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1 FACULDADE ÚNICA DE IPATINGA 2 Ulisses Monteiro Coli Diogo Doutor em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense (2016). Mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra (2014). Graduado em História pela Universidade Federal de Viçosa (2008). Atua como professor da rede estadual do Rio de Janeiro (2008) e de Minas Gerais (2019). HISTORIOGRAFIA 1ª edição Ipatinga – MG 2021 3 FACULDADE ÚNICA EDITORIAL Diretor Geral: Valdir Henrique Valério Diretor Executivo: William José Ferreira Ger. do Núcleo de Educação a Distância: Cristiane Lelis dos Santos Coord. Pedag. da Equipe Multidisciplinar: Gilvânia Barcelos Dias Teixeira Revisão Gramatical e Ortográfica: Izabel Cristina da Costa Revisão/Diagramação/Estruturação: Bárbara Carla Amorim O. Silva Carla Jordânia G. de Souza Rubens Henrique L. de Oliveira Design: Brayan Lazarino Santos Élen Cristina Teixeira Oliveira Maria Luiza Filgueiras © 2021, Faculdade Única. Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem Autorização escrita do Editor. Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Melina Lacerda Vaz CRB – 6/2920. NEaD – Núcleo de Educação a Distância FACULDADE ÚNICA Rua Salermo, 299 Anexo 03 – Bairro Bethânia – CEP: 35164-779 – Ipatinga/MG Tel (31) 2109 -2300 – 0800 724 2300 www.faculdadeunica.com.br 4 Menu de Ícones Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, você irá encontrar ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São sugestões de links para vídeos, documentos científi- co (artigos, monografias, dissertações e teses), sites ou links das Bibliotecas Virtuais (Minha Biblioteca e Biblioteca Pearson) relacionados com o conteúdo abordado. Trata-se dos conceitos, definições ou afirmações importantes nas quais você deve ter um maior grau de atenção! São exercícios de fixação do conteúdo abordado em cada unidade do livro. São para o esclarecimento do significado de determinados termos/palavras mostradas ao longo do livro. Este espaço é destinado para a reflexão sobre questões citadas em cada unidade, associando-o a suas ações, seja no ambiente profissional ou em seu cotidiano. 5 SUMÁRIO O QUE É HISTORIOGRAFIA? ...................................................................... 8 1.1 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA ................................................................................... 8 1.2 O QUE CARACTERIZA UMA OBRA DE HISTÓRIA? ................................................11 1.3 O HISTORIADOR ENTRE A OBJETIVIDADE E A SUBJETIVIDADE .............................. 14 FIXANDO O CONTEÚDO ................................................................................................19 ESCOLA DOS ANNALES ........................................................................... 26 2.1 APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 26 2.2 A PRIMEIRA E A SEGUNDA GERAÇÃO DOS ANNALES ......................................... 30 2.3 LUCIEN FEBVRE E O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO ................................................. 30 2.4 MARC BLOCH E A HISTÓRIA TOTAL ........................................................................ 32 2.5 FERNAND BRAUDEL E AS DURAÇÕES ..................................................................... 35 2.6 PROPOSIÇÕES METODOLÓGICAS DOS ANNALES ................................................ 38 FIXANDO O CONTEÚDO..................................................................................................... 45 RENOVAÇÃO DO MARXISMO BRITÂNICO ............................................ 51 3.1 APRESENTAÇÃO ..................................................................................................51 3.2 O PARADIGMA TÉORICO-METODOLÓGICO MARXISTA ..................................... 53 3.3 THOMPSON E A CRÍTICA À RELAÇÃO BASE X SUPERESTRUTURA ........................ 56 FIXANDO O CONTEÚDO ................................................................................................60 HISTÓRIA CULTURAL ................................................................................ 66 4.1 APRESENTAÇÃO ..................................................................................................66 4.2 ANTECEDENTES TÉORICOS ..................................................................................... 67 4.3 TERCEIRA E QUARTA GERAÇÃO DOS ANNALES ................................................. 71 4.4A MICRO-HISTÓRIA A PARTIR DE GINZBURG E LEVI .............................................. 73 4.5A NOVA HISTÓRIA POLÍTICA E CULTURAL .............................................................. 76 4.6 CONCLUSÃO ......................................................................................................78 FIXANDO O CONTEÚDO ................................................................................................80 PÓS-MODERNIDADE E HISTÓRIA ............................................................ 86 5.1O QUE É PÓS-MODERNIDADE ................................................................................. 86 5.2 A IMPORTÂNCIA DE NIETSZCHE E FOUCAULT PARA O DEBATE SOBRE A PÓS- MODERNIDADE .........................................................................................................92 5.3 O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO ....................................................................... 97 5.4 WHITE (1995) E A QUESTÃO DAS NARRATIVAS ..................................................... 98 FIXANDO O CONTEÚDO .............................................................................................. 102 UNIDADE 01 UNIDADE 03 UNIDADE 05 UNIDADE 02 UNIDADE 04 6 KOSELLECK E RÜSEN: RESPOSTAS A PÓS-MODERNIDADE? ................. 108 6.1 QUAL O LUGAR DA HISTÓRIA NA ATUALIDADE? ................................................ 108 6.2 A HISTÓRIA DOS CONCEITOS .............................................................................. 109 6.3 A RESPOSTA DE RÜSEN A HAYDEN WHITE ........................................................... 112 6.4 CONCLUSÃO .................................................................................................... 119 FIXANDO O CONTEÚDO .............................................................................................. 121 RESPOSTAS DO FIXANDO O CONTEÚDO ............................................. 126 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 127 UNIDADE 06 7 CONFIRA NO LIVRO Na primeira Unidade, “O que é Historiografia?” você aprenderá o significado do termo Historiografia. Também será feito um debate sobre sua função e importância para a construção do conhecimento histórico, as formas de produzir e a relação com o conhecimento científico. Para a segunda Unidade, “A Escola dos Annales”, você estudará essa importante tradição historiográfica francesa, surgida em fins da década de 1920. Iniciada por Marc Bloch e Lucien Febvre, seus pressupostos teóricos e metodológicos influenciaram variados debates para a Historiografia. Em “A renovação marxista inglesa”, serão apresentados nomes como Eric Hobsbawm e Edward Palmer Thompson. Esses historiadoresse contrapunham a tradição marxista ortodoxa, calcada na relação de dependência ao fator econômico para explicar a realidade. Suas propostas envolviam análises de formação das classes trabalhadoras a partir de vieses culturais e sociais. A partir da década de 1960 surge no meio historiográfico uma vertente culturalista, apoiada num intenso debate com a filosofia, a antropologia e a linguística. Na Unidade “A História Cultural”, o objetivo é identificar um momento da Historiografia, onde o foco das análises se concentra na forma como as sociedades se constituíram, do que uma escola, movimento ou paradigma definidos. Em “Pós-modernidade e História”, será descrita a crítica da modernidade, latente em meados do século XX. Abrangente, envolve a arte, as ciências como um todo, a política, dentre outros fatores. Nas Ciências Humanas e Sociais, ganha força em fins da década de 1960, momento também conhecido como “crise dos paradigmas”. Para a História, uma de suas posições revela uma aproximação com a Literatura, principalmente pelo historiador White (1995). Por fim, em “Koselleck e Rüsen: respostas a pós-modernidade?” serão apresentados os pressupostos teóricos e metodológicos desses dois historiadores alemães, que fornecem uma interessante resposta à pós-modernidade. Koselleck apresenta a História dos Conceitos como uma nova forma de relacionar História e Literatura e Rüsen demonstra que a literatura é a importante como a forma expressiva do saber histórico. 8 O QUE É HISTORIOGRAFIA? 