a construção de canoas ou a magia. É um precedente da ideia de cultura como um todo integrado. A R. RADCLIFFE BROWN (1881-1955) 1922: The Adamam Islanders. A principal função das instituições sociais é a sustentação da estrutura social, ou seja, assegurar a coesão dos sistemas de relações sociais vigentes. O seu ponto de vista recebe o nome de “estructural-funcionalista”, para distingui-lo do de Malinowski. Tal como Durkheim, pensava que os desejos individuais podem ser contrários às necessidades da sociedade e tendentes a criar conflitos. Para si, a cultura subordina cada indivíduo às necessidades de uma entidade superior: a sociedade. Ao contrário de Malinowski, Radcliffe-Brown defende, na sua interpretação da magia e de outros rituais, que estes são mecanismos sociais que geram solidariedade social. Explica, portanto, esses fenómenos em termos sociológicos e não psicológicos. Foi muito importante a sua definição de “estrutura social”: forma como os indivíduos e os grupos de uma sociedade se encontram organizados e se relacionam entre si. Estudou, profundamente, os sistemas de parentesco. Considerou a antropologia social como uma ciência natural, com um método específico que seria a comparação inter-cultural e que procuraria leis universais válidas para a vida social. Ao contrário de Malinowski, que tentou estudar a cultura de acordo com as categorias dos próprios nativos, Radcliffe-Brown procurou categorias objectivas que pudessem servir para a comparação entre culturas. Para ele, a predominância era das relações sociais. Destas derivaria a cultura como factor secundário. Tanto ele como Malinowski fizeram estudos sincrónicos: tentaram explicar as culturas em termos do seu estado actual, sem fazerem referência ao passado. Radcliffe-Brown cria que o seu trabalho tinha um grande valor prático, porque podia ser útil para a administração colonial britânica, ao proporcionar uma base científica para o controlo e a educação dos povos colonizados. E. E. EVANS-PRITCHARD (1902-1973) Catedrático de antropologia social na Universidade de Oxford (1948- 1970) Estudou a feitiçaria “azande”, no Sudão meridional. Estudou os “nuer” (pastores do Sudão), interpretados como uma sociedade acéfala e de anarquia ordenada. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 79 Não partilha a posição anti-histórica e pouco diacrónica dos seus antecedentes. Foi um defensor da antropologia histórica e da história antropológica. Mestre, entre outros, de Carmelo Lisón Tolosana, um dos introdutores da moderna antropologia sociocultural, em Espanha. I. Schapera: Estudou os tswana de Botswana. Quando os tswana alcançaram a independência, depois da época colonial, dedicaram a Schapera, ainda em vida, duas avenidas da nova capital, “Gaborone”. Este exemplo demonstra bem que nem todos os antropólogos serviam interesses políticos colonialistas. Meyer Fortes (1906-1982): Estudou os “tallensi” do Gana setentrional. Raymond Firth: Estudou os “maoris” da Nova Zelândia, os “tikopia” da Polinésia e os pescadores malaios de Kalentan. Foi catedrático de antropologia social, na LSE, (antes de Malinowski), e o primeiro a estudar relações de parentesco, na sociedade inglesa contemporânea. S. F. Nadel (1903-1956): De origem austríaca, fugiu do nazismo. Estudou os “nubas” do Korfofam (Sudão meridional) e os nupes da Nigéria setentrional. Max Gluckman: Impulsionador da Escola de Manchester e do Instituto Rodhes Linvingstone, que realizou diversos trabalhos de campo urbanos na actual Zâmbia. Foi pioneiro nos estudos de antropologia urbana. 4.8. O NEOEVOLUCIONISMO, A ECOLOGIA CULTURAL E O MATERIALISMO HISTÓRICO O paradigma teórico fundamental destas linhas teóricas é o de que a cultura é um sistema de adaptação ao meio ambiente. O NEOEVOLUCIONISMO -Leslie White (1900-1974): Estudou Ciências Sociais, na Universidade de Columbia, e Antropologia (Ph D), na Universidade de Chicago. Em contraste com Tylor e Morgan, White mais estava interessado em estudar o desenvolvimento da cultura universal (a cultura humana em geral) e não determinadas culturas, em particular. Entendia a cultura como algo progressivo e numa única direcção. “A cultura avança segundo um certo montante de energia per capita, incrementa-se e distribui-se…” -Os traços culturais mais adaptáveis são os que sobreviviam no seio da competência cultural. -A cultura dividia-se em 4 componentes: traços ideológicos, sociológicos, sentimentais e tecnológicos. O factor tecnológico determina os outros TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 80 componentes, isto é, a mudança social é motivada pela mudança tecnológica. Esta é uma visão determinista da Cultura. -Metodologia: A cultura devia ser estudada desde o exterior, observando-a de uma forma objectiva e sem adoptar o ponto de vista dos participantes. Esta acepção contradiz Boas e Malinowski. -Polémica com o antropólogo norte-americano Alfred Kroeber (discípulo de Boas). Para White, o desenvolvimento cultural era muito semelhante à evolução natural de Darwin; o motor do desenvolvimento cultural seria o aparato tecnológico. Kroeber concorda com Leslie White na concepção da cultura como fenómeno supra-orgânico (uma entidade que obedece a leis próprias que podem ser estudadas, independentemente dos seus portadores), mas não concorda no determinismo tecnológico, pois salienta os aspectos idealistas como motores do câmbio. A ECOLOGIA CULTURAL -Julian Steward (1902-1972). Discípulo de Kroeber e Carl Sauer (geógrafo). -Ecologia cultural: Estuda a forma através da qual os indivíduos e grupos humanos se adaptam às suas condições naturais, por meio da sua cultura. O meio natural exerce uma pressão selectiva sobre da cultura, eliminando os elementos culturais menos adaptados e que menos possibilidades têm de vingar no controlo do meio. -O “núcleo cultural” é o conjunto de traços ligados às actividades económicas e de subsistência. -A mudança cultural estaria motivada por mudanças na tecnologia ou nos sistemas produtivos. -Contrariamente aos Evolucionistas unilinhares e a Leslie White, Steward defendeu o Evolucionismo Multilinhar para explicar as diferenças culturais e a adaptação específica. -Steward coloca a questão dos processos materiais que incidem nos seres humanos confrontados com o seu meio envolvente. -Uma derivação da ECOLOGIA CULTURAL é representada pelo antropólogo RAPPAPORT. Este autor define a cultura como um sistema de adaptação que capacita os humanos para se apropriarem do seu meio; para isso contribuem aspectos materiais e não materiais (ciclos materiais),mas sempre para manter a produtividade de um meio. O MATERIALISMO CULTURAL -Marvin Harris (1931-2001) aplica os princípios deterministas de Steward. A sua teoria é a do determinismo tecno-ambiental, segundo a qual a aplicação de tecnologias semelhantes a meios semelhantes tende a produzir semelhanças na produção, distribuição, grupo social, sistemas de valores e de crenças. - Outorga prioridade ao estudo das condições materiais da vida sociocultural. -As causas da evolução cultural são: factores demográficos, tecnológicos, económicos e ambientais. Marvin Harris influenciará bastante a antropologia marxista: Maurice Godelier, na França (ligado também ao estruturalismo) e Stanley Diamond, nos EUA (fundador da revista Dialectical Anthropology). -Antropólogo polémico, grande divulgador da antropologia. Trabalhou na Universidade de Columbia (New York), entre 1953 e 1980, fixando-se, depois, na Universidade da Florida. Publicou 17 livros. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 81 -Entre as suas muitas polémicas teorias, sublinhamos a que se dedica às causas que guiam a abstinência dos judeus e muçulmanos no consumo de carne de porco. De acordo com Harris, estes não comem porco porque os porcos comem o mesmo que os humanos e isto torna a sua manutenção muito dispendiosa. Comem ovelhas e cabras, porque a sua manutenção é mais barata, para além de que dão leite, lã e força de trabalho. 4.9. O ESTRUTURALISMO FRANCÊS A partir da 2ª guerra mundial, por influência da linguística estrutural de Ferdinand de Saussure, a cultura começou a entender-se como um sistema de ideias e de signos. Se o funcionalismo entendia a sociedade como um organismo ou máquina, na qual o actor social seguia determinadas regras, o estruturalismo começa a preocupar-se com os princípios lógicos das estruturas de sentido. Face ao modelo funcionalista, estático e incapaz de explicar a mudança e o individualismo, o estruturalismo francês começa a preocupar-se com a mudança e o individualismo. O seu representante máximo foi o francês – mas, natural da Bélgica – Claude Lévi-Strauss (1908- ), que defendeu uma ideia fundamental: as uniformidades culturais nasciam na cabeça humana e também num processo de pensamento inconsciente. A característica fundamental da mente humana é a tendência para criar dicotomias e para estabelecer opostos binários: puro/impuro, limpo/sujo... Estas dicotomias explicariam as similitudes e as diferenças entre as culturas. A antropologia seria para este autor uma semiologia da cultura. A estrutura foi entendida como o conjunto de princípios lógicos subconscientes organizados em oposições binárias. Exemplo: Segundo Carmelo Lisón (1971), a estrutura da “melhora” galega (sistema de herança que favorece a um dos herdeiros) estaria baseada na oposição relacional entre: Autoridade Obediência Controlo Económico Sem nada próprio Autonomia Dependência Direitos Obrigações Para o estruturalismo, as culturas são sistemas de signos partilhados e estruturados, segundo princípios que governam o funcionamento do intelecto humano que os gera. Influenciaram o estruturalismo francês: Durkheim, Jakobson (teoria linguística), Kant (idealismo) e Marcel Mauss (sogro de Durkheim) (1872-1950). No seu “Ensaio sobre a dádiva” (1924), Mauss interpreta as prendas como um facto que penetra cada um dos aspectos da vida social; daí falasse disso como um “facto social total”. O intercâmbio social fundamental e omnipresente encontrava-se governado por três tipos de obrigações: doar prendas, recebê-las e devolvê-las. Para explicar isto, Mauss postulou uma força mística interna aos objectos que se trocam. Marcel Mauss não fez pesquisa de terreno, mas deixou ensaios antropológicos magistrais. Em 1947, publicou um manual de antropologia. Claude Lévi-Strauss (1908- ) clarificou o contributo de Mauss e deu uma interpretação mais convincente: as três obrigações (dar, receber e retribuir) não podem ser explicadas, adjudicando aos objectos trocados uma força intrínseca própria. A troca de prendas é mais importante que as próprias prendas. Através das trocas contínuas, criam-se, entre os indivíduos e os TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 82 grupos laços sociais que estabelecem e organizam, entre eles, um sistema de relações complementares. A reciprocidade é a regra máxima dos intercâmbios. Em 1949, Lévi-Strauss publica a sua obra “As estruturas elementares de parentesco” – sobre os aborígenes australianos-, na qual aplica os princípios de reciprocidade e de estrutura social ao estudo dos sistemas de matrimónio e parentesco. Analisa o tabu do incesto, como origem da exogamia, e as trocas matrimoniais. Este autor defendeu e aplicou os métodos linguísticos à antropologia. Foi um grande estudioso dos sistemas míticos e dos seus significados, a partir da organização de opostos binários. Absorveu do linguista Saussure a diferença entre língua (sistema fixo de regras gramaticais e sintácticas) e fala (uso da língua pelos falantes). Se Radcliffe-Brown (classificado de estrutural-funcionalista), tinha afirmado que a estrutura era uma interacção das relações sociais que tendia a formar e manter viva a sociedade, Claude Lévi-Strauss afirma que a estrutura é um modelo ou matriz sobre a qual se elabora o pensamento humano. O pensamento tem como princípio básico orientador a oposição dualista e dicotómica: esquerda-direita, negativo-positivo... Outros antropólogos estruturalistas franceses L. Lèvi-Bruhl (1875-1939): Para este autor, o pensamento dos chamados, na altura, “primitivos” é pré-lógico, ou seja: é determinado pelas representações colectivas; condicionado pela visão da realidade, como mística e sobrenatural; não científico; e não baseado em causas. Perante estas características, o pensamento dos europeus seria lógico. Sob um ponto de vista crítico, nem sempre pensamos e actuamos lógica, científica ou racionalmente. Marcel Griaule (1898-1959): Pesquisou, na Etiópia e no Mali (os dogon). Conduzir a pesquisa de um grupo de estudantes, na África Ocidental, entre eles Jean Rouch que fez cinema etnográfico. No seu livro “Dieu d´Euau”, relata como, só depois de 15 anos de convivência com eles, conseguiu descobrir o seu sistema cosmológico. Essa descoberta ocorreu durante um encontro com o velho sábio “Ogotemmeli”. Neste trabalho, Marcel Griaule demonstra a plena humanidade dos dogon. 4.10. A ANTROPOLOGIA SIMBÓLICA, A ANTROPOLOGIA COGNITIVA E A ANTROPOLOGIA SEMÂNTICA TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 83 ANTROPOLOGIA SIMBÓLICA As culturas são, para a antropologia simbólica, sistemas de símbolos e significados partilhados. Os humanos são “animais simbólicos” (Cassirer: 1945). A cultura é uma floresta de símbolos (Turner: 1980). A cultura é um veículo de comunicação, através do qual se transmitem mensagens. Autores mais representativos: Edmund Leach, Clifford Geertz, David Schneider, Victor Turner, Dan Sperber, Mary Douglas. Clifford Geertz (1995) será o criador de um novo paradigma, a antropologia interpretativa: a cultura é um conjunto de textos que os antropólogos interpretam, no seu contexto. Geertz impulsioinou também outro paradigma: a antropologia pós-moderna. Para a antropologia simbólica, os símbolos orientam a acção. O seu enfoque é hermenêutico: sublinha a interpretação e a compreensão. Nem os evolucionistas, nem os ecologistas culturais, nem os materialistas mecanicistas partilham este interesse pelos aspectos simbólicos da cultura. Segundo Robert Parkin (1998), o simbolismo é uma característica humana fundamental. Os antropólogos simbólicos reduzem a condição humana a símbolos. Os símbolos representam algo, significam algo, e são colocados no lugar de objectos, ideias, valores, crenças, grupos sociais, acontecimentos, mitos, etc. A metáfora e a metonímia estabelecem associações entre coisasdistintas, baseando-se para isso no simbolismo. A metáfora associa coisas diferentes, por similaridade ou analogia; a metonímia liga uma parte com o todo, na qual a parte representa ao todo (ex.: a coroa à monarquia) (ex.: “As relações de Moscovo com Washington...”). A ideia de sentido e significado é também importante no simbolismo. Os símbolos não estabelecem, apenas, associações entre as coisas, transmitindo também sentido e significado (informação cultural específica). Daí que o simbolismo seja pensado como uma forma de classificação especificamente humana. Outra noção importante é a de arbitrariedade: se os símbolos parecem estar unidos ao que representam, é porque sociedades concretas decidem que seja assim. O leão, a águia e a coroa podem representar a monarquia, mas ao mesmo tempo o leão representa o orgulho, o valor e o poder. Isto significa que os símbolos podem ser manipulados, para reforçar ou favorecer uma mensagem sobre outro. Exemplo da águia com coroa, símbolo da Polónia -------------------------------- 1º. Símbolo dos reis polacos. 2º. Perdeu a coroa, durante o comunismo. 3º. Recuperou-a, no regime pós-comunista republicano. -Continuidade com o passado. -Natureza aberrante do regime comunista. -Símbolo da independência nacional e de uma história gloriosa. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 84 * Os símbolos podem mudar de significado com o tempo, adoptando um novo significado. A linguagem é simbólica, mas os símbolos visuais transmitem sentido, directamente, sem a intervenção da linguagem. CLAUDE LÉVI-STRAUSS (1908- ) E O SIMBOLISMO NO MITO -Oposição binária aplicada ao parentesco, aos mitos, etc. -Os símbolos não só têm sentido em função do que representam, como também estão interligados como pares que se opõem entre si (como o sol e a lua, acima e abaixo, masculino e feminino, direita e esquerda, molhado e seco). -A dicotomia é uma característica universal da mente humana. -O significado dos símbolos pode ser analisado através do exame dos pares simbólicos, porque formam um código muito semelhante ao da linguagem. -Os símbolos são semiológicos: transmitem uma mensagem que pode ser descodificada e interpretada. VÍTOR TURNER (1920-1983) E O SIMBOLISMO NO RITUAL -Estudou os "ndembu", um povo matrilinear do centro de África. -Tal como Lévi-Strauss, defende que os símbolos são estruturantes. -Distingue vários níveis de observação e de interpretação: 1. A observação do ritual, por parte dos indígenas e do antropólogo. 2. A interpretação nativa. 3. A interpretação do antropólogo (observação, conhecimento de outras culturas, teorias académicas, etc.). -Sublinha a multivocalidade dos símbolos: um mesmo símbolo pode representar coisas distintas, de acordo com as diferentes fases do ritual, e também coisas diferentes para pessoas distintas. -O ritual reforça os valores sociais que integram essa sociedade (ideia também defendida por Durkheim). Turner salienta o símbolo como agente de unidade social da comunidade, mas também do conformismo. O SIMBOLISMO COMO CLASSIFICAÇÃO: Robert Herz e Rodney Needham -Os símbolos são mais significativos pelas suas inter-relações do que pelos seus valores intrínsecos. -Robert Herz, discípulo e colaborador de Durkheim, estudou o simbolismo da mão esquerda e os seus aspectos negativos, associados ao pecado. DAN SPERBER -Sperber nega que os símbolos possam ser explicados. São os próprios símbolos que aclaram as coisas, porque evocam lembranças partilhadas, culturalmente, por todos os participantes sociais. A interpretação soma-se ao símbolo, mas não o substitui. