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Carlo Romani Aula 5 Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” História Contemporânea II 2 Meta da aula Apresentar alguns dos processos de independência das antigas colônias com a retirada do antigo país europeu dominante e o surgimento de um bloco de países politicamente independentes, mas economicamente menos desenvolvidos. Objetivos Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1. reconhecer o debate sobre libertação nacional e descolonização, como uma análise das diferentes estratégias adotadas pelos territórios colonizados e pelos impérios coloniais na disputa; 2. identificar as peculiaridades da descolonização e das lutas pela independência, e os seus desdobramentos em diversas regiões do planeta; 3. analisar o significado do conceito “Terceiro Mundo”, na conjuntura geopolítica pós- 1945. Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 3 INTRODUÇÃO Luta pela independência e/ou descolonização? As interpretações mais tradicionais para o mundo que se forma fora do eixo hegemônico americano-europeu, após a II Guerra, apontam para um processo de descolonização dos antigos territórios sob domínio colonial, coordenado politicamente pelos governos dos países ocupantes, principalmente o britânico e o francês. Contudo, principalmente a partir da década de 1970, muitos autores, alguns deles provindos dos países que viveram a ocupação colonial, começaram a apresentar teses diferentes, nas quais a libertação nacional foi resultado de uma longa luta pela independência dos povos colonizados que expulsou o ocupante estrangeiro. A começar pela desconstrução feita pelo crítico palestino Edward Said sobre o orientalismo, os estudos ocidentais sobre o Oriente e a crença na existência de uma superioridade intelectual e moral do colonizador sobre o habitante da colônia. Foi essa crença que legitimou o colonizador a acreditar estar fazendo “a melhor forma de governo” nas colônias, mesmo não levando em conta sua cultura e a diferente lógica de pensamento, e isso persistiu mesmo após o fim da Segunda Guerra (SAID, 2007). Em relação ao período pós-guerra, o economista egípcio Samir Amin fala do surgimento de um novo tipo de imperialismo, resultante da dependência econômica dos países recém-independentes (AMIN, 1984). Um modo de dominação indireta, principalmente econômico, mas também cultural, inclusive em relação ao acomodamento das elites acadêmicas nativas (no caso do mundo árabe) que se viram reproduzindo conceitos e discursos, criados no Ocidente. Na década de 1960, o economista alemão André Gunther Frank foi um dos primeiros teóricos a pensar as relações de dependência, a partir da perspectiva dos países mais pobres; ele nos falou em um crescente História Contemporânea II 4 “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, como resultado dos novos processos econômicos (mundialização ou globalização) que surgiram com o fim das colônias (FRANK, 1966, p. 17-31). Os estudos mais recentes têm problematizado o termo “descolonização”, como se a independência das colônias tivesse sido obra dos próprios colonizadores. A partir dos anos 1970, a maior parte da literatura, produzida por estudiosos provenientes dos antigos países colonizados, fala em resistência, guerra de independência e libertação nacional. Resistência e desobediência, por exemplo, são termos recorrentes na literatura histórica anglo- indiana sobre a luta pela independência. O paquistanês Tariq Ali foi um dos intelectuais que encabeçaram essa releitura histórica com a valorização das civilizações orientais e a construção de uma interpretação crítica sobre o Ocidente. Mas também na Índia, país que em função de interesses econômicos, profundamente arraigados, continuou mantendo relações privilegiadas com os britânicos, a historiografia mais recente discute o papel desempenhado pela política colonial britânica – ou a ausência de uma – que teria levado aos diversos conflitos internos e à divisão territorial da Índia, em 1947. Nos estudos culturais britânicos, o antropólogo Jack Goody (2006) não poupou esforços para mostrar as violências realizadas pelo Ocidente em todas as regiões que colonizou, seja de modo físico e explícito, seja numa tentativa implícita de dominação cultural. Enfatizou, também, a construção simbólica de um tipo de resistência cultural que em última instância é também política e permitiu, por exemplo, levar adiante o processo pacífico de desobediência às ordens britânicas, liderado por Gandhi. Mesmo tendo uma base tecnológica e financeiramente dependente das nações ocupantes, com a troca de experiências e na medida em que as construções políticas herdadas dos colonizadores foram sendo transformadas, os povos submetidos colonialmente buscaram sua emancipação. Em alguns poucos casos sem grandes conflitos, como em boa parte do mundo árabe, e em outros, foram necessárias guerras de independência, como na Argélia, na Indochina, e em grande parte Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 5 dos países africanos como, por exemplo, a ex-colônia portuguesa de Angola. Por outro lado, Eric Hobsbawm opôs-se ao relativismo dos culturalistas ingleses (HOBSBAWM, 2003, p. 198-219). Ele reconheceu o valor e a permanência das culturas locais, mas construiu seu argumento histórico com base no fato de que, mesmo após a independência, na maior parte dos novos países prevaleceu uma forma de administração política, protagonizada pelas elites nacionais que reproduziu, em grande medida, as práticas por ela aprendidas durante sua formação acadêmica no país colonizador. A transferência de poder de uma elite colonizadora para uma elite nacional em circunstâncias que impossibilitaram reordenar a administração do Estado e a economia para atender às demandas dos povos libertados, seria a causa da proliferação de conflitos internos pelo controle político, por exemplo, em grande parcela das novas nações africanas. A passagem de poder para um governo