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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO Centro de Ciências Humanas e Naturais Departamento de Línguas e Letras JOVANIR POLEZE FORMAÇÃO DISCURSIVA E IDEOLÓGICA NAS CARTAS DO PADRE GABRIEL MAIRE Vitória 2014 JOVANIR POLEZE FORMAÇÃO DISCURSIVA E IDEOLÓGICA NAS CARTAS DO PADRE GABRIEL MAIRE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura Dupla Português e Francês do Departamento de Línguas e Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de graduado. Orientador: Prof. Dr. Luis Fernando Bulhões Ferreira Vitória 2014 Dedico este trabalho a todos os que, teimosamente, lutam em defesa da vida – e vida digna – dos mais pobres. E àqueles que, assumindo intensamente a evangélica opção preferencial pelos pobres, foram perseguidos e martirizados, como o padre francês Gabriel Maire. AGRADECIMENTOS A Deus pela minha vida e minha história; por nunca me deixar desesperar de sua misericórdia; por ter me dado a oportunidade de conviver com o padre Gabriel Maire. Aos meus professores e colegas do Curso de Letras Português e Francês da Universidade Federal do Espírito Santo, Turma de 2010/2, por sua parceria ao longo do caminho de formação. “Prefiro morrer pela Vida a viver pela morte” (Pe. Gabriel Maire) “Ninguém pode pensar por quem quer que seja: é preciso suportar o que venha a ser pensado, ou seja, é preciso ousar pensar por si mesmo” (Michel Pêcheux) RESUMO Quais são as características do discurso do padre francês Gabriel Felix Roger Maire que atuou em Cariacica (ES) nos anos 1980, levando-o à perseguição e assassinato por conta de suas tomadas de posição político-ideológicas? Com essa pergunta norteadora, esta monografia pretende engendrar-se no caminho da “análise do discurso” proposta por Michel Pêcheux, e tem como corpus principal uma das 26 cartas do padre Gabriel. Objetiva contribuir com o estudante no conhecimento da Análise de Discursos sócio-ideologicamente marcados. Tem como objetivos específicos: motivar o estudante no aprofundamento da análise do discurso; contribuir com o estudo do discurso apresentando algumas de suas características; ampliar o conhecimento da vida, postura social e discurso do padre Gabriel. A escolha do corpus justifica-se por ser o ano de 2014 o ano que marca o 25º aniversário do seu assassinato, em Cariacica, em dezembro de 1989. Por fim, o presente trabalho almeja apresentar possibilidades de lidar com as questões discursivas no ensino de leitura, com vistas à formação do leitor crítico. PALAVRAS-CHAVE: Padre Gabriel Maire, Michel Pêcheux, Análise do discurso, Opção pelos pobres, Ecos de Vitória. LISTA DE SIGLAS (ordem alfabética) ACO – Ação Católica Operária AD – Análise do Discurso AMUCABULI – Associação das Mulheres Unidas Buscando Libertação CDS – Centre de Démocrates Sociaux CEB – Comunidade Eclesial de Base CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CP – Condições de Produção (do discurso) EV – Ecos de Vitória FD – Formação Discursiva FI – Formação Ideológica JOC – Juventude Operária Católica MPCDM – Mouvement Populaire des Citoyens du Monde PJMP – Pastoral da Juventude no Meio Popular PO – Pastoral Operária PR – Parti Républicain RPR – Rassemblement pour la République TFP – Tradição, Família e Propriedade TL – Teologia da Libertação SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO .............................................................................................. 09 PRIMEIRA PARTE BRASIL-FRANÇA: PE. GABRIEL E OS “ECOS DE VITÓRIA” 1 – Padre Gabriel Maire: vida pela VIDA ........................................................... 11 2 – As origens de suas convicções e a vinda para o Brasil ........................ 12 3 – Discurso que incomoda ....................................................................... 13 3.1 – A evangélica opção pelos pobres: Mais que uma opção: um jeito novo de ser Igreja ........................................................................................................... 14 4 – “Testemunhos do que verei e ouvirei”: Os “Ecos de Vitória” ............. 15 SEGUNDA PARTE DISCURSO E IDEOLOGIA EM MICHEL PÊCHEUX 1 – Michel Pêcheux e a Análise do Discurso Francesa .................................... 18 2 – A noção pecheutiana de ideologia ........................................................... 19 3 – Formação Ideológica e Formação Discursiva ................................................ 20 3.1 – O interdiscurso ............................................................................................... 21 3.2 – O sentido ............................................................................................... 22 3.3 – O sujeito no discurso e a tomada de posição ................................................ 22 TERCEIRA PARTE OS ECOS DE VITÓRIA, IDEOLOGIA, SUJEITO, CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO 1 – Ecos nº 14: uma amostra dos Ecos de Vitória ................................................ 24 2 – Os EV 14 sob o “olhar” da AD pecheutiana ................................................ 25 2.1 – Condições de Produção, ideologia, sentido, nos EV 14 ........................ 26 2.2 – O sujeito Gabriel Maire nos EV 14 à luz de M. Pêcheux ........................ 30 2.2.1 – FD e FI do sujeito Gabriel .................................................................... 31 2.2.2 – A ideologia que está na fonte do discurso ............................................ 32 2.2.3 – O assujeitamento ............................................................................. 33 2.2.4 – A consciência do verdadeiro Sujeito do discurso ................................. 34 2.2.5 – Identificação assumida a uma determinada FD ................................. 36 2.3 – Do discurso à prática: A tomada de posição do(s) sujeito(s) nos Ecos 14...... 37 QUARTA PARTE “PREFIRO MORRER PELA VIDA A VIVER PELA MORTE” 1 – Ideologia dominante e a (in)subordinação do sujeito .................................... 39 2 – Morte pela vida: A inquietante tomada de posição cristã ........................ 40 2.1 – O convite à postura evangélica: a defesa da vida .................................... 42 3 – Padre Gabriel, sua tomada de posição e consequente assassinato ............ 44 4 – “Ecos” de padre Gabriel ....................................................................... 45 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 47 REFERÊNCIAS ............................................................................................... 48 ANEXO (Ecos 14) ................................................................................... 50 9 1 – INTRODUÇÃO A presente monografia tem por finalidade primeira a de ser apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação em Letras Português e francês da Universidade Federal do Espírito Santo – Turma de 2010/2. Seu arcabouço teórico é o da Análise do Discurso numa perspectiva social e ideológica, e tem como corpus principal uma das 26 cartas do padre Gabriel Felix Roger Maire – chamadas Ecos de Vitória (EV) –, especificamente o “EV 14”. Os elementos que me inspiraram nesse tema foram: 1) minha proximidade com o padre Gabriel ao longo dos anos 1985 a 1989; 2) meu recente contato com os 26 “Ecos de Vitória”, do padre Gabriel, que estão sendo traduzidos por Dárcio Moschen e por mim para posterior publicação; 3) o instigante e inquietante discurso de padre Gabriel em favor dos mais econômicae socialmente desfavorecidos; 4) seu consecutivo martírio em dezembro de 1989. Essa monografia tem como objetivo principal contribuir com o estudante no conhecimento da Análise de Discursos Socio-ideologicamente marcados. Tem como objetivos específicos: I – motivar o estudante no aprofundamento da análise do discurso; II – contribuir com o estudo do discurso apresentando algumas de suas características; III – ampliar o conhecimento da vida, postura social e discurso do padre Gabriel Felix Roger Maire. Se todo discurso é uma construção social e está imbuído de ideologia/ideologias, a relevância desta monografia está certamente na análise de construções ideológicas presentes num determinado texto. Quais são as características do discurso dos padres, religiosos, missionários e outras lideranças religiosas que atuaram no Estado do Espírito Santo nos anos 1980 e que foram perseguidos e/ou assassinados por conta de suas tomadas de posição político-ideológicas? Com essa pergunta norteadora, esta monografia pretende engendrar-se no caminho da “análise do discurso” proposta por Michel Pêcheux. O EV 14 (de 01 de junho de 1984) foi tomado como modelo dos 26 Ecos para a presente análise. Com esse tema, três são as relevâncias que surgem: a primeira, o conhecimento dos Ecos de Vitória (ainda não publicados em português, mas em vias de publicação); a segunda, o conhecimento da análise do discurso; a terceira, a 10 especificidade de uma análise do discurso social. Certamente, relevante para as pessoas que conheceram padre Gabriel Maire, que com ele conviveram, que lamentam seu assassinato ocorrido em 1989, ele que lutava em favor dos mais necessitados; relevante para a associação dos Amigos do Padre Gabriel (na França, e no Brasil); relevante para o analista do discurso, e para todo estudante a quem desejamos formar enquanto leitor crítico. O trabalho divide-se em quatro partes: Na Primeira Parte é feita uma breve, mas importante retomada das convicções de Padre Gabriel que o levaram a deixar sua terra natal e ser missionário no Brasil, suas tomadas de posição diante das injustiças sofridas pelos pobres – principalmente dentre o povo cariaciquense –, as raízes cristãs de suas convicções e, por fim, a apresentação de suas cartas chamadas “Ecos de Vitória; a Segunda Parte apresenta o pensador Michel Pêcheux e sua proposta de análise do discurso, com foco principal na ideologia do discurso: qual o sentido do discurso? O que é interdiscurso e qual a sua relevância? Quem é o sujeito no discurso e qual seu papel?; a Terceira Parte marca o “encontro” de Padre Gabriel com Michel Pêcheux, ou seja, como Pêcheux nos ajuda a melhor entender o discurso do Padre Gabriel; a Quarta Parte revela a força do discurso deste “profeta Gabriel” – assim o intitulam seus amigos – com a marcante consequência de seu assassinato: um crime premeditado, um crime de mando... E sua voz que não se cala, mesmo após 25 anos passados daquele 23 de dezembro. 