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 85 -Os símbolos não são um fim em si mesmo, mas um meio para entender o contexto social no qual se encontram, e não ao contrário. -A sua relevância encontra-se no que evocam e não no que significam. -Os símbolos não podem formar um código análogo à linguagem. -(Dan Sperber estudou os “dorzé” de Etiopia. Para ele, o simbolismo é um dispositivo de conhecimento que, junto dos mecanismos de percepção, participa na constituição do saber e no funcionamento da memória. O simbolismo é um universal cultural, mas os símbolos representam, não significam). OS ANTROPÓLOGOS SIMBÓLICOS: Clifford Geertz (*), David Schneider, Roy Wagner, Mary Douglass, ... (*) Para Clifford Geertz, os símbolos não são mensagens da sociedade para os indivíduos passivos que a constituem: são antes um meio de comunicação. A cultura é um assunto de símbolos, da sua criação, expressão e manipulação. Os símbolos transmitem valores, visões do mundo, a localização do poder, etc. Não devem ser explicados (como Sperber dizia), mas sim interpretados, de acordo com a hermenêutica. Os símbolos têm uma capacidade evocativa, mas evocam emoções, mais do que conhecimentos. São mais afectivos do que cognitivos. ANTROPOLOGIA COGNITIVA (1) OU ETNOCIÊNCIA Também denominada etnociência, etnosemântica ou “nova etnografia”. Para esta perspectiva teórico-metodológica, cada cultura tem um estilo de pensamento e conhecimento que modela a mente das pessoas e que configura a sua forma de ser, pensar, valorar e actuar. Cada cultura tem um sistema próprio para perceber, entender e organizar, codificadamente e partilhadamente, o seu mundo. O objectivo da antropologia cognitiva seria estudar os princípios e a estrutura de funcionamento da mente humana. Para isso, deve TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 86 conhecer-se as categorias com as quais diferentes cultura classificam a sua experiência (ex.: cores, parentesco, etc. ). A cultura é para eles conhecimento e para analisar esta temos que utilizar uma semântica formal. Nasceu nos EUA, ligada ao estruturalismo. Representantes: Gregory Bateson, Berlin, Kay, Conklin, Goodenough, Hymes, Tyler, etc. Influência de Sapir e Whorf (discípulos de Franz Boas). Considera a cultura como um sistema de conhecimentos, crenças e percepções partilhados colectivamente. Na criação da cultura, prima o intelecto sobre os factores biológicos, materiais e ambientais. Tende para uma abordagem indutiva. Defende a ideia de que os humanos têm uma capacidade ilimitada para combinar signos. Considera as emoções, as acções, o meio envolvente, etc. como elementos organizados pelo intelecto humano. O seu objecto de estudo não são os fenómenos materiais enquanto tais, mas o modo como estes fenómenos se organizam na cabeça das pessoas. O intelecto humano gera cultura, através regras finitas ou de uma lógica inconsciente. O objectivo dos antropólogos é determinar essas regras. Partilha perspectivas teóricas com linguistas como Noam Chomsky. Um aspecto importante foi a diferença que Goodenough estabeleceu (retomando a ideia de K. L. Pike) entre o ponto de vista “emic” (formas de percepção dos membros de cada cultura concreta e o modo como descrevem o seu mundo) e o “etic” (o ponto de vista externo, a descrição concreta que antropólogo faz, utilizando as categorias antropológicas). ANTROPOLOGIA COGNITIVA (2) Cada cultura tem um estilo de pensamento que condiciona a mente das pessoas e configura a sua maneira de pensar, ser, valorar e actuar. Cada cultura tem um sistema próprio de perceber, entender e organizar socialmente, através de códigos, o seu mundo. Procura estudar os princípios e a estrutura de funcionamento da mente humana. Tenta conhecer as categorias com as quais diferentes culturas classificam a sua experiência (ex.: cores, parentesco, etc.) Para os antropólogos cognitivos, há uma série de leis, geralmente inconscientes, que regem os modos de pensar. Realiza uma análise linguística para entender o sistema cognitivo e a conduta humana. Empreende uma análise de categorias léxicas, para compreender os modos de conhecimento e os “esquemas culturais”. Utiliza a “análise de componentes”, como método do trabalho de campo. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 87 Exemplo de análise de componentes cognitivo-relacionais (procura de analogias que partilham uma semântica): HOMEM ◊ MULHER ◊ CRIANÇA ◊ TOURO ◊ VACA ◊ VITELO ◊ GALO ◊ GALINHA ◊ FRANGO ◊ CAVALO ◊ ÉGUA ◊ POTRO ◊ CARNEIRO OVELHA CORDEIRO A ANTROPOLOGIA SEMÂNTICA A antropologia semântica estuda os seres humanos, enquanto criadores de sentido e não como receptores passivos de estruturas culturais. Alguns representantes desta corrente são Edwin Ardener e Robert Parkin. Esta antropologia realiza uma reflexão sobre o sentido dos dados, a experiência do antropólogo e o papel do antropólogo, enquanto membro do grupo humano estudado. O objecto de estudo da antropologia semântica é o sentido que é transmitido através da linguagem e o simbolismo. As culturas organizam sistemas semióticos, isto é, geografias morais que condicionam o meio social, autoperpetuando-se e modificando-se, apenas, com novas experiências. Reflecte também sobre o que a comunidade pensa sobre que é escrito pelo antropólogo. Ela pensa a antropologia como um jogo de espelhos, e o poder e a hegemonia como elementos fundamentais da definição de cultura. A experiência humana é mais complexa e variável do que qualquer modelo que tente explicá-la, de aí que o sentido esteja interligado como o contexto sociocultural. Um exemplo etnográfico é o seguinte: Um irlandês que seja ofendido, num pub inglês, não hesita em recorrer à violência para vingar a sua honra. Na Irlanda, todos os clientes do pub o travariam, mas na Inglaterra não o fazem. Isto só reforça a imagem do irlandês como violento (Parkin, 1998: 113-114): 4.11. A ANTROPOLOGIA PÓS-MODERNA Uma grande diversidade caracteriza a antropologia hoje: ramos, objectos, perspectivas teóricas (Fernández, 1993; O´Neill, 2006; Martínez Veiga, 2008), mas o impacto da antropologia pós-moderna tem-se deixado sentir em todos eles. A corrente simbólica foi o caldo de cultivo da antropologia pós-moderna e os seus representantes: Clifford Geertz, James Clifford, George Marcus, Marilyn Strathern, Richard Thornton, Michael Fisher, Vicent Crapanzano, Dennis Tedlock, Kevin Dwyer, Renato Rosaldo e Paul Rabinow entre outros. Neles influiu também o pósmodernismo filosófico de Lyotar e o pósmodernismo estruturalista, e também a fenomenologia, a hermenêutica e a filosofia linguística. O mundo pós-moderno é aquele do fim das grandes visões épicas do mundo, nele primam as imagens sobre os factos, a realidade virtual e TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 88 imaginada sobre a realidade fáctica. Segundo Stephen Tyler, em várias das suas publicações, o mundo pós-moderno é aquele desprovisto de ilusão transcendente, um mundo em processo de fragmentação. E uma das suas ideias centrais é que não há uma realidade em sí, porém uma realidade interpretada, portanto, a antropologia é uma interpretação de interpretações, uma construção de segundo grau. A antropologia pós-moderna verificou como o trabalho de campo e a etnografia eram uma sistemática construção dos outros. Portanto, o etnógrafo não seria um testigo fiel dos dados, porém um construtor e um criador. A antropologia pós-moderna defendeu que detrás dos antropólogos havia mecanismos retóricos de “autor” e “autoridade”, e que a etnografia reproduz situações de subordinação face o saber, implicando relações de poder-saber. Assim, a etnografia, enquanto forma de representação da diversidade cultural é uma forma de literatura. O livro colectivo “Writing Culture” (Clifford e Marcus, 1986; 1991), que teve como base um seminário em Santa Fé (Califórnia), marcou um antes e um depois não apenas na antropologia pós-moderna, porém também na antropologia. A partir da análise desse livro podemos observar três correntes de pensamento: a) A meta-antropologia, que realiza uma análise crítica dos recursos retóricos e autoritários da antropologia convencional praticada pelo “realismo etnográfico” (empirista e positivista) na procura de leis gerais, para apresentar alternativas de investigação e exploração. Representantes desta corrente são alguns trabalhos de Cflifford Geertz, George Marcus, James Clifford o Marylin Strathern. E as críticas á antropologia tradicional foram estas: Estruturação das monografías antropológicas como etnografía total. O etnógrafo apresenta-se no texto como não intrusivo na cultura que estuda. Exclui os informantes individuais e faz referência a um sujeito colectivo homogéneo. Não narra o processo de trabalho de campo nas monografias. Apresenta o material etnográfico como ponto de vista dos sujeitos culturais e não como o ponto de vista do antropólogo. Exploração estatística de dados particulares. Pratica uma exegese textual do idioma nativo. Estas características da antropologia convencional seriam utilizadas para convencer os leitores e academia sobre a verdade do investigado. b) A etnografia experimental seria a segunda corrente, e trataria de procurar alternativas para a escrita etnográfica no caminho de uma narração personalizada face a umas tais descrições objectivas. Nas suas obras integra o outro no discurso do antropólogo e defende a triangulação entre antropólogo- informante – leitor. O antropólogo renuncia a falar em vez do outro e as pessoas têm direito a palavra e voz nos textos etnográficos. Nesta corrente TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 89 também se reflicte sobre as dúvidas do trabalho de campo e mostra a problemática do encontro com o outro. Outras ideias chave são: O método dialogal ou dialógico, em relação com o carácter intersubjectivo do trabalho de campo. A polifonia e o cruzamento de laços entre os informantes. A heteroglosia, em referência às vozes diferenciadas social e ideologicamente. O trabalho de campo como realidade negociada Representantes de esta corriente son Dennis Tedlock, Paul Rabinow e Vincent Crapanzano. c) O pós-modernismo estremista de Michael Taussing e Stephen Tyler, quem criticam não apenas a antropologia, porém também a ciência e a sua autoridade. Proõem redefinir a ciência e a antropologia com base numa certa irracionalidade. A antropologia pós-moderna sensibilizou-nos face a problemas antes não abordados pelas Ciências Sociais e do mesmo modo criticou o objectivismo ingénuo. Mas alguns riscos foram corridos. O primeiro é o de cair no relativismo mais absoluto, se bem é certo que sem relativismo não há antropologia, é preciso fazer um uso crítico dele, não dogmático, pois isso tornaria impossível a comparação intercultural. O relativismo absoluto também pode acabar num niilismo que negue a capacidade crítica, libertadora e transformadora da antropologia. O segundo risco é o “todo vale” de alguns aspectos do pós-modernismo neoliberal, que pode levar-nos a que não se garanta nemhum critério de aproximação da verdade. A alternativa é defender que “nada vale para explicar todo”, isto é, não acreditar em absolutos nem tampouco no todo tem o mesmo valor. O terceiro risco é cair numa filosofia ingénua da acção e pensar que as chaves intepretativas da vida cultural estariam apenas no nível imediato dos discursos dos informantes. Pelo contrário, para achar essas chaves é preciso situar-se numa posição de exterioridade explicativa-teórica e não apenas descritiva, asumindo os instrumentos de objectivação mental da acção social (contexto, observação, teorias, métodos, técnicas…). No nosso ponto de vista, o papel do antropólogo e a sua interpretação são fundamentais, pois os dados não falam por eles próprios e é o investigador quem dialoga com eles. De acordo com Renato Rosaldo (Montezemolo, 2003: 342), nos representantes da antropologia pós-moderna que escreveram o Writing Culture haviaduas correntes, a) os que pensavam que era preciso experimentar por amor ao experimento, e b) os que pensavam que as anteriores técnicas de representação etnográfica do outro já não serviam, pois já não se tratava de demonstrar o equilíbrio das sociedades periféricas, porém de demonstrar os processos históricos em contextos sociais de desigualdade e também o papel dos grupos subalternos e as suas percepções. Do livro “Writing Culture” podemos observar duas tendências, a primeira a de aqueles que pretendiam destruir ou abandonar a etnografia pela literatura, entre eles estava James Clifford, um aluno não antropólogo de Clifford Geertz. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 90 A segunda tendência pretendia reiventar a etnografia e fazer esta de outra forma, esta posição era representada por Renato Rosaldo (ver Montezemolo, 2003: 343; ver também Fox, 1991). Outra reacção interessante ao livro “Writing Culture” veio da antropologia feminista e o livro “Women Writing Culture” (Behar e Gordon, 1995), pois o primeiro foi escrito quase exclusivamente por homens. Nele expõe-se a triangulação entre escrita, género feminino e cultura e questionam o masculinismo da escrita antropológica. BIBLIOGRAFIA -ADAMS, W.Y. (1998): The philosophical roots of Anthropology. Stanford: Center for the Studyn of Language and Information – Leland Stanford Junior University. -BARNARD, A (2000): History and Theory in Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press. -BATESON, G. (1990, or. 1958): Naven, una ceremonia Iatmul. Madrid: Júcar. -BEHAR, R. e GORDON. D. G. (ed.) (1995): Women Writing Culture. 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Estuda os recursos retóricos dos textos e a relação destes com as audiências (George Marcus, Dick Cushuman e Marilyn Strathern). Pesquisa as instituições que promovem a escrita etnográfica, as relações entre o antropólogo e o “outro” e as formas alternativas de escrita etnográfica (Paul Rabinow). Redefine as formas o trabalho de campo adopta, no texto etnográfico. Vincent Capranzano, Kevin Dwyer, Paul Rabinow. Dennis Tedlock e a etnografia dialógica. Critica a escrita etnográfica, mas também a ciência em geral. Stephen Tyler e Michael Taussig. Epistemologia irracionalista que reformula o projecto científico. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 95 ANEXO III: ANTIGOS E NOVOS PARADIGMAS EM ANTROPOLOGIA OS ANTIGOS PARADIGMAS O NOVO PARADIGMA PÓS-MODERNO Os antropólogos consideravam a existência de estruturas de poder que definiam as suas posições e que reprimiam ou condicionavam a vida dos nativos. Pouca sensibilidade para com a colonização, as relações de poder, autoridade e legitimidade. Paradigma conceptual dominante: o objectivismo e o positivismo. O regime colonial impunha, por definição, uma situação de desigualdade na relação do antropólogo com os nativos: antropólogo tinha uma posição de privilégio e uma autoridade implícita. O antropólogo informava “neutralmente” como se não influisse nos nativos. Influências de Talad Asad (orientalismo), Derrida (desconstrucionismo) e Foucault (saber e poder). Questionamento da prática e do estatuto da antropologia. Rejeição da orientação positivista e do objectivismo (a verdade da realidade objectiva era obtida através de procedimentos científicos repetíveis e demostráveis). Maior preocupação com natureza do conhecimento antropológico e com as formas de produção etnográfica. Preside uma das muitas fases de auto-exame da antropologia. Reflexividade. Questionamento e rejeição do papel neutro do antropólogo como observador. Tomada de consciência, perante o contexto geo-político no qual a disciplina se tinha desenvolvido. Antecedente: debate entre Robert Redfield e Oscar Lewis, nos anos 50 do s. XX, depois de ambos terem realizado trabalho de campo na mesma povoação (Tepoztlán) e de terem alcançado resultados diferentes. Este facto levou a pensar na origem social dos antropólogos, na sua personalidade e na sua influência nas perguntas que empreendem. CLIFFORD, J. e MARCUS, G. (1986): Writing Culture. The Poetics and Politics of Anthropology. Berkeley: University of California Press. -HIRSCON, R. (1998): “Antropología reflexiva”, em Lisón, C. (ed.): Antropología: Horizontes teóricos. Granada: Comares, pp. 149-163. TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 96 ANEXO IV: QUADRO DE SÍNTESE DA HISTÓRIA DAS TEORIAS DA CULTURA Período Contexto histórico Escolas, ideias e teorias Autores Antes do séc. XV Expansão do império e do comércio Curiosidade pelos costumes exóticos e pelas explicações sobre esta diversidade “Bárbaros” (os não gregos): “um olho na testa e os pés para atrás” (Heródoto). O “barbaro” era o estrangeiro que era considerado inferior e incivilizado. Santo Agostinho interpretava como pagãs a Grécia e a Roma clássicas. Heródoto (484-425 a.C.) Santo Agostinho (354-430) Autores medievais europeus e árabes Ibn Haldun (1332-1406) Séculos XV e XVI -Conhecimento ocidental do mundo. -Desenvolvimento do capitalismo mercantil e do comércio de escravos. -Confirmação da esfericidade da terra. Descobrimento do "mundo selvagem" e constituição de um novo campo de estudo: a história moral (estudo dos hábitos e costumes dos diferentes povos). Dicotomia: selvagens / humanos (europeus). Índios considerados com natureza moral pura. Bartolomé de las Casas foi dos primeiros a teorizar sobre o “bom selvagem”. Ele considerava os índios puros e bons selvagens, mas os negros não, de ai o dever de evangelizar os primeiros e escravizar os segundos. Foi um primórdio do relativismo cultural, junto com o português, Padre Vieira. José de Acosta (1539 – 1600) Bartolomé de las Casas (1474-1566) Padre Vieira (1608-1697) Jean Bodin (1530-96) M. Montaigne (1533-92) TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 97 Século XVIII Início do colonialismo moderno e formação do capitalismo industrial. Começa a abolir-se a escravatura. Ilustração: Razão humana como centro. Interesse pelo estudo da história da humana. De um teocentrismo a um humanocentrismo. Aparece a dicotomia selvagem ou primitivo / civilizado. Nasce a ideia de progresso da humanidade. “Mito do Bom Selvagem” de Rousseau: os humanos são bons, é a sociedade que os corrompe. Solução: voltar à bondade primitiva da humanidade, que está na natureza. Montesquieu (1689-1755) Voltaire (1694-1778) Rosseau (1712-1778) Smith (1723-90) Século XIX Expansão colonial Ex.: EUA expande-se para o Oeste Evolucionismo Influências da Ilustração e de Darwin: evolução biológica e sobrevivência dos mais aptos. SelvagismoBarbárieCivilização Continua a dicotomia primitivo / civilizado. A antropologia nasce como disciplina académica. Positivismo nas Ciências Sociais. Igualdade, liberdade, fraternidade entre os humanos e desigualdade entre culturas. Investigação sobre as leis gerais da evolução humana. Preocupação pelas diferenças e semelhanças. MagiaReligiãoCiência (James Frazer) J.J.Bachofen (1815-1887) L.H, Morgan (1818-81) H. Maine (1822-88) J.F. Mc Lennan (1827-81) E.B. Tylor (1832-1917) J. Frazer (1854-1941) TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 98 Inícios do séc. XX Continua a expansão colonial e destroem-se algumas culturas índias. Industrialização. -Reacção contra o evolucionismo. -Mais preocupação pela diversidade cultural e menos pela diferença. Difusionismo (Destaque para a Alemanha) -O empréstimo cultural como mecanismo de evolução cultural. A causa é a tendência humana para a imitação. -Teoria dos círculos culturais, desde Egipto para outras culturas (ex.: vidro). Ratzel (1844-1904) Graebner (1877-1934) Frobenius (1873-1938) G.E. Smith (1871-1937) W.J. Perry (1887-1950) W.H. Rivers (1864-1922) Particularismo histórico (origem nos EUA) -Cada cultura tem uma história particular. -Noção de área cultural. - A difusão pode acontecer em qualquer direcção. - Relativismo cultural. - Evolução também do complexo para o simples. - Trabalho de campo no terreno (Boas) Franz Boas (1858-1942) Carl Wissler (1870-1947) Alfred Kroeber (1876-1960) Robert Lowie (1883-1957) Entre a 1ª e a 2ª Guerras mundiais -Sucesso do colonialismo Funcionalismo (Reino Unido) Noções de função, estrutura social, interdependência, equilíbrio funcional, necessidade, ordem. Spencer: função = obrigação nas relações sociais. Durkheim: função = satisfaz uma necessidade social. Malinowski: função = a organização social satisfaz necessidades biológicas, psicológicas e sociais. Bronislaw Malinowski (1884- 1942) A.R. Radcliffe-Brown (1881- 1955) E.E. Evans-Pritchard (1902- 1973) Meyer Fortes (1906-1983) TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 99 Cultura e personalidade (EUA) A personalidade é moldada pela cultura. Discípulos de Franz Boas. Influênciada psicanálise e de Nietzche. “Personalidade de base” partilhada por todos os membros de uma cultura Tipos de culturas: dionisíacas (extâse), apolíneas (moderação); pré-figurativas, pós- figurativas, co-figurativas. Ruth Benedict (1887-1948) Margaret Mead (1901-1978) Gregory Bateson Ralph Linton (1893-1953) Abram Kardiner (1891-1981) Anos 1950 -Começa a descolonização Neo-evolucionismo Cultura como um sistema de adaptação ao meio ambiente. A tecnologia, o uso da energia e a demografia como elementos chave da evolução. Os estádios de complexidade social e avanços tecnológicos (bando, tribo, perfeitura e estado). Evolucionismo unilinear. Os factores tecnológicos determinam os traços ideológicos e sociológicos de um grupo humano. Confronto com Alfred Kroeber (que sublinha os aspectos ideológicos como motores da mudança cultural). Leslie White (1900-1974) Ecologia Cultural Cultura como sistema de adaptação ao meio natural. Motor da mudança: aspectos tecnológicos, mas também a organização da produção. Evolucionista multilinear. Julian Steward (1902-1972) TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 100 Materialismo cultural Cultura como um mecanismo de adaptação ao meio. A aplicação de tecnologias semelhantes tende a produzir sistemas de produção e de organização semelhantes. As condições materiais da existência actuam, determinantemente, sobre a vida quotidiana e impõem limitações. Ecossistema, energia, adaptação. Marvin Harris (1931-2001) Rappaport, Vayda, Marvin Harris, o 1º Marshall Sahlins Anos 1960,1970 -Movimentos de liberação nacional e processo de descolonização -Guerra fria e liderança mundial dos EUA. -Guerra do Vietname -Maio de 1968 Estructuralismo Existe uma cultura humana, não só culturas. Existe uma unidade psíquica da humanidade. Há regras culturais universais que são um apriori. A cultura é entendida como um sistema de signos partilhados (influência da linguística). A estrutura é subjacente à cultura e à sociedade. Existe uma mente humana universal que organiza o conhecimento do mundo em opostos binários ou categorias dicotómicas: limpo /sujo; acima/ abaixo; ordem/ desordem; puro / impuro; direita / esquerda; homem / mulher... Claude Lévi-Strauss (1908-2009) TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 101 Antropologia Cognitiva ou etnociência A Cultura é um sistema de conhecimentos, percepções e crenças partilhados. Estuda a forma como os fenómenos são organizados na mente das pessoas. Berlin, Kay, Goodenough, Del Hymes, Tyler... Antropologia Simbólica A cultura como um sistema de símbolos, através dos quais os membros de uma sociedade comunicam a sua visão do mundo. Cultura como veículo de comunicação. Clifford Geertz (1926-2006), David M. Schneider (1918- 1995), Victor Turner (1920- 1983), Mary Douglas… Anos 1970 Antropologia Marxista Paradigma dos modos de produção. Relação dialéctica entre a base material e a cultura, entre a infra-estrutura e a superestrutura. Articulação de diferentes modos de produção. Maurice Godelier, E.Terray, Claude Meillasoux, Maurice Bloch, Eric Wolf,… TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 102 Anos 1980 e 1990 Antropologia Semântica A antropologia semântica estuda os seres humanos, enquanto criadores de sentido e não como receptores passivos de estruturas culturais. O sentido é transmitido através da linguagem e o simbolismo. As culturas organizam sistemas semióticos, isto é, geografias morais que condicionam o meio social, autoperpetuando-se e modificando-se, apenas, com novas experiências. A antropologia como um jogo de espelhos. Pensa o poder e a hegemonia como elementos fundamentais da definição de cultura. Edwin Ardener, Robert Parkin. Anos 1980 e 1990 Antropologia interpretativa A antropologia é uma interpretação de interpretações. A cultura é uma rede de significados e de significações. Antropologia pós-moderna A realidade é sempre interpretada. A antropologia é uma interpretação de interpretações. Crítica das retóricas de autoridade clássicas. Novo paradigma do trabalho de campo: etnografia multisituada, dialogia,... Clifford Geertz James Clifford George Marcus Paul Rabinow Dennis Tedlock Renato Rosaldo Stephen Tyler Michael Taussing TEMA 4: BREVE HISTÓRIA DAS TEORIAS ANTROPOLÓGICAS 103 2000 - Antropologia reflexiva O antropólogo, enquanto instrumento de conhecimento antropológico deve reflectir sobre o seu papel no terreno para esclarecer melhor a construcção intersubjectiva do saber antropológico. A forma de ver e pensar os problemas é parte do problema de investigação. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 104 © APONTAMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL 2011-2012 – Prof. Dr. Xerardo Pereiro – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) – antropólogo – Correio electrónico: xperez@utad.pt Web: www.utad.pt/~xperez/ TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA Objectivos: -Apresentar o método etnográfico como uma das características distintivas da antropologia. -Reflectir e discutir sobre o trabalho de campo antropológico como experiência distintiva da antropologia. -Introduzir os estudantes nas técnicas de investigação antropológicas. Guião: 5.1. Enfoques da investigação antropológica. 5.2 A investigação antropológica enquanto projecto e processo. 5.3. O trabalho de campo antropológico. 5.4. Técnicas de investigação antropológica. 5.5. A observação etnográfica. 5.6. A entrevista oral. 5.7. A história de vida. 5.8. O antropólogo em contextos urbanos 5.9. A ética do trabalho de campo. 5.10. A escrita antropológica. Bibliografia Sítios em Internet “O peixe compreende a água na que vive quando sai à terra” (Peacock, 1989: 25) 5.1. ENFOQUES DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA “A estatística é como o biquíni, mostra quase tudo mas esconde o principal” (Roque Pinto, 2-04-2009, Vila Real, Restaurante Terra e Montanha). Em Ciências Sociais podemos considerar dois enfoques de cariz epistemológico: o enfoque quantitativo da investigação e o enfoque qualitativo. Há duas formas de entender a relação entre estes dois enfoques: a) A perspectiva de oposição e diferenciação entre os dois enfoques. b) A perspectiva de inter-relação e enfoque misto, que defende um continuum entre ambas e a utilização dos dois enfoques em função dos problemas, contextos e situações de investigação. Desde a primeira perspectiva podemos estabelecer uma dicotomia já histórica: TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 105 Enfoque quantitativo (Positivismo) Enfoque qualitativo (Naturalismo) -Augusto Comte, Emile Durkheim. -Investigação “científica” ligada às ciências naturais (ex.: Física). -Objectivo: medir coisas ou fenómenos, procura factos e causas. -Métodos estatísticos e inquéritos por questionário. Também experimentação. -Procura leis universais através da explicação, da dedução, da amostra, da generalização de resultados, da utilização de variáveis e da verificação das respostas e hipóteses. -Max Weber. -Princípio: os fenómenos sociais são diferentes dos fenómenos físicos. O comportamento humano não é mecânico. -Procuram o entendimento (“verstehen”), os significados subjectivos, a compreensão do contexto. -Método dos “tipos ideais”, da descrição da experiência concreta, das suas regras e dos padrões sociais. -Significados sociais. -Procura compreender os quadros de referência dos actores sociais. -Analisa o modo como as pessoas percebem o mundo. -Mais indutivo do que hipotético- dedutivo. Adaptado de Hernández Sampieri,R.; Fernández-Collado, C.; Baptista Lucio, P. (2006: 3-30); Taylor e Bogdan (1998: 15-30); Hammersley e Atkinson (1994: 17). O positivismo estaria mais virado para a explicação da realidade, a investigação experimental e a análise quantitativa. Alguns dos seus princípios seriam: a) A ciência natural enquanto modelo das ciências sociais: lógica do experimento, variáveis quantitativas medíveis e manipuladas para estudar a relação entre elas. b) Tentativa de obter leis universais: método hipotético-dedutivo, estatística, inquérito por questionário, amostra, generalização de resultados, apelo a leis universais que permanecem constantes e estabelecem relações regulares entre variáveis. c) Observação da realidade com base nos sentidos (empirismo tradicional) e diferença entre ciência e senso comum. d) Verificação de teorias: confirmar ou desmentir estas por meio de experimentos e análise estatístico. Pelo contrário, o naturalismo defende um tipo de investigação algo diferente, isto é, para esta corrente, o principal objectivo do investigador social deve ser descobrir o que acontece num lugar, o significado das suas acções para a gente envolvida nele e a sua representação. Para o naturalismo, os fenómenos sociais são diferentes dos fenómenos naturais e físicos. A fenomenologia e a hermenêutica são alguns dos pressupostos filosóficos do naturalismo. Nesta linha, as relações sociais não podem ser entendidas em termos de causa-efeito ou baixo leis universais. As acções sociais obedecem a intenções, motivações, atitudes, TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 106 crenças, valores, significados, sentidos, sentimentos, emoções, que não podem ser reduzidos a uma lei quantitativa. Recentes críticas ao naturalismo questionam o risco de cair num relativismo extremo (ex.: as pessoas se comportam de forma diferente em função dos contextos). Nas últimas décadas tem havido uma certa desilusão pelos métodos quantitativos e um acréscimo do interesse pelos métodos qualitativos (ex.: histórias de vida...). Decerto, na nossa óptica, qualquer realidade social não pode ser entendida apenas através da quantificação matemática. Questões como a felicidade, a tristeza, a dor, os sentimentos, ou os afectos não podem ser reduzidos a uma quantificação, ainda que a quantificação possa ajudar na sua compreensão. Na actualidade também são muitos os que adoptam um enfoque misto (qualitativo-quantitativo), ainda que predomine um enfoque sobre o outro, sim que se entrecruzam em muitas investigações. No caso da investigação antropológica, ainda que costuma utilizar técnicas mais qualitativas, pode servir-se também de técnicas quantitativas, mas o central em antropologia são as unidades de interpretação do significado e das significações. 5.2. A INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA ENQUANTO PROJECTO E PROCESSO “Las gentes entre las que estudian los antropólogos siempre dejan en ellos algunas huellas. Una de ellas, muy elemental y generalmente profunda, es el espíritu de convivencia, de comprensión” (Velasco, 1994: 14). Investigar é perguntar, o que leva a respostas e novas perguntas. O processo de investigação antropológica obedece a um modo de abordagem dos problemas socioculturais e às suas respostas. Toda investigação antropológica obedece a um projecto de investigação explícito ou implícito, de aí a importância de pensar e realizar um desenho da investigação. Este projecto deve adaptar-se ao terreno e problema de investigação e não sempre ao contrário ou de uma forma rígida. Um projecto de investigação obedece a uma reflexão epistemológica (abordada no ponto anterior), metodológica e tecnológica. A reflexão epistemológica define as questões dos paradigmas e problemáticas comuns à investigação científica em geral, ela enquadra teoricamente as conceitualizações dos objectos de investigação. Pelo que faz referência à reflexão metodológica, esta responde ao por quê das técnicas de investigação social, o seu sentido e significado, os seus princípios e orientações na sua ligação com a epistemologia e o problema em estudo. Enquanto à reflexão tecnológica, trata-se de reflectir sobre as técnicas de investigação social mais usuais no campo do turismo. E se os métodos podem ser considerados como a forma de ordenar os procedimentos para atingir um fim, as técnicas são os procedimentos em aplicação do ordenamento. A articulação destes três níveis permitirá um melhor desenho e desenvolvimento de um projecto de investigação. Destacar que o método de investigação antropológica é particular da antropologia e distingue à mesma, isto não quer dizer que a antropologia não TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 107 partilhe com outras ciências a utilização de determinadas técnicas. A metodologia não é apenas um conjunto de técnicas de investigação, porém, é o conjunto de princípios orientadores da investigação. Em antropologia dois são os princípios metodológicos fundamentais: a) a etnografia e a atitude de observação no terreno, com imersão na vida dos “outros” com o objectivo de compreender estes; b) a comparação entre grupos humanos, épocas, géneros, etc. O conhecimento antropológico não procede dos laboratórios e sim de culturas e grupos humanos vivos (Burgess, 1997: 11), pelo que o antropólogo aborda o mais profundamente humano, o quotidiano das pessoas e os seus significados. Ainda assim temos que reconhecer que os conhecimentos produzidos pela antropologia obedecem a interesses pessoais e sociais, não apenas a interesses académicos e científicos, pelo que é importante reflectir sobre essas agendas. Estas são algumas das especifidades do processo de investigação em antropologia: 1. Escolher o problema de investigação. 2. Escolha da área de estudo (teórica e territorial). 3. Documentação e literatura sobre essa área e a perspectiva teórica escolhida. 4. Estudo da fala local, autorizações, vacina (ex.: contra a malária ou paludismo, febre amarela, etc.), material necessário, etc. 5. Deslocação, contacto, convivência, entrada no terreno. No caso de trabalhar em contextos com riscos de contrair doenças é muito importante pensar nas vacinas. Destacar que a malária está a resistir, no Sudeste Asiático e na África, a “cloroquina” e a “pirimetamina”, medicamentos que costumam ser utilizados no seu combate e prevenção. A malária ou paludismo é uma doença transmitida pelo mosquito ánofele, que actualmente está em mutação e que oferece alguma imunidade através do parasita “plasmodium falciparum”, segundo fontes da revista Science (Jornal de Notícias, 20 de Agosto de 2004, p. 10). Como preparar um projecto de investigação antropológica? Vejamos um modelo que nos pode ajudar: PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO: 1. PERGUNTAS DE PARTIDA 2. EXPLORAÇÃO: a) REVISÃO BIBLIOGRÁFICA. b) ENTREVISTAS E REUNIÕES EXPLORATÓRIAS. Nesta fase o objectivo é encontrar pistas de reflexão, ideias e hipóteses de trabalho. 3. PROBLEMÁTICA: -Perspectiva teórica: (i.e.: antropologia simbólica e interpretativa) -Quadros conceptuais da investigação: (ex.: tempo linear, tempo cíclico, actor, cenário, bastidores, espaço publico, espaço privado, festa, catarse, estrutura social, ritual, TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 108 performance,... ) 4. CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE: -Articular conceitos e hipóteses: Indicadores Componentes Dimensões Conceitos Hipóteses Refutabilidade 5. OBSERVAÇÃO: a) Que observar? b) Em donde observar? o campo de análise (unidades de observação), a amostra c) Como observar? Instrumentos de observação (inquéritos, guiões,...) Desenhos brandos (mais indutivos): -Baseados na etnografia (observação participante, trabalho com informantes chave) e em métodos qualitativos. -Melhor para contextos com obstrução, programas com metas menos definidas ou especialmente complexas e diversas, re- orientações dos programase circunstâncias de rápida mudança. -Obedece mais a objectivos do que às hipóteses prévias. Desenhos duros (mais dedutivos): -Com grupos controlados. -Com base em hipóteses prévias. -Com programas de objectivos claros e medíveis facilmente. -Verificar e comprovar hipóteses definidas a priori, com base em observações sistemáticas da problemática de estudo e as suas unidades de análise. -Para produzir uma avaliação final. -Investigação rápida para a tomada de decisões (Uma investigação tardia é uma mau investigação). Desenhos mistos (qualitativos e quantitativos) 6. ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES: INTERPRETAR OS DADOS. 