independente, além de deixar de onerar os custeios de administração do antigo país imperial, em muitos casos não implicou o desmantelamento da antiga base econômica, mantendo-se a relação de dependência existente. O debate entre libertação ou descolonização também ocupou um capítulo inteiro na obra de Marc Ferro (2006, p. 346-88). O historiador francês enfatizou a conveniência econômica em que o processo de descolonização tornou-se, favorecendo as combalidas economias da Inglaterra e da França do pós-guerra. No caso francês, cujo modelo republicano fez com que as colônias tivessem se tornado departamentos da nação, a presença cultural e econômica francesa persiste ainda hoje em dia, principalmente, na África Ocidental. Mas, argumenta Ferro, a redefinição dos envolvidos na exploração econômica das ex-colônias mudou também o caráter nacionalista do imperialismo da primeira metade do século XX. Por exemplo, a Grã-Bretanha, que em 1950 mantinha metade de seu comércio ainda praticado com as colônias, em 1970 tinha somente um quarto dele, com a acentuada entrada das outras economias europeias, História Contemporânea II 6 dos americanos e dos japoneses no comércio mundial. O mundo globalizado das corporações que conhecemos hoje em dia tomou grande impulso justamente com o fim das “dependências ultramarinas que já não precisavam ser mantidas sob o jugo do antigo sistema político. Doravante as multinacionais podiam, utilmente, substituí-lo” (FERRO, 2006, p. 351). A retiradabritânica da Índia e suas consequências Figura 5.1: A partição da Índia (1947). Mapa com divisão e conflitos internos. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Partition_of_India-en.svg hi sto ric ai r Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 7 A historiografia anglo-indiana considera o período de luta interna pela independência aquele que vai de 1935, quando houve a criação do “Government of India Act”, até o ano de 1947, quando houve a partição entre Índia e Paquistão. Contudo, o ato de 1935 já havia sido resultado de anos de luta de desobediência civil, encabeçada por Gandhi, e de guerrilha urbana e rural, liderada por Jawaharlal Nehru, os dois líderes históricos do Congresso Nacional Indiano. Além da resistência hindu aos britânicos, a significativa parcela de habitantes muçulmanos na Índia já era representada politicamente pela Liga Muçulmana. O próprio nome Pakstan foi uma invenção recente, de 1933, para designar na língua urdu, uma variante do persa, a terra (stan) dos puros (pak). A minoria muçulmana receava que, com a futura independência, seria alijada do poder político e no ano de 1940 já lutava por um governo autônomo. Com a chegada da Segunda Guerra e a possível invasão japonesa da Índia, o governo britânico conclamou os indianos para a defesa nacional. A participação de tropas anglo-indianas na guerra, especialmente o famoso exército sikh, recrutado no Punjab, foi controversa, já que houve a recusa formal das lideranças nacionalistas hindus, para quem os britânicos também eram inimigos. Em 1942, houve a prisão de Gandhi, que encabeçava o movimento político “Deixem a Índia”, fato que levou Subhas Bose da ala radical do partido do Congresso a organizar um Exército Nacional Indiano com apoio japonês para combater os ingleses. Ao fim da Segunda Guerra, não havia mais clima político para a continuidade da ocupação britânica e tornou-se evidente que o Império forçosamente teria de se retirar da Índia. Barganhando com as diferentes perspectivas do nacionalismo indiano (hindu e muçulmano) em confronto, os ingleses apoiaram a partição da Índia e a formação de dois estados independentes em 1947, para desgosto da maioria hindu. Mais do que a luta pela sobrevivência política num futuro estado nacional unificado, as elites políticas nacionalistas tiveram de enfrentar a resistência do que os asiáticos chamam de comunalismo, História Contemporânea II 8 o poder político territorial estabelecido nos diversos principados locais. Durante a colonização, as lideranças conservadoras locais foram incentivadas pela política colonial do Império Britânico que via em sua manutenção aliados para barrar o crescente processo de luta pela construção de um estado nacional independente. Os principados, herdeiros das antigas tradições medievais indianas, mantinham a população local sob um rígido sistema de controle social, derivado do sistema de castas do hinduísmo. Na análise política dominante na historiografia tradicional, entendia-se a resistência dos principados ante a inevitável unificação nacional indiana, como uma forma de receber indenizações pela entrega das soberanias provinciais. Mas uma nova historiografia cultural, desenvolvida desde os anos 1970, vem desmontando essa tese e mostrando outro ponto de vista. O apoio popular aos principados e as revoltas, genericamente designadas como comunalismo em oposição ao nacionalismo, passaram a ser entendidas como formas de resistência à centralização estatal e o receio da perda dos antigos valores tradicionais, liames para a manutenção de uma vida mais autônoma nas comunidades (PANDEY, 2003). O comunalismo asiático envolve toda uma prática cultural e religiosa tradicional que muitas vezes se confronta com a realidade e a necessidade do mundo urbano moderno. Sua permanência não deixa de ser uma forma de resistência ao avanço do capitalismo contemporâneo, protagonizado pelas grandes corporações, cuja dinâmica econômica requer estratégias políticas integradas a nível nacional e internacional, desorganizando as economias locais e a manutenção do poder político regional. A partição da Índia foi tida pelos acadêmicos ingleses e indianos tradicionais como uma derrota do nacionalismo hindu, dirigido por Gandhi e Nehru. Boa parte da historiografia inglesa do pós-guerra procurou absolver o regime britânico dos sangrentos confrontos que marcaram os anos de 1947 e 48, em seguida à divisão da Índia. Para essa historiografia, o imediatismo do Congresso Nacional