11 PRIMEIRA PARTE BRASIL-FRANÇA: PE. GABRIEL E OS “ECOS DE VITÓRIA” 1 – PADRE GABRIEL MAIRE: vida pela VIDA Pe. Gabriel Felix Roger Maire nasceu em Port-Lesney, departamento do Jura, na França, no dia 01 de agosto de 1936. Filho de agricultores católicos, ordenou-se padre aos 27 anos de idade, em 1963. Exerceu seu ministério em sua região natal até 1980, quando partiu em missão para o Brasil, mais especificamente para a arquidiocese de Vitória. Nessa arquidiocese se estabeleceu principalmente no município de Cariacica, um dos dois municípios com maiores índices de pobreza e marginalização da Região Metropolitana da Grande Vitória, segundo o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN 2010). Enquanto padre em Cariacica, Gabriel exerceu seu ministério nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). “As Comunidades Eclesiais de Base são pequenos grupos organizados em torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural), por iniciativas de leigos, padres ou bispos (...). De natureza religiosa e de caráter pastoral (...). Motivadas pela fé, essas pessoas vivem uma comum-união em torno de seus problemas de sobrevivência, de moradia, de luta por melhores condições de vida e de anseios e esperanças libertadoras”. (BETTO, 1985, p. 7) Gabriel dedicou-se sem restrições nas CEBs, na organização dos pobres, principalmente membros da classe operária, por meio da Pastoral Operária (PO); da juventude, por meio da Juventude Operária Católica (JOC) e da Pastoral da Juventude (PJ); das mulheres, principalmente as que compunham os Grupos de Mulheres das CEBs. Um trabalho em estreita sintonia com seus ideais: ideais de construção de um mundo cada vez mais justo e igualitário, com foco na situação de violência e pobreza das classes populares do Terceiro Mundo. 12 “homem de caráter, sólido e firme em suas convicções. Ele não suporta a injustiça, não tolera a violência” 1 . (MA VIE au Brésil au fil des jours, 1999, p. 13, tradução nossa) “Ele se levanta com força contra as desigualdades sociais, a prisão, a tortura, o assassinato de sindicalistas, militantes políticos, padres. Ele luta contra o poder do dinheiro, não comunga com os corruptos”. 2 (ibid., tradução nossa) 2 – As origens de suas convicções e a vinda para o Brasil Desde jovem, padre Gabriel descobriu o caminho de doação pessoal e integral que faria com que sua vida tivesse mais sentido: o caminho do sacerdócio, na entrega total a serviço de Deus e dos irmãos. “desde criança, eu senti que, ser cristão era ser alguém ativo, alguém que trabalha a serviço do povo. Já com oito, dez anos, eu estava bem convencido disto”. 3 (UN PRÊTRE français assassiné au Brésil, 2014, p. 243, tradução nossa) A vida familiar foi seu primeiro berço para essa vocação tão decidida. Mas foi no seminário que conheceu professores que lhe marcaram positiva e profundamente em seus ideais de engajamento na defesa dos pequenos e explorados da sociedade. “Tive a chance, a grande chance de – desde a idade de 15, 16 anos – conhecer professores muito engajados no contexto francês, na classe operária, da resistência contra os alemães e tudo o mais” 4 (ibid., tradução nossa) Segundo seus professores do seminário, ser padre é muito mais que presidir missas e sacramentos, é doar-se plenamente na defesa da vida plena, a exemplo de Jesus Cristo que diz “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Seu engajamento na França era principalmente junto à classe operária. E tal engajamento não residia no desejo de “fazer por eles”, mas fazer com eles, e ajudar-lhes a fazer o mesmo uns com os outros. 1 Texto original: “L‟homme a du caractère, solide et inébranlable dans ses convictions. Il ne supporte pas l‟injustice, ne tolère pas la violence”. 2 Texto original: “Il s‟élève avec force contre les inégalités sociales flagrantes, l‟imprisonnement, la torture à mort, les assassinats des syndicalistes, militants politiques, prêtres. Il lutte contre le pouvoir de l‟argent, ne lâche aucune concession envers les corrompus” 3 Texto original: “depuis tout petit j‟ai senti qu‟être chrétien c‟était être quelqu‟un d‟actif, quelqu‟un qui travaillait au service du peuple. Déjà à 8-10 ans, j‟avais cette conviction très claire”. 4 Texto original: “J‟ai eu la grande chance depuis l‟âge de 15-16 ans de connaître des prêtres professeurs très engagés, dans le contexte français, dans la classe ouvrière, dans la Résistence contre les Allemands et tout le reste” 13 “Seria preciso ajudar cada um a se tornar responsável por todos, em torno dele e no mundo inteiro, com o cuidado prioritário de ajudar os mais abandonados e oprimidos a se libertarem” 5 (UN PRÊTRE français assassiné au Brésil, 2014, p. 29, tradução nossa) Após ter consagrado 17 anos de sua vida junto aos mais necessitados no Jura, etendo tomado conhecimento das necessidades dos povos do chamado Terceiro Mundo, e ainda ter ouvido falar da atuação da Igreja na América Latina, tomou a firme decisão de vir para o Brasil. “Escolhi a América Latina porque me parecia mais necessário; na América Latina – especialmente no Brasil – porque o conhecimento de uma Igreja lutadora, de uma Igreja que não se deixa desanimar, que não se deixa mandar. Então, assim eu cheguei diretamente em Vitória, no dia 04 de outubro de 1980” (ibid., p. 244). 3 – Discurso que incomoda Em Vitória, mais precisamente em Cariacica, Gabriel logo se engajou em ações de defesa dos direitos fundamentais do ser humano, numa perspectiva planetária. Vivia a realidade dos trabalhadores, ajudando-lhes em sua conscientização e motivando-lhes ao engajamento por mudanças sociais. Nas igrejas por onde celebrava, o povo logo se identificou com seu jeito de ser e com seu discurso. Em suas homilias, Jesus era muito mais do que uma palavra, mas Ele era Palavra de Vida, de Esperança, de convite a que o povo acreditasse em sua força organizadora e seu poder de mudança. Uma das canções entoadas nas igrejas nos anos 80 dizia “Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor”. Gabriel não tinha o palanque dos políticos para anunciar aquilo em que acreditava e Aquele que era a fonte desse anúncio: Jesus Cristo. Seu palanque era a casa do pobre; sua cátedra era o banquinho de madeira das pequenas – mas vibrantes – Comunidades Eclesiais de Base – as CEBs. As CEBs foram para ele o modelo de Igreja-Viva, de verdadeira Igreja. Era nas CEBs que o povo simples se reunia em torno da Palavra de Deus para celebrar, não um Deus 5 Texto original: “Il faudrait aider chacun à être responsable de tous, autour de lui et dans le monde entier, avec le souci prioritaire d‟aider les plus délaissés et oprimés à se liberer” 14 distante, mas um Deus-gente-como-eles, conhecedor de seus problemas, que fortalece o povo na luta, que é sinal de um Tempo Novo de Paz e de Justiça. Organizar ainda mais essas pessoas era para Gabriel um apelo de Deus: apelo que ele entendia nas “entrelinhas” das situações cotidianas de dor e sofrimento – mas também de fé e esperança – do povo simples. Fez-se simples com eles e como eles. E logo se tornou conhecido por organizar os jovens da Juventude Operária Católica (JOC) a serem sementes de um futuro melhor para classe trabalhadora, a se doarem na luta por melhorias salariais e melhores condições de trabalho; organizar a Pastoral Operária (P.O.), que era formada principalmente por trabalhadores pais e mães de família, a se organizarem vendo em Cristo o rosto do operário sofrido, e aprendendo que a proposta de Jesus era a de novas relações sociais democráticas; organizar as mulheres das CEBS em busca da igualdade de direitos e da valorização da mulher, assim como a não exploração da mulher pelo homem, seja ele seu marido, patrão, padre, ou quem for. Seu engajamento e postura social e cristã passaram a incomodar o poder instituído, mesmo entre aqueles que se diziam católicos. Aliás, seu discurso encontrou opositores mesmo entre seus pares e gente do povo, uma vez que padre Gabriel conclamava uma Igreja com postura cada vez mais coerente com o Evangelho, ou seja, cada vez mais destemida diante do poder na defesa dos mais desfavorecidos. 3.1 – A evangélica opção pelos pobres: Mais que uma opção: um jeito novo de ser Igreja Um dos primeiros registros que padre Gabriel fez nos Ecos de Vitória (EV 2), foi da vibrante e surpreendente homilia de Dom João Batista da Motta e Albuquerque a respeito do que seja a verdadeira Igreja. “A Igreja não faz política de partido, pois ela pensa que todos os partidos devem estar ao lado do povo; mas a Igreja faz política, porque é o seu dever estar do lado do pobre, do oprimido. Aquele que não faz política é um covarde, e comete um pecado de omissão; e aquele que diz que não faz política, na verdade ele faz política 15 do outro lado, do lado dos poderosos, dos ricos opressores”. 