1.1 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA O que é História? Essa é uma pergunta que em algum momento, a partir dos estudos do tema, surge em nossa formação. De difícil solução, integra a realidade dos estudiosos do assunto, e assim, compreender o que é a História como forma de conhecimento sobre o passado se torna essencial em sua trajetória como historiador. Como apontado na figura que segue, a pesquisa sempre foi um componente essencial do trabalho do historiador. Figura 1 : O Antiquário (óleo sobre tela) Fonte: Disponível em https://bit.ly/33e9C19. Acesso em: 02 dez. 2020. O antiquarista é um exemplo do historiador em relação as fontes e a pesquisa. Na disciplina de “Introdução aos Estudos Históricos” esse foi um dos debates realizados e que procurou apontar como teóricos e historiadores se referem ao campo do conhecimento, como se relacionam com seus objetos de pesquisa. Agora, seguiremos esse debate, porém, com algumas pequenas diferenças. Admitindo as diversas possibilidades que existem de se tratar do passado, aqui teremos como ponto de partida a tradição da História que resultou no formato atualmente debatido nas Universidades, considerada como científica. De maneira objetiva, pode-se afirmar que o que hoje se concebe como História nas Academias e Universidades é um estudo de caráter científico e orientado metodologicamente UNIDADE 9 sobre o passado. Mas a história sempre teve esse formato hoje conhecido e estudado? Nos modelos de historiográficos influenciados pela lógica ocidental, ponto de partida utilizado de nossos estudos, a ideia da existência de uma História com essas características remonta o desenvolvimento das ciências modernas, aproximadamente a partir do século XVIII. Foi nesse período que ela adquiriu atributos de uma disciplina especializada, a partir do modelo das Ciências Naturais e Exatas, que tiveram grande repercussão. Portanto, em “Introdução aos Estudos Históricos”, o objetivo da disciplina foi encontrar questões acerca dessa origem, os tipos de abordagem (mitológica, estruturalista, moderna, antiquarista, marxista...), seu caráter científico ou não, as possibilidades de interdisciplinaridade dentre outros aspectos. Mas qual o objetivo da disciplina “Historiografia”? Além de estudar os pressupostos teóricos, ela também busca analisar a História criticamente a partir de sua própria trajetória e construção no tempo. No dicionário online Michaelis (2020), o verbete “Historiografia” apresenta dois significados para a palavra: “1 A arte de escrever a história, a ciência que estuda os eventos passados. 2Estudos críticos sobre a história e os historiadores”. Na primeira significação, o dicionário aponta para uma definição etimológica da palavra. Dessa maneira, a Historiografia é compreendida como o estudo do ato de escrever a História. Ela aponta o exercício da função em si, que se comprova na sua prática. Porém, na segunda definição é apresentado outro sentido para o termo, que indica uma prática sobre a História: o exercício crítico que é feito às obras produzidas e aos indivíduos que a realizam. E como essas definições podem ser úteis? A História como forma de produzir e transmitir conhecimento tem sua própria trajetória. Essa história da História é repleta de debates e reformulações sobre a natureza do conhecimento que ela própria produz. Assim, pode-se afirmar que seu conhecimento efetuado é debatido e reavaliado por seus pares no decorrer do tempo. Tal fato acaba por reafirmar a História como campo de estudos e também interfere nos seus debates, sua teoria, sua metodologia e objetos de pesquisa. De acordo com Malerba (2006, p. 15): O caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas. 10 (...) o trabalho do profissional de história exige um exercício de memória, de resgate da produção do conhecimento sobre qualquer tema que se investigue. Não nos é dado supor que partimos de um “ponto zero”, decretando a morte cívica de todo um elenco de pessoas que, em diversas gerações, e à luz delas, voltou-se a este ou aquele objeto que porventura nos interessa atualmente. Portanto, segundo o autor, essa incessante reavaliação é inerente a realização da História. O exercício da prática historiográfica parte desse diálogo com seus iguais e do que foi produzido, sendo essa uma das principais características de um trabalho de História. Ainda de acordo com Malerba (2006, p. 15), ao analisar o que foi produzido anteriormente e assumir isso como prática, os historiadores acabam também por elevar “[...] a crítica historiográfica a fundamento do conhecimento histórico”, ou seja, reavaliar e compreender a trajetória da história se torna parte do que é ser historiador, fundamento do exercício. Portanto, essa característica da Historiografia é importante por alguns motivos, dentre os quais é possível destacar: Reorienta e traz para a prática historiográfica novidades teóricas e metodológicas. Possibilita a revisão de temas anteriormente debatidos com novas interpretações, não os deixando como verdades estabelecidas ou versões finais. Demonstra as características de tempo e espaço correspondente a cada historiador e do contexto em que a obra foi produzida. Outra característica da História como campo do conhecimento útil à discussão, é que não existe uma completa superação daquilo que foi debatido e analisado em outras épocas. Diferente de outros campos do conhecimento, como em áreas mais voltadas a desenvolvimento tecnológico, por exemplo, uma conclusão ou objeto produzido num tempo passado normalmente não é completamente deixado de lado. O conhecimento e a tecnologia utilizada na produção de um artefato tecnológico, como um computador, é facilmente esquecido quando superado. Um celular mais antigo, mesmo que utilize fundamentos tecnológicos semelhantes aos mais atuais, raramente tem utilidade depois de ter surgido um mais moderno. Tal fato não pode ser compreendido de maneira semelhante na História e nas Ciências Humanas e Sociais. Mesmo que em certos estudos novas fontes ou procedimentos 11 metodológicos possam mudar a orientação e o entendimento sobre um determinadoassunto, nem sempre uma obra é completamente superada. Obras escritas anos atrás ainda contribuem e compõem o debate historiográfico de forma relevante, seja em aspectos metodológicos, filosóficos, teóricos ou temáticos. Assim, se algum elemento do debate pode ser abandonado, o tipo de abordagem diz algo sobre aquele tempo. Antes de superação, há na História e nas Ciências Humanas em geral, a existência de um debate crítico, onde as conclusões indicam o rumo das discussões e não encerram completamente as ideias. Apresentado o papel da Historiografia, ainda restam duas questões: o que caracteriza uma obra de História? Qual o papel do historiador e da subjetividade no exercício da História? No decorrer da presente Unidade, o objetivo será responder a essas duas questões. 1.2 O QUE CARACTERIZA UMA OBRA DE HISTÓRIA? Como apontado até aqui, a Historiografia tem a capacidade de refletir o conhecimento realizado pela História. Assim, faz parte do seu papel definir quais critérios tornam uma obra relevante para o meio. Um primeiro aspecto, e que aparentemente é simples, se refere à intenção do autor. Para ser uma obra História, deve referir-se ao passado em relação ao humano como assunto. Mas apenas tratar do passado é suficiente para determinar se é uma obra de História? Ao falar do passado, uma pesquisa ou estudo também deve ter um compromisso com a realidade daquilo que foi ocorrido. Ou seja, não basta se referir ao passado, mas também da necessidade de retratar algo verossímil. Essa segunda característica, por exemplo, permite diferenciar obras que utilizam elementos do passado como uma espécie de pano de fundo de outras que pretendem retratar um momento histórico. Obras que tem um caráter mais literário, e sem compromisso de relatar fielmente o que ocorreu no passado, mas sim de entreter ou expressar uma visão artística. São inúmeros romances, filmes, séries de televisão e novelas que utilizam uma espécie de pano de fundo histórico, sem necessariamente ter compromisso com o passado. Existem, de outra forma, produções que buscam refletir a História com certa fidelidade, que tem envolvimento com o real, mesmo assim tem elementos ou personagens de ficção. Outras ainda utilizam personagens e elementos reais, porém 12 adaptam o roteiro para que a história siga uma trajetória desejada. Como exemplos dessas diversas formas de referência artística ao passado podemos citar: O Nome da Rosa, livro de Umberto Eco, que originou o filme; o romance A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães, que inspirou novelas, o livro Olga do jornalista Fernando Morais, que resultou no filme, dentre outros. Figura 2: Eu não cachorro não. Paulo Cesar de Araújo (2002) Fonte: Disponível em https://bit.ly/3nR5KN1. Acesso em: 20 dez. 2020. É importante também, a partir desse aspecto, lembrar que não apenas pesquisadores ligados a universidades e centros de pesquisa produzem conhecimento e debates relevantes para a Historiografia. Um exemplo é Paulo César de Oliveira, autor de obras como “Eu não sou cachorro não: música popular e cafona na ditadura militar e Roberto Carlos em detalhe”s, que mesmo com formação acadêmica atuava na rede pública de ensino e quando produziu essas obras não tinha vínculo ativo com centros de pesquisa ou universidades. Não se pretende afirmar que apenas aquilo produzido e está de acordo com o debatido nas academias deve ser tratado como conhecimento válido do passado, mas sim diferenciar seus objetivos e formas de construção. Até mesmo uma obra de ficção pode apresentar elementos históricos verdadeiros e trazer reflexão e aprendizagem. Na verdade, para a História acadêmica, essa busca é oposta: de forma alguma se pode estabelecer um estudo ou obra como dado absoluto. O exame crítico das fontes deve permitir revisões, novas metodologias e abordagens devem ser consideradas, assim como o surgimento de novas fontes. É exatamente esse o papel da Historiografia! 