Indiano em obter a independência e a Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 9 política divisionista de Muhammad’Ali Jinnah, o líder da Liga Muçulmana, exacerbaram os ânimos, levando inevitavelmente aos confrontos. Interpretações historiográficas mais recentes como de Moore Jr., contudo mostraram que a falta de um plano britânico de descolonização numa região densamente povoada por grupos étnico-linguísticos e religiosos diferentes somente poderia levar a conflitos difusos e generalizados. Para essa historiografia, a palavra descolonização significou somente a debandada das forças militares britânicas, as únicas que poderiam ter evitado os conflitos (PANDEY, 2003). O número de mortos estimado varia de 200 mil, segundo os observadores britânicos, até dois milhões, segundo as novas leituras feitas pelos historiadores indianos. Os conflitos entre muçulmanos, hindus e sikhs, que ocorreram nas vilas e no campo das regiões do Punjab, noroeste da Índia, e de Bengala, no lado oriental, provocaram também as primeiras diásporas de refugiados do pós-guerra. Estima-se em mais de 15 milhões o número de refugiados que tiveram de se movimentar de uma nova fronteira a outra. E ainda houve a luta interna pelos domínios dos príncipes que não aceitaram os termos da perda de soberania. Ao norte, no Kashmir, um principado de maioria muçulmana, governado por um marajá hindu que não aceitou a repartição do território, houve um confronto mais amplo, entre os estados da Índia e Paquistão, levando a uma segunda guerra em 1965 e provocou a corrida armamentista nuclear entre as duas nações. A tensão entre hindus e paquistaneses atingiu o ápice na guerra de 1971, quando a Índia apoiou a separação da província de Bengala, atual Bangladesh, dividindo e enfraquecendo o Paquistão. História Contemporânea II 10 Figura 5.2: O conflito árabe-israelense em quatro tempos. Fonte: Adaptado de Courier International Hors-Série, Paris, fev/mar/abr 2009, p. 33. Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 11 O fim do mandato britânico e a partilha da Palestina A retirada da Índia, após o término da Segunda Guerra, não modificou, a princípio, a continuidade da posição britânica no Oriente Médio. Com o início da “Guerra Fria”, a permanência da Grã-Bretanha como potência ocidental na região foi vista pelos aliados ocidentais como uma necessidade estratégica para a proteção de seus interesses econômicos: o petróleo e a via de comunicação marítima com a Ásia. Na maior parte do Oriente Médio, o Reino Unido soube lidar com os interesses conflitantes entre os diferentes grupos árabes em cada região, menos na Palestina, onde a intensificação da imigração judaica, após o holocausto nazista, colocou os ingleses numa posição delicada. A Shoah, nome que na língua iídiche significa catástrofe e tem sido usada para substituir holocausto, criou um ambiente favorável na Europa e nos EUA, onde havia uma grande comunidadehebraica política e economicamente forte, para a implantação de uma política de migração em larga escala para a Palestina. A busca de um novo lar e de um refúgio após o holocausto, o êxodo para a terra prometida, foi logo direcionada para o desejo sionista de construção do estado independente de Israel. E a comunidade hebraica na Palestina encontrava-se militarmente bem preparada, tendo inclusive, participado junto com as tropas britânicas da campanha da Segunda Guerra. A ideia cada vez mais viável da criação de um estado judeu trouxe forte reação entre os árabes que temiam a desapropriação de suas terras e a perda de poder na região, passando a exigir também a criação de um estado árabe na Palestina (SAGHIE, 2001). Pressionada pelos Estados Unidos a favor da criação de um estado judaico, a Grã-Bretanha resolveu enviar em 1947 um plano de partilha à ONU. Esse plano logo recebeu o apoio dos EUA e da Rússia, mas foi rejeitado pelos países árabes, membros da ONU, que incentivaram a formação de um grupo armado de voluntários palestinos para a defesa de seu território. Nessa situação, os conflitos História Contemporânea II 12 na Palestina entre árabes e judeus multiplicaram-se, o que colocou a Grã-Bretanha numa posição ainda mais delicada, levando-a a antecipar a retirada de seu mandato para o dia 14 de maio de 1948. Assim como na Índia, os britânicos, pressionados por um conjunto de fatores contrários, resolveram abandonar o barco na expectativa de que os atores diretamente envolvidos na disputa acertassem seus ponteiros. Mas, ao retirarem sua força militar do território, repetiram-se os fatos ocorridos na Índia. Imediatamente, David Ben Gurion, o líder da comunidade hebraica, anunciou o nascimento do Estado de Israel, logo reconhecido pelos EUA e pela Rússia, enquanto que os países árabes fronteiriços, discordando da decisão, entraram com seus exércitos naqueles que deveriam ser os territórios árabes do plano de partilha. As forças armadas do Egito ocuparam Gaza, as da Síria o norte da Palestina, e as da Jordânia e Iraque cruzaram o rio Jordão. Como as fronteiras não estavam demarcadas e ambas as populações conviviam no mesmo espaço, o conflito rapidamente evolui para uma guerra entre os exércitos árabes e os israelenses. Somente em janeiro de 1949, chegou-se a um acordo de paz supervisionado pela ONU, pelo qual, quase três quartos das terras da Palestina, incluindo toda a faixa marítima, ficaram para o Estado de Israel. O fim da guerra seria apenas o início de um novo e longo capítulo de história, ainda longe de acabar. O cessar-fogo de 1949 foi encarado pela população dos países árabes como uma vergonhosa derrota para Israel. Os ingleses foram acusados de favorecerem os judeus e os Estados Unidos surgiram aos olhos dos árabes como os grandes interessados no estabelecimento de um estado sionista no Oriente Médio. A primeira definição das novas fronteiras provocou uma fuga de mais de 800 mil árabes que viviam nas terras da Palestina, refugiando-se na Jordânia, na faixa de Gaza e no Líbano (VIDAL, 