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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA CAMPUS DE ROLIM DE MOURA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO GEPPEA: GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO NA AMAZÔNIA RELATÓRIO DE PESQUISA O QUE FAZEM AS ESCOLAS QUANDO AS CRIANÇAS NÃO APRENDEM A LER E A ESCREVER? Uma investigação sobre fracasso escolar no Ciclo Básico em Rolim de Moura – RO. FINANCIAMENTO Edital Universal/2006/CNPq Processo Nº. 472623/06-0 APOIO Universidade Federal de Rondônia Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC ROLIM DE MOURA FEVEREIRO/2010 2 O QUE FAZEM AS ESCOLAS QUANDO AS CRIANÇAS NÃO APRENDEM A LER E A ESCREVER? Uma investigação sobre fracasso escolar no Ciclo Básico em Rolim de Moura – RO. COORDENADORAS Marli Lúcia Tonatto Zibetti Flávia Pansini BOLSISTAS PIBIC Flora Lima Farias de Souza Kelly Jessie Marques Queiroz Aline Paula Marin COLABORADORAS Auria de Oliveira Costa Santos Bianca Santos Chisté Luzenir da Mota Alves Maria de Fátima de Oliveira Sandra Rogéria Venturoso REDAÇÃO FINAL: Marli Lúcia Tonatto Zibetti Flávia Pansini 3 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABECAN - Associação Brasil-Canadá ABRAPEE- Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional ACT - Admitido em Caráter Temporário ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação ANRESC- Avaliação Nacional de Rendimento Escolar CAA - Classe de Aceleração da Aprendizagem CBA- Ciclo Básico de Aprendizagem CEE- Conselho Estadual de Educação CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico COLE - Congresso de Leitura CONPE – Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional DEPSI- Departamento de Psicologia ENICED – Encontro Internacional de Educação FUNDEF - Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental e valorização do magistério GAB- Gabinete GEPPEA – Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação na Amazônia GI - Gerência de Inspeção IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEA - Instituto de Evaluación y Asesoramiento Educativo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC - Ministério da Educação PIBIC – Programa de Iniciação Científica PROFA - Programa de Formação de Professores Alfabetizadores PROHACAP - Programa de Habilitação e Capacitação de Professores Leigos REN- Representação de Ensino RO-Rondônia SAEB- Sistema de Avaliação da Educação Básica SED- Seminário de Educação SEDUC- Secretaria de Estado da Educação SEMED – Secretaria Municipal de Educação SENAI- Serviço Nacional da Indústria UEMS- Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura UNIDERP - Universidade do Desenvolvimento do Estado do Mato Grosso do Sul e da Região do Pantanal UNIR - Universidade Federal de Rondônia 4 LISTA DE TABELAS TABELA 1 : Escolas envolvidas na pesquisa – Número de turmas e alunos CBA-2007........ ....... 36 TABELA 2 : Escolas envolvidas na pesquisa – Matrículas e turmas CBA-2008 ........................... 37 TABELA 3 : Dados sobre as Coordenadoras Pedagógicas entrevistadas ....................................... 38 TABELA 4 : Dados sobre as Orientadoras Educacionais entrevistadas .......................................... 39 TABELA 5 : Professoras Entrevistadas-dados pessoais .................................................................. 40 TABELA 6 : Professoras Entrevistadas-dados profissionais ........................................................... 40 TABELA 7 : Espaços utilizados pelas escolas para realização do reforço escolar em 2008 ........... 59 TABELA 8 : Dados de rendimento escolar e número de turmas 1º a 3º ano/CBA- 2006 a 2008.. .. 72 TABELA 9 : Professoras Escola A - 2009 ..................................................................................... 116 TABELA 10 : Organizando os Projetos de Leitura........................................................................ 130 TABELA 11 : Escola A – Rendimento Escolar/2009 .................................................................... 135 5 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1: Escola Y- Sala de aula........ ........................................................................................ 58 FIGURA 2: Escola D- Sala de aula ................................................................................................ 58 FIGURA 3: Escola B-Sala de aula ................................................................................................. 58 FIGURA 4: Escola A-Sala de aula ................................................................................................. 58 FIGURA 5: Escola B-Sala de leitura .............................................................................................. 58 FIGURA 6: Escola A-Sala de leitura .............................................................................................. 58 FIGURA 7: Escola E-Sala para reforço (Área interna)................................................................... 60 FIGURA 8: Escola E-Sala para reforço (Área externa).. ................................................................ 60 FIGURA 9: Escola E-Espaço para reforço/Corredor...................................................................... 60 FIGURA 10: Escola X-Espaço para reforço/Biblioteca.................................................................. 60 FIGURA 11: Sala de aula de 1ª série- Escola Y/2007 .................................................................... 61 FIGURA 12: Sala de aula de 1º série-Escola B/2007.. ................................................................... 