13 Abordagens do passado produzidas fora dos parâmetros científicos não fazem um determinado livro, texto ou filme mais ou menos dignos em suas representações, mas demonstram diferentes formas de interpretações do passado. Porém, no caso particular da História que aqui estudamos, com pretensões científicas e educacionais, que busca informar a sociedade e trazer resoluções sobre fatos ocorridos, é necessário outro olhar. O historiador alemão Jörn Rüsen ao comentar sobre as características da pesquisa histórica, diz que ela é “[...] é o passo metodicamente regulado, e por isso intersubjetivamente controlável, das respostas possíveis às reais” (RÜSEN, 2007a, p. 105). A palavra intersubjetivamente indica o sentido que o autor pretende dar à prática historiográfica: ela depende da subjetividade daquele que a produz, mas não a ponto de se afirmar a partir de uma única visão. Precisa estar em debate e em conjunto com a sociedade para ser validada. Dessa maneira, tem-se a terceira característica que é possível apontar para que uma obra possa ser considerada como relevante para a História: além de tratar de um passado, que é verossímil, deve ser submetida à crítica e, principalmente, ao diálogo com os pares. Por que são importantes o diálogo, a crítica e consequentemente a uma metodologia específica? Como já afirmado, essas práticas compõem os fundamentos do conhecimento histórico. Mas não é só isso. O historiador nunca consegue atingir o passado completamente e seus estudos resultam de uma espécie de “interpretação de interpretações” que alguém faz de um fato ocorrido. De maneira simplista, é como se existisse uma inevitável barreira entre o pesquisador e aquilo que aconteceu. Assim, os processos metodológicos e teóricos permitiriam ao pesquisador ver nas brechas dessa barreira partes daquilo que ocorreu; e a metodologia e a teoria auxiliariam a montar uma espécie de quebra-cabeças sobre o passado analisado. A partir desse diálogo entre os iguais, das comparações de obras, e do desenvolvimento de teorias e metodologias é possível conter distorções e interpretações demasiadamente parciais ou que fogem do que habitualmente é debatido. Isso também não significa que reviravoltas interpretativas não possam ocorrer, mas que para elas aconteçam devem ser submetidas a um profundo exame realizado pelo meio historiográfico. Destarte, a História pode ser considerada um campo do conhecimento em constante construção, onde a crítica e o debate 14 interno, se não são capazes de nos trazer a verdade sobre fatos passados, auxiliam a olhar criticamente para as interpretações que fazemos do que ocorreu. 1.3 O HISTORIADOR ENTRE A OBJETIVIDADE E A SUBJETIVIDADE A subjetividade do pesquisador torna a História (assim como as Ciências Humanas e Sociais) diferente de outros campos do conhecimento, principalmente aqueles associados ao modelo científico solidificado nas sociedades a partir do século XVIII. Por não conseguir isolar e mensurar os elementos da pesquisa, como faz um físico, biólogo ou engenheiro, os estudiosos da sociedade precisam encontrar outros meios epistemológicos para atingir seus objetivos. Em consequência seus resultados também terão naturezas e conclusões divergentes do modelo científico utilizado por outros campos do conhecimento, onde conclusões objetivas acontecem com mais frequência. Mas como chegamos a conclusões sobre um tema, já que é impossível estabelecer versões definitivas das histórias que contamos? É possível a História trazer resoluções imutáveis para a sociedade? Apesar da dificuldade em construir verdades objetivas, pois o conhecimento construído pela História se dá por debates e interpretações, é possível destacar dois aspectos: o primeiro se refere aos fatos. Ou seja, ocorridos como uma morte ou uma guerra não podemser veementemente negados. Pode-se debater as circunstâncias de um evento, as intenções de quem participa, mas dificilmente negar sua ocorrência. Essa é a parte mais objetiva produzida pelo conhecimento realizado do passado. O segundo aspecto que é possível observar, e essencial ao presente debate, se remete a subjetividade do historiador. Um mesmo tema pode ser entendido de diferentes formas, e isso não necessariamente significa um problema. Ao admitir que não conseguimos respostas finais ou sempre concordantes para o passado que estudamos, demonstra-se como a sociedade é dinâmica, assim como sua história. Dependendo da distância que se tem de um passado analisado e das condições do pesquisador, as questões sobre ele mudam. Esse aspecto é importantíssimo para um debate ao qual devemos submeter todo e qualquer tipo de conhecimento que se pretende científico. Uma das funções da ciência em todos seus diferentes campos é trazer resoluções para a sociedade. Essas resoluções se dão através de paradigmas, que 15 são constituídos através dos resultados provenientes dos estudos. Eles funcionam como regras ou padrões, que orientam o conhecimento produzido, mas são ao mesmo tempo passíveis de críticas e mudanças, realizadas no próprio debate científico. A Química, a Biologia, a Computação ou qualquer outro campo de conhecimento têm paradigmas que determinam a forma de pensar e estudar seus assuntos, ao mesmo tempo existe uma incessante busca de superação ou de outros pontos de vista que podem modificar aquele saber. Essa é inclusive uma espécie de vantagem que a ciência tem perante outros campos do saber, como a religião e a tradição. Seu debate interno e a incessante busca por novos conhecimentos não permitem a construção de um saber definitivo e imutável. Nunca há apenas uma resposta certa. Os paradigmas se modificam, são substituídos, são revisados, o que faz da ciência um saber dinâmico e que muitas vezes busca responder as necessidades e dilemas da sociedade. No caso da História, através dessa busca por resoluções e paradigmas, nos é permitido dizer, por exemplo, se houve ou não escravidão, se houve ou não nazismo, se houve ou não ditadura no Brasil, se existe ou não racismo, dentre outros. Exatamente aí reside a importância dos processos teóricos e metodológicos que 16 permitam revisar as práticas e aquilo que durante algum tempo foi tido como verdade a partir do campo do conhecimento e se modificou perante novas situações. Procedimentos epistemológicos específicos para a História são essenciais para não nos tornar reféns de uma única versão dos fatos ocorridos, de versões parciais ou distorcidas. Esse fator também serve para diferenciar opinião de conhecimento debatido e referendado. Um exemplo bem claro e que pode ser apontado de como ocorrem essas práticas se refere ao que por muito tempo foi tratado pela História oficial, e consequentemente reafirmado pela a sociedade se refere ao tema do “descobrimento” do Brasil. Diversos estudos e livros tratavam esse assunto como verdade dada, reafirmado pela Historiografia e reproduzido na sociedade. Com o passar do tempo, novos estudos, inovações epistemológicas, reinterpretação de fontes e surgimento de outras passaram a apontar uma diferente visão sobre o assunto. O que, por muito tempo foi tratado como “descobrimento”, um ato heroico dos portugueses, passou a ser reinterpretado como “conquista”. Se compararmos os livros didáticos de 30 anos atrás com os atuais, veremos claramente modificações na forma como esse tema é debatido. Não é mais apresentada aos alunos a visão de que o português chegou num lugar sem “civilização” ou “cultura”, onde apenas marcaram sua presença e tomaram posse dessas terras. Por outro lado, são apontados os conflitos e disputas, além da transformação cultural e do espaço a partir da chegada dos europeus no território que se tornou o Brasil. Tal mudança de abordagem é resultado de uma revisão crítica, possibilitada pelo diálogo que a História faz do que produz e uma clara demonstração que ela não é um campo do conhecimento que cria axiomas e verdades estabelecidas. Dessa maneira, reitera-se a importância para quem se forma como 17 historiador de ter consciência da diferença de um determinado conhecimento produzido que é ou não submetido à crítica dos seus pares. No exemplo dado, ainda é comum escutarmos opiniões que afirmam que o processo colonial só teve benefícios ao Brasil e as populações que foram envolvidas nele. Que o europeu trouxe a civilidade e o conhecimento. Esse tipo de visão obscurece estigmas da submissão dos povos originários da região que acabou se tornando o Brasil, assim como dos africanos que foram escravizados e trazidos para cá. Uma opinião sem debate pode distorcer conhecimentos produzidos e obscurecer realidades ou outras visões sobre um tema. Ao mesmo tempo a defesa de uma prática historiográfica científica não pode limitar a compreensão do passado apenas à visão que ela oferece. Diferentes formas de refletir o passado também podem compor o debate e serem válidas, através da arte, do jornalismo, da produção de memórias, dos debates que ocorrem na sociedade. Cabe ao historiador demonstrar suas diferenças, a importância da crítica e do debate, numa expressão que seja válida a todos. Desta maneira evita-se também que o debate historiográfico fique preso as academias e não atinja a sociedade, respondendo a seus anseios. 18 Apoiados em um momento de polarização política que reflete as questões da sociedade, exprimem visões que reforçam estereótipos e visões racistas. A partir de uma visão eurocêntrica da História, justificam, em seus discursos e formas, o processo de formação do Brasil como natural ou benéfico. Nessas obras, também são observados erros metodológicos, principalmente no que se refere às fontes, não submetidas a críticas ou tomadas de maneira parcial (MALERBA, 2014, p. 105). 