2007). A partir dessa diáspora, organizou-se uma resistência permanente à nova ocupação israelense, protagonizada pelos guerrilheiros fedayin, os mártires, que irá posteriormente, em 1964, desenvolver um braço político maior através da Organização Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 13 para a Libertação da Palestina, OLP, liderada por Yasser Arafat, da facção nacionalista Fatah. Em 1956, durante a crise do canal de Suez, quase houve outra guerra, envolvendo Egito e Israel, que fez com que a ONU mantivesse tropas ao longo de toda a fronteira dos dois países, no Sinai. Ainda houve outras duas guerras: a de 1967, rapidamente vencida por Israel que ampliou o seu território; e a de 1973, uma ofensiva árabe desencadeada durante o Yom Kippur, o feriado do dia do perdão do judaísmo, que trouxe mais do que uma vitória militar, uma vitória política aos árabes. A partir desse ano de 1973, a união dos países árabes forçou a OPEP, a Organização dos Paises Exportadores de Petróleo, a adotar uma política de retaliação contra Israel, diminuindo a produção mundial de petróleo e fazendo seu preço disparar no mercado internacional. A escassez do produto fez do árabe no Ocidente um tipo detestado e ameaçador, uma nova imagem que já vinha sendo construída desde o atentado palestino contra a equipe olímpica de Israel no ano de 1972 em Munique. Segundo Said, houve a “transferência, no ânimo antissemita popular, de um alvo judeu para um alvo árabe”, o que fortaleceu a política de segregação dos árabes em Israel (SAID, 2007, p. 382). Após a Segunda Guerra, uma historiografia israelense, eminentemente sionista, preocupou-se em investigar os números do genocídio e em construir a memória histórica do holocausto. A memória da Shoah serviu num primeiro momento para aglutinar as forças internas, unindo sionistas e não sionistas e, no exterior, atrair os países que de algum modo se sentiram responsáveis por não terem conseguido impedir o antissemitismo e o genocídio praticado pelos nazistas. Num segundo momento, a Shoah serviu para estimular internamente o revisionismo sionista sob o lema “holocausto nunca mais”. Segundo Idith Zertal, essa política continuada faz a população de Israel perceber-se sempre como uma “vítima inocente sem responsabilidades sobre o que lhe aconteceu”. Esse discurso, construído sobre a memória do holocausto, justificou a ação violenta do Estado de Israel ao impor sua força esmagadora sobre os vizinhos História Contemporânea II 14 árabes. A política de defesa tornou-se uma política de ataque continuado contra aqueles palestinos que, na impossibilidade do convívio comum, passaram a ver na destruição do Estado de Israel sua meta de vida. E no plano político interno israelense criou-se um clima inseguro ao ponto de a crítica ao sionismo ser interpretada como puro antissemitismo. Nos últimos anos, com base no estudo de documentos do governo, o grupo de “novos historiadores”, como: Ilan Pappe, Benny Morris e Zertal, vem revendo essa posição sionista de vítima dominante na historiografia oficial (PAPPE, 2006). Atende aos Objetivos 1 e 2 1. Aponte as consequências da descolonização e retirada britânica das duas regiões a seguir: a) na Índia; b) na Palestina. ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 15 Resposta Comentada a) Na Índia, a retirada britânica em 1947 levou à sua divisão em dois estados independentes, a Índia de maioria hindu e o Paquistão de maioria muçulmana. A partição da Índia provocou um conflito generalizado entre as populações de muçulmanos, hindus e sikhs que tiveram de abandonar suas habitações, nos lugares onde eram minoria e migrarem paraoutras áreas. Na ausência do exército britânico para impor a ordem houve até dois milhões de mortos, segundo algumas estimativas. b) Na Palestina, ao término da Segunda Guerra, o incremento da migração judaica de refugiados do holocausto nazista obrigou a um plano de partilha do território entre árabes e judeus. A retirada do exército britânico da Palestina permitiu a imediata criação do Estado de Israel, o que levou à primeira guerra com os árabes em 1948/49. A população palestina foi obrigada a retirar-se de seu próprio território, dando início a um período de tensão e conflitos que se estende até o presente. A liderança egípcia no mundo árabe A crise diplomática no canal de Suez em 1956 foi o episódio que assinalou a ascensão do Egito ao papel de protagonista político internacional, líder do mundo árabe e dos países recém-saídos do domínio colonial. Construído e administrado por um consórcio anglo- francês ainda no século XIX, o canal é uma obra de infraestrutura fundamental para a logística de transporte entre a Ásia e Europa. O Egito, ocupado pelo Reino Unido desde 1882, sempre manteve uma posição autônoma dentro do antigo Império, desde que sua realeza não confrontasse a política britânica. Ao final da Segunda Guerra, a Grã-Bretanha ainda conseguiu um acordo de controle sobre a zona do canal, mantido sob a ameaça velada de intervenção militar. Mas, com a instalação da República em 1952, o presidente egípcio Gamal Abd al-Nasser desequilibrou as iniciativas ocidentais através de suas posições nacionalistas radicais: ele foi o mentor História Contemporânea II 16 político do pan-arabismo e da criação de uma futura República Árabe Unida a partir do Egito (HOURANI, 2006, p. 524-41). Nasser atacou e perseguiu os “Irmãos Muçulmanos”, o grupo egípcio do fundamentalismo islâmico e o colocou na ilegalidade. Político hábil, Nasser aproveitou-se do sentimento antissionista entre os árabes, discursando para multidões no Cairo onde era aclamado, e jogou com os interesses capitalistas no canal para barganhar investimentos norte-americanos e europeus em seu país. Figura 5.3: O mundo árabe e os países que compõem a Liga Árabe. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Arab_world.png No início da “Guerra Fria”, Nasser liderou o grupo dos países não alinhados que estabeleceram conversações paralelas com a URSS. Pensava com isso poder obter trunfos futuros junto aos EUA, isolando e enfraquecendo politicamente o Estado de Israel. O efeito causado foi contrário e os EUA retiraram o apoio financeiro ao Egito. Eram os tempos da dura reação ao comunismo Pan-arabismo Movimento político não religioso com objetivo de reunir os países de língua árabe numa grande comunidade de interesses. Foi um movimento que ganhou peso em 1945 com a criação da Liga Árabe para a unificação nacional de todas as populações árabes, desde o Marrocos até o Iraque. Fundamentalismo islâmico Derivado da palavra árabe usulí, refere-se historicamente aos estudiosos do direito islâmico. No presente, o fundamentalismo aspira adequar um estado islâmico às necessidades materiais do mundo moderno, mantendo a aplicação da sharia e seguindo os ensinamentos de Maomé. Não alinhados Nome dado aos países também denominados de Terceiro Mundo. Uma frente de países em desenvolvimento que exercia poder político por ser maioria na Assembleia Geral da ONU, mantendo independência em relação aos dois blocos opostos de países aliados dos EUA e da URSS. Va rd io n Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 17 e a política do secretário de Estado Alan Foster Dulles não aceitava qualquer tipo de aproximação com a URSS. A resposta de Nasser foi nacionalizar a Companhia do Canal. Essa atitude fez com que a Inglaterra e a França estimulassem Israel a invadir o Sinai, e ocupar a zona do canal, pensando, assim, conseguir forçar a queda de Nasser. Quando o impasse diplomático parecia caminhar para um segundo conflito árabe-israelense, EUA e URSS entraram em conjunto em cena, “dissuadindo” a França e a Inglaterra de suas intenções; essa seria a pá de cal no imperialismo anglo-francês, tornados atores mundiais de segundo escalão. O Egito de Nasser passou a praticar um tipo de “socialismo árabe” não alinhado, com a centralização do poder político e o Estado no controle da economia, uma liderança que se manteve forte até a derrota na segunda guerra árabe-israelense, a chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967. A vitória relâmpago de Israel, destroçando as posições conjuntas do Egito, da Síria e da Jordânia anunciou a esmagadora supremacia militar hebraica na região e mostrou ao povo árabe que Nasser e o pan-arabismo já não eram tão poderosos assim. Apogeu e queda do nasserismo O vídeo a seguir, produzido pela televisão fran- cesa, mostra a multidão, ovacionando Nasser no seu discurso de nacionalização do Canal de Suez: http://www.youtube.com/watch?v=YlbdV8bbNUk Já o breve documentário a seguir, também trata da crise diplomática internacional em Suez, mostrando cenas da guerra que não houve: http://www.youtube. com/watch?v=VpIfbBLBmr8 Ambos os documentos servem para situarmos o expres- sivo apoio popular dado a Nasser, o que lhe permitiu emergir como líder político do Terceiro Mundo. Contu- do, em 1967, Israel ignorou as resoluções da ONU e as provocações egípcias, e seu incontestável poder História Contemporânea II 18 militar redimensionou para baixo a força de Nas- ser, tanto no cenário árabe, como no mundial. Assista a um breve documentário com imagens da Guerra dos Seis Dias: http://www.youtube.com/ watch?v=9uQC9RD3W4Y Atende aos Objetivos 1 e 2 2. Relacione a ascensão do presidente egípcio Nasser ao desenvolvimento de uma política nacionalista comum entre os países de fala árabe. ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada Gamal Abd al-Nasser foi o primeiro líder carismático árabe do pós-guerra. O presidente egípcio liderou o mundo árabe na criação de um movimento pan-arabista em defesa de interesses comuns. Sua atuação, na crise do canal de Suez, isolou a Grã-Bretanha e Israel, jogando com os interesses de EUA e URSS, trouxe ao povo árabe de volta a autoestima perdida na guerra de 1948 contra Israel. Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 19 A descolonização dos franceses: dois capítulos de guerra Na Argélia, colonizada pelos franceses desde 1830, existia uma forte comunidade de descendentes de imigrantes de origem francesa, os pied-noirs. Na década de 1940, esses franco- argelinos eram quase 15% da população total e concentravam- se principalmente nas principais cidades de Alger e Orã, onde compunham a elite econômica e intelectual. Durante a Segunda Guerra, a Argélia foi ponto estratégico da resistência francesa (desde maio de 1943, Charles De Gaulle comandou a “França Livre”, a partir de sua base em Argel), envolvendo os pied-noirs, franceses refugiados e árabes argelinos. Boa parte dos pied-noirs era formada de intelectuais de esquerda, como Albert Camus, que acreditavam numa França e numa Argélia socialista, unidas numa só nação. Imaginavam que seria possível um país em que todos fossem igualmenteargelinos: franceses, berberes, árabes, judeus, cristãos e muçulmanos. Não seria possível. Fora desse pequeno círculo franco-argelino de intelectuais, o poder da França impunha-se pela força e quando o império colonial deu sinais de fraqueza durante a guerra, o nacionalismo árabe surgiu com força na Argélia, calcado na revalorização da lei do Islã, sufocada pelo direito francês. Com a recusa francesa de conceder a independência à Argélia, a radicalização política entre colonos franceses e árabes argelinos acirrou-se e o conflito armado tornou-se inevitável (FERRO, 2006, p. 325-38). Em novembro de 1954, surgia o Front de Liberátion Nationale, FLN, que pegava em armas contra o exército francês. O primeiro ano do conflito foi marcado pelos atentados a bomba e pela sabotagem das posições militares francesas, contra-atacada por uma intensa repressão policial aos bairros pobres e às aldeias montanhosas da Cabília (bases do FLN), com a prática sistemática da tortura contra qualquer suspeito. Mas, em janeiro de 1957, o desembarque de oito mil paraquedistas do exército francês em Argel transformou História Contemporânea II 20 definitivamente um conflito difuso em uma guerra generalizada