61 FIGURA 13: Escola B-Carteiras turma de 6 anos........................................................................... 62 FIGURA 14: Escola B-Suporte para materiais ............................................................................... 62 FIGURA 15: Escola F-Local para lanche ....................................................................................... 63 FIGURA 16: Produção de Texto – CBA III - A........ ................................................................... 139 FIGURA 17: Produção de Texto – CBA III - C............................................................................ 139 FIGURA 18: Produção de texto – CBA I - A ............................................................................... 141 FIGURA 19: Produção de texto CBA III - A................................................................................ 141 FIGURA 20: Produção de Texto CBA III - C............................................................................... 141 FIGURA 21: Produção de Texto CBA II - B ................................................................................ 141 FIGURA 22: Resumo Hipóteses de escrita CBA I – A Profª Ana................................................ 142 FIGURA 23: Endereço de Maria .................................................................................................. 147 FIGURA 24: Amostra de escrita de Maria ................................................................................... 149 FIGURA 25: Primeira escrita de Pedro......................................................................................... 157 FIGURA 26: Segunda escrita de Pedro......................................................................................... 158 6 SUMÁRIO RESUMO........................................................................................................................................... 8 1-INTRODUÇÃO..............................................................................................................................9 2 - ASPECTOS TEÓRICOS............................................................................................................ 12 2.1-FRACASSO ESCOLAR E ALFABETIZAÇÃO....................................................................... 12 2.2-POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO DO FRACASSO ESCOLAR NO BRASIL................. 21 2.2.1-Organização escolar por ciclos ............................................................................................ 22 2.2.2-As classes de aceleração........................................................................................................ 26 2.2.3-Formação de professores/as ................................................................................................. 29 3 - ASPECTOS METODOLÓGICOS ............................................................................................. 34 3.1-OBJETIVOS E MÉTODO......................................................................................................... 34 3.2-PRIMEIRA ETAPA................................................................................................................... 35 3.2.1-Campo.................................................................................................................................... 35 3.2.2-Participantes.......................................................................................................................... 37 3.2.3-Procedimentos e instrumentos ............................................................................................. 41 3.3-SEGUNDA ETAPA................................................................................................................... 44 3.3.1-Seminários ............................................................................................................................. 44 3.3.2-Reunião com a escola para discussão da participação na 2ª etapa................................... 45 3.3.3-Encontros de estudo, planejamento e avaliação................................................................. 45 3.3.4-Estudos de Caso .................................................................................................................... 46 3.4-ANÁLISE DOS DADOS........................................................................................................... 46 4 - CONDIÇÕES EM QUE OCORRE A ALFABETIZAÇÃO NAS ESCOLAS PESQUISADAS48 4.1-A IMPLANTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS................................ 48 4.2 - O CICLO BÁSICO DE APRENDIZAGEM ............................................................................ 53 4.3-ESPAÇO FÍSICO, EQUIPAMENTOS E CONDIÇÕES MATERIAIS .................................... 57 4.4-COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA .......................................................................................... 63 4.5-ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL............................................................................................ 67 4.6-DADOS SOBRE RENDIMENTO ESCOLAR: AINDA EXISTEM CRIANÇAS QUE NÃO APRENDEM A LER E A ESCREVER?.......................................................................................... 70 4.7-QUE EXPLICAÇÕES CIRCULAM NAS ESCOLAS PARA O FRACASSO NA ALFABETIZAÇÃO?....................................................................................................................... 74 4.7.1- Explicações centradas em fatores extra-escolares............................................................. 74 4.7.2-Explicações centradas em fatores intra-escolares .............................................................. 