19 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (CUITÉ 2019) No final do século XIX, Leopold Von Ranke afirmava: a História deve ser narrada como de fato aconteceu. Sobre esta busca da verdade na história, é CORRETO afirmar: a) Para narrar a história como de fato aconteceu, é preciso adotar toda a parcialidade e subjetividade possível. b) A imparcialidade se assemelha à proposta de uma Escola sem Partido quando, definitivamente, foi possível determinar a única verdade para a história. c) A busca pela verdade na história, ou seja, da narrativa do passado como de fato aconteceu, esteve distante do debate de profissionalização da história. d) A história, ao ser narrada como de fato aconteceu, deve ofertar múltiplas interpretações sobre os acontecimentos históricos. e) A neutralidade deve ser sempre uma meta a ser atingida pelos historiadores no desenvolvimento de seu ofício. 2. (MONTE HOREBE 2019) Para a Escola Positivista, metódica, do final do século XIX, representada por autores como Leopold Von Ranke e Fustel de Coulanges, a história deveria se tornar uma ciência a partir de uma metodologia baseada nos seguintes princípios: I. O conhecimento histórico deveria copiar o método objetivista das ciências naturais. II. Os historiadores deveriam buscar sempre a neutralidade, com o objetivo de encontrar uma única verdade para se narrar os eventos históricos. III. O melhor dos historiadores é aquele que menos se afasta dos textos. É CORRETO o que se afirma em: a) II e III. b) I e II. c) I e III. d) I, II e III. e) I apenas. 20 3. (IFPE 2012) “Seria uma desgraça para nós, agora que os amplos espaços do mundo material, as terras e os mares foram atingidos e explorados,se os limites do mundo intelectual fossem dados pelas descobertas dos antigos.” Francis Bacon, apud BURKE, Peter. “Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot.” Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 105. A crença na superioridade da razão é a base do pensamento Iluminista, tão bem expresso por Francis Bacon. Nesse sentido, os itens abaixo versam sobre o processo histórico Iluminista. I. A afirmativa de Francis Bacon apresenta uma das ideias fundamentais do pensamento científico: a crítica. Para o europeu do século XVI em diante, apesar da herança clássica, havia sido ele, e não os gregos, que tinha realizado as grandes navegações e a ciência experimental. II. A invenção da imprensa conseguiu expandir o conhecimento por meio da difusão dos diversos tipos de conhecimento, indo dos relatos aos dicionários e às enciclopédias. Apesar disso, o intenso analfabetismo europeu acabou impedindo o acesso ao conteúdo das obras e ao desenvolvimento intelectual advindo desse fato. III. A fé na razão e no entendimento se opunha, para os iluministas, à ignorância do pensamento embasado nos mitos da Bíblia e nos dogmas da Igreja. A partir do Iluminismo, o homem é livre para construir uma nova religião, e em seu altar, colocar a razão. IV. A Enciclopédia publicada por Diderot propunha-se a difundir todo o conhecimento humano, pronto para ser compartilhado por todos, afinal a palavra enciclopédia significa a inter-relação das ciências, nas palavras do próprio Diderot. V. Se para o filósofo iluminista a razão era libertadora, para a maior parte das monarquias europeias ela era reformista. Assim, buscando estimular o acesso às obras iluministas, os reis absolutistas providenciaram a distribuição da Enciclopédia em todo o seu reino, por isso foram chamados de Déspotas Esclarecidos. Estão corretos, apenas: 21 a) I, II e III. b) I, III e IV. c) III, IV e V. d) I, III e V. e) II, IV e V. 4. (IFRN 2012) A análise criteriosa do discurso historiográfico é uma das habilidades exigidas do professor de História. Considerando essa habilidade, analise os dois documentos a seguir: I. “Em seus escritos, os pensadores iluministas insistiam: somente a partir do uso da razão os homens atingiriam o progresso, em todos os sentidos. A razão permitiria instaurar no mundo uma nova ordem, caracterizada pela felicidade ao alcance de todos”. MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao terceiro milênio. São Paulo: Moderna, 2002, p. 250. II. “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu; e encontrou pessoas, suficientemente simples, que acreditaram nele. Quantos crimes, guerras, homicídios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: não deveis escutar este impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos e que a terra não é de ninguém”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, p. 86. (Grifo do autor) A partir desses documentos e do conhecimento sobre o pensamento iluminista, pode-se afirmar corretamente que as reflexões de Rousseau se diferenciam das ideias de outros autores iluministas na medida em que a) Defende a construção de uma nova ordem gerida por um Contrato Social, segundo a qual o progresso humano viria com a superação do estado natural. 22 b) Relativiza a importância da razão como elemento decisivo para o progresso e sugere outros aspectos que precisam ser considerados para a conquista da felicidade dos homens. c) Questiona a bondade natural dos homens com base na idéia de que a razão individualista dificulta a construção de projetos sociais coletivos. d) Aponta a Monarquia Esclarecida como única alternativa para conter a propriedade privada, considerada por ele o principal entrave para a felicidade humana. e) Aproxima razão e posse de terras. A ideia de razão e de propriedade são dependentes. 5. (Pref. Ribeirão Preto/SP 2013 – VUNESP) O documento foi definido tradicionalmente como um texto escrito à disposição do historiador. Fustel de Coulanges afirmava que “a habilidade do historiador consiste em retirar dos documentos o que contém e nada acrescentar... A leitura dos documentos de nada serviria se fosse feita com ideias preconcebidas”. A partir deste pressuposto, dois procedimentos básicos deveriam ser adotados, denominados, convencionalmente, de crítica externa e crítica interna. FUNARI, Pedro Paulo. A Antiguidade Clássica, p. 15. Adaptado Acerca dos dois procedimentos básicos a que se refere o autor, é correto afirmar que a crítica externa analisa: a) O contexto histórico a que o documento se refere e o seu significado para o período, enquanto a crítica interna procura identificar os sujeitos sociais envolvidos. b) A materialidade do documento, a sua composição física, enquanto a crítica interna procura observar se as informações do documento são verossímeis. c) O sítio arqueológico ou o arquivo em que foi encontrado o documento, enquanto a crítica interna procura situar o documento no tempo e no espaço. d) A autoria do documento e, se possível, a biografia do autor, enquanto a crítica interna procura observar a coerência e a coesão do texto do documento. e) O contexto socioeconômico de produção do documento, enquanto a crítica interna procura observar quais são os conflitos sociais que o documento 23 apresenta. 6. (IFPI-2014) Desde o nascimento do cinema, a História tem servido de referência para a realização de filmes. Nesse sentido, ao longo do tempo, as produções cinematográficas passaram a despertar o interesse de professores e alunos em sala de aula e tornaram-se fonte de conhecimento. Frequentemente, nas aulas de História e nos livros didáticos, é possível encontrar indicação de filmes que tratam de assuntos do conteúdo programático daquele ano escolar. A partir dessas sugestões, o grande desafio está na leitura de uma obra cinematográfica, relacionando-a com uma abordagem histórica que permita o encontro entre cinema e História. Para usar a expressão cunhada por Marc Ferro, na conversa entre Cinema e História podemos afirmar que: a) O estudo da imagem tem como objetivo as intenções do cineasta ou do diretor de fotografia de modo a promover a compreensão do filme a partir de sua condição de obra de arte desvinculada da realidade social. b) A utilização do filme na sala de aula faz com que sua projeção preencha o espaço de atuação do professor, reconduzindo metodologicamente a participação deste para a condição de espectador do processo de aprendizagem. c) O foco dos esforços de interpretação não deve se confinar à realidade ficcional do filme projetado, mas deve abranger também a sociedade que o produziu e dele se utilizou para discutir determinados temas e épocas que lhe interessaram. d) O método de compreensão de um filme no contexto da sala de aula exige que o professor filtre todo conhecimento prévio sobre a época e os temas tratados que não esteja sujeito a sua orientação. e) O principal objetivo do trabalho com filmes na sala de aula é recuperar o fascínio e o encantamento pela história de modo a motivar estudantes e professores para o estudo científico do passado pelo passado. 7. (IFPI 2014) Para o historiador Carlo Ginzburg: “A história se manteve como uma ciência social sui generis, irremediavelmente ligada ao concreto. Mesmo que o historiador não possa deixar de se referir, explicita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis, a sua estratégia cognoscitiva assim como os seus24 códigos expressivos permanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural.” Carlo Ginzburg. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 156- 157. A correta formulação da atitude cognoscitiva enunciada por Ginzburg, isto é, do procedimento metodológico próprio à construção do conhecimento histórico (que é, a toda prova, uma reconstrução) é: a) Quando as causas não estão disponíveis, só resta refazer a pesquisa para encontrá-las. b) Quando as causas não estão disponíveis, só resta conformar-se porque será impossível fazer história. c) Quando as causas não estão disponíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos. d) Quando as causas não estão disponíveis, só resta registrar e publicar os dados levantados. e) Quando as causas não estão disponíveis, só resta inventá-las a partir da criatividade do historiador. 8. (ENADE 2017) A história se faz com documentos. Documentos são os traços que deixaram os pensamentos e os atos dos homens do passado. Entre os pensamentos e os atos dos homens, poucos há que deixam traços visíveis, e estes, quando se produzem, raramente perduram: basta um acidente para os apagar. Ora, qualquer pensamento ou ato que não tenha deixado traços visíveis tenham desaparecido, está perdido para a história: é como se nunca houvesse existido. Por falta de documentos, a história de enormes períodos de passado da humanidade ficará para sempre desconhecida. Porque nada supre os documentos: onde não há documentos não há história. LANGLOIS, C.; SEIGNOBOS, C. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Editora Renascença, 1946 (adaptado). 25 O trecho apresentado foi publicado originalmente em 1898, na França, em um manual de História muito influente à época. Com base nesse excerto, infere-se que os documentos a) São equivalentes aos acontecimentos humanos, pois carregam em si os pensamentos e os atos pretéritos. b) Podem ser substituídos por traços que denotem tanto a presença humana no tempo quanto os gostos, gestos e valores do ser humano em determinado período. c) São registros textuais, preferencialmente produzidos por organismos vinculados ao Estado, o que assegura sua autenticidade. d) Fornecem testemunho sobre uma parcela dos acontecimentos do passado sem os quais a escrita da história é impossível. e) Recuperam o passado em si, na medida em que expressam ações e ideias de homens que viveram em épocas pretéritas. 26 ESCOLA DOS ANNALES 2.1 APRESENTAÇÃO A Escola dos Annales é um movimento historiográfico originado na década de 1920, na Universidade de Estrasburgo, localizada no nordeste da França. Concebida por Marc Bloch e Lucien Febvre, seu início ocorreu com a criação de um periódico, o Annales d’historie économique et sociale, no qual os historiadores propuseram uma crítica a alguns modelos historiográficos que tinham maior repercussão em fins do século XIX. Esse movimento é considerado por muitos historiadores como renovador por suas propostas teóricas e metodológicas. Um dos aspectos mais notórios do movimento dos Annales é a valorização de procedimentos metodológicos relativos à análise de fontes, ampliando suas possibilidades de uso e interpretação. Outra característica importante é que por se colocarem uma escola, os Annales não tem um único paradigma teórico que os norteie, mas sim seguem uma espécie de orientação metodológica. Assim, existe entre seus componentes uma diversidade de paradigmas teóricos, discussões e até discordâncias entre seus membros. De acordo com o historiador Barros (2012), paradigmas e escolas, mesmo que muitas vezes confundidos, não significam a mesma coisa. O autor trata de tal questão para justificar a expressão “Escola dos Annales”. Como já debatido na unidade anterior, o paradigma, para a ciência, pode ser entendido como uma resolução de um determinado campo do conhecimento, que serve como referência e é amplamente utilizado e veiculado. De outra forma, a escola, no sentido do termo aqui aplicado, pode ser definida como: [...] um certo programa de ação, uma determinada identidade que se forma, um campo de escolhas (teóricas, metodológicas, temáticas, éticas, associativas, geradoras de inclusão e exclusão) que permite ao praticante do campo sintonizar-se com outros que a ele se assemelham nas mesmas escolhas. (...) todos se orientam por certos princípios em comum, ou compartilham uma espécie de programa básico com a qual a totalidade das participantes da escola concordam (BARROS, 2012, p. 15). Portanto, não é possível afirmar, por exemplo, quais orientações teóricas e UNIDADE 27 metodológicas os componentes da Escola dos Annales seguem de maneira rígida. Ao mesmo tempo podem-se identificar procedimentos que compõem a forma como praticam a História. Escola, no sentido do termo aqui aplicado, se refere mais a uma maneira de participar dos debates da Historiografia do que seguir paradigmas ou pressupostos. Inicialmente, para Bloch (2001) e Febvre (2004), a História precisava romper com a metodologia e as tradições historiográficas de fins do século XIX e início do XX, que valorizavam demasiadamente os fatos, principalmente os políticos, em detrimento de uma visão que abrangesse dos diversos aspectos da sociedade. Era essa, inicialmente, a preocupação de ambos ao buscar uma nova visão sobre a História, que de acordo com as circunstâncias, acabou se tornando um de grupo de historiadores que pretendiam novas formas de produzir o conhecimento histórico. Portanto, o objeto da crítica dos Annales pode ser identificado entre três vertentes: os herdeiros diretos da tradição positivista francesa; setores mais conservadores da tradição historicista alemã, que eram aqueles mais preocupados com uma história rigidamente factual e oficial; e o que foi identificado como Escola Metódica Francesa de História, que segundo Barros (2012, p. 31)era “[...] um movimento historiográfico da segunda metade do século XIX, que assumia posições teóricas e metodológicas para a História advindas do positivismo de Comte e Durkheim e da influência metodológica do historiador alemão Leopold Von Ranke” De acordo com a crítica que Bloch (2001) e Febvre (2004) fizeram a historiadores dessas três vertentes, suas obras tinham pouco valor como conhecimento científico válido, considerados como complemento a outras ciências ou prática política de apoio aos projetos de nação. Afirmavam também que era uma História presa aos fatos e que por estar determinada a buscar veracidade e objetividade, acabavam por encerrar suas possibilidades de compreender a sociedade de maneira mais ampla. A análise da sociedade ficaria como função da Sociologia, considerada a principal ciência capaz de expor o funcionamento dos grupos humanos, a partir principalmente das considerações de Durkheim. Segundo Barros (2012, p. 15): Os Annales não elegeram como seu “outro” apenas a Escola Metódica, mas também procuraram a seu tempo construir a 28 imagem de se opunham a toda uma historiografia tradicional, diante da qual podiam se apresentar como uma Nova História Mas como ocorreu essa busca por uma Nova História? De início, partiu de uma crítica ao trabalho de dois historiadores da Escola Metódica: Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos. O texto escrito por esses dois autores, Introdução aos estudos históricos, em fins do século XIX, havia se tornado uma espécie guia metodológicopara aqueles que estudavam História na França do período. As principais críticas apontadas por Bloch e Febvre era a referente ao resultado de outra crítica, feita pelo sociólogo e economista François Simiand. Simiand afirmava que a única preocupação metodológica de Langlois e Seignobos era o estabelecimento e organização dos fatos através da análise objetiva de seus vestígios (CALDAS, 2001a). Influenciados pelo cientificismo objetivista de Ranke e pela lógica frágil do Positivismo, que afirmava ser a Sociologia a única forma de compreensão do social, a função da História ficaria restrita a descrever os fatos em suas minúcias. Principalmente a partir do século XVIII, o conhecimento produzido pela sociedade ocidental passou por intensas modificações, por conta do surgimento do Iluminismo. Modificações que estabeleceram o lugar de importância da ciência e do conhecimento formal, influenciando as formas de agir do Ocidente. Neste período o conhecimento científico promoveu uma verdadeira revolução nos modos de vida, na cultura, e nas sociedades como um todo. Modificações permitidas por avanços tecnológicos, oriundos principalmente das ciências biológicas e exatas. O status adquirido pela ciência permitiu que essa nova forma de entender o mundo fosse tomada como ponto de partida e os modelos científicos das Ciências Naturais e Exatas, principalmente da Biologia e da Física, se tornaram paradigma metodológico de construção de conhecimento. Nesse período também que diversos campos do conhecimento reivindicaram um caráter científico, em busca de respaldo e reafirmação de suas funções para a sociedade. Não diferente disso, as Ciências Humanas passam a compor esse debate e buscar seu espaço no campo científico. E é a partir dessa inspiração que os modelos historiográficos do século XIX, alvo de debates pelos fundadores da Escola dos Annales, vão embasar sua busca objetiva e descritiva dos acontecimentos. Ao pretender uma nova prática historiográfica, um dos objetivos de Bloch e 29 Febvre ao fundar a revista dos Annales, era o de reafirmar o lugar da história como ciência. Segundo Bloch (2001, p. 51), sobre o espaço da História como ciência: Os próprios sociólogos da era durkheimiana