entre os fellaghas, os guerrilheiros argelinos, e o exército francês que contava com mais de 500 mil homens. Até poucos anos atrás, o governo francês não admitia nem que o conflito tivesse sido uma guerra entre a França e a Argélia, nem a prática da tortura, ciente do ônus, financeiro e moral, que esse reconhecimento implica: “A tortura não foi apenas ação de alguns militares sádicos e isolados. Pelo contrário, ela se inscreve dentro da história da colonização” (BRANCHE, 2001). O fim da guerra veio em março de 1962, em parte porque o presidente De Gaulle, como estadista que era, sabia do enorme peso político para um país, símbolo do republicanismo moderno, insistir em manter uma colônia que guerreava pela sua libertação. O preço foi alto: 300 mil mortos entre os argelinos e vinte mil entre os franceses. Mas mesmo com o final da guerra ainda houve uma violenta retaliação francesa através dos terroristas da Organização do Exército Secreto, OAS, destruindo a infraestrutura do país. A permanência dos imigrantes e de seus descendentes tornou-se impossível. Em 1965, o socialista independente Houari Boumediene assumiu o poder, fortemente influenciado pelo nasserismo, e a Argélia retomaria o diálogo com a França, inspirada numa cultura de nacionalismo republicano. O cinema como documento histórico da Guerra da Argélia A batalha de Argel, uma produção ítalo-argelina de 1966, dirigida por Gillo Pontecorvo, narra a guerra de independência da Argélia, utilizando-se de técnicas cinematográficas do neorrealismo italiano em que se misturam ficção e documentário. A ação con- centra-se entre 1954 e 1957, mostrando como agiam os dois lados do conflito: o exército francês recorria à política de eliminação e à tortura, a Frente de Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 21 Libertação Nacional [FLN] praticava a guerrilha e os atentados contra os dominadores franceses. Veja o trailer em http://mais.uol.com.br/view/a56q6zv70hwb/a- batalha-de-argel-040266D8A123C6 A Indochina foi outra região onde a descolonização francesa resultou em desastre. Em todo o Sudeste Asiático, ao final da Segunda Guerra, houve uma completa desorganização da administração colonial anterior. A ocupação japonesa já havia substituído os impérios europeus e as forças libertadoras nacionais eram fortemente influenciadas pela guerrilha comunista de Mao Tsé-tung. Assim, na Birmânia, na Malásia, na Indonésia e no Vietnã, a guerra pela independência nacional foi acompanhada da tentativa de implantação de estados comunistas. No Vietnã, em agosto de 1945, Ho Chi Min organizou o governo comunista do Vietminh com sede em Hanói, no norte do país. O governo francês aceitou a independência do Vietnã, mas em março de 1946 buscou retomar seu domínio colonial, através da instalação de uma república autônoma na Conchinchina, na região de Saigon. O Vietminh não aceitou essa divisão do Vietnã em dois, na expectativa de que o governo da França, pressionado pela esquerda francesa, revisse sua posição. Como Marc Ferro escreveu, “Ho Chi Min conhecia a diferença entre a França que liberta [a da Revolução e a da Comuna] e a que oprime” (FERRO, 2006, p. 305). A esperança nos comunistas franceses foi em vão. Minoritários no governo provisório do pós-guerra, a França não reviu sua posição e em dezembro de 1946 iniciava-se a Guerra da Indochina. Uma guerra na qual a França, ao contrário da Argélia onde residiam mais de milhão de franceses, somente tinha interesses econômicos; viu-se envolvida no contexto norte-americano da “Guerra Fria” que, com a vitória da Revolução Chinesa de Mao, em1949, concentrou no Extremo Oriente as operações militares. História Contemporânea II 22 A França, enfraquecida pela reconstrução do pós-guerra, foi presa fácil do Vietminh que venceu a guerra na batalha decisiva de Dien Bien Phu, em maio de 1954, uma derrota humilhante para os franceses e que encorajaria os argelinos em sua guerra de libertação nacional. Contudo, no contexto da Guerra Fria, sofrendo pressão dos EUA e da URSS, o Vietnã aceitou provisoriamente a divisão do país em duas áreas no paralelo 17, a do Norte e a do Sul, enquanto se organizaria a retirada francesa até as eleições de 1956. O novo governo sul-vietnamita, comandado por Ngo Dinh Diem, envolvido pelos interesses do capitalismo e apoiado pelos EUA, não aceitou a reunificação sob o regime comunista, implantou uma ditadura militar e levou o país à guerra civil, em 1959. A guerrilha da Frente de Libertação Nacional (chamada pejorativamente de vietcong) foi criada, unindo os comunistas e os nacionalistas vietnamitas, atuando na parte sul do país. Durante os cinco primeiros anos, a intervenção dos EUA no Vietnã limitou-se ao apoio logístico e bélico ao governo de Dihn Diem até que em 1964 o exército norte-americano em Saigon assumiu o controle das ações militares, passando a atacar o norte, dando início à “guerra americana” do Vietnã. O conflito somente acabaria em 1975, com a amarga derrota e a debandada das tropas norte-americanas de Saigon; seguiu-se a unificação do Vietnã e a extensão da revolução comunista para os vizinhos Laos e Camboja. Os múltiplos Vietnã do cinema O cinema, particularmente o norte-americano, até como um exercício de catarse da intervenção no Vietnã, logrou um conjunto excepcional de filmes para analisarmos os diferentes enfoques dados à guerra. Começando pelo nacionalismo anticomunista dos Boinas Verdes de John Wayne (1968); passando pelo pacifismo de Peter Davis em Corações e mentes (1974); ou a reflexão sobre o gênero humano em Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 23 Franco atirador (1978) de Michael Cimino; até chegar a Apocalipse Now (1979) de Francis Coppola, talvez o filme definitivo sobre a loucura da guerra; Gritos do silêncio (1984) do inglês Roland Joffé enfoca outra guerra, a da revolução cambojana do Khmer Vermelho; e voltamos com Platoon (1986) e a visão violenta e destrutiva sobre a guerra, de Oliver Stone; e também a de Stanley