82 7 5 - AÇÕES DE ENFRENTAMENTO DO FRACASSO NA ALFABETIZAÇÃO........................ 87 5.1-REFORÇO ESCOLAR.............................................................................................................. 87 5.1.1-Construindo uma prática coletiva de reforço escolar........................................................ 98 5.2-ENCAMINHAMENTOS PARA ATENDIMENTO PSICOLÓGICO .................................... 100 5.2.1-O que dizem os encaminhamentos feitos via Conselho Tutelar?.................................... 107 6 - A ESCOLA POR DENTRO..................................................................................................... 112 6.1 – A ESCOLA: SEUS ESPAÇOS E SEUS ATORES................................................................ 112 6.2 - MECANISMOS DA ORGANIZAÇÃO PEDAGÓGICA...................................................... 118 6.3 – PROBLEMATIZANDO O COTIDIANO ESCOLAR: MUDANÇAS E/OU PERMANÊNCIAS?....................................................................................................................... 128 6.3.1-A construção de “momentos” coletivos no cotidiano escolar .......................................... 128 6.3.2-Planejamento....................................................................................................................... 136 6.4-ESTUDOS DE CASOS............................................................................................................ 143 6.4.1- Maria................................................................................................................................... 144 6.4.2- Pedro ................................................................................................................................... 150 7- CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................... 160 8 – REFERÊNCIAS....................................................................................................................... 166 9 - APÊNDICES ............................................................................................................................ 171 9.1-APÊNDICE 01: PRODUÇÃO CIENTÍFICA DECORRENTE DA PESQUISA .................... 171 9.2-APÊNDICE 02–ROTEIRO DE ENTREVISTA - COORDENADORAS PEDAGÓGICAS... 175 9.3-APÊNDICE 03-ROTEIRO DE ENTREVISTA – ORIENTADORAS EDUCACIONAIS ..... 176 9.4-APÊNDICE 04-ROTEIRO DE ENTREVISTA - PSICÓLOGA ............................................. 177 9.5-APÊNDICE 05-ROTEIRO DE ENTREVISTA – COORDENADORA – REN ...................... 178 9.6-APÊNDICE 06-TERMO DE CONCORDÂNCIA................................................................... 179 9.7-APÊNDICE 07-ROTEIRO DE ENTREVISTA COLETIVA COM PROFESSORAS............ 180 10 - ANEXOS ................................................................................................................................ 182 10.1-ANEXO 01 – FOLDER DO II SEMINÁRIO DE PESQUISA DO GEPPEA ........................ 183 10.2-ANEXO 02 - III SEMINÁRIO DE PESQUISA DO GEPPEA .............................................. 185 8 RESUMO O presente relatório refere-se à pesquisa desenvolvida de 2007 a 2009, com apoio financeiro do CNPq. O objetivo geral que orientou a investigação foi: conhecer o que pensam professores/as alfabetizadores/as e equipes gestoras das escolas públicas estaduais do município de Rolim de Moura/Rondônia, sobre o fracasso das crianças no processo de alfabetização, bem como as medidas tomadas pelas escolas para enfrentar esta problemática e, a partir deste conhecimento, contribuir para a elaboração e implementação de alternativas pedagógicas para minimizar as dificuldades de aprendizagem em uma das escolas participantes da pesquisa. Desenvolvida de acordo com uma abordagem qualitativa, a pesquisa foi realizada em duas etapas. A primeira envolvendo oito escolas públicas da rede estadual de ensino e a segunda com apenas uma escola, selecionada dentre as demais participantes, para que fosse possível investigar de forma mais aprofundada aspectos importantes do processo de alfabetização, mas também para estabelecer parceria entre pesquisadoras e professoras no sentido de discutir alternativas para as dificuldades no ensino da leitura e da escrita. Durante a primeira etapa foram utilizados os seguintesinstrumentos e procedimentos para produção dos dados: análise dos documentos de rendimento escolar, implantação do ensino Fundamental de nove anos e dos projetos do Ciclo Básico de Aprendizagem; entrevistas individuais com coordenadoras pedagógicas, orientadoras educacionais e psicóloga, bem como entrevistas coletivas com professores/as que atuavam de 1º a 3º ano do Ensino Fundamental; observações participantes das atividades de reforço escolar registradas em Caderno de Campo e também registros fotográficos dos espaços e mobiliários utilizados pelas classes de alfabetização. Na segunda etapa foram realizados seminários para retorno dos dados aos participantes, seleção e contato da escola envolvida na continuidade da pesquisa, além de reuniões para estudo, planejamento e avaliação durante todo o ano de 2009, na referida escola. Os resultados indicam a manutenção nos últimos anos de índices de retenção, ao final da etapa de alfabetização, que oscilam entre 12 e 35% nas escolas pesquisadas. Algumas escolas optaram pela extinção do Ciclo e nelas a retenção está sendo diluída entre o 2º e o 3º ano, atingindo 40% das crianças matriculadas nessas séries. Assim pode-se inferir que no sistema de ciclos, ainda há um menor índice de retenção, o que não significa melhores condições de aprendizagem, pois