lhe dão espaço. Mas é para relegá-la a um singelo cantinho das ciências do homem: espécie de calabouço onde, reservando à sociologia tudo que lhes parece suscetível de análise racional, despejam fatos humanos julgados ao mesmo tempo mais superficiais e mais fortuitos. No trecho citado, Bloch (2001) deixa claro que a história, segundo sua visão, havia se tornado um “singelo cantinho das ciências dos homens”, lugar onde a Sociologia e outros campos do saber apenas buscavam informações. Uma das principais contribuições e que demandou um grande esforço por conta dos fundadores da Escola dos Annales foi essa busca de reposicionar a História dentro do campo científico, a partir de seus problemas e metodologias próprias. E a partir dessa busca, surgiu outra importante contribuição desses historiadores, a noção de História-Problema. Além da História-Problema, um outro ponto colocado pelos Annales como forma de confrontar a história factual e descritiva era a ideia de História Total. Um debate sobre essas ideias será desenvolvido no decorrer da presente análise. De maneira resumida, pode-se afirmar que a História Total não é aquela que almeja contar toda a história, mas sim busca analisar a diversidade de fatores que compõem um determinado evento social, sejam fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, dentre outros. A presente Unidade tem como intuito apresentar o que foi, as principais propostas e como agiam os primeiros historiadores da Escola dos Annales. Desta forma, no próximo trecho o objetivo será apresentar três dos principais historiadores desse movimento: Bloch, Febvre (primeira geração) e Braudel (líder da segunda geração). Eles são considerados elementos fundamentais para a afirmação dos Annales, e analisar suas trajetórias e propostas é de grande importância para compreender as dimensões e a importância da Escola para a Historiografia. Por fim, no último trecho da presente Unidade será apresentado o conteúdo programático identificado com a Escola dos Annales de maneira pontual, inspirado num gráfico elaborado por Barros. 30 2.2 A PRIMEIRA E A SEGUNDA GERAÇÃO DOS ANNALES Ao criarem uma revista que tinha como objetivo debater a função da História e questionar modelos de produção conhecimento, Bloch e Febvre não partiram apenas de debates inéditos para o conhecimento histórico. Na verdade, muitas das questões que ambos apontam também foram debatidas de maneira semelhante por outros pensadores e em outros lugares. Como exemplos, podemos citar vertentes do historicismo alemão que eram mais preocupadas em compreender a função da subjetividade e da relação entre indivíduo e sociedade, que tinha como Dilthey um de seus mais expressivos representantes. Outro exemplo são historiadores que buscavam na cultura os elementos de análise e compreensão histórica, como Jacob Burckhardt. A importância adquirida pelos Annales pode ser compreendida não a partir de um ineditismo (apesar de contribuírem de maneira própria em alguns temas como o tempo histórico), mas sim pela sua atitude de confronto a um modelo bastante difundido de produção e compreensão da função da História e a capacidade de organizar-se em um programa os conteúdos considerados importantes. Portanto, agora serão apresentadas de maneira breve as trajetórias e as visões históricas de Bloch, Febvre e Braudel. Pretende-se, assim, ressaltar os elementos da concepção histórica de cada um, principais obras e trajetórias, que ajudaram a delimitar os principais temas que compõem a identidade da Escola dos Annales. 2.3 LUCIEN FEBVRE E O CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO 31 Lucien Febvre nasceu em Nancy, no leste da França, em 1878 e estudou na École Normale Supérieure, onde se formou em História e Geografia. No ano de 1911 se tornou doutor e em 1919 professor de História Moderna na Universidade de Estrasburgo, na qual mais tarde irá conhecer Bloch e lançar a revista Annales d’historie économique et sociale que deu origem a Escola dos Annales. Dentre as suas obras, as de mais destaque são Martinho Lutero: um destino (1928), O problema da incredulidade no século XVI: A Religião de Rabelais (1942) e Combates pela História (1953). A seguir, uma imagem do historiador Figura 3: Lucien Febvre Fonte: Disponível em https://bit.ly/3nUoJGI. Acesso em: 20 dez. 2020. De acordo com Braudel (1965, p. 403), para Febvre, “segundo sua fórmula familiar, ‘a História é o homem’, um cortejo de personagens, mas também uma unidade, uma aproximação necessária dos contrários”. No trecho citado, é possível notar na forma como Febvre busca compreender a sociedade, através de um paralelo entre o indivíduo e o coletivo. A expressão “cortejo de personagens” indica como, dos três pensadores que serão expostos, Febvre é o que mais se aproximou do indivíduo em suas análises e concepção histórica. A partir da ação pessoal, buscava os indícios de uma mentalidade que simbolizasse a totalidade. A busca pela compreensão do todo vai apresentar diferenças nos três autores aqui abordados. Ela simboliza um ponto importante do programa dos 32 Annales, e no caso de Febvre, seu combate ao factual se concretiza na ideia de mentalidade, denominada de “equipamento mental” ou “utensilagem mental”. Para o historiador, essa mentalidade consistiria em um repertório cultural característicos do tempo em que vive, utilizados de maneira inconsciente, sem que o indivíduo as perceba, são marcas sociais e coletivas (CALDAS, 2001a). Assim, de acordo com suavisão, é também possível partir do indivíduo para o total. Para Febvre (2004), a ideia de civilização e de mentalidade eram muito próximas em seus elementos constitutivos. Compreender o equipamento mental de um grupo humano era conhecer essa sociedade por seus elementos materiais, políticos, sociais, intelectuais, dentre outros. Em um curso ministrado no Collége de France, entre 1944-45 sobre a história da civilização europeia e posteriormente publicado em formato de livro, o historiador sobre o conceito de civilização: Todo grupo humano constituído possui uma civilização, sua civilização. É o conjunto das características que a vida coletiva de um grupo (a vida material, a vida política e social, a vida intelectual, moral e religiosa) apresenta aos olhos de um observador imparcial e objetivo (FEBVRE, 2004, p. 66). Essa era a forma como o historiador pretendia se opor a análises factuais e descritivas, demonstrando sua visão de História. Por fim, em sua trajetória como pesquisador, a percepção do “equipamento mental” de um período foi realizada com maior destaque em seus trabalhos sobre Rabelais e Martinho Lutero, onde buscou os elementos da mentalidade das sociedades a que pertenciam pela análise de dois indivíduos. 2.4 MARC BLOCH E A HISTÓRIA TOTAL Marc Léopold Benjamin Bloch foi um historiador francês de origem judia, nascido em Lyon, no ano de 1886. Filho de Gustave Bloch, que também fora historiador, estudou História na Escola Normal Superior de Paris, em Berlim e Leipzig. Posteriormente tornou-se bolsista de doutorado da Fundação Thiers, quando escreveu sua tese de doutorado entre 1909 e 1912. Suas principais obras foram Os reis taumaturgos, Apologia da história ou o ofício do Historiador e A sociedade feudal. Como é possível perceber, os principais temas de Bloch eram de História da Europa Medieval. 33 Figura 4: Marc Léopold Benjamin Bloch Fonte: Disponível em https://bit.ly/3h20apC. Acesso em: 02 dez. 2020. Outro fator importante da vida de Bloch foi sua participação na Primeira e na Segunda Guerra mundial, onde lutou no exército francês, e depois da anexação da França pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, participou da resistência. Tal fato inclusive ocasionou sua prisão e posterior fuzilamento no ano de 1944. No cárcere, escreveu uma das suas obras mais importantes, Apologia da história, de grande sucesso, onde discorre sobre problemas teóricos e metodológicos da História. Sua intenção era passar a seu filho Étienne Bloch em forma de livro, o que era e o que significava a História como campo do conhecimento (BURKE, 1992). A ideia de História Total, mesmo sendo uma bandeira que norteou as críticas e os trabalhos de vários dos historiados da Escola dos Annales, teve em Bloch seu maior defensor. Como já dito, essa foi uma maneira encontrada pelos dois historiadores annalistas pioneiros de confrontar uma prática histórica factualista e descritiva. Se para Febvre (2004), a História Total se contemplava numa busca pela mentalidade, como Bloch irá concretizar essa busca? No caso de Bloch, um primeiro aspecto que podemos denotar em suas buscas históricas se concretizava na abordagem as fontes, no método, e na relação com a ciência. Portanto, para o autor a metodologia de abordagem ao passado seria uma das principais formas de combater a história factualista, 34 concretizada através da proposta de alargamento do uso de fontes. O grande problema da história política era a abordagem que se fazia das fontes, onde além de se buscar as informações oficiais, não se realizava a crítica ao material, que ainda preteria certos tipos de fontes como mais verdadeiras ou importantes que outras. Desta maneira, não bastava apenas decodificar as informações aparentes nas fontes, mas também de observar a intenção e a forma como foram produzidas, as condições e até a adequação do suporte à pesquisa. É buscar além da informação aparente o que fonte a diz, duvidar