Kubric, em Nascido para matar (1987). Assistam e comparem: o Vietnã é um prato cheio. O continente africano: a descolonização demorada No continente africano, a independência política das ex- colônias demorou um pouco mais a chegar. Em sua maioria, os paísestornaram-se independentes na década de 1960. Abaixo do Saara, Gana, a terra do líder pan-africanista Kwame Nkrumah, foi o primeiro país a obter a independência política em 1957. As próprias lideranças políticas dessa região da África ocidental de colonização inglesa, berço do pan-africanismo, Gana, Nigéria e Serra Leoa, optaram por realizar a transição gradual de poder, através de eleições legislativas supervisionadas, entendendo que a retirada abrupta do governo britânico seria desastrosa. A Nigéria conquistou sua independência em 1960 com as mesmas delimitações de fronteira do período colonial, contudo sua diversidade étnica e cultural (hauçás muçulmanos ao norte, ibós e iorubás, ao sul) dificultou a construção de uma nova nação. Obafemi Awolowo, líder político iorubá do Action Group Party, entendia que a Nigéria ainda era apenas uma representação geográfica e que haveria um longo caminho a percorrer até ela se tornar uma nação. As tensões entre os diferentes povos eclodiram em uma guerra civil, a partir História Contemporânea II 24 do ano de 1967, na região denominada Biafra, no delta do rio Niger, coincidentemente a mais rica em petróleo. Os separatistas ibós de Biafra receberam o apoio da França, interessada na exploração de suas riquezas, mas foram derrotados pelas forças nigerianas, apoiadas pela Inglaterra e pela URSS. Já em todas as áreas colonizadas pelos franceses, apesar de ter havido diversos movimentos ativos que empreenderam lutas de libertação nacional, tanto na África Ocidental como na Equatorial, a estratégia adotada pela França em relativo acordo com as elites negras locais foi adotar um processo de autonomia político gradual até as independências em 1960 (SURET-CANALE; BOAHEN, 2010, p. 191-227). De todos os casos de libertação nacional na África, o de maior repercussão internacional foi o da luta da população negra da África do Sul contra o regime de segregação racial, apartheid. Em 1950, de 13 milhões de habitantes, aqueles considerados brancos (a maioria de origem holandesa e inglesa) alcançavam 19% da população, ainda com uma parcela de 12% considerados mestiços (na maioria, de indianos) e a grande maioria de negros. Desde a década de 1920, com o mandato sul-africano na Namíbia, houve uma campanha internacional de povoamento para a imigração de trabalhadores brancos, o que acabou aumentando sua quantidade e criando uma economia quase que exclusivamente de brancos, enquanto que os negros eram segregados em reservas territoriais, denominadas bantustões. De todos os territórios colonizados no continente africano, somente na África do Sul e na Argélia, o contingente de brancos superou a casa dos 10%. Um percentual concentrado nas grandes cidades sul-africanas, como Cidade do Cabo e Johannesburgo, onde, no meio urbano, eram uma efetiva maioria. Em 1948 a segregação racial tornou-se oficialmente uma política de estado: apartheid. A partir de 1950, o governo sul- africano designou os mestiços como coloured people, diferenciando seus direitos políticos dos negros e criando, assim, três “categorias” de cidadãos. Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 25 A minoria branca procurou defender sua supremacia econômica e seu espaço de circulação física, através de uma política de segregação e privação de direitos dos não brancos, que foi sendo gradativamente ampliada, na medida em que a maioria negra foi inserindo-se na dinâmica econômica urbana do pós-guerra e reivindicando sua integração política na esteira dos outros povos negros africanos. Por exemplo, no subúrbio de Sophiatown, posteriormente transferidos para Soweto, que em junho de 1976 seria o palco de grandes distúrbios estudantis contra a política discriminatória do Education Act. No campo político, a luta contra o apartheid ganhou mais intensidade na medida em que a legislação foi tornando-se mais restritiva, paradoxalmente, num continente onde ano após ano os outros povos conquistavam sua emancipação política. O Congresso Nacional Africano, partido originalmente fundado em 1912, na década de 1950, passou a ser o principal porta-voz dos direitos civis da população negra, emergindo a liderança do advogado Nelson Mandela. Em 1963, Mandela foi condenado à prisão perpétua e tornou-se o símbolo internacional da luta contra o apartheid. Encerrando o ciclo colonialista europeu, os territórios colonizados por Portugal (Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde) foram os últimos a conquistarem sua independência política nos anos de 1974 e 1975. O governo ditatorial de Antonio de Oliveira Salazar impediu um processo pacífico de transição política da soberania no pós-guerra e levou as populações africanas nativas a terem de enfrentar sangrentas guerras de independência que se estenderam desde o início da década de 1960 até abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos pôs fim à ditadura portuguesa. A descolonização nas ex-colônias portuguesas foi sangrenta, deixou profundas cicatrizes e levou, em seguida à independência, a guerras civis pelo controle do poder político local após a retirada dos portugueses. História Contemporânea II 26 Agostinho Neto, a luta pela indepen- dência e pela paz em Angola Este documentário, produzido pela Fundação Agostinho Neto, trata da atuação do primeiro presi- dente angolano na luta pela independência de Angola à frente do MPLA, Movimento Popular pela Libertação de Angola, apoiado por Cuba. A ênfase está na importân- cia da luta diplomática, travada logo após a independên- cia pelo seu reconhecimento internacional. Assista a esse documento histórico, com partes da entrevista dada por Agostinho à televisão romena ARHIVA TVR: http://www.dailymotion.com/video/xeu903_agostin- ho-neto-entrevista-romenia_news