há entre as crianças aprovadas, grandes dificuldades no processo de alfabetização. A pesquisa permitiu constatar ainda, que entre a maioria dos/as profissionais entrevistados/as, persistem explicações individualizantes e preconceituosas para a não aprendizagem da leitura e da escrita, as quais isentam a instituição escolar de responsabilidades pelo fracasso das crianças em fase de alfabetização. Estas concepções orientam ações de enfrentamento calcadas em soluções que mantém intacto o processo pedagógico desenvolvido no interior das escolas. Ou seja, ao oferecer reforço escolar e encaminhar para atendimento psicológico as crianças que não estão aprendendo, nenhuma mudança é realizada no processo de ensino, mantendo-se os mesmos mecanismos geradores do fracasso. Por outro lado, a parceria desenvolvida com a escola, durante a segunda etapa da pesquisa, evidenciou a complexidade de fatores intervenientes no processo pedagógico: más condições de trabalho, ausência de projetos coletivos, falta de apoio pedagógico especializado e momentos de estudo no cotidiano escolar, concepções equivocadas acerca do processo de aprendizagem entre outros. Estes dados confirmam os estudos de outros pesquisadores sobre a necessidade de investimentos maciços e articulados que atuem, ao mesmo tempo, na melhoria das condições de funcionamento das escolas públicas, na valorização docente por meio de melhores salários e condições de formação, bem como o envolvimento dos profissionais da educação na proposição de alternativas e políticas educacionais voltadas para as necessidades da população atualmente excluída do direito a uma escolarização de qualidade. 9 1-INTRODUÇÃO O Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação na Amazônia – GEPPEA – foi fundado em 2006, e sua constituição foi produto de uma longa trajetória de formação e estudo envolvendo sujeitos de diferentes instituições, formações e campos de atuação. Por isso, desde a criação, o GEPPEA teve entre seus membros acadêmicas e ex-acadêmicas que também eram professoras das escolas públicas, cujo interesse não era apenas a pesquisa científica, mas o aprofundamento de seus conhecimentos teóricos, principalmente no campo da alfabetização, campo este no qual várias atuavam e algumas ainda atuam, inclusive em sala de aula. Considerando que o grupo estava em constituição e que precisávamos aprender juntos/as, tanto sobre pesquisa, quanto sobre o tema que nos movia, decidimos elaborar um projeto de investigação em parceria, pois acreditávamos que a vivência desse processo seria fundamental para que o grupo compreendesse melhor os procedimentos de uma investigação científica. Havia uma inquietação entre nós que, invariavelmente, vinha à tona quando nos reuníamos. Professoras e pesquisadoras se perguntavam o que acontecia em nossas escolas para que, mesmo após várias mudanças, os índices de retenção continuavam tão altos? Considerávamos mudanças: a) ampliação do tempo para alfabetização que, a partir da implantação do Ciclo Básico era de dois anos; b) a formação em nível superior da maior parte das alfabetizadoras; c) a garantia de tempo no contrato de trabalho para planejamento e atendimento extra aos alunos; d) o oferecimento de um curso de formação continuada em alfabetização. E alguém levantou a pergunta que passou a orientar nosso trabalho: o que será que estão fazendo as escolas quando as crianças não aprendem a ler e a escrever? Movidas por este questionamento debruçamo-nos sobre a literatura fichando, discutindo e mapeando as produções na área. Os objetivos e o método para a investigação, foram elaborados coletivamente, bem como a projeção de metas a serem alcançadas. Quando havíamos concluído a proposta de investigação que se propunha entender como os envolvidos no processo de alfabetização explicavam o fracasso escolar e como as escolas estavam ou não enfrentando esse problema, uma das professoras do grupo levantou o seguinte questionamento, que revelava exatamente o lugar de onde falava, ou seja, o interior da escola: “E depois que nós tivermos levantado os dados, o que a gente vai fazer com eles? Nosso 10 grupo vai fazer como muitos/as pesquisadores/as que só vão à escola para buscar informações e não ajudam em nada?” Retomamos, então, a metodologia e os objetivos do projeto e assim a pesquisa ganhou uma segunda etapa na qual nos propúnhamos devolver os dados para os envolvidos e nos dedicarmos, de forma mais específica a uma escola em busca de conhecê-la melhor e apoiar possíveis medidas de melhoria no processo de alfabetização. Assim surgiu o projeto que foi submetido ao Edital Universal e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, o que permitiu o desenvolvimento da pesquisa e a implantação de toda a infra-estrutura de funcionamento do GEPPEA, localizado no Campus da Universidade Federal de Rondônia, em Rolim de Moura. Portanto, o presente relatório é resultado do esforço coletivo de um grupo de pesquisa que buscava constituir-se enquanto tal e, enquanto se organizava e aprendia a pesquisar, desenvolveu a investigação levada a cabo ao longo de três anos1. Podemos afirmar, e a relação das produções no Apêndice 1 comprova isso, que muitos conhecimentos foram produzidos nesse período. Foram duas monografias de especialização; 11 artigos em periódicos; três capítulos de livros publicados; 17 trabalhos completos e sete resumos publicados em anais de eventos internacionais, nacionais e regionais e seis trabalhos de iniciação científica. Entretanto, temos consciência que as publicações listadas, não representam o maior ganho auferido pelo grupo e sim o saber sobre os processos de