6 (UN PRÊTRE français assassiné au Brésil, 2014, p. 36, tradução nossa) Que concepção de Igreja é essa? Qual a fonte de um discurso assim tão essencialmente sociopolítico, dizendo-se tão essencialmente cristão? Uma Igreja que não se preocupa com o pobre e o marginalizado deixou de ser uma Igreja cujo modelo é o próprio Cristo? As CEBs representavam esse novo rosto eclesial: um novo jeito de ser Igreja, apoiadas em palavras e situações retratadas no Livro Sagrado dos cristãos – tais como “Cristo era rico e se fez pobre para nos enriquecer por sua pobreza” (2Cor 8,9) – mas também em documentos vários da Igreja católica, tais como a Gaudium et Spes “A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não é certamente de ordem política, nem de ordem econômica ou social: o objetivo que ele lhe destinou é de ordem religiosa. Precisamente dessa missão religiosa, porém, é que derivam uma função, luzes e forças que podem servir para estabelecer e consolidar a comunidade dos homens segundo a lei divina” (VATICANO, 1965, §42) Esse novo jeito de ser Igreja a coloca intimamente relacionada com os pobres e a fazer por eles uma “opção preferencial” “Se as afirmações referentes à pessoa, à sociedade e à sua íntima relação constituem o quadro fundamental do ensinamento da Igreja sobre os problemas da sociedade, os critérios próximos, por sua vez, dizem respeito aos direitos do homem, à justiça sob suas diversas formas, uma delas a justiça social, e, enfim, a preferência pelos pobres” (CALVEZ, 1995, p. 53) 4 – “Testemunhos do que verei e ouvirei”: Os “Ecos de Vitória” Antes mesmo de embarcar para o Brasil (dia 02 de outubro de 1980), pe. Gabriel comprometeu-se a escrever (“3 a 4 vezes ao ano”) para seus amigos franceses, membros do MPCDM (Mouvement Populaire des Citoyens du Monde 7 ) acerca de sua experiência em terras brasileiras. Desde a primeira correspondência (1º de outubro de 1980) o nome “ECOS DE VITÓRIA” já fora por ele por empregado. 6 Texto original: “L‟Église ne fait pas de politique de parti, puisqu‟elle pense que tous les partis doivent être au côtés du peuple; mais l‟Église fait de la politique, car il est de son devoir d‟être du côté du pauvre, de l‟opprimé. Celui qui ne fait pas de politique est um lâche, et il commet um péché d‟omission; et celui quid it ne pas faire de politique, em vérité il fait de la politique de l‟autre c^té, du côté des puissants, des riches opresseurs” 7 Movimento Popular dos Cidadãos do Mundo (tradução nossa) 16 Foram 26 “Ecos” escritos (obviamente, em francês, uma vez que seu correspondentes eram todos francófonos) ao longo de sua permanência no Brasil. Quem formava esse público-alvo dos Ecos? O próprio Gabriel o descreve no Ecos 1: “Hoje, são mais de 420 pessoas envolvidas. Uma grande diversidade de destinatários: pessoas de diferentes idades, regiões, ideias (religiosas, entre outras), militantes e simpatizantes do Movimento Popular dos Cidadãos do Mundo, etc. (...). Eu me dirigirei a todos ao mesmo tempo, e nós viveremos juntos uma grande atitude de abertura entre nós: paroquianos de Saint-Claude, estudantes, militantes do MPCDM, membros das equipes da Juventude Operária Católica (JOC), da Ação Católica Operária (ACO), de famílias do meio operário, ou amigos que fizemos nas sessões ou retiros ou simplesmente nas férias” (ibid., 2014, p. 28, tradução nossa) Quanto ao propósito que motivou Gabriel à escrita desses Ecos, ele declara, “... para além de grandes considerações que muitos podem achar por aí, eu queria, para começar, dar um testemunho sobre aquilo que eu verei e ouvirei: mais precisamente os testemunhos de vida do povo. É a vida deles que deve interessara vocês, não a minha” (ibid., tradução nossa) Os Ecos de Vitória foram, ao longo dos anos 80, a correspondência privilegiada de “Gaby” (assim o chamavam seus amigos e parentes, e assim ele assinava cada um dos Ecos) com os membros do MPCDM. Por meio dos Ecos, Gabriel relatava experiências diversas da realidade do Brasil a partir da realidade popular, principalmente do povo simples com quem conviveu no município de Cariacica, tais como os moradores dos bairros Porto de Santana e Flexal. O sentimento de indignação de Gabriel principalmente diante dos descasos do governo instituído perante a grande massa da população empobrecida vão se tornando mais e mais evidentes a cada novo número dos Ecos. “... nada é feito para acolher estes milhões de migrantes. E aqueles cujo último recurso é morar na lama, sem água potável, sem eletricidade, sem esgoto, em que condições de higiene!... O poder a serviço dos poderosos envia sua polícia” 8 (ibid., p. 59, tradução nossa) 8 “... rien n‟est fait pour accueillir ces millions de migrants. Et à ceux dont le dernier recours est d‟habiter dans la boue, sans eau potable, sans éléctricité, sans égout, dans quelles conditions d‟hygiène!..., le pouvoir au service des puissants envoie sa police” 17 Mas os Ecos vão muito além de um mero informativo de como estão as relações sócio- políticas e religiosas em solo brasileiro. Os Ecos são para ele e seus correspondentes uma ferramenta no caminho da sensibilização intercontinental em vista da precária situação em que vivem os povos do chamado Terceiro Mundo. “... Ele busca um instrumento destinado a sensibilizar a opinião pública sobre os perigos que pesam sobre a humanidade (...) com seus amigos, ele se engaja ativamente contra o racismo, contra o armamento, pela paz; ele luta pelos direitos humanos, (...) ele não pode admitir a exploração dos Povos do Terceiro Mundo” 9 (ibid., p. 16, tradução nossa) 9 “... il cherche l‟outil destiné à sensibiliser l‟opinion publique sur les dangers qui pèsent sur l‟humanité (...) Avec ses amis, il s‟engage activement contre le racisme, contre l‟armement, pour la paix; il lutte pour les droits de l‟homme, (...) il ne peut admettre l‟exploitation des Peuples du Tiers-Monde” 18 SEGUNDA PARTE DISCURSO E IDEOLOGIA EM MICHEL PÊCHEUX 1 – Michel Pêcheux e a Análise do Discurso Francesa No final dos anos 60 do séc. XX – portanto, entre 40 e 45 anos atrás – a França foi o berço de uma proposta diferente de estudos da linguagem, que deu origem a um novo domínio de estudos, a Análise do Discurso (AD). Michel Pêcheux está na fonte dessa pesquisa. Entre os anos 1966 a 1983, publicou numerosas obras abordando o problema da linguagem. Inicialmente sob o pseudônimo de Thomas Herbert, mas revelando e assumindo depois seu próprio nome como autor desses escritos, Pêcheux não só trouxe à tona essa forma de abordagem dentro dos estudos linguísticos como deu início à chamada “Escola Francesa de Análise do Discurso”, como aborda Eni Orlandi em sua obra “Michel Pêcheux e a Análise do Discurso” (2005): “Ele é o fundador da Escola Francesa de Análise do Discurso que teoriza como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na linguagem” (ORLANDI, 2005, p. 1) Uma das novidades proposta por Pêcheux é a da articulação entre linguística e sociedade: “A AD pressupõe a Linguística, e é pressupondo a Linguística que ganha especificidade em relação às metodologias de tratamento da linguagem nas ciências humanas” (id., 1986, p. 110) E, na sociedade, utiliza inicialmente “corpora tipologicamente mais marcados – sobretudo nos discursos políticos de esquerda – e textos impressos” (BRANDÃO, 2006, p. 16). Mas um discurso não é uma produção desprovida ou apartada de todo um universo de relações ao seu redor. Tais relações acabam por marcar e mesmo definir tais ou tais discursos. 19 Nesse sentido é que ao analisar um discurso há elementos que lhe são fundamentais, tais como o contexto sociopolítico e econômico, a(s) ideologia(s), o sentido, com quais outras fontes ou discursos tal discurso se relaciona, e mesmo o(s) sujeito(s) do discurso produzido. A proposta de AD de Michel Pêcheux funde língua, sujeito e história. 2 – A noção pecheutiana de ideologia Segundo Pêcheux um discurso ao ser produzido está imbuído de condições ideológicas que o permeiam. É por meio do discurso que a ideologia se materializa, se firma e se difunde. O discurso deixa de ser um mero veículo de fatos e relatos, deixa de tratar somente dos acontecimentos nele contidos, mas os ultrapassa, por meio de profunda e estreita relação entre descrição e interpretação por meio da AD. "As palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas (...) nas quais essas posições se inscrevem.” (PÊCHEUX, 2014, p. 146- 147) Sendo assim, o discurso enquanto materialização da ideologia carrega em si duas forças que se entrecruzam, às quais Pêcheux denomina formação discursiva (cunhada por Foucaut) e formação ideológica. Para Pêcheux, a formação discursiva representa a formação ideológica na linguagem. De que forma? A formação discursiva supõe as condições sociais e/ou políticas e/ou econômicas,... que estão na base do discurso e o determinam; A formação ideológica materializa-se em uma tomada de posição por meio do discurso capaz de interferir, numa determinada conjuntura, no posicionamento sociopolítico de um número (in)determinado de pessoas de um mesmo ou diferente grupo social. “Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.)