7. CONCLUSÕES. No desenho da investigação é fundamental a redacção de um projecto de investigação, pois o que não se escreve corre o risco de desaparecer e além mais é uma forma de delimitar o problema de investigação no tempo e no espaço. O projecto serve para orientar, definir e redefinir a investigação. É muito importante fazer uma revisão crítica da bibliografia existente, podendo assim esclarecer o estado de conhecimento ou “estado da arte” sobre o assunto abordado. Devemos ler o que outros já escreveram sobre o assunto, sobre métodos de investigação, teorias e modelos de análise. Aqui abaixo podemos encontrar um pequeno guião para a redacção de um projecto de investigação: TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 109 ESTRUTURA DE REDACCÃO DE UM PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO 1. Introdução 2. Formular o problema de investigação 2.1. Estado da questão 2.2. Modelo teórico 2.3. Hipóteses ou objectivos 3. Contexto da investigação 3.1. Unidades de análise 3.2. Contexto geográfico 3.3. Período cronológico estudado 4. Esquema do trabalho 5. Metodologias e técnicas 6. Planificação do trabalho 6.1. Plano de trabalho e calendário 6.2. Membros da equipa de trabalho 6.3. Orçamento 7. Bibliografia 8. Anexos 5.3. O TRABALHO DE CAMPO ANTROPOLÓGICO “A compreensão de um mundo desterritorializado requer um ponto de vista desterritorializado. Para entende-lo na sua totalidade, a perspectiva analítica deve liberar-se das restrições locais e nacionais… Pensemos o mundo nos seus fluxos e, depois, façamos as perguntas pertinentes à nossa realidade” (Ortiz, 1998: XXI- XXII). O trabalho de campo antropológico é o que diferencia a antropologia, é “o que a sangue dos mártires era para a Igreja Católica” (Seligman, in Stocking, 1992: 30). O trabalho de campo é um método de investigação sóciocultural, um conjunto de procedimentos e regras para produzir e organizar conhecimento, e que integra (Velasco e Díaz de Rada, 1997): a) Uma situação metodológica que implica “estranhar-se, ter curiosidade, descrever densamente, traduzir e interpretar” a realidade sociocultural com a qual lidamos. Nesta situação de encontro com outros conhecemos os seus problemas, as suas percepções, o seu comportamento e os seus modos de vida nos seus próprios términos. b) Um processo de conhecimento com base numa estadia no terreno, através da qual estudar os significados socioculturais no seu contexto. c) Uma experiência de contacto intercultural com o fim de conhecer a alteridade. Partimos da ideia de que há diferentes maneiras de fazer trabalho de campo. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 110 Portanto, o trabalho de campo antropológico não é uma simples técnica de investigação ou um instrumento de recolha primária de dados, é algo mais. A etnografia é a forma de perguntar e escrever que produz descrições e registos sobre os modos de vida do antropólogo e o dos estudados (Kenzin, 1997). O trabalho de campo é uma forma de produzir conhecimento com base na experiência do investigador, isto é um contacto directo com a realidade, um conhecimento obtido por repetição de observações e/ou por prova de ideias ou hipóteses (Hessen, 1961). O antropólogo faz trabalho de campo para examinar eventos singulares e microscópicos para responder a grandes perguntas universais. Ver o universal no quotidiano e ver o quotidiano no universal são tarefas do antropólogo em trabalho de campo, independentemente de que terreno seja uma pequena comunidade, uma população migrante transnacional ou a comunidade global. O antropólogo estuda no trabalho de campo problemas humanos em contextos de diversidade cultural. A invenção do trabalho de campo O trabalho de campo é também um ritual de passagem da tribo antropológica que tem os seus heróis e os seus mitos (ex.: mito fundador de Malinowski). Um dos primeiros antropólogos que aplicou o método etnográfico foi Lewis Morgan nos EUA, em concreto em 1859, quando estudou várias “tribos” de Nebraska e Kansas. Na Inglaterra antropólogos como James Frazer (autor de “O Ramo Dourado”, 12 volumes) quando foi perguntado se alguma vez na sua vida fez trabalho de campo e se conhecera algum “selvagem”, ele respondeu: “Deus me livre, nunca jamais,...”. Mas também é certo que autores como James Frazer ou E. B. Tylor promoveram, através da British Association for the Advancement of Science, a realização por outros de pequenos trabalhos de campo baseados em inquéritos formais aplicados por missionários e administradores coloniais. Foi assim como Franz Boas levou a cabo os seus estudos etnográficos entre os índios da Colômbia Britânica de 1888 a 1894. E apesar de que já Rivers propunha no seu “Notes and Queries in Anthropology” algumas recomendações sobre como seguir os ciclos de vida da comunidade estudada – o género monográfico-, foi B. Malinowski (1973) quem sistematizou nos anos 1920 o método etnográfico de trabalho de campo, na sua obra sobre “Os argonautas do Pacífico Ocidental”: “En primer lugar, para empezar con temas que no pudieran despertar suspicacias, comencé a “hacer” tecnología. Unos cuantos indígenas se pusieron a fabricar diversos objetos. Fue fácil observarlos y conseguir los nombres de las herramientas e incluso algunas expresiones técnicas sobre los distintos procedimientos...” (Malinowski, 1973: 22) “Sabía que el mejor remedio era ir recogiendo datos concretos, y obrando en consecuencia hice un censo del poblado, tomé notas de las genealogías, levanté planos y registré los términos de parentesco” (Malinowski, 1973: 23). “Debe tenerse en cuenta que los indígenas, al verme constantemente todos los días, dejaron de interesarse, alarmarse o autocontrolarse por mi presencia, a la vez que yo dejé TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 111 de ser un elemento disturbador de la vida tribal que me proponía estudiar, la cual se había alterado con mi primera aproximación, como siempre ocurre en las comunidades primitivas cuando llega alguien nuevo” (Malinowski, 1973: 25). “Tuve que aprender a comportarme y, hasta cierto punto, adquirí el “sentido” de las buenas y las malas maneras indígenas. Y fue gracias a esto, a saber gozar de su compañía y a participar en alguno de sus juegos y diversiones, como empecé a sentirme de verdad en contacto con los indígenas; y ésta es ciertamente la condición previa para poder llevar a cabo con éxito cualquier trabajo de campo” (Malinowski, 1973: 26). “... hay toda una serie de fenómenos de gran importancia que no pueden recogerse mediante interrogatorio ni con el análisis de documentos, sino que tienen que ser observados en su plena realidad”. Refírese ao que el denomina “os imponderables da vida real” (Malinowski, 1973: 36). Malinowski (1973) converteu-se em uma espécie de herói para a antropologia e a sua obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” num mito. Nesta obra, este traduz parte do trabalho de campo feito na Nova Guiné, concretamente nas Ilhas Trobriand (hoje ilhas Kiriwina, parte da Papua Nova Guiné), donde viveu com os nativos durante dois anos, aprendendo a conviver com eles, a sua língua e os seus costumes. As recomendações que ele dá sobre o trabalho de campo, foram muito importantes para a antropologia, convertendoo trabalho de campo num ritual de passagem da tribo antropológica (Velasco e Díaz de Rada, 1997: 19). Desta obra de Malinowski, o mito fundador do trabalho de campo, podemos destacar algumas ideias chave para reflectirmos sobre o trabalho de campo: Ver os dados etnográficos como capazes de configurar uma teoria. O antropólogo sabe que as pessoas com as que estuda produzem “teorias nativas”. Dar um esquema claro e coerente da estrutura social. Destacar as normas culturais. Estudar os fenómenos quotidianos e os extraordinários. Um antropólogo deve expor que dados foram obtidos das suas observações directas, e quais das indirectas. O antropólogo deve recolher os relatos dos informantes, documentos e dados de observação do comportamento (triangulação). O diário de campo é um instrumento necessário no qual devem constar: peculiaridades, repetições no comportamento, situar o acto nas suas coordenadas, descrever actores, espectadores, sítio. Também é necessário participar na vida social. É preciso ter em conta: a mentalidade, as conceições nativas, as formas de expressão, as ideias, os sentimentos, os motivos, os actos impostos pela costume,...Mas sobre todo o que sentem e pensam em quanto membros de uma comunidade determinada (Malinowski, 1973: 40). É preciso citar as declarações nativas, e aprender a língua nativa. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 112 Apesar de que Haddon introduz o termo de “trabalho de campo”, derivado do discurso naturalista, na antropologia britânica, Malinowski descobriu uma nova forma de fazer trabalho de campo através do seu novo comportamento no campo. O seu primeiro trabalho de campo tinha sido também nas Trobriand, mas em Mailu. Neste terreno tinha realizado, seguindo o método de recolha total da cultura do “Notes and Queries” de Rivers, um informe etnográfico historicista e evolucionista, uma etnografia de varanda com intérprete e entrevistas, durante uma estadia curta (2 mêses) e superficial (Alvarez Roldán, 1994). Não foi por acaso que Malinowski faz trabalho de campo nas ilhas Trobriand, pois ali tinha trabalhado o seu mestre, o antropólogo Seligman. No seu segundo trabalho de campo, o que depois o convertiria num antropólogo de prestígio, ele permanece em Kiriwina, onde muda a sua atitude no terreno, criando assim o que conhecementos como trabalho de campo malinowskiano (Álvarez Roldán, 1994): 1. Longo tempo entre os nativos. 2. Investigação centrada em temas específicos. 3. Estudou o presente e não o passado. 4. Aprendeu a língua nativa. 5. Observou a vida quotidiana e as instituições nativas. 6. Mudou o estilo da escrita etnográfica. Parece ser que ficou nas ilhas Trobriand muito tempo pelo tipo de comunidade que encontrou, isto é, materlinear e com chefaturas. Será em Kiriwina onde elabore informes etnográficos sincrónicos e funcionalistas (Malinowski, 1973). Em Kiriwina vai permanecer uma longa estadia e aprende a língua nativa para entender o significado nativo, sem conformar-se com chegar a encontrar uma equivalência verbal em outras línguas. É assim que Malinowski inventa o método etnográfico (Álvarez Roldán, 1994) quebrando assim a anterior separação entre a recolha de dados e a teoria elaborada por outros, e convertendo o antropólogo num autoinstrumento de investigação (Velasco e Díaz de Rada, 1997: 21). O trabalho de campo como método “… el etnógrafo es un tipo de carne y hueso, con sus debilidades, sus miserias y, sin embargo, con toda su humana grandeza que pone a prueba su propia persona al intentar captar la ajena” (Rabinow, 1992: 16). Um método é um conjunto de princípios que orientam a selecção do objecto de estudo, a formação dos conceitos apropriados e as hipóteses. Todo método é um caminho para chegar a algum sítio de uma maneira certa. A metodologia é um conjunto de procedimentos e regras para produzir conhecimento e está interligada com o enquadramento teórico global. Portanto é algo mais que uma técnica ou um conjunto delas. As técnicas de investigação são os procedimentos operativos e os instrumentos para produzir dados (i.e.: questionários, histórias de vida, inquéritos, entrevistas, etc.). Esses dados servem para compreender os fenómenos, para captar as relações entre os fenómenos e a intencionalidade das acções sem permanecer na parte exterior (só descrição de fenómenos). TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 113 O método dos antropólogos é o trabalho de campo etnográfico, através do qual se faz etnografia. De acordo com este método, o antropólogo converte-se no principal instrumento de recolha de dados, é por tanto uma inter-subjectividade entre observador e observado. A etnografia é a descrição do comportamento, das ideias, das crenças, dos valores, dos elementos materiais, etc. quotidianos e espontâneos de um grupo humano. A etnografia tem em conta 3 aspectos: 1. O que as pessoas dizem. 2. O que as pessoas fazem. 3. O que as pessoas pensam que se deveria fazer. Como definimos mais acima, o trabalho de campo pode ser considerado como: a) uma situação metodológica de encontro intercultural; b) um processo; c) uma experiência que diferença à antropologia. De ai que possa haver diferentes formas de fazer trabalho de campo (Velasco e Díaz de Rada, 1997: 18) e de aí a necessidade de explicar as condições em que é realizado o trabalho de campo e a produção de conhecimento. Este é um dos grandes contributos da antropologia reflexiva, isto é, uma boa forma de tratar os problemas teóricos e práticos da metodologia de investigação é percorrer os caminhos andados na interacção entre o investigador e os investigados. Nessas interacções encontraremos relações de poder, espaços de negociação dos papéis identitários, e nalguns casos emporedamento dos próprios estudados. Enquanto processo de socialização secundária, o trabalho de campo obriga a deslocar-nos do nosso meio sociocultural, contactar com as pessoas, integrar- nos, aprender a sua cultura através do estranhamento e o questionamento dos nossos preconceitos, para logo retornar e desenhar um espelho da nossa cultura. O trabalho de campo como processo metodológico obriga-nos a descrever, traduzir, explicar e interpretar a cultura e as relações sociais estudadas. A descrição etnográfica deve ser densa (Geertz, 1987) e microscópica (Velasco e Díaz de Rada, 1997: 48) para diferenciar os matizes de condutas, espaços e regras culturais e interpretar melhor os significados culturais. De aí a importância de utilizar o diário de campo como instrumento de investigação. Explicar significa desenhar tendências e regularidades da vida sociocultural que estudamos. Interpretar prende-se com uma visão da antropologia como uma das Humanidades ou das Artes pela sua forma de proceder e fazer. Interpretar é descobrir a ordem estrutural da sociedade, é captar os significados da realidade sociocultural para os diferentes agentes implicados nela. De acordo com Paul Rabinow (1992: 16) há duas formas de fazer trabalho de campo: a) Orientar o trabalho de acordo com uns objectivos a atingir e não desviar-se com outras coisas por muito interessantes que estas possam parecer. b) Adaptar-se ao objecto de estudo e ser mais flexível no processo de trabalho. A etnografia e o método comparativo A etnografia é a base da comparação entre culturas, e o seu objectivo é representar a cultura. Podemos afirmar que a etnografia é hoje uma “fusão de horizontes”, uma conversa intercultural sem imposições (Gadamer, 1978). A TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 114 etnografia é uma “dialógica” (Page, 1988), uma conversa com o outro para fazer crescer a consciência, não a unanimidade ou a verdade. A etnografia é uma “transvaloração”, uma maneira de aprender a ver-se uma vez que olhamos os outros, é voltar sobre nos próprios a mirada previamente informada pelo contacto com o outro. É tambémuma ponte através da qual a informação passa de uma cultura a outra, é um tipo de tradução (Todorov, 1988: 9-31). O trabalho de campo é um requisito metodológico que consiste em ir do distanciamento à proximidade, para logo regressar da proximidade ao distanciamento e construír uma interpretação e uma comparação entre nós e os outros. O trabalho de campo é um estado psicológico próximo do namoro às vezes (Buxó, 1995), mas também pode provocar angústias, ansiedades e cansaços fortemente humanos, como assim o reflecte o diário de campo de Malinowski (1989). Além mais o trabalho de campo pode ser pensado como um ritual de passagem da tribo antropológica, uma experiência auto-tranformadora, um ritual de iniciação e um dobre choque cultural: nativizar-se e re-nativizar-se (Peacock, 1989: 95). O trabalho de campo está condicionado pela posição que o antropólogo ocupa nos sistemas políticos, sociais e económicos (i.e.: centro, semiperiferia, periferia). Estas agendas, muitas vezes ocultas, devem ser estudadas e feitas conscientes para entender melhor a experiência de trabalho de campo. Isto ajudar-nos-á a entender melhor o “efeito rashomon” (Heider, 1988; Cardín, 1988) em antropologia, isto é, durante o nosso trabalho de campo não seleccionamos todas as vozes dos nativos e portanto escolhemos algumas dentro da complexidade com a qual nos debruçamos. Reflectir sobre as causas de por quê escutamos mais umas do que outras obriga-nos a adoptar uma posição de reflexão e autoconsciência. Para que uma etnografia seja boa deve ser necessariamente comparativa. Quatro são os planos que podemos estabelecer na comparação: 1. Comparação entre culturas. Ex.: nos – os outros. 2. Comparação temporal entre o passado e o presente, ou também entre dois tempos históricos. 3. Comparação entre duas ou mais teorias. 4. Comparação entre as ideias prévias e as ideias finais depois do trabalho de campo. O trabalho de campo e a entrada no terreno O antropólogo deve explicar aos estudados o que vai fazer, a duração do trabalho e a utilização da informação. Para isso precisa de autorizações e pensar nos limites éticos (privacidade, confidencialidade, anonimato, permissões para publicar, etc.), negociar e ganhar-se a confiança da gente. Devemos pensar que podem ser precisas cartas, referências, etc. Todas as instituições e terrenos têm “porteiros”. A entrada pode ser por cima ou por baixo; entrar por cima através de alguém conhecido, importante ou de confiança para os estudados pode ser positivo, negativo ou neutro para o nosso trabalho (ex.: Não é igual entrar através TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 115 de um presidente de Junta de Freguesia que através de um padre...). Tudo isto condiciona o terreno e os factores de produção de conhecimento mudam de acordo com os factores inter subjectivos, que são “objectivados” de alguma forma neste exercício reflexivo que deve integrar os relatórios de investigação ao pé da metodologia ou em relação com ela. Devemos ganhar-nos gradualmente a confiança dos estudados e ultrapassar a inibição com o tempo. Devemos também pensar no equilíbrio da amostra de informantes; uma técnica pode ser a da “bola de neve”, isto é, um informante vai-nos levando a outro; mas noutros casos a amostra de pessoas com as quais trabalhamos devem ser pensadas em função da sua representação face ao problema em estudo. Estes são alguns dos itens a considerar numa reflexão sobre a entrada num terreno: Por quê a escolha de: objecto de estudo, instituição-local de estágio, orientador? Como foi a entrada na instituição? (i.e.: paciência, ansiedade, negociação do acesso, relações e rituais com os porteiros, entrada por cima,...) Como ganhas-te a confiança das pessoas? Como foi a tua apresentação? Simpatias pelos estudados? Qual o teu “papel” ou papéis na instituição de acolhimento? Qual a tua imagem? Qual a percepção que tinham de ti inicialmente? E agora? Qual o teu local (zona) de residência? Condiciona as tuas observações do problema de investigação? De que maneira? Qual a tua situação económica? (i.e.: bolsa, estágio profissional, etc.) Qual a tua situação mental? Qual o grau de motivação para o trabalho? 