escolarização e nosso contexto educacional, que está sendo colocado a serviço dos próprios envolvidos e, portanto, cumprindo com o papel fundamental da pesquisa que é gerar conhecimentos úteis aos que desejam fazer uso dele para alterar a realidade. Boa parte do produto de nossa investigação compõe o presente relatório que traz inicialmente uma parte teórica na qual apresentamos uma breve discussão sobre fracasso escolar e alfabetização, além de uma síntese dos trabalhos mais recentes sobre as políticas de enfrentamento deste fracasso, adotadas no Brasil. Em seguida fazemos a descrição dos aspectos metodológicos da pesquisa. Nesta parte do relatório descrevemos o campo, os participantes, os instrumentos e os procedimentos adotados durante o trabalho de campo, desenvolvido em duas etapas, e também os procedimentos de análise dos dados. Os resultados foram reunidos nos capítulos4, 5 e 6. Nos capítulos 4 e 5 encontram-se os dados produzidos durante a primeira etapa da pesquisa, da qual participaram oito escolas 1 Nesses três anos vários membros do grupo ingressaram na Pós-graduação stricto sensu: duas concluíram mestrado e um está cursando. Um concluiu o doutorado e outra está concluindo. 11 públicas da rede estadual de ensino do município de Rolim de Moura. No capítulo 6, encontram-se os dados obtidos durante a segunda etapa em que participou apenas uma escola. No capítulo 4, denominado “Conhecendo as condições em que ocorre a alfabetização nas escolas pesquisadas” apresentamos os elementos que caracterizam a organização pedagógica e estrutural do processo de alfabetização na rede estadual de ensino. Também inserimos neste capítulo as explicações que circulam nas escolas sobre o fracasso escolar na alfabetização. No capítulo 5 apresentamos as “Ações de enfrentamento do fracasso na alfabetização” analisando em que consiste e como é desenvolvido o reforço escolar. Também analisamos os procedimentos e os resultados obtidos pelas escolas quando encaminham alunos e alunas para tratamento psicológico. No capítulo 6, denominado “A escola por dentro” estão reunidos os dados do período em que permanecemos no interior da escola escolhida para aprofundamento das questões levantadas na primeira etapa. Nele apresentamos a escola e seus atores, os mecanismos de organização pedagógica e analisamos as temáticas que foram objeto de problematização durante o ano de 2009, nos encontros realizados com a equipe escolar. Ainda no capítulo 6 encontram-se os dados oriundos de dois estudos de caso realizados com alunos da escola participante da segunda etapa da pesquisa, com vistas a compreender, do ponto de vista das famílias e das crianças, como elas entendem as reprovações que sofreram. Por último apresentamos as conclusões possíveis após o percurso desenvolvido, embora tenhamos clareza que os dados da última etapa da pesquisa ainda carecem de aprofundamento, uma vez que a parceria com a escola está ainda em andamento e as análises desenvolvidas são incipientes, diante da complexidade do cotidiano escolar e da problemática abordada. Acreditamos que embora a pesquisa qualitativa apresente limitações no que se refere à generalização dos resultados, podemos destacar a importância de estudos como estes que se debruçam sobre aspectos específicos da realidade educacional buscando compreender os determinantes destes aspectos, os quais podem ser tomados como pontos de partida para outras investigações. 12 2 - ASPECTOS TEÓRICOS Considerando a amplitude do tema da alfabetização e os diferentes aspectos que já foram objeto de análises e pesquisas no campo recente dos estudos nessa área no Brasil, nesta seção procuramos fazer um exame dos trabalhos que discutem o fracasso escolar na alfabetização, servindo-nos neste item, das contribuições da Psicologia Escolar e Educacional. No segundo item, analisamos os estudos recentes que analisam políticas públicas de enfrentamento do referido fracasso, apontando as principais conclusões desses estudos de maneira a compreender como este tema tem sido abordado. 2.1-FRACASSO ESCOLAR E ALFABETIZAÇÃO Quando uma criança ingressa no ensino fundamental, as expectativas familiares, escolares e das próprias crianças, voltam-se para uma rápida aprendizagem da leitura e da escrita. Quando as expectativas não se confirmam e, por algum motivo, a criança não consegue aprender a ler e a escrever no tempo estabelecido pela escola (normalmente o primeiro ano da escolarização no ensino fundamental) tem início a produção de explicações que historicamente foram buscadas nos próprios indivíduos. Moysés (2001) retomando uma pesquisa desenvolvida em 1988 traz dados que evidenciam como as causas da não aprendizagem são construídas no interior da escola e como, invariavelmente recaem sobre os próprios indivíduos e suas famílias. Segundo a autora, das 1.289 crianças que estavam matriculadas nas 40 salas de primeira série que faziam parte da pesquisa, as professoras apontaram, no primeiro bimestre, 559 como não tendo condições de ser aprovadas ao final do ano letivo. Ao final do referido ano, 651 alunos foram reprovados, dentre os quais, 526 daqueles cuja previsão havia sido feita pelas professoras. Quando questionadas sobre as razões que levariam essas crianças ao fracasso as professoras apontaram, para 541 alunos, causas centradas na própria criança, às vezes envolvendo a família também. Apenas em 18 casos as causas foram atribuídas exclusivamente a problemas familiares. “Em nenhuma criança, apontou-se causas de ordem pedagógica. Para os professores, as causas de as crianças não aprenderem na escola são externas à instituição escolar, devendo ser buscadas na