de sua provável veracidade ou até analisar se ela transmite uma informação parcial. Um exemplo está em sua obra, Os Reis Taumaturgos, onde Bloch busca explicar o poder político de monarcas não apenas a partir da legalidade hereditária e institucional que o cargo tem, mas, pelas fontes, busca compreender as ações, simbologias e crenças que asseguravam sua posição de poder. A outra grande contribuição de Bloch no sentido de compor uma História Total se refere à forma como ele propõe as explicações históricas. O historiador francês acreditava que ao escrever sobre o passado, o pesquisador não deveria se limitar a uma única forma, numa busca objetiva de causas e consequências. Os fatores que compõem a realidade devem ter a mesma relevância, e, observadas às situações, as explicações do passado deveriam identificar como cada dimensão tem influência nos ocorridos. Assim, economia, cultura, sociedade ou política poderiam ser mais ou menos importantes, de acordo com as circunstâncias e os fatos analisados. De acordo com o historiador Caldas (2001a, p. 58-59), para Bloch: “Uma coisa não determina a outra; elas agem ao mesmo tempo”. Essa explicação Histórica multifatorial proposta por Bloch nos deixa três grandes contribuições: primeiro, que ao analisar uma sociedade, nenhuma explicação ou atividade humana pode ser separada da outra; segundo, que as questões feitas ao passado podem se modificar com o tempo e o interesse do historiador é essencial para compreender as abordagens; e por último, que vários fatores e não apenas um explicam o passado. Considerado um dos maiores historiadores do século XX, a carreira abreviada de Bloch pela Segunda Guerra deixou marcas profundas para questões teóricas e metodológicas. Sua busca, ao lado de Febvre, era a de afirmar a posição da História como um campo de conhecimento capaz de trazer 35 conclusões sobre a sociedade e dialogar com o meio científico, não limitando a História a função de descrever os fatos “como ocorreram”. 2.5 FERNAND BRAUDEL E AS DURAÇÕES Fernand Braudel foi um historiador francês, também considerado pela crítica historiográfica como um dos maiores nomes da ciência em todos os tempos. Em 1929, período em que foi criada a Revista dos Annales, Braudel tinha 27 anos e trabalhava numa escola da Argélia, onde paralelamente começou a escrever e pesquisar tese sobre o Mediterrâneo. 36 Figura 5: Fernand Braudel Fonte: Disponível em https://bit.ly/2Rne9Mf. Acesso em: 22 dez. 2020. Em sua carreira também trabalhou na Universidade de São Paulo (USP) entre 1935-37 em seu período de criação, junto de outros grandes nomes da Ciências Sociais como Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide. Em São Paulo ajudou a formar as primeiras turmas do curso de História da USP, onde adquiriu experiência universitária. No retorno de São Paulo conheceu Febvre, que acabou se tornando uma espécie de padrinho intelectual. A influência da Geografia e dos debates teóricos de História a partir de Febvre acabaram influenciando Braudel, o que o fez dele também um integrante da forma de pensar a História característico dos Annales. Assim como Bloch e Febvre, se alistou no exército. Em 1939 combateu na Segunda Guerra Mundial, sendo feito prisioneiro pelos alemães em 1940. Nesse período, confinado como prisioneiro no campo de Lübeck, elaborou o argumento de O Mediterrâneo e Felipe II, que viria a se tornar sua grande obra. Nesse livro, Braudel desenvolveu uma de suas principais colaborações à Historiografia, em torno da ideia de duração. Ao analisar a região do Mediterrâneo, percebeu que as mudanças na região se davam em três ritmos temporais, os quais ele identificou como durações. Essas durações (durée) seriam divididas em longas, médias e curtas, de acordocom as quais sua obra também foi dividida. Portanto, a longa duração corresponde, para o autor, ao tempo da Geografia, da paisagem, àquele tempo 37 lento, que quase se arrasta e pouco se percebe suas modificações. A média duração seria a da língua, da economia, das formas sociais e políticas, que se desenrolam num tempo mais dinâmico, mas que necessitam de um olhar mais distante que o do evento. Por fim, a curta duração seria aquele referente ao cotidiano, às ações políticas pontuais, aos fatos em si. Na obra Escritos sobre a História, Braudel dedica um capítulo para tratar da relação entre as Ciências Sociais e a longa duração. No texto o historiador faz uma espécie de debate com o estruturalismo do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que buscava em diferentes sociedades elementos comuns. Ao encontrá-los, sua intenção era demonstrar como essas sociedades partilhavam características, como o incesto, rituais funerários ou padrões artísticos geométricos, numa busca daquilo que pudesse trazer explicações estruturais para a sociedade. Assim, em comparação aos pressupostos de Lévi-Strauss, esse estruturalismo 38 seria muito próximo daquilo que Braudel propõe como longa duração, ou seja, elementos que estão muito distantes no tempo, de modificação muito lenta, quase imperceptível. Esse debate entre Braudel e Lévi-Strauss foi essencial para o desenvolvimento do modelo historiográfico da Escola dos Annales, que em sua essência parte da ideia de interdisciplinaridade e da necessidade de afirmar o lugar da História perante as Ciências do Homem. Desta maneira, segundo Braudel (1978, p. 43): Uma razão a mais para assinalar com vigor, no debate que se instaura entre todas as ciências do homem, a importância, a utilidade da história, ou antes, da dialética da duração, tal como ela se desprende do mister, da observação repetida do historiador; pois nada é mais importante, a nosso ver, no centro da realidade social, do que essa oposição viva, íntima, repetida indefinidamente entre o instante e o tempo lento a escoar-se. Com o tempo e devido à abrangência de suas obras e debates, Braudel tornou-se importante dentro da Escola dos Annales, diretor da revista e uma espécie de liderança para a segunda geração do movimento, que também contava com nomes como Ernest Labrousse, Pierre Goubert, Georges Duby, Pierre Chaunu e Robert Mandrou. Sob a direção de Braudel a Revista dos Annales atingiu um momento de grande prestígio e reconhecimento internacional, divulgando o programa e os ideais do movimento por diversos lugares. Portanto, pode-se dizer que Braudel e a segunda geração do movimento foram em boa parte responsáveis pela grande abrangência que a Escola dos Annales adquiriu para a Historiografia. 2.6 PROPOSIÇÕES METODOLÓGICAS DOS ANNALES Conforme apresentado, a contribuição dos Annales para a História não se deu através da criação de um paradigma, mas por um projeto metodológico e teórico, que visava reafirmar o espaço da História no campo científico e encontrar novas respostas para a prática historiográfica. Esse projeto pretendeu conduzir um debate com a História e acabou resultando inicialmente na criação de uma revista e no surgimento da Escola dos Annales. Mas quais contribuições efetivas essa Escola trouxe para a História? Quais suas principais propostas? Posto isso, o objetivo agora é apontar como se deram essas contribuições, através de um quadro esquemático. O quadro esquemático a seguir foi elaborado por Barros (2012) e aponta de maneira objetiva as principais orientações para do programa da Escola 39 dos Annales. Esse trecho do presente texto é inspirado no segundo capítulo “Os Annales e seu programa”, da coleção Teoria da História. Vol. V: A Escola dos Annales e a Nova história, de Barros (2012). Figura 6: A Escola dos Annales Fonte: (BARROS, 2012, p. 103) Interdisciplinaridade: atualmente, esse termo tem fluência nos diversos campos do saber científico e é muito comentado na realidade escolar. A palavra, em si, indica alguns sentidos, dentre os quais podemos destacar: a interação entre disciplinas; a interação no interior de uma disciplina, que busca assimilar métodos e teorias de outro campo do saber; a uma formação ou obra que não se limitou a um único tipo de conhecimento; a perspectivas que incorporam dois ou mais campos do saber criando uma nova prática. Neste sentido, para os historiadores dos Annales, a busca interdisciplinar se fortalecia na construção de uma Nova História que se inspirava em conhecimentos diversos como Economia, Psicologia, Cultura, Geografia, Sociologia, dentre outros. 