5.4. TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA O antropólogo, além da observação participante pode e deve utilizar outras técnicas de investigação, com o objectivo de testar e comparar as informações que obtemos no terreno. O propósito final será sempre saturar a informação para garantir uma fiabilidade e legitimidade autorizada nas nossas análises. Com o objectivo de melhor testar, fundamentar e legitimar o conhecimento antropológico é ideal ter em conta a seguinte triangulação: OBSERVAÇÃO – participante Trabalho documental ENTREVISTAS TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 116 A triangulação anterior permite também chamar a atenção sobre a necessidade de fazer uma antropologia histórica que permita compreender melhor os problemas estudados através de uma abordagem diacrónica e processual. A continuação, apresentamos, de uma forma breve, algumas técnicas de investigação utilizadas em antropologia: 1. Notas de campo (caderno de notas ou de campo). As primeiras impressões são muito reveladoras do impacto que outras culturas experimentam em nós. Estas notas adquirem maior importância com o tempo. Estas notas devem incluir o lugar e o momento de observação, assim como o momento da escrita. As notas são um passo intermédio entre os dados e os relatórios etnográficos. 2. Diário de campo. É um registo diário da observação participante, no qual se relata a experiência do antropólogo em relação com os estudados, o que dizem, o que fazem e o que pensam (García Jorba, 2000). É uma forma de ordenação das notas e um instrumento de autodisciplina. Este é um instrumento de controlo da investigação, pois nele reflecte-se como se produz o conhecimento, orientando a subjectividade e o papel do investigador no terreno. A origem dele está na literatura de viagens. É uma informação relatada no momento em que acontece, que utiliza categorias de análise (ex.: conceitos...). Um diário de campo pode estar organizado seguindo critérios cronológicos ou temáticos. Nele integram-se: -Actividades do investigador. -Acontecimentos. -Conversas. -Observações. -Hipóteses. -Interpretações. É importante colocar a data, a pessoa, o local, a idade, os sentidos e os contextos ou cenários, para dar riqueza contextual e de significado. 3. Mapas, plantas e censos. Um mapa informa sobre a distribuição espacial de certo fenómeno, localiza uma vivenda ou edifício, descreve os princípios de organização espacial de uma comunidade, etc. Neste sentido também podemos elaborar mapas de percorridos de pessoas durante o dia, mapas mentais de valorização do espaço, etc. Os censos informam sobre dos membros das unidades familiares, estes censos podem ser elaborados a partir de arquivos locais, mas muitas vezes não há e é muito mais rápido utilizar informantes. 4. Genealogias. Informam sobre a distribuição familiar, as relações de parentesco, os vínculos familiares e comunitários, etc. No ano 1910 o antropólogo W. H. Rivers perguntava aos informantes: nome dos pais, nome dos filhos por ordem de idade, matrimónios e filhos deles, nomes dos pais da mãe e filhos dela. Há pessoas entre os mais idosos que são verdadeiros especialistas nesta problemática. Podem servir para prospectar os direitos de TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 117 propriedade, as obrigas mútuas, as regras de residência e matrimónio, a herança de ofícios, etc. 5. Histórias e relatos de vida. São relatos sobre a vida de uma pessoa, ainda que as primeiras incluem documentos que completem a oralidade biográfica. Esse relato informa não só sobre a vida dela, porém também sobre a vida da comunidade e os seus valores, opassado e o presente. Para verificar esta deveremos ter em atenção a coerência interna do relato, a informação proporcionada por outras pessoas, a observação participante e a avaliação externa através de documentos e outros. 6. Histórias de família. 7. Inquéritos por questionário. Com o objectivo de obter dados de grupos amplos e analisar logo estatisticamente as respostas. Pode ser de perguntas abertas ou fechadas. 8. Estudo de casos. Com o objectivo de interpretar acontecimentos exemplares de pequena escala, por exemplo a relação entre médico e paciente. 9. Fotografia e filmagem. São técnicas básicas da etnografia visual e audiovisual. São um instrumento de observação muito bom, porque permitem a outros reestudar o observado por nos. 10. Entrevistas com informantes. Há acontecimentos que só acontecem em determinados momentos do ano, ou são infrequentes. Outras vezes acontecem coisas importantes para a nossa investigação, ao mesmo tempo, mas em lugares diferentes. Também é muito importante para descobrir aspectos do passado e da memória colectiva. Esta técnica adopta a forma de uma conversa informal com o objectivo de obter informação. A qualidade da informação depende da comodidade que sinta ao falar o informante, do bom conhecimento que tenhamos do informante e do grau de confiança estabelecido. Devemos usar vários tipos de informantes como forma de contrastar e verificar a informação recolhida, mas também com o objectivo de obter diferentes pontos de vista que podem ou não ser coincidentes. 11. Grupos de discussão ou de debate. Trata-se de reunir a um pequeno grupo de pessoas para debater entre eles um assunto de interesse. 12. Técnicas de análise documental. Essencial para o trabalho em hemerotecas e arquivos. 13. Os orçamentos-tempo. Trata-se de pedir a uma ou várias pessoas que anotem ou nos contem as actividades, as horas e os espaços dessas actividades. É uma etnografia cronotemporal que permite estudar os movimentos no espaço e no tempo de uma pessoa, com o fim de compreender o seu modo de vida. 14. Grupos de debate. É uma técnica de investigação social baseada na realização de uma sessão de diálogo em grupo sobre um tema ou assunto ligado com o objecto de investigação. Os participantes expressam as suas opiniões e pontos de vista. Permite conhecer imaginários colectivos, valores e discursos que configuram atitudes e moldam comportamentos. O grupo costuma ser reduzido, entre 7 e 10 pessoas. Esta técnica permite observar as posições ideológicas com relação ao assunto proposto. Também permite avaliar tendências sociais e matizes particulares. A representatividade do TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 118 grupo obedece não a regras estatísticas e sim a regras sociais (ex.: equilíbrio entre grupos de género, idade, status, classe…). É fundamental que a convocatória do grupo de debate seja realizada por uma pessoa diferente ao moderador do grupo de debate, para que os participantes não estabeleçam algum vínculo prévio com ele. No relatório de investigação é preciso detalhar o processo de recrutamento dos membros do grupo de debate. O papel de moderador deve ser o de um facilitador, um apresentador, um animador do debate sem juízos de valor, e expressão da sua opinião (Ibáñez, 1979; Ortí, 1986; Callejo, 2001). 15. DAFO (SWOT). É uma técnica que permite avaliar as debilidades, as ameaças, forças e oportunidades de uma organização, instituição, situação de um grupo humano, desenvolvimento e avaliação de um projecto, etc. A DAFO pode ser aplicada a um grupo de trabalho ou de debate, para melhor perceber o ponto de vista dos actores sociais. “Concentre-se nos pontos fortes, reconheça as fraquezas, agarre as oportunidades e proteja-se contra as ameaças” (Suntzu, 500 anos A C., militar chinês). Fraquezas Ameaças Forças Oportunidades -São elementos que dependem de nós, mas não funcionam bem ou como desejamos. -Circunstâncias que podem afectar negativamente um projecto. -São fortalezas próprias, que dependem de nós. -Se correm bem, facilitam o trabalho. -São opções, portas abertas, que podem levar a um melhor desempenho. 16. Etnografia através de correio electrónico (Marcus e Mascarenhas, 2005). É uma forma de fazer etnografia através das novas tecnologias e a obtenção de informação por meio do correio electrónico e a comunicação com informantes. Podemos denominar a isto ciber-etnografia, etnografia da rede ou etnografia na rede. 5.5. A OBSERVAÇÃO ETNOGRÁFICA “A etnografia é um desconhecimento atento” (Penélope Harvey, Universidade de Manchester, 10-09-2008, XI Congresso de Antropologia da FAAEE, Donostia, Euskadi). A observação etnográfica é uma técnica de investigação basilar em antropologia, e também é uma atitude de investigação do antropólogo no terreno. Não é propriamente uma metodologia qualitativa ou quantitativa, ela pode integrar as duas vertentes. O seu princípio teórico-metodológico é o relativismo cultural. Através dela conhecemos melhor os humanos para teorizar sobre eles, é algo que a antropóloga brasileira Mariza Peirano (2006) denomina de “a teoria vivida”. De acordo com Susan Tax de Freeman (1991), a observação e a autoconsciência dos preconceitos do antropólogo são os pontos fortes do trabalho TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 119 do antropólogo e aquilo que valida o nosso trabalho. A observação, diz-nos Tax de Freeman (1991: 130-135), permite compreender uma cultura na intimidade dos nativos, convivendo com eles e tendo em conta a condição familiar do antropólogo, a sua residência, a idade, o sexo, a personalidade, a sua relação com a estrutura da cultura local, a sua biografia e o distanciamento para uma análise comparativa. Esta antropóloga (Tax de Freeman, 1991: 130) também afirma que a compreensão do antropólogo e a sua observação são sempre incompletas, e nenhuma cultura é completamente compreendida, pelo que uns antropólogos precisam de outros. A observação etnográfica pode ser de dois tipos: não participante ou externa e participante ou interna (Roigé i Ventura et al., 1999). Na observação externa o observador não faz parte das acções que ocorrem no cenário. Desta forma os factos observados são mais fáceis de objectivar, devido à distância mantida. A desvantagem é o pouco controlo da informação e as limitações no seu acesso. Na observação participante ou interna o observador partilha a vida da comunidade, instituição, organização ou grupo humano estudado. Ele participa nos seus quotidianos. O antropólogo tem que assumir um papel no terreno e apreender as normas, valorizações e percepções dos indivíduos, assim como os significados dos comportamentos observados. O risco é inibir os estudados com a nossa presença, sobre a qual deverá haver sempre uma reflexão, isto é, como ela condiciona a forma de reagir dos estudados. Como afirmamos, a observação participante implica participar na vida quotidiana do grupo humano a estudar, para compreender as lógicas locais e o significado sociocultural das suas práticas. Em antropologia observamos com teorias, categorias, ideias e hipóteses sobre o problema estudado. As vantagens desta técnica são a riqueza e profundidade de informação sociocultural produzida no seu próprio contexto. A fiabilidade dos dados é garantida com uma boa observação, que testará o que as pessoas dizem e pensam, ao comparar isto com o que elas fazem. A observação participante depende da formação e experiência do investigador, mas também do seu rigor e empenho. O antropólogo deve ser aceite para poder interpretar a visão desde dentro do grupo, deve também conseguir um trato normal e quotidiano, algo que muitas vezes só se consegue com muito tempo, confiança e redes sociais de informantes. O antropólogo é catalogado geralmente como um estranho ou intruso (i.e. maneiras de vestir diferentes), pelo qual o receio dos locais pode sergrande no início. Outras vezes, devido à nossa juventude podemos experimentar proteccionismo e paternalismo por parte das pessoas que estudamos. Os trabalhos de campo clássicos desenvolvem um tempo de estadia de um ano como mínimo (descrição do ciclo anual ritual, vital, agrícola, urbano, etc.). A investigação prolongada produz dados mais ricos e fiáveis, mas a antropologia aplicada já tem em conta técnicas de “valoração rápida” que inclui menor tempo de estadia no terreno. A grande vantagem da observação participante é que cria um texto no seu contexto, na sua espontaneidade. Outras vezes a nossa presença corre o risco de TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 120 vulnerar a espontaneidade, de que digam aquilo que queremos ouvir. A observação participante permite não forçar os dados, permite entender melhor a cultura através da convivência consciente, facilita portanto o aceso a informação restringida. O investigador é o principal instrumento de recolha, ele mira e observa com categorias prévias (teorias académicas, conceitos, preconceitos, etc.) mas também com imaginação e criatividade. É também um exercício de empatia, de pôr-se no lugar do outro para perceber melhor o que se diz (e o que não se diz), o que se faz e o que se pensa. Nesta linha é preciso chamar o linguista Kenneth Pike (1971), quem distinguiu em 1954 entre o ponto de vista “etic”, desde sistema concreto do analista ou investigador, do ponto de vista “emic”, desde o sistema do grupo estudado. O ponto de vista “emic” é aquele que representa o ponto de vista do nativo, representa os pensamentos de um povo nos seus próprios termos e conceitos. E se bem não há um único modelo de realizar a observação participante, de acordo com Robert Burgess (1997: 21) três são os modelos de observação participante: a) O modelo “tornar-se nativo”, isto é, quando o investigador aprende a comportar-se como um “nativo” na situação em estudo. b) O modelo “agente oculto”, no qual o investigador tenta assumir um comportamento desapercebido e envolve frequentemente uma participação dissimulada. c) O modelo “advogado”, que é uma situação na qual os investigadores intervêm na ajuda e melhora da posição daqueles indivíduos que são estudados. Um problema da observação apresenta-se quando aplicamos esta no nosso mesmo meio sociocultural. Neste caso o objectivo será tornar estranho o que nos é familiar, assim como quando trabalhamos sobre outra cultura, subcultura ou grupo social temos que tornar familiar o estranho. Na actualidade, a antropologia visual permite estudar e reestudar o texto e o contexto de estudo, portanto é uma ferramenta fundamental da observação, mas também é uma forma de relatar e interpretar o terreno e o problema de investigação. Outros tipos de observação são os seguintes (Roigé i Ventura et al., 1999): a) Observação panorâmica (global): Trata de identificar os problemas e características da vida de um grupo social. b) Observação selectiva (focalizada): Implica delimitar um âmbito específico, tendo em vista conhecê-lo com maior profundidade. c) Observação transversal: Por exemplo a observação de organizações em toda a sua complexidade. d) Observação longitudinal: Seguir uma pessoa ou grupo durante um período de tempo determinado. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 121 E se até o momento nos temos referido à observação etnográfica no seu sentido mais metodológico resta-nos falar agora dos instrumentos e procedimentos de recolha de informações etnográficas fruto da observação participante: O DIÁRIO DE CAMPO (Jociles Rubio e Devillard, 2001) Não existe o diário de campo perfeito. É em função do objecto e dos objectivos de estudo que deve fazer-se uma valoração apropriada dos registos. Há problemas e entraves comuns a todos os investigadores: 2. Registo superficial e não detalhado: -Quando faltam muitas perguntas chave sobre as situações, acções e interacções observadas. -O diário de campo deve responder às perguntas: Quem? Como? Quando? Donde? -O diário de campo é uma recordação. 3. Carácter interpretativo dos registos Ter consciência ou não do ponto de vista valorativo. Observar → Selecção que deve ser consciente e crítica. Falta de estranhamento face ao observado. Preconceitos + Familiaridade são inevitáveis às vezes. Problema: Não questionamento dos nossos preconceitos e aprioris. Problema: Ter pontos de vista parciais de partes do objecto. Exemplo: Tomar como muito importantes a palavra de só uns poucos informantes e observar o resto desde o seu ponto de vista. Exemplo: Seguir classificações e definições oficiais. Reflexão: Ser conscientes dos pontos de vista do trabalho. Problema: Má definição do objecto de estudo. Problema: Registo de dados sem citar a fonte de informação ou a situação de produção dela. Como valorar os dados obtidos? Problema: Utilização de categorias “emic” e “etic”. Especificar se é “emic” ou “etic”. Especificar se a diz uma pessoa, todas, um teórico... e em que contexto? 4. Destacar os dados verbais (discurso) sobre os dados produto da observação (descrição) pode ser um problema. É muito importante a observação (o que fazem), tanto como o que dizem ou o que pensam. 5. Condições nas quais se realiza a observação e o diário: Data Tempo de observação Momento do dia Lugar TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 122 Tiram-se notas Gravou-se Registo de memória Qual o tempo entre a observação e o registo no diário de campo Factores pessoais do investigador: género, idade, preparação teórica, experiência de campo, etc. EXERCÍCIO DE DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA 1. Observar um fenómeno social concreto com todos os sentidos. 2. Descrever este por escrito: ordenar o observado (dia, hora, lugar, duração, posição do observador, desenhos,...). 3. Distinguir: -Informação da observação. -Informação da intuição e da imaginação. -Informação a priori. -Informação tirada das perguntas aos actores sociais. 4. Evitar as suposições e objectivar as nossas miradas. 5. Descrever a acção e o comportamento de todas as pessoas protagonistas, o familiar e o estranho, pois podem dar-nos detalhes significativos. 6. Descrever a posição do observador: interior/exterior. 7. Precisão na descrição. 8. Ordenar a descrição, por exemplo cronologicamente. Ter em conta o espaço do cenário, os actores, as acções e as regularidades. 9. Respeito pela intimidade dos descritos (ex.: técnica dos nomes fictícios) e pelo bom uso da informação. 10. Descrever detalhadamente e evitar adjectivos ambíguos e juízos de valor. Ex.: velho / homem entre 60 e 70 anos. GUIA PARA A OBSERVAÇÃO ETNOGRÁFICA SISTEMÁTICA Permite estruturar melhor a observação. Define linhas gerais de observação. Ideal para o trabalho em equipa porque permite a comparação. Nemotécnica do que observar. 1. O espaço geral: medidas aproximadas, forma, estruturam, distribuição geral. 