criança e em sua família.” (MOYSÉS, 2001, p. 31). O trabalho de Proença (2002, p. 184) sobre os encaminhamentos de crianças para atendimento psicológico indica que um grande número dos casos diz respeito às crianças que estão em processo de alfabetização. E, segundo a autora, “os motivos que levaram professores e pais a encaminhar alunos e filhos das primeiras séries do ensino fundamental para 13 atendimento psicológico são, na maior parte, aqueles que se referem ao processo de aprendizagem da língua escrita e da leitura.” No estudo desenvolvido por Scortegagna e Levandowski (2004) as autoras constataram que houve predominância dentre os encaminhamentos de crianças cursando a segunda série do ensino fundamental, ou seja, ainda em processo de alfabetização, decaindo o número destes conforme avançam as séries. “Comparando-se a quantidade de encaminhamentos da segunda série (45) com as demais séries escolares, pode-se observar uma diminuição na terceira (18) e quarta séries (8), havendo um aumento na quinta série (21), e por fim uma diminuição nas últimas – sexta (13), sétima (5) e oitava séries (1).” (SCORTEGAGNA e LEVANDOWSKI, 2004, p. 138). Historicamente o fracasso na alfabetização inspirou estudiosos/as e especialistas a construírem diferentes explicações que foram mudando ao longo dos anos. A falta de “prontidão” da criança para o processo de alfabetização levou a escola a adotar diferentes atitudes em relação às crianças oriundas de classes populares, normalmente aquelas diagnosticadas como imaturas. Em alguns casos, as crianças eram retidas na educação infantil, ou permaneciam em classes de alfabetização até que fossem consideradas aptas a serem alfabetizadas. Em outras situações eram submetidas a uma série de exercícios de preparação, denominados como período preparatório, centrado no desenvolvimento de habilidades perceptivo-motoras até que fossem consideradas “prontas” a iniciar seu aprendizado do código alfabético. Esta maturidade deveria ocorrer por volta dos sete anos, idade considerada como ideal para se dar início a alfabetização, quando o cérebro da criança teria desenvolvido habilidades suficientes para absorver uma carga maior de ensinamentos. Quando algumas crianças não apresentavam o desempenho esperado pela escola, no ritmo estabelecido com base em um padrão de normalidade considerado ideal, o indivíduo era tido como “anormal”, portador de alguma deficiência. Assim as explicações dominantes sobre o fracasso escolar entre crianças em fase de alfabetização, durante muito tempo voltaram-se para as chamadas disfunções psiconeurológicas da aprendizagem da leitura e da escrita. Segundo Proença (2002), quando se analisa de forma mais detalhada as descrições das dificuldades apresentadas pelas crianças para aprender a ler e a escrever, percebe-se que uma parcela dos professores e professoras realizam seu trabalho a partir de concepções de que as crianças que não correspondem a um padrão de desempenho estariam comprometidas patologicamente e, por isso,careceriam de atendimento psicológico. Para a autora, Essa concepção de alfabetização remonta ao final dos anos 1960, dando grande importância aos chamados “distúrbios de aprendizagem”. (Ou seja, a forma da letra 14 destoante (disgrafia), a dificuldade na leitura-escrita (dislexia), não escrever ortograficamente (disortografia), o não-pronunciamento correto dos fonemas dislalia), agitação na sala de aula (hiperatividade), cada uma das diferenças que uma criança apresentava diante de seu grupo recebia um diagnóstico específico. (PROENÇA, 2002, p. 184 – Destaques no original). Outras pesquisas, embasadas na perspectiva da deficiência cultural atribuíam o fracasso na alfabetização às condições de vida, deficiências culturais e lingüísticas das crianças. Segundo Soares (1987, p. 20) o mito do déficit lingüístico e cultural das crianças de classes populares baseia-se na suposição de que: [...] as crianças das camadas populares chegam à escola com uma linguagem deficiente, que as impede de obter sucesso nas atividades e aprendizagem: sua linguagem é pobre - não sabem o nome de objetos comuns; usam frases incompletas, curtas, monossilábicas; sua sintaxe é confusa e inadequada à expressão do pensamento lógico; cometem 'erros' de concordância, de regência, de pronúncia; comunicam-se muito mais através de recursos não verbais do que de recursos verbais. Em síntese são crianças deficitárias lingüisticamente. Essa suposta deficiência seria atribuída à “pobreza” do contexto lingüístico familiar da criança, onde não estaria presente o interesse por um desenvolvimento escolar e o apoio para que a criança tenha condições de aprender na escola. Na década de 1980, as idéias de Emília Ferreiro e Ana Teberosky sobre a Psicogênese da Língua Escrita transformaram de maneira revolucionária as concepções sobre alfabetização no Brasil. As bases conceituais do construtivismo passaram a nortear as políticas de alfabetização e também os programas de formação de professores. Segundo Sawaya (2000) esses estudos, ao contribuírem para mudanças nas concepções sobre a aprendizagem da leitura e da escrita, levaram a novos entendimentos sobre as dificuldades escolares das crianças de classes populares, fundamentando propostas de organização das escolas, como foi o caso do Ciclo Básico em várias redes brasileiras e da Progressão Continuada no Estado de São Paulo. Para a autora, no bojo do projeto de ampliação do tempo para o processo de alfabetização das crianças de classes populares encontra-se a justificativa de que a escola não estava adaptada às condições sociais e culturais das crianças pobres. As diferenças