." (ibid., p. 147) 20 3 – Formação Ideológica e Formação Discursiva Segundo o pensamento de Pêcheux, existe um todo complexo das formações ideológicas (Pêcheux, 1997, p. 160) que ele explicita por meio de duas teses, que, em resumo são: 1) que o sentido (de uma palavra, uma expressão, uma proposição) não existe em si mesmo; e 2) que há um interdiscurso no complexo do funcionamento das formações ideológicas, entre Ideologia em geral e indivíduo por ela interpelado em sujeito. Nesse âmbito, a Formação Ideológica (FI) supõe as posições ideológicas de uma determinada conjuntura na qual o sujeito está inserido e que determinam os rumos de sua produção discursiva. Já a Formação Discursiva (FD) é caracterizada como aquilo que determina o que pode ou deve ser articulado numa produção discursiva qualquer que seja. Formação discursiva e formação ideológica se associam: Sendo assim, palavras, expressões e proposições “mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a outra” (ibid., p. 1). Segundo Brandão (2006), uma FD compõe-se de Paráfrase (ou sistema de paráfrases) e de Pré-construídos (ou pré-concebidos). Esses pré-construídos são aquilo que remete o enunciado a outro enunciado exterior (ou anterior). Grosso modo: ao produzir um enunciado se está reproduzindo outro existente embora com outras palavras, mesmo que aprofundando- as e trazendo-as à tona de uma forma diferente, atual, a ponto de parecer nova. “Na reprodução das relações de produção, uma das formas pela qual a instância ideológica funciona é o da “interpelação ou assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico”. Essa interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas,ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social.” (BRANDÃO, 2006, p. 46-47) 21 3.1 – O Interdiscurso Havendo já assimilado o conceito de um pré-existente conforme há pouco brevemente abordamos, Pêcheux desenvolve a noção de interdiscurso enquanto dinâmica do discurso na construção das relações culturais, sociais e políticas. O interdiscurso evidencia porque o discurso é sempre produzido por um sujeito em referência a um discurso Outro. Segundo Pêcheux, o discurso se filia, se submete ao seu discurso “Primeiro”, presente no interdiscurso, que ele chama “todo complexo com dominante”. “toda formação discursiva dissimula, pela sua transparência de sentido que nela se constitui, sua dependência com relação ao „todo complexo com dominante‟ das formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1975, p. 162) Brandão, (2006:89-90), sobre a relação entre discurso e interdiscurso, desenvolve o pensamento de Maingueneau em sua radical concepção de que o interdiscurso tem primazia sobre o discurso. Este autor afirma que “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”. E quais seriam esses espaços de trocas? Maingueneau os elenca: 1) Universo discursivo (“conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa dada conjuntura”); 2) Campo discursivo (“conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, se delimitam reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo”); 3) Espaço discursivo (“recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo discursivo tendo em vista propósitos específicos de análise”). Voltando a Pêcheux, ao tratar do Discurso “Primeiro”, ou do “todo complexo com dominante das formações discursivas”, o autor afirma que a ideologia dominante incide no interdiscurso. Em sua obra, Orlandi (1992: 89-90) sinaliza que, segundo Pêcheux, o interdiscurso é o conjunto do dizível, histórica e linguisticamente definido. Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja, que o enunciável (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador. 22 3.2 – O sentido Ao produzir suas representações discursivas, os homens o fazem a partir de toda uma ordem da vida social, influenciados – estando o sujeito falante ciente ou não disso – por concepções diversas, tais como políticas, religiosas, científicas, dentre outras. São produtos que não deixam de exercer sentido. O sujeito falante é um (re)produtor de “um todo complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997, p. 160), é um dependente deste. As palavras, expressões, proposições produzidas pelo sujeito falante são marcadas por uma teia de sentidos que está na fonte “primeira” do discurso produzido: as concepções ideológicas. Mas não somente na fonte enquanto fato passado, como também na fonte atual da formação discursiva (aquela que “determina o que pode e deve ser dito” op. cit.). “o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc. (...) é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio- histórico no qual (...) são produzidas” (ibid., p. 160) Logo, pode-se afirmar que o sentido de uma palavra, expressão ou proposição não é único, ou pré-determinado ou imutável. O sentido desejado pelo sujeito falante depende também do universo sócio-político do sujeito receptor, que quanto mais pertencente àquela formação discursiva do sujeito falante, mais corresponderá total ou parcialmente ao sentido proposto. O sentido, portanto, é aberto às possibilidades de interpretação do sujeito receptor. O sentido é definido por Pêcheux como sendo consequência de sentidos entre locutores. “Pêcheux considera a linguagem como um sistema capaz de ambiguidade e define a discursividade como a inserção dos efeitos materiais da língua na história, incluindo a análise do imaginário na relação dos sujeitos com a linguagem.” (ORLANDI, 2006, p. 11) 3.3 – O sujeito no discurso e a tomada de posição Tal como o sentido, também o sujeito é, em Pêcheux, determinado pela posição de onde se fala, pelo lugar de onde se fala. O sujeito “fala do interior de uma formação discursiva (FD) regulada por uma formação ideológica (FI) e isso o leva a conceber uma subjetividade assujeitada às coerções da FD e da FI” (BRANDÃO, 2003). 23 Em AD um discurso não pertence ao sujeito que o elaborou (ou pronunciou) e o assina/declara enquanto autor, embora seja esta a nossa concepção usual. Em AD a fala é na verdade da ideologia que está na fonte, na concepção, no desenvolvimento e no acabamento do discurso. Surge daí a ideia de assujeitamento. “O específico da ideologia é constituir indivíduos concretos em sujeitos” (idem, 2006, p. 78-79). Assujeitamento seria, assim, o reconhecimento de que o verdadeiro “sujeito” de uma dada produção discursiva é a ideologia (ou a FI) que o perpassa. Logo, o sujeito está assujeitado a uma ideologia. “A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” (Pêcheux, 2014, p. 141). Esse assujeitamento do sujeito pode se dar de forma consciente ou mesmo inconsciente, ao que Pêcheux denomina “esquecimento”. “É nesse reconhecimento que o sujeito se „esquece‟ das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa” (Pêcheux, 2014, p. 158). O interdiscurso, que funciona como base de sustentação dos sentidos (sentidos que parecem brotar do sujeito), é quem disponibiliza sentidos para o sujeito, que se julga – não raramente – fonte daquilo que enuncia. O que o sujeito enuncia ganha sentido somente porque inserido numa determinada FD. Mas o assujeitamento não é algo acabado. O sujeito pode, a todo e qualquer momento, deixar de se identificar a uma – e somente uma – FD, passando a identificar-se, exclusiva ou não exclusivamente a outra. Trata-se de um não-assujeitamento-reassujeitamento integral do sujeito, gerando a situação de resistência e de contradição. “nenhum processo de assujeitamento pode ser completo ou imutável até porque o sujeito, no todo social, não ocupa apenas uma (1) posição. Os mecanismos de resistência, ruptura (revolta) e transformação (revolução) são, assim, igualmente constitutivos dos rituais ideológicos de assujeitamento” (MARIANI, 1998, p. 25) É nesse sentido que se pode afirmar a noção de que o assujeitamento é um processo inacabado. Numa rede de significantes, algo pode falhar devido à resistência ao assujeitamento da parte do sujeito a um determinado ritual ideológico: o não-assujeitamento do sujeito ao Sujeito; “formas de aparição fugidias de alguma coisa “de uma outra ordem”, vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio” (PÊCHEUX, 2014, p. 278). 24 TERCEIRA PARTE OS ECOS DE VITÓRIA: IDEOLOGIA, SUJEITO, CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO 1 – Ecos nº 14: uma amostra dos Ecos de Vitória Como esboçamos anteriormente, pe. Gabriel escreveu 26 cartas aos seus amigos na França, a partir de Cariacica e de sua experiência com o povo, com a Igreja e com a sociedade. A essas cartas ele intitulou “Ecos de Vitória”. Os Ecos de Vitória foram, ao longo dos anos 80, a correspondência privilegiada de padre Gabriel com seus amigos franceses. Por meio dos Ecos, Gabriel relatava experiências diversas da realidade do Brasil a partir da realidade popular, principalmente do povo simples com quem conviveu no município de Cariacica, tais como os moradores dos bairros Porto de Santana e Flexal. Há algo, porém, de grande importância a se notar: os Ecos não são – nem de longe – um diário (ou relato) de seus dias no Brasil. Os temas abordados foram tão intensamente voltados para a realidade popular local, que Gabrielultrapassou o caráter puramente descritivo (desde os primeiros Ecos), partindo – quase que unicamente – à exortação. Os Ecos são para ele e seus correspondentes uma ferramenta no caminho da sensibilização intercontinental em vista da precária situação em que vivem os povos do chamado Terceiro Mundo. Dentre esses 26 Ecos de Vitória, selecionamos os Ecos de Vitória nº 14 (EV 14) para nos servir de suporte em nossa análise geral das cartas do padre francês Gabriel Maire à luz da AD francesa proposta por Michel Pêcheux. De forma bastante resumida – quase que meramente temática – diremos que os EV 14 tratam de: 25 - A morte de Dom João Batista da Motta e Albuquerque (1984) e as impressões de Gabriel em torno do exemplo de vida cristã deste a quem ele chamou “profeta” e “presença do Cristo”; não deixando, contudo, de abordar também o ambiente de perseguições que este arcebispo sofria por seu testemunho; - As manifestações populares no movimento “Diretas Já!”, apresentando também seu ponto de vista acerca da mídia nacional na cobertura deste movimento e a tomada de posição da Igreja Católica local; - a situação econômica nacional e em solo capixaba; - recortes de cartas recebidas dos franceses reagindo aos Ecos 13; - a indignação de padre Gabriel ante um fato ocorrido em Orléans diante da recusa da Câmara municipal em homenagear o bispo Guy Marie Riobe, a quem ele chama “profeta francês contemporâneo” e um homem de “posicionamentos corajosos”. E ainda: um extrato de um livro de Frei Leonardo Boff (“Pelos pobres, contra a pobreza”), notícias breves, a luta dos grupos de mulheres e sua tomada de posição ante decisões políticas municipais, o enfrentamento de leigos ante decisões da Igreja local. 