40 Ao ter contato com novos aportes, sistemas conceituais e metodologias, à História foi possível ampliar os tipos de fonte e problemas. Com isso a atitude interdisciplinar, pretendiam não serem confundidos com uma simples literatura que relatava fatos passados (BARROS, 2012). A História-Problema: essa noção foi um dos instrumentos mais combativos adotados pelos annalistas. Através da noção de História-Problema, Bloch e Febvre se opuseram a História Factual, a História Narrativa e a História Política (em uma vertente conservadora e tradicionalista). Para eles, a História que não fosse “[...] interpretativa, problematizada, apoiada em hipóteses” e capaz de estudar novamente eventos por novos pontos de vista (BARROS, 2012, p. 109) seria frágil intelectualmente, por se tornar uma mera descrição. Barros afirma que durante muito tempo, vários historiadores que deram continuidade à tradição dos Annales, como Braudel, Le Goff, Vovelle, Chartier, dentre outros, utilizaram a História-Problema como uma bandeira, “[...] o mais comovente de todos os instrumentos programáticos empunhados pelos annalistas” (BARROS, 2012, p. 109). Assim, a Escola dos Annales fez da noção de História- Problema um dos principais elementos da formação de sua identidade e de seu programa, essenciais no estabelecimento de suas pretensões no meio historiográfico. Por fim, o fato histórico então não seria mais, a partir de História-Problema, algo neutro e capaz de ser analisado de forma objetiva. O tempo e o lugar em que o estudioso vive, a sua formação teórica, o recorte histórico e principalmente as perguntas que ele faz as fontes é que irão dar forma as conclusões do historiador. Esse movimento promoveu uma troca entre a valorização da objetividade pela subjetividade do historiador, ao compreender a importância da visão de mundo e das hipóteses formuladas na compreensão de um passado. Fontes e cientificidade: a questão das fontes é outro ponto importante do programa dos Annales, e junto da proposta de História-Problema, foi tratado como bandeira do movimento. Ao romper com um modelo de História mais voltado ao político, ao narrativo e ao factual, um dos problemas notados era a existência de um rígido controle, análise e classificação de fontes, além da 41 predileção por documentos escritos. Era preciso propostas transformadoras que ampliassem o uso de fontes, restrito a arquivos oficiais e crônicas. O alargamento das possibilidades de fontes incluía o uso de documentos até então desprezados: de objetos e imagens a textos, vestuário, arqueologia, dados estatísticos etc. sem ordem de importância pré-determinada pelo método. O que hoje, para nós historiadores se apresenta como costumeiro, passou a ser uma importante defesa dos annalistas no período. É importante ressaltar que em nossa atual prática historiográfica a busca e a valorização de diversos tipos de fontes ainda é muito atual e que esse debate não foi exclusivo da Escola dos Annales. Essa busca, porém, vinha acompanhada de novos dilemas metodológicos e teóricos propostospelo grupo francês. Como a intenção de Bloch e Febvre incluía reafirmar o espaço da História, é importante também explicitar a forma como esses historiadores descreviam o conhecimento histórico como científico. Segundo Barros, a ideia de ciência dos seres humanos no tempo simboliza aquilo que a Escola dos Annales descreve como “[...] ciência capaz de assumir-se como conhecimento em perpétua mudança, não apenas de seus resultados, mas também de seus pressupostos” (BARROS, 2012, p. 109). Essa capacidade de mudança é que traz a História constante reavaliação teórica e metodológica, adequada às realidades, objetos de estudo, hipóteses formuladas e que busca responder as questões colocadas pela sociedade, sem se ater um modelo rígido e objetivista. O coletivo, o estrutural e o espaço: A visão sobre o coletivo, segundo Barros, é um ponto de debate onde é possível notar algumas diferenças entre Bloch e Febvre. Para o autor, Bloch tem notoriamente preocupações em produzir pesquisas que levem em conta o todo, o social, aproximando-se de uma visão estruturalista, enquanto Febvre buscava compreender a importância social do indivíduo (BARROS, 2012). Mesmo assim, as concepções teóricas de ambos tinham um ponto em comum, numa busca de compreender o social, seja pela análise do coletivo ou pela busca da compreensão dos elementos sociais nos indivíduos. Em relação ao espaço, Bloch e Febvre tiveram na Geografia um ponto de aproximação teórica e metodológica. Ambos compreendiam a importância do 42 espaço, e não apenas do tempo na construção do conhecimento histórico. Através das modificações que o humano impõe ao espaço e as suas adaptações a ele, “[...] o espaço natural, nas mãos dos novos historiadores, pode se tornar fonte histórica com a mesma legitimidade que um grande conjunto documental” (BARROS, 2012, p. 151). O tempo: De acordo com Barros, as inovações relativas ao tempo “[...] relacionam-se aos novos modos de conceber o tempo, de representá-lo, de utilizá-lo como aliado para produzir inovadoras leituras de história, pensar inusitados objetos e mobilizar novos tipos de fontes históricas” (BARROS, 2012, p. 152). Ao se opor a uma História Factual, os pioneiros da Escola dos Annales, Bloch e Febvre, estavam também questionando a relação que o historiador teria com o tempo. Foi uma maneira de se distanciar da importância do fato, alargando as possibilidades e concepções. Simultaneamente, não é possível afirmar que houve uma consonância clara de suas concepções de tempo histórico. Enquanto Bloch partia de elementos estruturais para o evento, Febvre tinha uma proposta inversa, e compreendia a partir de eventos e indivíduos a História Total. Desta maneira, Braudel, grande nome da segunda geração dos Annales, foi quem orientou de maneira mais clara o debate da relação do tempo com o historiador. Ao diferenciar as dimensões da temporalidade em três durações, Braudel também considera a possibilidade de superposição de umas as outras. Assim, se entrecruzam e se superpõem, existem ao mesmo tempo e não necessariamente anulam umas as outras. Segundo Barros: “A articulação possível entre as durações – sempre uma construção do historiador, e nunca um dado da própria realidade – permite ainda questionar sobre a qual seria o melhor modelo para o trabalho historiográfico” (BARROS, 2012, p. 164). Portanto, a importância de saber articular e reconhecer a importância das temporalidades serve também como caminho para a História não se mostrar demasiadamente descritiva ou despreocupada da importância do fato. Passado e presente: A partir das propostas dos historiadores dos Annales, a construção do passado histórico não podia ser compreendida como uma 43 operação objetiva, onde o pesquisador buscava descrever os fatos e trazê-los ao presente. Prevalecia a noção de que a História, mesmo ao buscar o passado, se realizava no presente. Com a perspectiva dos Annales, o presente coloca as questões de sua época para o passado, estruturando-o a partir de uma problematização, e reciprocamente o passado recoloca novas questões para o presente, permitindo que na operação histórica não apenas o historiador compreenda o passado, tal como ocorre na perspectiva historicista mais tradicional (neorrankeana), mas também compreenda a si mesmo (BARROS, 2012, p. 187). Dessa maneira, ao historiador a busca pelo passado, que não era mais um objeto, dependia da dinâmica e das questões que o historiador trazia em sua abordagem a partir de perguntas e hipóteses. Outra questão importante refere-se ao anacronismo. Ao reconhecer que a busca do passado se dá no presente, um cuidado que deve ter o historiador é não levar conceitos do presente diretamente para o passado. Um exemplo simples, é que expressões palavras podem ter outro significado em outros tempos, e ao ter contato com esse tipo de informação o historiador deve pensar o que essa palavra representava naquele passado, e não utilizar o conceito do presente. Note que isso delimita a diferença entre passado e presente, noção que é muito forte para a Escola dos Annales. Assim, Reis (2000) apud Barros (2012, p. 191). “o passado e o presente são diferentes que dialogam, e não a continuidade cumulativa dos mesmos” História Total: A ideia de História Total é apresentada por Bloch em diversos de seus escritos, e reafirmada principalmente por Braudel, em suas obras. Por História Total, Bloch compreende a capacidade que uma análise histórica tem de compreender as diferentes dimensões: política, social, cultural, ambiental, em busca de uma compreensão mais abrangente, e distante do modelo factualista que os Annales se opunham. Segundo Bloch (2001, p. 152): “Numa sociedade, seja ela qual for, tudo está interligado, tudo se comanda mutuamente, a estrutura política e a social, a economia, as crenças, as manifestações mais elementares e também as mais sutis da mentalidade.”. Por fim, o objetivo da Unidade foi apresentar um breve histórico da Escola dos Annales, seus três principais personagens, além de suas propostas e inovações. Na próxima Unidade, será abordada a História Cultural, que também tem uma 44 importante colaboração do movimento dos Annales, que em sua terceira e quarta gerações aprofundou seus debates nessa vertente da historiográfica. Essas duas próximas gerações, mesmo mantendo a essência de seu conteúdo programático, promoveu rupturas com as primeiras gerações. 45 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (ENADE 2014) “Destruídos todos os documentos sobre um determinado período, nada pode ser dito por um historiador. Uma civilização da qual não tivéssemos nenhum vestígio arqueológico, nenhum texto e nenhuma referência por meio de outros povos, seria como uma civilização inexistente para o profissional de História? A categoria documento define uma parte importante de atuação do historiador e a amplitude de sua busca.” KARNAL, L; TATSCH, F. G. A memória evanescente. In: PINSKI, C. B.; LUCA, T. R. O historiador e suas fontes. Contexto, 2009, p. 9. “Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, os artefatos, as máquinas, por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.” BLOCH, M. Apologia da História ou o ofício do historiador. São Paulo: Zahar, 1989, p. 54. Considerando a necessidade dos historiadores se valerem de registros documentais para produzir conhecimento e, paralelamente, o enorme alargamento de nossa
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