2. Os objectos: descrição, localização, uso. 3. Os actores: descrição (género, idade, vestiário), localização e movimento pelo espaço durante a acção. 4. A acção: duração, cronologia, estrutura (fases) da acção, actores que participam, acções, objectos manipulados, movimentos no espaço, conversas e palavras, interacções em cada fase da acção. MEMÓRIA FINAL DA OBSERVAÇÃO 1. APRESENTAÇÃO: TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 123 -Definir o tema estudado. -Justificar a escolha e o seu interesse. -Delimitar a unidade de observação e justificar a escolha dela. -Hipóteses iniciais (se houve). 2. METODOLOGIA: -Explicar a metodologia. -Explicar as condições de observação, problemas e soluções. -Outras técnicas. 3. RESULTADOS: -Apresentação geral do fenómeno estudado (espaço, estrutura da acção, tipos de actores e comportamentos). -Análise einterpretação da realidade apresentada (variáveis, factores, símbolos...). -Verificação das hipóteses iniciais (se houve). 4. CONCLUSÕES 5. APÊNDICE: -Primeiras observações. -Observações sistemáticas. -Bibliografia. 5.6. A ENTREVISTA ORAL “… An interview is a behavioral rather than a linguistic even” (Mishler, 1986: 10). Esta é uma técnica de investigação, é um procedimento operativo para obter uma informação através do diálogo intersubjectivo com uma pessoa. Baixo a forma de uma conversa informal, orientamos ao nosso entrevistado face aos aspectos a conhecer ou deixamos que este se expresse abertamente. Esta técnica deve ser complementada por outras como a observação participante e o estudo de documentação histórica, pois as pessoas dizem coisas, ocultam dados, pensam e também fazem coisas. A entrevista não é um inquérito de perguntas fechadas, senão de perguntas abertas, é portanto um diálogo no qual a iniciativa é do pesquisador. O mais importante numa situação de entrevista é ganhar-se a confiança do nosso interlocutor, para o qual é relevante fazer uma boa apresentação do investigador ou investigadora. Durante a mesma devemos diminuir a reactividade por causa do método e promover a espontaneidade e sinceridade do entrevistado. As entrevistas podem ser directivas, semi-directivas ou abertas (informais), em função do tema, do entrevistado e do contexto de situação da entrevista. É muito importante diferenciar uma entrevista de um inquérito por questionário. Neste último a estruturação e estandardização das respostas são maiores e mais fechadas, com o objectivo de cruzar e comparar variáveis. A entrevista TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 124 antropológica é diferente da jornalística, da clínica e outras, pois os entrevistados reagem de forma diferente, os fins são diferentes e os procedimentos também. Procedimento: 1. Elaboração de um questionário-guia: -As perguntas dependerão dos objectivos da entrevista, do nível de informação do entrevistado (o que interessa é a sua visão dos fenómenos estudados, não só a quantidade de informação), e do grau de conhecimento e confiança gerado entre entrevistador e entrevistado. -As perguntas não devem condicionar uma resposta a priori predeterminada pelo investigador. As perguntas devem ser abertas (não fechadas: sim ou não), provocando respostas livres, opiniões, matizados..., claras e não confusas. -A arrumação das perguntas seguirá a ordem seguinte: perguntas gerais (idade, género, breve história de vida...), até as específicas e especiais. A representação gráfica das mesmas será a de um funil. -As primeiras perguntas devem interessar-se pela pessoa, mostrando o nosso aprecio por ela e o nosso agradecimento pelo seu tempo –estou a pensar em que não vamos a pagar essa entrevista-. -As perguntas de tom político podem implicar um certo medo ou desconfiança por parte do informante. -Devemos adaptar a realidade ao questionário e não ao contrário. 2. Marcação da entrevista. -Factores do investigador: formação, experiência, personalidade, habilidade, motivações, percepções, simpatia, empatia, língua, maneira de vestir... -Factores do entrevistado: preconceito face ao investigador, comportamento, valores, crenças, informação (quantidade, qualidade), o seu tempo livre... -É importante valorar a vida da gente à qual entrevistamos, e mostrar expressões de aprecio. -O objectivo final é criar um clima de confiança, para isso teremos que explicar os motivos da nossa presença e da realização da entrevista. -Pode ser bom combinar a entrevista uns dias antes da sua realização, para que a memória traga as lembranças ao presente, para que a mente organize melhor a informação. Outras vezes é melhor a realização imediata, sempre tentando respeitar à pessoa. -Em toda apresentação adoptamos um papel: estudante (risco de paternalismo), professor, vizinho, amigo, turista,... -É interessante apresentar-se através de um conhecido do informante, pois isso garante a nossa boa intenção. -Garantir o anonimato e a confidencialidade são princípios éticos fundamentais, se assim nos é pedido, ou se não somos autorizados a desvelar a identidade do entrevistado. 3. Realização da entrevista: -Tentar utilizar os mesmo idioma que o entrevistado, ou utilizar intérprete. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 125 -Fazer uma boa apresentação do “eu”, dos métodos de trabalho e das intenções sobre a utilização da informação. -Personalizar as questões (ex.: o que é que você pensa sobre...?) -Criar um ambiente descontraído. -Respeitar as pautas culturais do outro (ex.: comensalidade como ritual social de interacção,...). -Colocar as questões em positivo, pois motiva uma resposta mais ampla e extensa. -Os silêncios também são informação, os esquecimentos e as negativas de reposta. Todo tem um sentido e um significado a interpretar. -Trabalhar em equipa pode ser positivo. Um homem e uma mulher representam um ideal nalguns contextos culturais (equilíbrio entre os géneros). Além disso a cumplicidade inter-género e a construção de um espaço de género pode gerar maior confiança e sinceridade no discurso do entrevistado. -Realizar uma 2ª e uma 3ª entrevista ao mesmo informante, ao longo do tempo, permite comprovar a fiabilidade e validação dos seus discursos, mas também aprofundar questões que ficaram na superfície. O objectivo fundamental é conhecer o ponto de vista do outro, não exibir as nossas opiniões sobre os assuntos tratados. -A gravação em cassete ou em vídeo da entrevista pode inibir ou não ao informante. É um risco a considerar. Também pode acontecer se escrevemos anotações entretanto ele fala. Cada pessoa e situação têm a sua especificidade. -Tirar notas durante a realização tem a vantagem de poder voltar a elas, de voltar a perguntar com maior profundidade. -Se a entrevista é gravada, no início da cassete virgem devemos deixar um espaço para inserir e registar os dados pessoais do entrevistado e do entrevistador, junto com a data e o local da entrevista. -Sem esses meios técnicos terá que ser a nossa memória a que grave os resultados da entrevista. -Evitar manifestar as nossas opiniões pessoais pois pode influenciar o entrevistado. -Deixar falar à vontade ao entrevistado. 4. Transcrição da entrevista: -Se a entrevista é gravada (em áudio ou audiovisualmente), esta exige muito tempo e capacidade para escutar. A transcrição de uma entrevista pode ser parcial ou total. A ficha da transcrição deve contemplar no início da transcrição as seguintes informações: N.º de registo. Dados pessoais do entrevistador (nome, idade, contacto). Dados pessoais do entrevistado ou entrevistados. (nome, idade, género, naturalidade, local de residência, estado civil, profissão). Data da entrevista. Local da entrevista. Descrição do local da entrevista. Estrutura temática da conversa Palavras-chave. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 126 -A transcrição deve respeitar a língua do informante, os seus dialectalismos... que também dão informação cultural. -Convêm assinalar os “passos” ou “minutos” que sinala o marca-passos do gravador (ex.: cada 20), pois assim podermos voltar a localizar na fita gravada qualquer frase, palavra, ou parágrafo. -A transcrição literal e total implica uma grande quantidade de informação etnográfica que pode ser consultado em um futuro por nos mesmos ou por outras pessoas que acedam ao nosso arquivo. A transcrição literal significa anotar as risas, os silêncios, as lágrimas, os gestos, dialectalismos, etc. -Simbologia: P (pergunta), R (resposta), “....” (transcrição literal), `.... ´ (transcrição aproximada) <Manoel: ...........> (intervenção de uma terceira pessoa, silêncios, linguagem não verbal). -Se a entrevista não for gravada, e só anotada, devemos arrumar o discurso em um caderno de campo, no qual anotemos tambémas observações complementares do contexto de interacção, que podem ser importantes para compreender melhor o sentido do falado. FICHA DO INFORMANTE E DA ENTREVISTA ENTREVISTADO -Nome completo: -Alcunha: -Nome da casa: -Morada completa: -Telefone: -Data de nascimento: Idade: -Profissão: -Local de residência: -Estado civil: -Justificação da escolha do informante: TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 127 ENTREVISTA -Número de registo: -Data da entrevista: -Lugar e local da entrevista: -Condições da entrevista: -Hora da entrevista: -Duração: -Tipo de registo ou gravação: -Tipo de transcrição: -Palavras ou temas chave: -Breve resume dos conteúdos: ENTREVISTADOR -Nome: -Idade: -Contacto: Em síntese, as regras de uma boa entrevista são (Robson, 1993: 232): a) Ouvir mais do que falar. b) Colocar as questões de forma clara e compreensível para o entrevistado. c) Evitar fazer perguntas que condicionem a resposta do entrevistado na direcção desejada pelo entrevistador. d) Mostrar o nosso apreço pelo diálogo. 5.7. A HISTÓRIA DE VIDA A história de vida é uma técnica de investigação das ciências humanas e sociais que tem como objectivo conhecer a biografia de uma pessoa ou grupo de pessoas (Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut, 1995; Vieira, 1999; Lechner, 2009). Através dela recriamos uma vida num tom de intimidade e confiança (Measor e Sikes, 2004). É um tipo de investigação interactiva que costuma exigir de nós reciprocidade, isto é, contar-nos também ao entrevistado. Nesta questão o investigador deve adoptar um ponto intermédio entre a auto-revelação ou o estriptease inicial e a posição neutral de não mostrar opiniões e atitudes pessoais. Nela o entrevistador tem-se que tornar de estranho em amigo. No seu aspecto mais técnico trata-se de escolher a pessoa, negociar com ela, entrevistar a pessoa numa ou em várias sessões, gravando as entrevistas se possível, transcrever as entrevistas e organizar a narrativa de vida da pessoa. Finalmente, TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 128 desde uma perspectiva colaborativa é positivo retornar os relatos aos entrevistados para validar o relatado. As orientações das histórias de vida podem ser duas (Bertaux, 2005): a) Psicobiográfica: A pessoa conta-se numa trama de acontecimentos sociais. O objectivo é estudar a personalidade e papel do indivíduo emergindo no social. b) Etnobiográfica: Orientada mais para os acontecimentos sociais. É uma biografia do colectivo. O narrador é um espelho do seu meio e do seu tempo. Os tipos de histórias de vida são os seguintes (Bertaux, 2005; Pujadas, 1992): a) Histórias de vida únicas: Psicobiográficas. b) Histórias de vida acumuladas: -Cruzadas: Polifonia. Cada pessoa conta a sua vida e a dos restantes biografados (ex.: história de família). -Paralelas: Várias biografias sobre um mesmo fenómeno ou época. Um guião tipo utilizado geralmente na confecção de histórias de vida é o seguinte: Formulário 1: -Nome. -Endereço. -Data e local de nascimento. -Estado civil. -Ocupação. -Nivel educacional. -Número de flhos. -Informação sobre migrações. Formulário 2: -Casas de familiares na sua vizinhança? -Listagem de todos os seus parentes? -Outras pessoas que sejam como se fossem da sua família? Formulário 3: -Pais, filhos, tios, mulher, primos... segundo o Ego. -Nome oficial e alcunha, endereço, idade, profissão, nível educacional, história residencial, estado civil, filhos, experiência de migração de cada elemento citado. -“Os limites da genealogia são os limites do conhecimento que Ego tem do seu universo familiar”. Formulário 4: História de nascimentos -Quantas crianças teve? -Como se chamam? -Quando nasceram? -Quem foram os padrinhos? TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 129 Formuláro 5: Residência e co-residência -Locais em que o Ego se lembra de ter vivido. -Datas das mudanças. -Indivíduos que partilhavam a casa com Ego. Formulário 6: História migracional -Mudanças temporárias ou não de residência. -Razões da migração. -Destinos. Formulário 7: Educação -Habilidade para ler e escrever. -Anos de escolaridade. -Razão para o abandono da escola. -Valor dado à educação. -Formas de escolaridade não obrigatória. Os problemas levantados pela realização de histórias de vida são os seguintes: a) Autodescoberta do eu. b) Revelação a outros e partilha com eles da sua história e da sua vida. c) Forma de aprendizagem social entre gerações. d) Produção de conhecimento vivencial, experiencial, subjectiva. e) Viabilidade e fiabilidade das informações? Podemos generalizar a partir de uma história de vida? f) Com que direito nos introduzimos na vida das pessoas? (questão ética). Problema de negociação e contrato inicial sobre o uso da história de vida. g) Como interpretar e analisar a história de vida e os seus conteúdos? h) Quem é o autor? O relator, o investigador, os dois? 5.8. O ANTROPÓLOGO EM CONTEXTOS URBANOS A identidade do antropólogo na cidade é diferente que no espaço rural. Na cidade a nossa presença pode ser ininteligível, e podemos refugiar-nos no anonimato, podemos observar sem explicar quem somos e que fazemos ali. Uma vertente muito importante é o estudo do espaço público. O espaço tem umas pautas estabelecidas (ex.: saúdo, tertúlia, casamento, funeral, etc.), nele insere-se uma sintaxe pessoal e grupal que temos que descodificar para entender a identidade urbana. O objectivo do trabalho de campo é a integração no grupo humano estudado, isso significa reduzir o anonimato e criar redes sociais, participar em associações, grupos, etc. Parte do nosso trabalho é o controlo da rede, se num primeiro momento as nossas interacções seguem um princípio de naturalidade e espontaneidade, as carências na nossa rede devem ser preenchidas com o trabalho com informantes de diversas zonas, classes sociais e minorias. Portanto a rede tem que ser representativa do grupo humano que estamos a estudar. Devemos prestar atenção aos dramas sociais, pois são momentos extraordinários para penetrar na opaca vida quotidiana (ex.: festas, cerimónias TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 130 públicas, religiosas, conferências, exposições, feiras, desportos, greves, manifestações, etc.) Também é muito importante o estudo de documentação: os jornais locais são “informação quente”, mas também a rádio, a literatura localista (ex.: programas de festas), os arquivos municipais (ex.: multas, actas municipais, ordens, etc.), os planos gerais de ordenação urbana, documentação estatística, histórica, etc. É importante também desenhar os mapas mentais e de uso da cidade, isso implica realizar uma etnografia de rua. Alguns dos critérios que podemos utilizar para classificar os espaços públicos são: -Ver e ser visto. -Não ver e ser visto. -Ver e que não nos vejam. Para etnografiar cidades o salto importante é o trabalho em equipa, pois desta maneira a riqueza de dados permitirá uma visão holística e comparativa. 5.9. A ÉTICA DO TRABALHO DE CAMPO Alguns princípios éticos de carácter geral são os seguintes: 1. Respeito pela não falsificação dos dados observados. 2. Respeito pelo uso anónimo da informação se assim nos foi pedido pelos informantes. 3. Respeitar a privacidade dos informantes. 4. Pensar em que informação pode ser publicada e qual não. Trabalhamos com pessoas e não com átomos. 5. Explicar sempre como obtivemos os dados. 6. Pensar em vários aspectos: patrocínio, investigadores, objecto de investigação, cidadãos. Todos eles têm direito de aceso ao conhecimento. 7. Intervir ou não na ajuda das decisões da comunidade (antropologia aplicada). (-ASA (ed.)(1987): Ethical Guidelines for Good Practice. London: Association of Social Anthropologist of the Commonwealth. )(AAA, ed., s/d.: Code of Ethics of the American Anthropological Association, em www.ameranthassn.org/committees/ethics/ethcode.htm) 5.10. A ESCRITA ANTROPOLÓGICA Ainda que hoje a antropologia visual tem cada vez maior peso e importância na apresentação dos resultados das suas investigações, o antropólogo ainda escreve para um leitor sobre as culturas que estuda. Nesta escrita é importante praticar uma “etnografia reflexiva”, que reflicta sobre o papel dos informantes chave, dos companheiros ou companheiros do antropólogo, das famílias de acolhimento do antropólogo, das amizades no terreno e do local de habitação. Esta reflexão permitirá ao leitor compreender melhor a produção do texto etnográfico. Exercício 1: Análise de 3 tipos de escrita antropológica. Exercício 2: O ofício de antropólogo: crítica da representação antropológica TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 131 Exercício 3: Duas maneiras de fazer antropologia Exercício 4: Prática de observação participante. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 132 CRÍTICA DA REPRESENTAÇÃO ANTROPOLÓGICA 2ª METADE DO SÉCULO XIX 1900-1920 1920-1960 Etnografia histórico-documentalista (com excepçao de L. H. Morgan, que trabalhou algum tempo com os índios séneca –iroqueses-). Paradigma evolucionista 1899: Viagem antropológica ao Estreito de Torres. Franz Boas promove o trabalho de campo. São trabalhadores de campo provenientes das Ciências Naturais. Paradigmas: evolucionismo, difusionismo, particularismo histórico. Malinowski, Radcliffe-Brown, Margaret Mead. Trabalho de campo com observação participante intensiva (mínimo 1 ano), com aprendizagem da língua nativa. Escrita: realismo etnográfico: -Presente etnográfico. -Representam a realidade tal qual ela é. -Monológico (o antropólogo fala pelo nativo). -Metonímica. -Sincrónica (sem indagação histórica). ATÉ 1960 CLIFFORD GEERTZ JAMES CLIFFORD DENNIS TEDLOCK PÓS- POSTMODERNISTAS Estudo do “outro”. Estudo das representações do “outro”. Estudo das interpretações que os antropólogos fazem dos outros. Antropologia do conhecimento antropológico. -Antropologia dialógica -Paradigma conversacional -O diálogo como representação etnográfica: melhor reflexo das relações observador-observados; maior proximidade da realidade do trabalho de campo. -O antropólogo fala com os nativos. -Os nativos falam por si próprios (ex.: histórias de vida em bruto). -Os nativos não confirmam estritamente os pontos de vista do antropólogo. -A observação como escrita. -A observação como conversa: ouvido, escuta, boca e fala face ao olho, observação, mão e escrita. -Spencer, J., 1989: “Anthropology as kind of Writing”, em Man, vol. 24. A validação da etnografia não está só nas questões literárias e de estilo, porém na mesma validação do trabalho de campo, núcleo da autoridade antropológica. O problema é como valida-lo. (*)-GEERTZ, C. (1999): “Dos visiones de la antropología”, em Revista de Occidente n.