2 – Os EV 14 sob o “olhar” da AD peuchetiana Cada um desses assuntos abordados por padre Gabriel Maire nos EV 14 geraria, certamente, uma tese à parte. Qual – segundo o conceito de ideologia de Pêcheux – é a ideologia que sustenta os Ecos de Vitória? Qual o sentido que encontramos no discurso de Gabriel? Como se materializam a FD e a FI nos Ecos? Quem é – ou quem são – o sujeito(s) em suas cartas? Damos início aqui – nada mais que um início – a um trabalho de análise do discurso do Padre Gabriel Maire à luz da AD que o teórico Michel Pêcheux nos aponta. 26 2.1 – Condições de Produção, ideologia, sentido, nos EV 14 Primeiramente relembramos que em Pêcheux, os discursos são governados por formações ideológicas “Constituindo o discurso um dos aspectos materiais de ideologia pode-se afirmar que o discursivo é uma espécie de gênero ideológico” (BRANDÃO, 2006: 47) E que tais formações são determinadas pelas Condições de Produção (CP) do discurso. Ao ser produzido, um discurso está imbuído de condições que o permeiam. Essa noção de CP reforça o pensamento de Pêcheux de que, se a língua é indiferente às divisões de classes sociais e à sua luta, as classes sociais não são igualmente indiferentes no uso da língua. "As palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas (...) nas quais essas posições se inscrevem.” (PÊCHEUX, 1975: 160) Sendo assim, e não podendo nos aprofundar em cada um de todos os ricos detalhes implícitos/explícitos no discurso adotado nos Ecos de Vitória, partamos então para as noções mais gerais que podem nos orientar a uma visão – ainda que superficial – das CPs do discurso de Padre Gabriel. Gabriel exprime nos EV 14 – a exemplo dos demais EVs – seu firme propósito de promover um mundo melhor para o povo mais sofrido, os “pequeninos de Deus”. Ele abre os Ecos 14 com um poema (“Quand il est mort le prophète") que ele mesmo parodiou da canção de Gilbert Bécaud, cantor e compositor francês, “Quand il est mort le poète”. Nessa sua composição, padre Gabriel deixa já explícitas realidades sociais, políticas e religiosas que marcam o conjunto de suas cartas. “Quando morreu o profeta Quando morreu o profeta Todo o pequeno povo Todo o pequeno povo Todo o pequeno povo rezou “Quem vai defender os pobres? Quem vai defender os pobres: Os sem teto, Os torturados, Todos àqueles que não são NADA?” “Dom João lançou a semente Do Cristo ele foi a presença E nós devemos Dar frutos Dom João continua conosco” 27 (tradução nossa) 10 O contexto é o da morte de Dom João Batista, falecido no dia 27 de abril daquele mesmo ano (1984). Dom João mereceu a atenção de Gabriel, não meramente por ser arcebispo local. A paródia revela um homem que ultrapassou as fronteiras eclesiásticas na defesa do pobre, dos mais necessitados, daqueles “que não são NADA” (Gabriel, ao enfatizar aqui a palavra “nada” escrevendo-a em caixa alta, quer chamar a atenção de seus correspondentes franceses para o discurso a partir do olhar do outro, que Bakhtin (1929 [2006], p. 147) chamou de “discurso de outrem”. Para que este “nada” não fosse apreendido de forma “ativa” (Backhtin, op. cit.) pelos franceses, Gabriel teria tomado o cuidado de enfatizar a palavra-discurso do outro). Dom João participou ativa e integralmente do Concílio Vaticano II (1962-1965), que abriu a Igreja Católica, em dimensões mundiais, à observância do Cristo sofredor no rosto dos pequenos da(s) sociedade(s), vítimas da exploração do homem pelo homem, vítimas do enriquecimento de uns poucos sobre a desgraça de milhares; uma Igreja mais profética, mais popular, menos identificada com o poder, mais identificada com os níveis populares. O Vaticano II foi “o maior acontecimento eclesial do século 20, tendo lançado as bases para as diversas reformas por que a Igreja passou nos anos seguintes, sobretudo na liturgia e na ação política e social. Durante o Concílio, em Roma, Dom João uniu-se ao grupo de bispos da Igreja dos Pobres, que pregava uma vida de simplicidade e pobreza, mais próxima do povo e de suas necessidades. Esse compromisso marcaria todas as suas ações nos anos seguintes.” (Wikipedia) Foi ele, Dom João, quem na arquidiocese deu início às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que foram amplamente acolhidas em todo o território arquidiocesano. As CEBs passaram a ser o local privilegiado de reza do povo, mas também de organização popular por meio dos trabalhos das equipes pastorais, tais como a PO, a JOC, a PJMP... com incentivo ao protagonismo dos leigos em várias instâncias da Igreja e na vida sociopolítica. “Sob a inspiração de Dom João, a Igreja de Vitória passou a ser reconhecida, nos anos 70, como uma Igreja progressista e afinada com a realidade. Nessa época, os movimentos sociais haviam começado a nascer, na esteira do agravamento das 10 “Quand il est mort le prophète/ Quand il est mort le prophète/ Tout le p‟tit peuple/ Tout le p‟tit peuple/ Tout le p‟tit peuple priait/ “Qui va defendre les pauvres?/ Qui va defendre les pauvres:/ Les sans abri,/ Les torturés,/ Tous ceux qui ne sont RIEN?”/ “Dom Joao jeta la semence/ Du Christ il fut la présence/ Et nous devons/ Donner les fruits./ Dom Joao demeure avec nous.” 28 condições sociais provocado pelo êxodo rural e pela chegada dos migrantes atraídos pelos grandes projetos industriais.” (idem) A Igreja de Vitória vivia um momento novo de contemplar no rosto dos pequenos o rosto do Cristo. E Dom João foi um dos principais defensores desse novo jeito de ser Igreja, criando para isso, além da CEBS e do incentivo às pastorais sociais, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória (CJP) “Dom João foi solidário aos primeiros movimentos grevistas que surgiram no País após o golpe militar de 1964. Com seu apoio, foi criada a Comissão Justiça e Paz, que teve papel fundamental nos movimentos emdefesa da moradia e dos direitos dos presos, lutas que o arcebispo apoiou bastante.” (idem) Gabriel fala para seus amigos franceses do sofrimento do povo pela perda de Dom João. E, lembrando-se de que seus amigos vivem uma outra realidade social, política, eclesial, que desconhecem muito da realidade vivida em solo brasileiro (situações de tortura e morte em diversos setores da sociedade, mas principalmente nas camadas mais populares), ou como diria Brandão (2006), fazem parte de uma outra Condição de Produção discursiva, em que o estado social do emissor difere do estado social do destinatário, explica: “É impossível compreender essas reações fora do contexto de uma Igreja que tenta fazer seriamente a opção pelos pobres. Nessa perspectiva, a Igreja começa a se tornar evangélica, o bispo torna-se “a voz daqueles que estão sem voz”. Problemas de expulsão de terra, greves, abusos contra os presos, leis democráticas desrespeitadas... é primeiro na porta do bispo que vamos bater.” (DUMONT, 2014, p. 117, tradução nossa) 11 Padre Gabriel não se recusa a deixar também implícita sua marca de insatisfação com setores conservadores da Igreja Católica conhecida dos franceses, a saber, a Igreja de Roma e a Igreja na França. A essa Igreja ele contrapõe uma Igreja que tenta fazer seriamente a opção pelos pobres, em oposição a uma Igreja que vive tal opção pelos pobres somente com palavras. No discurso de Gabriel, Maria (mãe de Jesus), venerada nos altares europeus como rainha, é aclamada pelo povo brasileiro como “mãe dos prisioneiros”, “mãe dos desempregados”, “mãe daqueles que lutam pela libertação”, “mãe dos pobres ávidos de dignidade e de justiça”. Gabriel afirma assim que a opção pelos pobres não parte simplesmente de uma “escolha” que a Igreja e os que se dizem cristãos teriam, mas que estaria na essência, no cerne do ser Igreja, do ser cristão. 