entre as crianças de camadas populares e as pertencentes a outras camadas da população decorrem, segundo as concepções construtivistas de desenvolvimento infantil, da inexistência ou da precariedade de experiências com a leitura e escrita nos meios populares. Provenientes de ambientes não-letrados, as crianças de classes populares não têm acesso a interações com situações de escrita e leitura, fato que as impede de atingir níveis de conceitualização necessários à construção da escrita na escola e de compartilhar dos significados e dos usos sociais da escrita já adquiridos pelas crianças de classes médias. (SAWAYA, 2000, p. 69) De acordo com a autora, essas concepções foram utilizadas para justificar a necessidade de mudanças nas práticas pedagógicas e, portanto, na formação dos/as professores/as, bem como na ampliação do tempo escolar para a alfabetização das crianças 15 pobres. Fundamentada em autores/as que questionam o discurso predominante sobre as formas escolares de apropriação da leitura e da escrita que consideram como únicas formas válidas aquelas construídas pelos grupos autorizados – pedagogos, lingüistas, gramáticos, estudiosos da linguagem etc – Sawaya (2000, p. 70) afirma que As relações de poder e violência simbólica, que constituem as formas de aquisição e transmissão da leitura e da escrita via escola – mas não só - que são parte de um projeto político pedagógico nas suas formas de dominação social, não são questionadas, o que leva novamente a imputar às populações pobres e suas precárias condições de vida a razão do fracasso escolar e da sua “marginalidade social.” (Destaque da autora). Assim, mantém-se no contexto da alfabetização o que tem sido historicamente construído na educação brasileira, a culpabilização dos próprios indivíduos (alunos, alunas e suas famílias), pelo fracasso escolar. A eles têm sido atribuídas deficiências, dificuldades tanto físicas, cognitivas ou psicológicas, como sociais ou culturais. A solução para estes problemas tem sido buscada também no encaminhamento para diagnósticos aos profissionais da saúde. Segundo Moysés (2001, p. 47) na maioria dos casos de encaminhamento “a peregrinação por consultórios de médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, coincide com o início da escolarização, geralmente traumática, com o processo de rotulação imposto precocemente. Um processo avalizado, cientificizado pelos profissionais de saúde.” (Destaques da autora). A Psicologia Escolar, assumindo este lugar no processo histórico de diagnóstico e tratamento de problemas de aprendizagem, tem funcionado paralelamente ao ensino, independentemente dos projetos escolares. A escola centra a culpa no/a aluno/aluna que não atinge o objetivo proposto por ela. Tais alunos/as são tomados/as como problemáticos/as e encaminhados/as a clínicas médicas e psicológicas onde recebem diagnósticos equivocados. Do ponto de vista da escola esses encaminhamentos representam um alívio do “fardo” que significa o aluno/aluna que não aprende, pois uma vez diagnosticado/a como “problemático/a”, há uma justificativa para o fracasso, isentando a escola, seus profissionais e o sistema escolar de responsabilidade. “Feito um diagnóstico, como um passe de mágica, cessam as pressões, como se o diagnóstico bastasse, prescindindo do tratamento. O diagnóstico não é bastante para resolver o problema, porém é suficiente para acalmar os conflitos que um aluno que não-aprende-na-escola gera.” (MOYSÉS, 2001, p. 47). O atendimento individual das crianças encaminhadas aos serviços de Psicologia, imitando o modelo clínico, alheio à dinâmica da sala de aula e aos projetos de ensino, tem contribuído para acentuar o caráter elitista da educação, deixando aos/as menos favorecidos/as a falsa sensação de impotência quanto aos problemas vividos na escola levando-os/as a acreditar que seus filhos e filhas realmente são portadores/as de problemas emocionais ou 16 “fracos da cabeça”. Ou como afirma Moysés (2001, p. 48) “Expropriadas de sua normalidade, incorporam a doença, a incapacidade. Não sabem ler, por isto devem ser pouco ou nada inteligentes; feias, fracas, burras, assim se vêem. Chegam a verbalizar o medo de serem internadas por não saberem ler e escrever, pois acreditam que só assim poderão aprender.” (Destaques da autora). A interferência clínica especializada submete as crianças e suas famílias a exaustivos testes, entrevistas e tarefas, a fim de classificá-las comparativamente com base em um padrão de normalidade ou de adaptação. Incapazes de considerar a singularidade, as trajetórias pessoais de desenvolvimento e o cotidiano dessas famílias, acabam por constituírem-se em exercício autoritário, elitista, discriminador que raramente ajuda quem precisa. Segundo Moysés (2001, p. 48) esses procedimentos foram transformando crianças normais em crianças doentes. Até que, doentes, necessitam atendimento psicológico, não por não-aprender, mas pela vida estigmatizada, pela incapacidade introjetada. Um tratamento que lhes devolva a normalidade, da qual foram privadas. Pela escola, pelas avaliações médicas, psicológicas, fonoaudiológicas, que se propuseram a ver apenas o que já se sabia que elas não sabiam. Angelucci et al. (2004) ao analisarem o estado da artedas pesquisas sobre o fracasso escolar no período de 1991 a 2002, tomando por base os trabalhos produzidos na Universidade de São Paulo (Instituto de Psicologia e Faculdade de Educação) concluem que o fracasso escolar ainda era explicado como problema psíquico, por vários estudos produzidos no período. Nessa perspectiva culpabilizam-se as crianças e pais. Outro conjunto de trabalhos considera