º 222, pp. 136-151. (*)Manter a tradição de investigação, re-elabora-la e adoptar um enfoque dialógico, multicentrado e pluralista. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 133 DUAS MANEIRAS DE FAZER ANTROPOLOGIA -GEERTZ, C. (1999): “Dos visiones de la antropología”, em Revista de Occidente n.º 222, pp. 136-151. PIERRE CLASTRES JAMES CLIFFORD Discípulo de C. Lévi-Strauss. Representa a velha maneira de fazer etnografia. Trabalhou entre os “guayakis” (“aches”, caçadores e recolectores do Paraguai), um pequeno grupo de aproximadamente 100 pessoas. Descreve os ciclos vitais da comunidade. Desenha com lápis a vida quotidiana. Realiza as clássicas fotografias de “posse” para a máquina. Estilo literário simples e concreto (o que aconteceu foi isto, e isto...), só com uma nota de rodapé, escrito em 1ª pessoa. “Peregrino romântico” que pretende demonstrar “ter estado ali”. Representa o antropólogo como herói, ortodoxo e directo, empirista, que realiza um estudo insular local. Discípulo de Clifford Geertz, formado como historiador das ideias em Harvard, tem hoje 54 anos, e trabalha na Universidade da Califórnia (Santa Cruz). O seu objecto de estudo não é uma comunidade concreta, senão o que ele chama “zonas de contacto” (conceito tomado de M.ª L. Pratt). Não é já um conjunto de nativos em aldeias, tradições culturais e diferenças, porém é já gente que viaja, são os ambientes híbridos e as culturas de viagem. Estilo literário: prosa abstracta e académica, mais experimental, com muitas notas de rodapé para “criar ambiente”. Faz “collages”, não só ele tira fotografias (instantâneas e não de posse), senão que toma ilustrações de catálogos e fotografias feitas por outras pessoas, para dar pluriperspectivismo. Ao igual que Clastres faz trabalho de campo antropológico, mas não parte ao encontro de um “outro” distante, senão que esse “outro” aparece nas “zonas de contacto”. Os dois estão contra os impérios e o neoliberalismo. Relativiza o trabalho de campo tradicional, foge do paroquialismo, é pós-colonial. Representa o antropólogo não imersivo, o estudo global, a distância e a experimentação, a incertidume e a desconstrução das hegemonias ocidentais face aos “outros”. TEMA 5: METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA 134 BIBLIOGRAFIA -AAA (ed.)(s/d): Code of Ethics of the American Anthropological Association, em www.ameranthassn.org/committees/ethics/ethcode.htm -AGUIRRE BAZTAN, A (ed.) (1995): Etnografía. Metodología cualitativa en la investigación sociocultural. Barcelona: Boixareu. -ALVAREZ ROLDÁN, A (1994): “La invención del método etnográfico. Reflexiones sobre el trabajo de campo de Malinowski en Melanesia”, em Antropologia n.º 7, pp. 83-100. -ASA (ed.)(1987): Ethical Guidelines for Good Practice. London: Association of Social Anthropologist of the Commonwealth. -ATKINSON, P. e HAMMERSLEY, M. (1994, or. 1983): Etnografía. Métodos de investigación. 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Metáfora e metonímia. 6.8.A Polisemia 6.9. O Ciberespaço. 6.10. A comunicação não verbal. 6.11. A construção social do idioma. 6.12. A língua como património cultural. Bibliografia Sítios em Internet 6.1. QUE É A ANTROPOLOGIA LINGUÍSTICA? A antropologia linguística é um ramo da antropologia que estuda a linguagem no seu contexto sociocultural. O que faz em concreto é: Reconstruir línguas antigas por meio da comparação. Estudar os traços universais da linguagem. Pesquisar na relação entre identidade e língua. Investigar o uso social da fala e a sua ligação com as diferenças sociais. A linguagem é o maior e mais importante código simbólico humano, que permite a abstracção (Burke, 1984) e a comunicação entre os seres humanos. A língua é um complexo sistema de regras através do qual os sons apresentam-se associados com significados (Saussure, 1991). → Mensagem → → EMISOR (SIGNOS) CÓDIGO DE EMISSÃO CÓDIGO DE DESCODI FICAÇÃO RECEPTOR TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 139 A diferença dos animais, que tem códigos de comunicação para entender-se, os humanos utiliza símbolos (Burke, 1984) e criamos signos linguísticos arbitrários. Essa criação é feita pela mente e representa algo arbitrário em cada língua. Os animais só comunicam o presente, o aqui e o agora. Os seres humanos comunicam o passado, o presente e o futuro. Os sistemas de comunicação animais não conseguem transmitir informação de geração em geração, só respondem a estímulos externos (ex.: cacatua). Outra diferença é que os humanos transmitimos conhecimentos a longas distâncias espaço-temporais. Sobre este problema diz-nos o antropólogo Gregory Bateson (1972) que os animais utilizam sinais e signos, mas os humanos utilizamos símbolos complexos e signos arbitrários. O que dizem os grupos humanos quando lhes tiram uma fotografia Espanhóis Alemães Franceses Portugueses Norte- americanos “Patata” “Chiiiiis” “Ouistiti” -“Olha o passarinho” -“Ba-na-na” - “Cheese” Como diferentes humanos dizem: “Eu quero-te”: Árabe Chino mandarín Danês Holandês Inglês -Ana behebak (para o homem) -Ana behebik (para a mulher) -Wo ie ni Jeg elsker dig Ik hou van je I love you Francês Alemão Grego Havaiano Irlandês -Je t´adore -Je t´aime -Ich liebe dich -S´ayapo (“s´agapo”) -Aloha I´a aou oe -Taim i´ngra leat Japonês Coreano Filipino (tagalo) Ruso Sueco -Kimi o ai shiteru -Tangsinul sarang ha yo -Mahal kita -Ya tyebya Iyublyu -Jag aelskar dig A antropologia linguística descobre as categorias com as quais diferentes culturas classificam a sua experiência: Português Ibos (Nigéria) - braço - mão - cotovelo - aka (para braço, mão e cotovelo) Norte de Portugal litoral Norte de Portugal interior Beiras portuguesas Anho (mais antigo) cordeiro Borrego (mais recente) TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 140 Curva: prostituta em idioma russo e em caló. “Aquela mulher dá umas curvas” (em português) Inglês Português Espanhol Mouse O rato / A rata El ratón / la rata O interesse da antropologia pela linguística está em que: a) A língua é uma expressão cultural e um traço identitário. b) A língua é um instrumento do trabalho de campo para conhecer ao outro. c) A antropologia linguística é uma subdisciplina antropológica. Uma breve história da linguística seria a seguinte: Pre- estrutural Desde os gregos ate o s. XIX. Evolucionismo antropológico. Prioridade da escrita (mais precisão) sobre a fala. Crença de que a língua alcança uma máxima perfeição num momento histórico concreto (ex.: Cervantes, Homero, etc.). A gramática ensina a falar e a escrever. As categorias de pensamento lógico são as da linguagem (Grécia). O método comparativo é essencial, e também as origens da linguagem. Estrutural Inaugurada por Franz Boas nos EUA com os seus estudos sobre as línguas ameríndias, e por Ferdinand Saussure na Europa. A palavra falada convertera-se em objecto mais importante de estudo. O objecto da linguística será a língua (regras, sistema de signos aprendido, código), e não a fala (comportamento social e acto concreto de descodificar mensagens). Ex.: No Oxford English Dictionary contem-se 650.000 palavras, mas os falantes só utilizam normalmente entre 2000 e 4000. Sublinha o presente, face à investigação histórica anterior. Pós-estrutural A língua nos seus usos sociais (fala), como instrumento de poder e de agência social. Os usos sociais identitários das línguas, como marcadores de diferenciação. 6. 2. QUAL É QUE É A ESTRUTURA DA LINGUAGEM? TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 141 A língua é um sistema de signos integrados por um significante (estudados pela fonologia e a morfologia) e um significado (estudados pela semântica). A linguagem verbal pode ser descomposta em sons (realização de fonemas na pronúncia) denominados fonemas (unidades mínimas da linguagem), estudados pela fonética e a fonologia. A fonética é o “solfeo” da língua. As formas de combinação dos sons para formar morfemas, palavras e frases... denominam-se morfologia. A relação de palavras em frases é denominada sintaxe. A relação de palavras e o seu significado é o léxico, compendiado no dicionário. 6. 3. A GRAMÁTICA DE TRANSFORMAÇÃO E GENERATIVA: Noam Chomsky (1957). De acordo com as suas teses: -Todas as línguas partilham um conjunto limitado de princípios de organização. -A linguagem é exclusivamente humana. -O cérebro humano têm um projecto prévio transmitido geneticamente que é denominado gramática universal ou plano linguístico para construir a linguagem, é por isso que as crianças aprendem a falar aproximadamente à mesma idade (5 anos). -Aprender a falar significa dominar uma gramática, um conjunto particular de regras, limitado, para organizar a linguagem. -A competência linguística implica um domínio da língua, o que tem que saber o falante. -Como se expressa um pensamento? ESTRUTURA PROFUNDA (Nível mental) (Formação do pensamento) ESTRUTURA SUPERFICIAL (Fala real) FALANTE OUVINTE (Tradução das frases à sua estrutura profunda) TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 142 6. 4. LINGUAGEM, PENSAMENTO E CULTURA: Hipótese Sapir-Whorf Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf (1971), foram discípulos de Franz Boas. Whorf estudou engenharia química e trabalhou no ramo dos seguros. Ele assistiu às aulas nocturnas de Sapir desde 1931, discípulo também de Franz Boas. Depois de estudar as línguas ameríndias impulsam o estruturalismo na linguística e afirmam: a) A natureza sociocultural da linguagem. b) A função simbólica da linguagem. c) A aprendizagem da linguagem como instrumento de socialização. d) A linguagem não só reflicte a realidade como também a conforma. e) O contributo da linguagem para a acção. f) A linguagem informa sobre a experiência humana. g) Diferentes línguas produzem diferentes formas de pensar. h) Dentro de cada língua os falantes pensam de maneira diferente. i) Cada língua é um universo único que deve ser estudado nos próprios termos (Princípio do relativismo linguístico estremo). j) As línguas são percepções diferentes do tempo e a realidade. As línguas determinam a forma como os seus falantes percebem o mundo. Exemplos: Exemplo 1: Os termos das cores que utilizam hoje as mulheres são diferentes dos que utilizam os homens, e também são diferentes aos utilizados por elas próprias há 50 anos; logo a indústria da cosmética, da perfumaria e da moda impulsaram muito a mudança. Exemplo 2: “Pão e circo”, era o ditado na Roma de Juvenal, “Pão e touros” no Madrid de Jovellanos, e “Pão, televisão e futebol”no dia de hoje. Exemplo 3: -Português: ele/ela; seu/sua (distinção de género na 3ª pessoa de singular) -Palaung (Birmânia): Não há distinção de género na 3ª pessoa de singular Exemplo 4: Espanhol Galego “Estar mal de la azotea” “Andar mau do telhado” Exemplo 5: Português: divide-se o tempo verbal em passado, presente e futuro. Hopi (Índios “pueblo” do Sudoeste dos EUA): não, só há diferentes factos. Japonês: Os tempos verbais –passado, presente e futuro- são idênticos no seu idioma. Exemplo 6: Esquimós: tem várias palavras para os diferentes tipos de neve. Português: só “neve”. TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 143 Portanto, a linguagem está interligada com o pensamento e a cultura. As mudanças na cultura motivam mudanças na linguagem e no pensamento, mas também ao contrário. A mudança cultural pode ser estudada através das mudanças na linguagem. A semântica estuda o sistema de significados de uma língua, mas para a antropologia a semântica é um instrumento de análise dos significados da língua em acção, isto é dos significados sociais da língua convertida em fala. A etnociência e a etnosemântica estudam os sistemas de classificação em diversas línguas, do parentesco, das cores, etc. Um trabalho no muito importante no campo da etnosemântica é o de Berlin e Kay (1969/1992), quem estabeleceu as seguintes diferenças culturais no campo das cores: Europa e Ásia (em relação com a história dos tintes) 10 Termos básicos para as cores: branco, preto, vermelho, amarelo, azul, verde, laranja, rosada, púrpura, madeira. - Primários: vermelho, amarelo e azul. - Secundários: violeta, laranja e verde. - Ternários: madeira, gris, negro, - Branco. Caçadores e recolectores australianos, e também cultivadores de Papua Nova Guiné 2 Termos básicos: branco e preto Berlin e Kay limitarão o relativismo estremo de Sapir e Whorf, afirmando que há certas cores que tendem a ser universais semânticos nos seus termos (11 em muitas culturas), apesar de que as cores são potencialmente infinitos, as categorias culturais de cores são finitas. Ao mesmo tempo acontece que os sons são infinitos, mas os fonemas são finitos. A etnosemântica pode ser aplicada a outros campos como os do sabor ou gosto alimentar. As categorias do sabor (ex.: salgado, insípido; acedo, suave; doce, …) não são puramente pessoais, arrumadas só por preferências individuais, porém foram construídas em contextos específicos definidos culturalmente. Um exemplo: A VIAGEM DO PEIXE Galiza Salamanca Madrid “Castanheta” (Peixe) “Palometa” “Japuta” (“gildas” nos Anos 1950, entre as peixeiras, quando Rita Hayworth era um mito erótico) 6. 5. A TEORIA DO DISCURSO TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 144 A teoria do discurso (Bardin, 1986) entende a comunicação como um processo, não como um dado, e nesse processo é essencial o discurso, que é uma comunicação com elementos constituintes (palavra, frase, enunciado, etc.) que implicam um acto, melhor dizer que são um acto. O discurso não é transpor transparentemente opiniões, atitudes ou representações de forma acabada, porém é um produto não acabado, um processo de elaboração, o que implica contradições, incoerências e in-conclusões. Isto é particularmente evidente nas conversas espontâneas de situação. O discurso está condicionado pelas condições de produção e por um sistema linguístico, pela semântica e sintáctica, mas também pela inserção num espaço social de emissor e receptor. Isto é, a eficácia social e simbólica de um discurso depende das condições sociais de produção do discurso. Um exemplo disto é o papel de Goebbels, que foi ministro de informação e propaganda de Hitler, e que chegou a afirmar que uma mentira contada 100 vezes passa a parecer verdade. De acordo com Van Dijk (2000: 22-23) o discurso contempla três elementos fundamentais: FORMA -Utilização da linguagem -Estrutura do texto e da conversa SENTIDO -Comunicação de crenças -Cognição ACÇÃO -Interacção em situações sociais -Estrutura social -Cultura 6. 6. ETNOLINGUÍSTICA E SOCIOLINGUÍSTICA A língua é um dos traços identitários dos grupos humanos, não é apenas um veículo de comunicação. Géneros, classe, etnia, idade, profissão, etc. podem ser estudados a partir dos usos linguísticos dos falantes. A língua não é um sistema homogéneo no qual todos falam igual. É por isso que a socio-linguística estuda o que a gente fala e como fala. As variações linguísticas estão em relação com as diversidades sociais identitárias (classe, etnia, idade, género,...). A linguagem está interligada com o contexto social. Uma pergunta importante é: Como utilizam a mesma língua diferentes falantes? Esto significa que o facto linguístico não é produzido no vazio, porem na sociedade, cultura ou subcultura na qual se insere. Assim por exemplo um homem não fala igual que uma mulher, isto é, existe uma ideologia cultural que define a fala ideal do homem e da mulher: o femininolecto e o masculinolecto (Buxó, 1988). A sociolinguística estuda fenómenos como o bilinguismo e a diglósia, mas também a fala dos grupos de diferente estatuto. A diglósia é uma relação assimétrica entre duas línguas em contacto, que implica maior estatuto sociolinguístico para uma do que para outra (Ferguson, 1959). Um exemplo de diglósia é o das categorias pejorativas dadas antigamente ao mirandês (segunda língua oficial de Portugal desde o 29-1-1999 – Lei n.º 7/99): a) “fala charra” e “fala caçurra” (Vasconcelos, 1992: 5). b) “fala atravessada” e “fala espanholada” (Martins, 1997). TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 145 O uso de uma língua está intimamente ligado com as posições sociais de uma escala de estratificação social. Assim por exemplo, William Labov (1972) concluiu logo de uma pesquisa que as classes sociais dos empregados de três grandes armazéns tendiam a reflectir a dos seus clientes. Outra variável social, a profissão, é um elemento fundamental para entender as falas. Existem conjuntos de palavras especializadas muito importantes para certos grupos com experiência ou actividade particular (gíria, calão), denominados vocabulário focal. Estes vocabulários focais definem limites para quem está por dentro e está por fora de um grupo profissional. Pierre Bourdieu (1985) afirma como a linguagem apropriada é uma estratégia de ascensão social. Falar correctamente é um recurso estratégico e um caminho para atingir a riqueza, o prestígio e o poder. A importância da habilidade verbal e da oratória são muito importantes na política, mas também na intervenção colectiva. As práticas linguísticas são um capital simbólico que as pessoas podem converte em capital sócio - económico. O bom uso ou a expressão correcta tendem a ser institucionalizadas por meio de um trabalho pedagógico. O mercado escolar está dominado por produtos linguísticos da classe dominante e tende a sancionar as diferenças de capital preexistentes. A hiper-correcção pequeno burguesa procura modelos e instrumentos consagrados pelos académicos, professores, gramáticos, etc. que “distinguem” as pessoas e o que falam do “vulgar” e o “grosseiro”. Outro fenómeno linguístico e social analisado por Bourdieu (1985) é a economia dos intercâmbios linguísticos. Isto é, os nomes das coisas tendem a simplificar-se quando são muito comuns no seu uso. Exemplos: telemóvel (telelé), televisão (t.v.), etc. Neste sentido Pierre Bourdieu (1985) fala da economia dos intercâmbios linguísticos, e de que a língua perdura no tempo e espaço porque se protege fronte à uma tendência para uma economia de esforço e rigor que induz às pessoas à simplificação analógica. 