11 “Il est impossible de comprendre ces réactions hors du contexte d‟une Église qui tente de faire sérieusement “l‟option pour les pauvres”. Dans cette perspective, l‟Église commence à devenir évangélique, l‟évêque redevient “la voix de ceux qui sont sans voix”. Problèmes d‟expulsion de terre, greves, sévices contre les prisionniers, lois démocratiques bafouées, ... c‟est d‟abord à l‟évêché qu‟on va frapper” 29 Essa forma de os leigos das CEBs se relacionarem com o Sagrado (Deus, Jesus Cristo, Maria, os Santos e Santas da Igreja,...) se tornou forte característica desse jeito novo de ser Igreja que se sobressaiu principalmente nos anos 80. De onde vinha esse “jeito novo”? Quem o propunha? O que estava na base desse discurso? As CEBs não surgiram necessariamente nos anos 80. Suas raízes estão desde o período do Regime Militar no Brasil (1964 e seguintes), quando a voz do povo era silenciada pelas ameaças, pela tortura e morte. A Igreja se mostrou o lugar de organização do povo e de reflexão da vida cotidiana; lugar onde o povo poderia se expressar. Desse contato íntimo com a Igreja foi acontecendo também o contato íntimo com a Palavra de Deus na Bíblia. Aos poucos esse povo brasileiro foi identificando sua vida com a vida relatada nos livros canônicos; relacionava seus sofrimentos com o sofrimento do povo hebreu (1250 a.C.) descrito no livro do Êxodo (p. ex.), a escravidão no Egito, a opressão do poder instituído sobre o povo, os pesados e desumanos impostos, a humilhação dos desamparados do sistema (tais como a viúva, o órfão, o moribundo). Mas esse povo – que agora lia a Bíblia de um jeito novo – descobria também, em cada um de seus livros, sinais de libertação, de profecia, sinais de esperança por meio da organização popular, sinais da presença de um Deus que convoca à construção de um mundo novo. “Na leitura inevitavelmente ideológica do Evangelho, mas iluminada pelo espírito da fé, vê-se que a maneira pela qual Jesus de Nazaré assumiu a sua posição de homem no mundo (sistema de atitudes) e anunciou o Reino da justiça e amor (sistema de idéias [hic]) constitui uma crítica implacável ao modo de produção capitalista e à ideologia que o pervade (...) Jesus condenou tudo aquilo que oprime e aliena a pessoa humana” (BETTO, 1985, p. 5) Mais do que descobrir um jeito novo de ler a Bíblia, essas pessoas foram encontrando um jeito novo de agir no mundo enquanto cristãs. A Palavra de Deus lhes ensinava a seguir em frente – apesar de toda repressão, abandono, tortura,... – na realização de uma nova sociedade. “Nesses anos de regime militar no Brasil os membros das comunidades de base têm participado ativamente da oposição popular. Muitos foram presos e torturados; alguns assassinados pelas forças repressivas do poder político e/ou econômico”. (ibidem: 8) A esse movimento cristão de releitura da Bíblia a partir da experiência do pobre, do oprimido, do excluído... denominou-se de “Teologia da Libertação” (TL). Mas a própria Igreja-instituição via a TL com ressalvas, e houve mesmo quem a abominasse e a classificasse como uma dissidência, embora entre os fundadores da TL estivesse não só o povo simples, 30 mas também padres, bispos e seus assessores. Ora, se para a TL Deus é um Deus-feito-tão- humano-e-pobre ao ponto de convocar os cristãos a deixar a sacristia e tomar a posição politicamente explícita de defesa e protagonismo do pobre, porque abominá-la? Não seria esta a ideologia cristã, a exemplo do que fez Jesus Cristo? “E tendo ouvido isso Jesus lhes disse: Os sãos não necessitam de médico, mas os doentes” (Mc 2, 17). Essa postura de setores da Igreja não corresponderia talvez ao que o professor de sociologia Zizek (2006, p.47) afirmou ao analisar o poder interno do Partido Comunista na Iugoslávia quando ele discorreu sobre o “funcionamento cínico da ideologia”? Zizek fez emergir a ideia de que “para funcionar, a ideologia não deve levar-se demasiadamente a sério (...) os que a levavam a sério eram percebidos como ameaça (...) isso já seria um passo para a dissidência”. Qual o desafio que estava na base desse modo de fazer teologia que diferia do modo instituído? O desafio estava no olhar “para fora” da Igreja e das igrejas, olhar o mundo à sua volta e nele enxergar os sinais de morte, de não-Deus, de não-Homem que a sociedade imprimia. “num continente como a América Latina, o desafio não vem, em primeiro lugar, do não-crente, e sim da não-pessoa, ou seja, daquele que a ordem social existente não reconhece como pessoa (...) De que modo anunciar a Deus como Pai em um mundo não-humano? E que coisa implica dizer aos pobres que são filhos e filhas de Deus?” (GUTIERREZ, apud LIBÂNIO, 2004, p. 53) As palavras, os termos, as expressões então empregadas no discurso de padre Gabriel nos Ecos 14 seriam – a partir desse universo ideológico – as palavras, termos e expressões que – em sua concepção de vida e de tomada de posição cristã – as mesmas que o próprio Cristo empregaria. Crer na ressurreição é incompatível com uma sociedade na qual o pobre é condenado à morte (ibidem: 31). Esse tipo de sociedade opressora aparece de forma evidente nos EV 14? Certamente que sim, e a lista de palavras e expressões que lhe estão diretamente relacionadas não é nada pequena: expulsão de terras, abusos contra presos, leis democráticas desrespeitadas, torturas, governo militar, senadores biônicos, conspirações, corrupção, custo de vida, 50% dos brasileiros são pobres, 30% são marginais... só para citar algumas. 2.2 – O sujeito Gabriel Maire nos EV 14 à luz de M. Pêcheux A que Sujeito (“s” maiúsculo) estaria assujeitado Gabriel Maire? 31 Retomando algumas noções de sujeito em Pêcheux – já apresentadas anteriormente (ver Segunda Parte, item 3.3) – temos que: 2.2.1 – FD e FI do sujeito Gabriel O sujeito é determinado pela posição de onde se fala, pelo lugar de onde se fala. “O sujeito fala do interiorde uma formação discursiva (FD) regulada por uma formação ideológica (FI)”. (BRANDÃO, 2003) Nessa primeira noção apresentada por Pêcheux, temos um convite a conhecer um pouco mais o lugar de onde fala o profeta Gabriel (assim o chamam seus amigos no Brasil). Um breve resumo pode, ao menos, nos localizar nesse universo-base de sua formação ideológica: sua formação ainda na França. O menino Gabriel é nascido no seio de uma família cristã. Desde muito cedo já mostrava sinais do homem que viria a ser para quem o conhecesse. “desde criança, eu senti que, ser cristão era ser alguém ativo, alguém que trabalha a serviço do povo. Já com oito, dez anos, eu estava bem convencido disto” (trecho de sua última entrevista à TVE-ES dois dias antes de ser martirizado) (GABRIEL Maire: prefiro morrer..., 2014: 123) Ainda adolescente Gabriel começou seu aprendizado da realidade de desequilíbrio social, das lutas de classes. Desde os 15 e 16 anos conheceu professores engajados no contexto francês, na classe operária. No Seminário, teve conhecimento da experiência dos padres operários, que eram os padres funcionários em metalúrgicas e indústrias, explicitamente inseridos junto ao operariado a fim de dar-lhes suporte fortalecendo-lhes na organização de classe por meio da fé e da consciência crítica ante a sociedade: era a Ação Católica Operária (ACO). “Tive a chance, a grande chance de – desde a idade de 15, 16 anos – de conhecer professores muito engajados no contexto francês, na classe operária (...) Desde os anos 50 e 55, eu já havia descoberto que ser padre é estar a serviço de Deus, a serviço do povo” (Ibidem, p. 123) Um de seus primeiros dramas vividos foi o da proibição pela Igreja de os padres continuarem essa experiência de vida. “Em 1954, quando a Igreja proibiu os padres de serem, 32 ao mesmo tempo, padres e operários, foi dramático para Gabriel e seus colegas” (MAIRE, 2014, p. 98) Entrou para o serviço militar obrigatório, onde ficou por 28 meses. Voltando depois para o seminário, onde foi ordenado padre. Em 1968 a França toda conheceu acontecimentos políticos muito importantes. Gabriel participou de passeatas com operários e estudantes. Nesse mesmo ano, apoiou uma campanha mundial em favor dos militantes da Juventude Operária Católica brasileira, presa e torturada pela ditadura militar. Participou muito ativamente de movimentos conscientizando o povo contra o racismo, em favor do Terceiro Mundo, pela paz mundial e o desarmamento. Foi escolhido secretário geral do Movimento Popular Cidadãos Do Mundo (MPCDM), com pessoas de várias religiões, ou sem religião nenhuma, com adesão de vários partidos políticos e de sindicalistas. Muitos padres não gostavam muito disso, e também certos cristãos. Conhece, em Paris, o bispo brasileiro Dom Helder Câmara. Já conhecia o trabalho das CEBs no Brasil. E foi aí, no MPCDM que cresceu a vontade de trabalhar em outro país. Ainda em 69, lançou o seu primeiro abaixo-assinado, primeiramente com 16 padres da sua diocese, em seguida, com centenas de pessoas; o motivo: contra a venda de aviões militares franceses (mirage) ao governo militar do Brasil! Foi em um retiro espiritual, em 1975, que decidiu se desfazer dos seus antigos documentos militares, enviando-os “de volta” ao Presidente da República Francesa, a fim de manifestar a sua rejeição com relação à bomba atômica francesa, e a sua solidariedade com os que trabalhavam em favor do Terceiro Mundo. (Idem: resumo 98-100) 2.2.2 – A ideologia que está na fonte do discurso Em AD um discurso não pertence ao sujeito que o elaborou (ou pronunciou) e o assina/declara enquanto autor, embora seja esta a nossa concepção usual. Em AD a fala é na verdade da ideologia que está na fonte, na concepção, no desenvolvimento e no acabamento do discurso. Surge daí a ideia de assujeitamento. “O específico da ideologia é constituir indivíduos concretos em sujeitos” (BRANDÃO, 2006, p. 78-79) 33 Seria simples dizer que o discurso de um padre – qualquer que seja – está assujeitado ao Sujeito-Instituição-Igreja-Católica. Mas para o profeta Gabriel e seus amigos padres (dentre padres franceses e dentre padres brasileiros) o Sujeito está não só intra muros da Igreja mas também, e principalmente, extra muros. Certamente tanto o Sujeito dos padres