Após a independência nacional, em 1975, os militan- tes socialistas do MPLA formaram um governo cen- tral em Luanda e foram reconhecidos pela ONU. O governo do MPLA foi muito combatido pelas forças conservadoras da UNITA (União Nacional pela Inde- pendência Total de Angola), baseadas na Namíbia e com o apoio da África do Sul. A guerra civil em Angola estendeu-se até 2002 e provocou dezenas de milhares de vítimas. Ainda assim, desde o término, mais de 70 mil angolanos foram mutilados, vítimas das minas enterradas no país. A seguir, indicamos alguns artigos do professor Marcelo Bittencourt, da UFF, para o aprofundamento do estudo da história de Angola (memórias de combatentes, debate historiográfico) e que se encontram disponíveis on-line: http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Me- morias_da_Guerrilha.pdf http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/A_ Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 27 Atende aos Objetivos 1 e 2 3. Em comparação com a britânica, quais as consequências da descolonização francesa? ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada Nos principais pontos de domínio colonial, a Argélia e a Indochina, os franceses não proveram a descolonização e a retirada de seu governo, como fizeram os britânicos. Dessa atitude, resultou uma efetiva guerra pela independência e libertação nacional, primeiro no Vietnã e, em seguida, na Argélia. No caso do Vietnã, o contexto maior da “Guerra Fria” envolveuposteriormente os EUA na guerra. CONCLUSÃO O significado político do conceito de “Terceiro Mundo” Em 1952, o demógrafo francês Alfred Sauvy propôs dividir o mundo em três porções: um primeiro mundo capitalista desenvolvido, um segundo mundo socialista e um terceiro mundo, composto pelos História Contemporânea II 28 países economicamente subdesenvolvidos. O nome Terceiro Mundo foi inspirado no Terceiro Estado que antecedeu a Revolução Francesa. Com isso, ele pretendia alertar para as demandas desses novos países no cenário internacional, antes que irrompesse uma possível revolução mundial dos países mais pobres. Em abril de 1955, 29 países africanos e asiáticos recém-saídos da dominação colonial, reuniram-se na Conferência de Bandung, na Indonésia, onde criaram o movimento dos países não alinhados e adotaram a designação de Terceiro Mundo. A ideia de um grupo de países não alinhados foi uma estratégia adotada no contexto da “Guerra Fria” com o objetivo de deslocar o foco dos conflitos internacionais da relação Leste-Oeste, ou seja, Ocidente capitalista – Oriente comunista, para uma relação Norte-Sul, ou seja, entre um Norte rico e desenvolvido e um Sul pobre e subdesenvolvido. Liderados por Nasser, os não alinhados queriam alertar aos países ricos e ao comunismo soviético sobre suas necessidades próprias de desenvolvimento. O Terceiro Mundo incluía toda a África e a Ásia, à exceção da China e do Japão, e também a América Latina, apesar de formalmente sua aplicação ser mais ativa para os dois primeiros continentes, por conta das novas necessidades administrativas e econômicas, geradas após a descolonização. Na prática, foram os movimentos socialistas em todo o mundo que incorporaram ativamente em sua estratégia de luta a ideia de terceiro- mundismo. Com essa retórica, estabeleceu-se uma relação direta com a exploração por um novo imperialismo capitalista, surgido após a Segunda Guerra Mundial, identificado de forma simplificada como imperialismo norte-americano. Na década de 1960, em muitas situações os EUA, através da CIA, planejaram a saída de governantes não alinhados. No ex-Congo Belga, o assassinato do líder da independência, Patrice Lumumba, permitiu a subida ao poder do ditador Mobutu Sese Seko. Em contrapartida, ao se eleger como grande algoz da exploração os EUA, o problema da dominação econômica interna foi simplificado e os potentados regionais, envolvidos na perpetuação de sistemas de política clientelistas, foram Aula 5 – Lutas pela independência e a descolonização após 1945: o surgimento do “Terceiro Mundo” 29 poupados ou, em muitos casos, não foram duramente combatidos pelos grupos de esquerda, permitindo o surgimento de ditaduras que, mesmo sendo antiamericanas, continuavam explorando sua própria população; por exemplo, Idi Amin Dada em Uganda. Atividade Final Atende ao Objetivo 3 Desenvolva o significado do conceito de Terceiro Mundo, no contexto das relações internacionais no mundo que emergiu do pós-guerra. ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Resposta Comentada A ideia de Terceiro Mundo foi criada na década de 1950, para se referir àqueles países economicamente mais pobres e recém-saídos da dominação colonial. Terceiro Mundo como uma analogia do Terceiro Estado que antecedeu a Revolução Francesa, mas que serviu também para diferenciar esses países mais pobres daqueles desenvolvidos, do primeiro mundo, e dos comunistas, do segundo mundo. História Contemporânea II 30 RESUMO Nesta aula, estudamos diferentes situações, vividas nos territórios colonizados pelos impérios coloniais, após o fim da Segunda Guerra Mundial. O debate sobre guerra de independência ou descolonização deve-se ao fato de que, em algumas regiões, o processo de retirada dos colonizadores ocorreu de modo mais pacífico, enquanto que em outras, como a Índia e a Palestina, a saída do dominador estrangeiro levou a distúrbios e guerras pela posse dos territórios. E em outras ainda, como em algumas colônias francesas e nas portuguesas, a guerra restou como única alternativa para a conquista da independência política. Nesse cenário conflituoso que coincidiu com o surgimento da “Guerra Fria”, algumas personalidades surgiram como líderes de uma nova categoria de países, o chamado Terceiro Mundo; um conjunto de países que se situou numa posição independente em relação às duas superpotências. Informação sobre a próxima aula A seguir, veremos a emergência política e econômica dos países asiáticos, após 1945.