6.7. METÁFORA E METONÍMIA A linguagem está cheia de metáforas e metonímias por meio das quais manipulamos a vida social e compreendemos a experiência em termos de outra. Longe de ser um simples adorno da linguagem, é uma questão de significado e pensamento. A metáfora é uma expressãolinguística por meio da qual substituímos um significante por outro com o qual existe uma relação de semelhança. É uma figura da fala que consiste em aplicar o nome de um objecto ou coisa a outro por meio de uma associação de ideias ou um processo de similaridade. A metáfora cria novos significados através da intersecção de dois campos semânticos. Assim, pode ser considerada como um procedimento que permite compreender e experimentar uma realidade em termos de outra (Frigolé, 1987; Lakoff e Johnson, 1998). Por exemplo as metáforas animais típicas de muitas culturas: “Burra velha não aprende língua”. “A Galharda” (vaca). Típico das Astúrias, a Galiza e Portugal. “Vocês são uns burros” / “E tu uma víbora” / ... TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 146 A figura do leão como metáfora da nobreza. Outro exemplo é o das acções rituais e as performances: Comungar na missa católica (comemos metaforicamente a Deus). Muitos outros exemplos encontram-se nos ditados: -“Areia de mais para a minha cabeça”. -“Quem está de fora não racha lenha”. -“Roma não paga a traidores”. -“Desde que a minha filha é casada não lhe faltam pretendentes”. -“Não sair da cepa torta” (estudar e trabalhar mas nada consegue). -“Ainda dizem que as flores não andam” (galanteio dito a uma mulher). -“Quem não tem dinheiro fai do cú um candieiro” -“Ainda dizem que as flores não andam”. -“Puxar a febra à minha brasa”. -“Puxar a brasa à minha sardinha”. A metáfora não se pode entender ao pé da letra e promove um movimento de emoção, qualitativo, predica estrategicamente sobre um sujeito. Podemos afirmar que “dizer é um fazer”. Por exemplo, nos provérbios populares do Nordeste transmontano associados aos meses do ano temos muitas metáforas: -Janeiro, geadeiro. -Fevereiro molhado, enche o celeiro e farta o gado. -Março marçagão, manha de inverno, tarde de verão. -Abril, águas mil, peneiradas por um mandil. -No Maio, queima a velha o talho. -Junho secaio. -Julho foice no punho. -Agosto enceleirar. -Setembro vindima. -Outubro seca tudo. -Dos Santos ao Natal inverno natural. Segundo Lakoff e Johnson (1998) podemos diferenciar entre três tipos de metáforas: a) De orientação: acima, embaixo; diante, atrás; centro, periferia; perto, longe. Sem elas não poderíamos deslocar-nos pelo mundo. b) Ontológicas (ver e referenciar a experiência humana como uma entidade, substância ou objecto): -“A inflação fai-se notar nas bombas de gasolina” -“A honra do nosso país está em jogo” -“É preciso muita paciéncia para ler este livro” -“O ritmo da vida moderna é muito intenso” -“A pressão das responsabilidades foi a causa da sua crise” TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 147 -“Veio a Miranda do Douro na procura de fama e dinheiro” c) Metáforas estruturais: Utilizam conceitos estruturados com relação a outros. -“O argumento racional é uma guerra” -“Eu sou mais forte do que tu” -“Eu sou o que manda” A metonímia expressa uma relação de contiguidade em virtude da qual se define a parte por outra parte. Ex: “os pratos da cozinha portuguesa” -continente pelo conteúdo-. Também se pode definir a parte pelo tudo. Ex: “um corneta” – soldado que toca a corneta- ou o todo pela parte, por exemplo: “um porto” -vinho do Porto- ; “os mortais” – as pessoas e não as plantas. A metonímia é um sinécdoque que consiste em aplicar o nome de uma coisa a outra que está perto ou com a qual guarda uma relação de contacto. É um sinécdoque, por exemplo: “Tonto dos narizes!”. 6. 8. A POLISEMIA É um fenómeno cultural e linguístico que consiste em que o mesmo referente tenha diferentes significados para os falantes de diferentes grupos. Ex.: Caló (cigano) Castelhano Italiano Português Sueco Camello Camello Camello Camelho Camello Vigarista Vendedor de droga Pessoa feia Um homem dominado pela sua mulher Camareiro Também pode acontecer que o mesmo referente tenha diferentes significados para os falantes do mesmo grupo humano, por exemplo a palavra “tradutor”. 6. 9. O CIBERESPAÇO A Internet e outras tecnologias da informação têm possibilitado novas formas de comunicação entre os humanos, permitindo criar um espaço mundial de informação simultânea. Neste campo geraram-se novos códigos simbólicos de comunicação. Este é um mundo navegável, internacional, fruto da revolução da informação (Castells: 1996 /2001). Por meio desse mundo há uma criação de cultura e de sociabilidade que se expressa em redes e contactos entre pessoas. É todo um mundo a explorar e investigar. Segundo o antropólogo Néstor García Canclini (2005) os seres humanos definem-se não apenas por contruir a diferença, porém também pela desigualdade e pelo grau de conexão – desconexão face ao sistema. Assim o acesso aos média e aos sistemas de novas tecnologias da informação está a condicionar a identidades dos seres humanos de forma capital. 6. 10. A COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 148 A cultura não poderia existir sem a linguagem (verbal e não verbal). O estudo da comunicação não verbal foi abordado por Edward T. Hall, Ray Birdwhistell, Del Hymes, Flora Davis, etc. A linguagem expressa mensagens, mas também valores. E a vida seria mecânica e muito conflituosa se não houvesse comunicação não verbal, sem ela seria muito fácil mentir e enganar. Estudar comunicação implica não só estudar palavras, senão também o tom de voz, os gestos, o espaço e o tempo. A linguagem corporal tem uma linguagem própria que devemos descodificar: - Proxêmica: Como os humanos estruturamos o microespaço para comunicar com outros. Temos portanto um certo sentido da territorialidade, uma definição e defessa do nosso espaço pessoal, só transgredido com regras como o desporto ou o sexo, ou permitido em casos como a viagem de autocarro ou de metro. A proxêmica define culturalmente a distância apropriada numa conversa, a posição relativa na mesa e noutros contextos de comunicação. - Quinêsia: Significados dos movimentos do corpo. Exemplos: 1. “Os xaponeses dedican moito tempo á cortesía porque é un xeito de introducción social. Chegan a extremos como que o grao de inclinación da cabeza no saúdo indica o grao de respecto que un queira mostrar á outra persoa”. (Miguel Anxo Murado, en El Progreso, 9-6-2001, p. 75) 2. Na Índia abanar a cabeça significa “sim”, o que em Ocidente significaria não. 3. Nos países musulmanos a mão esquerda é considera impura porque é utilizada para limpar-se e asear-se na casa de banho. 4. Nos países islámicos e no Japão não se deve apontar a alguém com o piso do sapato, pois é a parte mais baixa e mais suja. 5. Na Ásia, para sinalar algo, utilizam toda a mão, faze-lo com o dedo é considerado groseiro. 6. Ao entrar num local sagrado musulmano, hindú ou budista pensa-se como sinal de respeito tirar os sapatos e o chapeu. As mulheres devem levar a cabeça tapada. 7. No templo de Chiang Mai (Norte de Tailándia) há galinhas à entrada que picoteam os pés a quem não atire os sapatos para entrar no templo. 8. Nos templos budistas o normal é dar uma volta à estátua de Buda no sentido das agulhas do relógio. 1. Os homens musulmanos costumam achegar-se os uns aos outros e é normal que se colham das mãos. Os norte-americanos devem manter-se na “confort zone”, aproximadamente um braço de distância. 2. A forma normal de cumprimentar-se no Japão é a de inclinar-se um bocadinho. 3. Um turista pergunta a um artesão navajo: -Tem você um anel grande? .- Para quê dedo? -Para este! (Indicando o dedo coração da mão direita e encolhendo os outros, realizando assim o gesto de “the fuck sign”). .-Sim tenho. Os turistas não se apercebem do assunto e o artesão vende o anel sem se ofender (Evans-Pritchard, 1989: 101). TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 149 4. Um sorriso no Afeganistão significa irritação. 5. Na Tailândia não se deve bater no topo da cabeça de alguém, pois acreditamque ali residem os espíritos. 6. Na Rúsia, quando entra num teatro ou auditório e anda pelas filas à procura de um lugar, faça-o de frente para as pessoas já sentadas. Se estiver de frente para o palco, estará a ser pouco educado, ao passar com o seu traseiro pelos corpos e rostos dos outros. Anexo: Guia de observação de comunicação não verbal 1. Indicadores de sexo-género: espaço público/espaço privado; direita / esquerda; acima / abaixo. 2. Gestos e movimentos corporais ↔ Idioma 3. O corpo como mensagem (i.e.: posturas, traços do rosto, forma,...) 4. Saúdo: ver-se, reconhecer-se, usar a mão, achegar-se, proximidade e distância, separação, despedida. 5. A face humana e o uso da sorrisa: expresão de sentimentos e emoções (alegria, surpressa, temor, raiva, tristeza, desprezo, nojo,...) 6. Os olhos (i.e.: tabú de fixar a mirada numa pessoa). Para onde olhamos? Como olhamos? 7. As mãos. 8. Proxémica (posição apropriada numa conversa, contactos, posições relativas na mesma). 9. O olfacto. 10. Comportamento não verbal em geral: dominante, neutro, submisso. 11. Mensagens em geral: de autoridade, exculpatórios, neutros,... 6. 11. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO IDIOMA O nascimento dos estados-nação no século XIX gerou um processo de unidade territorial e de homogeneidade linguística, o que consolidou línguas nacionais e marginalizou outras. Este processo foi desenvolvido através da educação, os média e a administração, procurando eliminar as línguas minoritárias. Este processo tomou mais força com a industrialização e o progresso científico. O monolinguismo passou a ser um ideal (Bjeljac-Babic, 2000) e a fins do século XIX pensou-se numa língua universal, pensou-se em regrassar ao latim. Na actualidade o plurilinguismo é considerado uma riqueza cultural, preservar uma língua implica preservar uma forma de humanidade. Uma questão importante é como se chega a conformar uma língua, isto acontece por causa de considerar a diferença entre língua e dialecto, que é uma construção social com afirmação política. A língua para ser língua tem que preencher alguns critérios estritamente filológicos, mas também é uma invenção social e política. Exemplo (Gonçalves, 2002): Em 1882 José Leite de Vasconcelos descobriu o mirandês no Porto, quando estudava medicina. Dois colegas dele, Afonso Cordeiro e José Joaquim, TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 150 informaram-lhe de que no Politécnico havia um rapaz de Duas Igrejas (Miranda do Douro) que falava português de maneira difrente. Foi assim como Leite de Vasconcelos contactou com o mirandês, sobre o qual chegou a fazer uma tese de doutoramento. Na actualidade os mirandeses lutaram por reconhecer e oficializar o mirandês como segunda língua oficial de Portugal, algo que se conseguiu no ano 1998 (aprovado pelo parlamento português em 17 de Setembro; publicado no Diário da República, 29-1-1999). De ter nomes pejorativos como “fala charra” ou “fala caçurra” (Leite de Vasconcelos, 1992: 5), “fala atravessada” ou “fala espanholada” (Martins, 1997), passou hoje a ter consideração e estima por parte da população mirandesa. A formação de palavras quotidianas também obedece a empréstimos e invenções sociais: Exemplo 1: Nos tempos da Segunda República espanhola o contrabando começou a receber um novo nome, o de “estraperlo”. A origem do nome coloca-se no escándalo de corrupção de “Strauss-Perle”, no qual estava implicado o político republicano Alejandro Lerroux. Exemplo 2: Em português, para definir a acção de carregar no teclado do computador utilizamos a palavra “clicar”, que procede do inglês “to click”. No terreno das novas tecnologias também se utilizam palavras estrangeiras, por exemplo “hardware” em vez de “ardido” (galego-português). Outras vezes essas palavras estrangeiras, como no primeiro caso, apropriam-se e aportuguesam-se, por exemplo a palavra “sandes” (do inglês “sandwich”) ou “pequenique” (do inglês pic-nic) em vez do galego-português “merenda”. Exemplo 3: “SOS” vêm do inglês “save your souls”. “YUPI!” vêm do inglês “UP”, fonéticamente iu, pi. Exemplo 4: A palavra “coco” (fruto do cocoteiro) teve origem nos navegantes portugueses que classificaram este fruto pelo seu aspecto de cabeça com cabelos (Harguindey, 2004). 6. 12. A LÍNGUA COMO PATRIMÓNIO CULTURAL “A língua é um monumento feito de palavras” (Manuela Barros, professora da Universidade de Coimbra). Hoje a língua é cada vez mais considerada como um património cultural colectivo, de ai que a Unesco tenha aberto em 2000 a “Listagem de Património Mundial Oral da Humanidade”. Das perto de 6000 línguas que existem hoje no mundo, quase a TEMA 6: A LÍNGUA E A COMUNICAÇÃO 151 metade são faladas por menos de 10.000 habitantes e um 25% por menos de 1000 pessoas (Bjeljac-Babic, 2000). Muitas destas línguas desapareceram, assim por exemplo, das 250 línguas que se falavam na Austrália nos finais do sec. XVIII, hoje só ficaram 20; no Brasil perderam-se 540 desde o início da colonização portuguesa em 1530. Na actualidade as 96% das línguas são faladas pelo 4% da população mundial. As oito línguas de maior difusão mundial são: Chinês 1200 Milhões Inglês 478 m Hindi 437 m Espanhol 392 m Ruso 284 m Árabe 225 m Português 184 m Francês 125 m Fonte: Encyclopédie Millenium (1998). Dados sobre os falantes de línguas maternas. Toda língua encerra uma forma de ver o mundo e um conjunto de conhecimentos imprescindíveis para sobreviver dentro do seu mundo cultural. A conservação de um idioma significa muitas vezes a própria sobrevivência física do grupo humano em questão. 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A redistribuição 7.4. O intercâmbio de mercado 7.5. Modos de produção 7.6. Caça, pesca e recolecção 7.7. Pastorícia 7.8. Cultivos agrícolas: horticultura e agricultura 7.9. A sociedade industrial 7.10. A sociedade pós-industrial Bibliografia Anexo I: Alguns modos de produção Anexo II: Das sociedades pré-industriais às sociedades pós-industriais 7.1. ANTROPOLOGIA ECONÓMICA “Os economistas sabem o preço de todo e o valor de nada” (Oscar Wilde) A antropologia económica é uma subdisciplina da antropologia sociocultural que estuda os sistemas de produção, distribuição e consumo dos diferentes grupos humanos. A economia faz parte da cultura no sentido em que o fim da cultura é a sobrevivência, a reprodução e a continuidade dos grupos humanos. A economia pode entender-se integrada em processos socioculturais, pois a produção realiza-se em famílias, comunidades e sociedades. As relações sociais funcionam como relações económicas e laborais (Godelier, 1974). Além mais, a distribuição, o intercâmbio e o consumo têm funções e sentidos sociais e políticos. “Economy is a set of institutionalized activities which combine natural resources, humam labor, and technology to acquire, produce, and distribute material goods and specialist services in a structured, repetitive fashion.” (Dalton, 1969: 97) Diferentes culturas valorizam diferentes bens e serviços, algumas salientam a cooperação económica e outras a concorrência. Umas culturas sublinham o consumo como meio de aumentar o estatuto social, outras a generosidade e a doação de bens como meio para adquirir prestígio. TEMA 7: A PRODUÇÃO ECONÓMICA 155 De acordo com Karl Polanyi (1994), o intercâmbio é fundamental em economia. O intercâmbio é a prática de dar e receber objectos e serviços com algum valor. Os modelos de intercâmbio variam de cultura para cultura, e podem ser de vários tipos: reciprocidade, redistribuição e mercado. As culturas humanas valorizam mais um tipo de intercâmbio do que outro, ou na mesma cultura podem coexistir vários tipos de forma articulada. Segundo Polanyi (1994) estes tipos de intercâmbio devem ser pensados como actos sociais pautados culturalmente. São estes três tipos de intercâmbio, modelos e não tipos de economia, pois em cada economia concreta pode haver elementos dos três. A diferença do que afirmava Adam Smith na sua obra “A riqueza das nações”, de que a troca tem a sua origem na tendência psicológica e psíquica inata para intercambiar, Karl Polanyi (1994) afirma que a troca nasce das instituições sociais. 7.2. A RECIPROCIDADE “Com regalos se hacen esclavos, del mismo modo que com látigos se hacen perros” (Service, 1973: 26). As formas de intercâmbio recíproco acontecem em todas as culturas. Por exemplo, as esposas não são pagas pelos seus esposos por estas lhes preparar o jantar. Outro exemplo é o das “prendas” que damos a alguém. A expectativa neste tipo de intercâmbio é o da correspondência e o retorno. Não é bem uma relação de altruísmo puro. Sim que é uma relação semelhante às obrigações de parentesco e tem intensos significados sentimentais, pessoais, mas também modelados pela cultura. Este é só um tipo de intercâmbio, e pode haver outros tipos de intercâmbio dentro da mesma cultura e protagonizado pelas mesmas pessoas. A reciprocidade é uma maneira de controlar a sobre–exploração da natureza, e também a desigualdade socio-económica. -O princípio de reciprocidade é: Trocar entre pessoas socialmente iguais, com vínculos entre si, em sociedades ou grupos igualitários. A simetria social é muito importante neste tipo de intercâmbio, mas também saber dar, receber e retribuir. Num sentido levi-estrusiano a reciprocidade pode ser de dois tipos: restrita e generalizada. A primeira reduz o leque de trocadores e a segunda é uma reciprocidade geral praticada com um leque de actores sociais mais alargado. Vejamos alguns exemplos etnográficos: 1. O “comércio silencioso”: Este era um tipo de comércio praticado nalgumas zonas de África e de Ásia, e que facilitava o intercâmbio recíproco. Os objectos para serem intercambiados eram situados em um claro. O outro grupo, logo de esconder-se o primeiro, inspecciona os objectos, apanha estes e deixa os seus. O primeiro grupo regressa ao lugar se ficou satisfeito. Ex.: Os pigmeus mbuti trocam carne por bananas com os bantos africanos: MBUTI-