operários, engajados no meio popular, quanto da Instituição Igreja é um só: Jesus Cristo. Mas, se há forças opostas dentro dessa mesma Instituição, temos de nos perguntar: Qual Jesus Cristo? Padre Gabriel se assujeita ao Jesus Cristo que a experiência na França lhe ensinou a enxergar; esse mesmo Cristo que ele encontrou no contexto da Igreja no Brasil. Ao conhecer Dom Helder Câmara na França, conheceu o que poderíamos hoje chamar de “o suprassumo” da TL no Brasil. Dom Helder era bispo no Recife, e entre seus opositores (de dentro e de fora da Igreja) era chamado “bispo vermelho”, numa referência ao comunismo. Assim também encontrou esse rosto do Cristo pobre, humilhado, excluído, no discurso do bispo de Vitória, Dom João Batista: bispo de uma Igreja que faz “seriamente a opção pelos pobres”; e também no discurso de diversos padres – ditos “padres estrangeiros comunistas” por membros da “Tradição, Família e Propriedade” (TFP) (EV 14). Para a TL, Deus é aquele que salva na História, no tempo presente e no momento presente. Não simplesmente uma salvação escatológica. “A salvação está acontecendo lá onde está em andamento o processo de libertação. Deus não está ausente com seu dom salvífico, mas está realizando aqui o seu plano de salvação” (GUTIERREZ: 2004: 23) 2.2.3 – O assujeitamento Assujeitamento seria, assim, o reconhecimento de que o verdadeiro “sujeito” de uma dada produção discursiva é a ideologia (ou a FI) que o perpassa. “A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” (Pêcheux, 2014, p. 141). Se assim, precisamos então conhecer a ideologia abordada pelos teólogos da TL. Primeiramente, para os teólogos da TL o conceito de ideologia é utilizado como conjunto de 34 ideias que caracterizam uma determinada classe ou grupo social. Fala-se em ideologia dominante, por exemplo, para se referir aos detentores do poder que oprime a classe trabalhadora e seus pares. Quando se identifica a palavra ideologia presente em escritos no campo da TL, e que não esteja sendo, assim, usada de forma negativa, fala-se de ideologia da vida, ideologia cristã, ideologia da defesa dos que estão na base da pirâmide social. “não era mais a ideologia dos vencedores, e sim a dos vencidos, era uma ideologia de resistência” (COMBLIN, 2000 in O mar se abriu. 30 anos de teologia na América Latina: 185) Das reflexões de Dietrich Bonhöffer (morto num campo de extermínio nazista) encontramos: “nós aprendemos a ver os grandes acontecimentos da história do mundo a partir de baixo, da perspectiva dos inúteis, dos suspeitos, dos maltratados, dos que não têm poder, dos oprimidos, dos desprezados, em uma palavra, da perspectiva dos que sofrem” (BONHÖFFER apud ALDIGHIERI, 1993: 73) “Assim como não há dominação sem ideias, não há também libertação sem ideias”, escreveu padre Josimo em seu diário no dia 05 de novembro de 1982 12 . A ideologia que perpassa o discurso do padre Gabriel nos Ecos de Vitória é essa mesma ideologia de ver o outro como imagem do Cristo: “Todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25,40). 2.2.4 – A consciência 13 do verdadeiro Sujeito do discurso Esse assujeitamento do sujeito pode se dar de forma consciente ou mesmo inconsciente. “É nesse reconhecimento que o sujeito se „esquece‟ das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa” (Pêcheux, 2014, p. 158) Padre Gabriel teve como locus de seu discurso a Igreja onde exerceu seu ministério sacerdotal. É nela que ele encontrou o Cristo que lhe chamou a serpadre, mas padre a serviço 12 Padre Josimo também foi assassinado por suas tomadas de posição cristãs na defesa dos mais pobres, nesse caso, os trabalhadores se terra. O fato aconteceu no ano de 1986 a mando de fazendeiros da microrregião do Bico do Papagaio (atual Tocantins). 13 A AD compreende a consciência como efeito da ideologia e do inconsciente. 35 dos mais pobres, a serviço da classe operária, a serviço da juventude operária, a serviço dos agrupamentos de mulheres que lutam por seus direitos: é na Igreja que encontrou seu lugar para trilhar seu caminho de anúncio de um mundo mais humano. Para Gabriel há duas Igrejas: Há aquela que anuncia Jesus Cristo de cima de um púlpito, que mostra Cristo como Rei do Universo, Todo-Poderoso, digno de louvor, honra e glória, que elimina os pecados, que a tudo governa, etc.; e há aquela Igreja que testemunha Jesus Cristo feito pobre, comprometida com sua causa e que não se cala diante da injustiça, e que vai do discurso à prática de entrega total pelos menores deste mundo. É nesta segunda que Gabriel acredita, e é esta que ele anuncia: “Uma Igreja que faz seriamente a opção pelos pobres começa a se tornar evangélica, o bispo volta a ser a voz dos que não têm voz” (EV 14). Mas ele sabia, era consciente, que as duas eram, em termos jurídicos, não mais que uma. No entanto, o que ele apresenta nos EV é um discurso inegavelmente consciente de que ele não quer ser a voz de uma Igreja conservadora. Um trecho dos EV 14 onde Gabriel discursa energicamente contra essa forma de ser Igreja é o trecho ao qual ele intitula “Une reaction personelle” (Uma reação pessoal), no qual ele se dirige aos leitores franceses convocando-lhes a uma mudança – se ainda não o fizeram – de atitude cristã, convocando- lhes a assumir o “Amor radical pelos pobres”. Transcrevemos aqui na íntegra esse trecho: “A Câmara de Vereadores de Orleans recusou-se de dar a uma rua da cidade o nome de GUY-MARIE RIOBE, este bispo de Orleans cujas posições corajosas e evangélicas revelaram um grande profeta francês contemporâneo. Estes vereadores PR e RPR que votaram contra, e estes vereadores CDS (alguns dos quais se dizem “democratas CRISTÃOS”!!!), que corajosamente se abstiveram, o que eles entenderam do Evangelho? Como os conservadores daqui, eles aceitam a Igreja quando ela se restringe à sacristia, mas quando ela começa a pregar o Evangelho, que é Libertação, Paz, Justiça, Amor radical aos pobres, eles a rejeitam. Se esses vereadores, e seus semelhantes, vivessem aqui, eu sei muito bem de que lado eles seriam!” (EV 14. Tradução nossa) 14 14 (texto original) “Le Conseil Municipal d‟Orleans a refusé de donner à une rue de la ville le nom de GUY- MARIE RIOBE, cet évêque d‟Orléans dont les positions courageuses et si évangéliques ont révélé um grand prophète français contemporain. Finalement, ces conseillers municipaux PR et RPR qui ont voté contre, et ces conseillers CDS (dont certains se veulent “démocrates-CHRETIENS” !!!) qui se sont courageusement abstenus, qu‟ont-il compris de l‟Evangile? Come les conservateurs d‟ici, ils acceptent l‟Eglise quand elle reste à la sacristie, mais quand elle se met à prêcher l‟EVANGILE, qui est Libération, Paix, Justice, Amour radical des pauvres, ils la rejettent. Si ces conseillers municipaux-là, et leurs semblables, vivaient ici, je sais très bien de quel côté ils seraient!” 36 2.2.5 – Identificação assumida a uma determinada FD “Mas o assujeitamento não é algo acabado. O sujeito pode, a todo e qualquer momento, deixar de se identificar a uma – e somente uma – FD, passando a identificar-se, exclusiva ou não exclusivamente a outra”. Segundo o pensamento de Pêcheux, a FD determina o que pode e deve ser dito pelo sujeito. A Igreja em Roma criticou abertamente o que estava sendo dito pelos teólogos da libertação e seus semelhantes ou simpatizantes. Ou seja, determinava o que devia e o que não devia ser dito a partir do interior da Igreja; e que os que anunciavam um Cristo-pé-no-chão não passavam de seguidores do marxismo. O Cardeal da Igreja Católica Joseph Ratzinger, então prefeito da “Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé” (Vaticano), publica, no ano de 1984 a Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, onde afirma que a “Teologia da Libertação torna manifesto um perigo fundamental para a fé da Igreja”, e que os teólogos da libertação “de certa maneia, fizeram própria a opção fundamental marxista”. Declara que essa Instrução “quer chamar a atenção (...) para os desvios e perigos de desvio, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas de teologia da libertação que usam de maneira insuficientemente crítica, conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista” (VATICANO, 1984). Mesmo não podendo aqui aprofundar o debate, pode-se afirmar que a TL deve, sim, ao pensamento de Marx, muito de sua visão de mundo e de Deus na vida e na história dos homens. “A valorização da práxis e da teoria em função dela, a valorização da libertação como força que movimenta a história, o partir do concreto, da realidade, das necessidades reais das classes subalternas e o valor dado às mesmas como sujeitos da construção e transformação da história, são elementos que derivam do pensamento marxista.” (ALDIGHIERI, 1993: 73) Pêcheux afirma também que palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao passar de uma FD a outra. Para Gabriel não há um Sujeito-Igreja e um Sujeito-Jesus-Cristo. O que há é um jeito novo de ser Igreja que caminha neste mundo anunciando Jesus Cristo que se identifica com a humanidade, principalmente os espoliados, os sem-vez da sociedade capitalista ou sob qualquer outro regime que defenda a supremacia do poder em detrimento de 37 seus cidadãos. É nessa Condição de Produção que o discurso de Gabriel e sua tomada de posição ganham sentido. 2.3 – Do discurso à prática: A tomada de posição do(s) sujeito(s) nos EV 14 Padre Gabriel não está sozinho em seu discurso nos Ecos de Vitória. Um número incontável de pessoas, entre leigos e leigas, padres e religiosas consagradas, fazem eco a essa forma de pensamento e a esse jeito de viver a Palavra de Deus. Sim: “viver” a Palavra, viver o discurso. No dia a dia dessas pessoas, discurso e prática estão indissociáveis. Nos EV 14 isso aparece, por exemplo, no discurso de dona Carlinda quando ao explicar para o povo sua maneira de ler o Evangelho na passagem que trata da tentação de Jesus no deserto, ela diz: “o diabo espera que Jesus se canse para então dominá-lo; como aqueles que nos oprimem, que esperam que o povo se canse de lutar”. Sobre a tomada de posição dos cristãos em relação ao que ocorria na Nicarágua e sua luta contra o imperialismo americano, Gabriel não deixa de comunicar aos amigos franceses que “aqui todos aqueles que são, ao menos um pouco, solidários com as lutas do povo brasileiro, se sentem profundamente em comunhão com o Governo da Nicarágua, e absolutamente revoltados contra o imperialismo norte-americano... inclusive no interior da Igreja”. Quanto à divisão interna da Igreja entre tendências conservadoras e libertadoras, relata Gabriel sobre um caso ocorrido numa das CEBs em Porto de Santana: “Em uma comunidade, um grupo da “Renovação Carismática” tentou diminuir a força do trabalho, para retomar formas tradicionais de oração, sem ligação com a vida e as lutas do povo. Foi preciso reagir. As desavenças duraram meses. Todo o Conselho de Pastoral do setor foi reclamar junto ao bispo. Vendo o caso com um pouco de distanciamento, o problema se mostra bem complexo: pessoas que têm um pouco mais de estudos que outras, que têm uma situação social um pouco melhor, que discursam com mais facilidade, querem dominarnas comunidades de base... sem falar de alguns que têm pretensões políticas. A Renovação Carismática se torna um meio de combater o espírito das comunidades de base, que dão a palavra em primeiro lugar aos “pequenos”, aos “pobres”, no espírito da Teologia da Libertação.” (EV 14) 38 E o que significa, porém, essa tomada de posição em favor do pobre que padre Gabriel e os seus pares tanto teimam em assumir? Ele mesmo, também nos EV 14, explica em breves palavras (com grifos dele) “A opção preferencial pelos pobres é isso: não agir “pelos” pobres, mas fazer com que os pobres se exprimam, participem, e sejam os próprios SUJEITOS de sua libertação.” E os pobres se exprimiam sim. Num outro relato em que Gabriel fala da luta de mulheres por melhorias no bairro Rio Marinho, ele traz a fala de uma delas testemunhando sua transformação de vida encontrada junto ao grupo de mulheres da comunidade de base: “Dona Maria, que não sabe ler, dizia outro dia: „Há um ano, eu pensava que eu não era nada. Agora eu sei que eu sou igual aos outros, que tenho direitos, e que juntos podemos conseguir ser respeitados‟”. Não será novidade dizer que essas tomadas de posição pelos sujeitos do discurso não se direcionam somente para setores da sociedade, mas também para setores da Igreja. Apresentando a seus correspondentes que esse mesmo povo aprendeu a defender seus direitos mesmo junto ao poder eclesiástico, Gabriel reproduz a fala de um dos leigos após a comunidade ter conseguido que o Conselho do bispo voltasse atrás em uma decisão: “Nós aprendemos muitas coisas esses últimos anos para aceitar retornar numa paróquia em que o padre vem só para celebrar a missa, sem nos ajudar a refletir e a nos organizar. Nós aprendemos a reagir face aos poderosos que nos oprimem no trabalho e na política; na Igreja também, nós queremos ser escutados e respeitados”. Não se pode esquecer, porém, que, se padre Gabriel era aquele que dava voz e vez aos que faziam parte de seu convívio, valorizando tomadas de posição, tornando-lhes sujeitos de seus discursos, então os Ecos de Vitória não poderiam ser apenas um escrito de direção única, mas uma via em que os destinatários se tornavam correspondentes, no sentido estrito da palavra. Também os franceses tinham espaço nos EV. E aqui, nos EV 14, foram 11 (onze) os trechos de “Lettres Reçues” (Cartas Recebidas) que Gabriel destacou. Todos reagindo positivamente aos EV 13. Outros EVs também trazem, não raramente, reações contrárias a falas e expressões de Gabriel. 39 QUARTA PARTE “PREFIRO MORRER PELA VIDA A VIVER PELA MORTE” 1 – Ideologia dominante e a (in)subordinação do sujeito Para a sociedade brasileira, ainda sob o poder do Regime Militar (1964-1985) – regime marcado pela falta de democracia, pela supressão dos direitos constitucionais, pela repressão e perseguição política contra os que a ele se opunham – a postura tomada por padres ditos “padres vermelhos” em seus sermões de cunho político, que conclamavam a população a uma tomada de posição frente ao governo opressor, não seria certamente postura aceita pelos que estavam na ponta da pirâmide social (grandes comerciantes, industriais, políticos corruptos e corrompidos, etc.) enquanto “papel de padre”. E qual é o papel de um padre? Gabriel mesmo o explica com estas simples palavras em sua última entrevista à TVE-ES no dia 23 de dezembro: “ser padre é estar a serviço de Deus, a serviço do povo”. Sobre o papel do padre na Igreja e no mundo, sobre o engajamento da Igreja nos movimentos sociais e movimentos políticos, Gabriel responde: “É indispensável. É indispensável. Eu não vejo como uma Igreja pode ficar fora de um processo de libertação do povo. Daqui a um momento, provavelmente, vamos falar um pouquinho de Natal, e não vejo como se pode falar de Natal, de Jesus Cristo, sem falar da encarnação da Igreja dentro das realidades. Isto não é uma opção, é uma realidade. Quem é cristão vive dentro de todas as realidades, porque nosso salvador viveu dentro das realidades.”. Gabriel foi tocado profundamente pelo jeito de ser Igreja no Brasil. Já conhecia Dom Helder Câmara e seu trabalho contra a pobreza no Brasil e no mundo e a defesa dos mais pobres. Conhecia também a fama da arquidiocese de Vitória de ser uma Igreja que assumiu verdadeiramente a opção pelos pobres, na defesa do menor de rua, das famílias sem lar, dos trabalhadores sem terra, dos índios em sua luta pela terra na região de Aracruz... E foi isso que 40 o trouxe para terras capixabas. Quando Gabriel chegou a Arquidiocese de Vitória conheceu Dom João Batista e ficou fascinado pela força, coragem e determinação deste homem de Deus. Conheceu também, aqui no Estado, o trabalho de Dom Aldo Gerna e a perseguição sofrida por este bispo de São Mateus (norte do Estado) por causa de suas tomadas de posição contra o discurso que os poderosos do lugar esperavam de um bispo católico. Todas essas e outras vozes formavam, dentro da Igreja, um “coro” afinado com os anseios dos pobres, mas desafinado com as ideias do governo militar, dos ricos fazendeiros, dos ricos detentores dos meios de comunicação social, dentre outros. Era o que podemos chamar de insubordinação do sujeito à ala conservadora da Igreja. Esses ricos cobravam desses homens um retorno à sacristia; e cobravam seja pelo discurso direto, seja por meios de colocar a população contra esses que anunciavam um Jesus Cristo que questionava o poder, a riqueza, a alarmante diferença de classes sociais no Brasil, e convocavam o povo à organização por mudanças. Os EV 14 recordam que a transmissão da missa na televisão havia sido interrompida como forma de perseguição a Dom João Batista, e que a TV passou a transmitir uma missa de Belo Horizonte, com cantores engravatados e sermão que não falavam da vida do povo. Também em Linhares a missa transmitida numa emissora de rádio foi suprimida. Transcrevemos aqui o trecho dessa informação: “Em Linhares, outra cidade da diocese, a uns 150 km de Vitória, a missa principal do domingo de manhã passava na mais importante rádio local. Ela acaba de ser suspensa: “Eles” disseram que era a política! E há algumas semanas, as pessoas do movimento tristemente famoso na América Latina, a TFP (Tradição, Família, Propriedade) manifestaram-se, em Linhares, sem dúvida a mando dos grandes proprietários e de alguns homens políticos, contra a Igreja local e especialmente “os padres estrangeiros comunistas”! – TFP é um movimento de extrema direita, que se pretende cristão, de tendência Lefebvre. (Como se fosse possível de encontrar qualquer ponto comum entre as teses de extrema direita e o Evangelho! Quem encontrar é muito perspicaz!) (EV 14, 2014, p. 119) 2 – Morte pela vida: A inquietante tomada de posição cristã Entendamos esse título “morte pela vida” enquanto um convite cristão a doar-se inteiramente ao serviço da vida plena para todos. 41 Há muitos sinais de morte em todas as sociedades e em todos os tempos. Sinais de morte significam situações onde a vida é ameaçada, onde o Bem é ameaçado; enquanto sinais de vida são compreendidos como ações ou situações que valorizam o Bem para todos. A história da Salvação está plena de fatos relatados que apontam sinais de morte presentes na sociedade e o que o homem religioso, em testemunho, deve ou deveria fazer para que tais sinais de morte sejam suprimidos, sejam suplantados por sinais de vida. É a chamada tomada de posição, que, na era cristã podemos completar esse termo como tomada de posição cristã. Uma visão geral da tomada de posição na História da Salvação, ou seja, desde os primórdios, seria certamente necessário para aprofundarmos aqui este tema. No entanto, recorremos ao que há de mais recente em termos de discurso da Igreja a esse respeito. Trata- se da mais recente publicação do Papa Francisco, eleito há
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