o fracasso escolar um problema técnico em que a culpa pela não aprendizagem das crianças recai sobre o professor ou a professora. Há ainda trabalhos que analisam o fracasso como questão institucional em que a lógica excludente da educação escolar é a responsável. E, finalmente, um último conjunto aborda o problema como questão política em que a cultura escolar, a cultura popular e as relações de poder são analisadas como fatores intervenientes no processo. As vertentes que explicam o fracasso escolar como problema psíquico, tendem a ser reducionistas e psicologizantes ao atribuírem a culpa às crianças e aos pais. Tentando buscar na criança/pais a origem do problema ignoram, por exemplo, a relação professor/a–aluno/a, a relação pais–aluno/a e a relação escola–pais, além de aspectos referentes ao funcionamento institucional escolar. Predomina, nesta análise, uma concepção de escola como lugar harmônico em que os sujeitos que a freqüentam encontrariam as condições ideais para se desenvolverem. 17 A tarefa da criança, nesse contexto, é desenvolver suas capacidades egóicas para lidar com uma realidade inquestionável. É a partir dessa concepção que alguns pesquisadores estabelecem uma relação direta entre desempenho escolar e saúde mental. Cabe ao aluno adaptar-se, com a contribuição de professores e psicólogos. No interior de uma concepção de normalidade como adaptação, o não ajustamento à escola ou a insatisfação com características do ambiente escolar são incapacidades individuais de orientar-se pelo princípio de realidade. (ANGELUCCI ET AL., 2004, p. 60) A vida diária escolar é complexa, cheia de acontecimentos dos mais variados, constituídos no conjunto das relações cotidianas de seus personagens: alunos e alunas, professores e professoras, funcionários e funcionárias, corpo técnico e pais. Cada uma dessas pessoas representa uma série de crenças, expectativas, desejos, temores, experiências vividas e saberes a serem compartilhados. Assim, atribuir a culpa do fracasso a apenas uma ou mais pessoas (alunos e pais) é precário e preconceituoso. Na perspectiva que concebe o fracasso escolar como um problema técnico decorrente da inadequação das técnicas de ensino do/a professor/professora está presente a pressuposição de que as crianças das classes populares trazem para a escola dificuldades de aprendizagem, mas que agora o foco localiza-se nas técnicas de ensino dos/as educadores/as. Mesmo fazendo referência ao “descaso das autoridades” para com o ensino público, estes estudos, no entanto, se mantém dentro da lógica tecnicista ao reduzir o “descaso” a não formação técnica adequada dos profissionais da educação. Para Angelucci et al. (2004) continua-se a atribuir a culpabilidade do fracasso a uma variável individual, pois está presente a idéia de que os/as alunos/alunas possuem dificuldades emocionais, culturais, psíquicas, etc. que só poderão ser sanadas se o/a professor/professora tiver condições de aplicar técnicas de ensino adequadas. Observa-se novamente a presença da tese da carência cultural, pois o/a professor/professora estaria em sala à espera da “criança ideal” e não os usuários predominantes da escola pública primária – crianças pobres. As pesquisas que apontam o fracasso como uma questão institucional, partem do princípio que esse fenômeno está presente na rede de ensino pública do Brasil desde o seu início. Consideram a escola como uma instituição excludente em uma sociedade de classes regida pelo interesse do capital. Entretanto, segundo Angelucci et al. (2004, p. 62), os princípios defendidos por estes estudos não impedem uma compreensão parcial das teorias críticas da escola. [...] ao mesmo tempo em que afirmam que, para pensar a escola e seus resultados, é preciso tomá-la como instituição seletiva e excludente, retomam o tecnicismo ao admitirem a possibilidade de pôr sob controle o fracasso escolar por meio da adequada implementação de políticas educacionais “progressistas”, com especial ênfase na política de ciclos de aprendizagem. Afirmam que o insucesso das reformas e projetos deve-se ao conservadorismo e à 18 resistência dos professores/as à inovação e afirmam que a solução para o problema estaria no investimento na formação intensiva dos mesmos. Também considerando a questão institucional, mas em uma perspectiva psicopedagógica, Bossa (2002) analisa o fracasso escolar do ponto de vista das relações de ensino travadas no interior da escola. Para a autora, o mundo moderno, ao postular a “criança ideal”, supostamente universal, acabou por realizar uma negação das diferenças e da subjetividade do indivíduo que não responde a esse ideal. Em nossa cultura, não cumprir com a tarefa primordial da infância, isto é, não aprender o que é determinado pela escola, no ritmo da escola, traz para a criança severas conseqüências: [...] A vida da criança de nossa cultura gira em torno da escola, quer ela freqüente, quer não. A experiência emocional vivida no contexto da escolaridade tem efeito determinante na formação da personalidade. A reação do ambiente (escola e família) à criança que não aprende é, no mínimo, de rejeição. (BOSSA, 2002, p. 69). Em suas pesquisas, Bossa (2002) faz referência ao fracasso como sintoma, um “mal- estar da cultura” e a vida escolar seria a dimensão escolhida para a ocorrência do sofrimento causado por esse sintoma. Segundo a autora “[...] A função que a escola tem em nossa cultura faz dessa instituição o lugar privilegiado na formação de um sintoma; ela não só gera o sintoma, como também o denuncia. [...] muitas crianças escolhem inconscientemente a área escolar para manifestar um sintoma.” (2002, pp. 59-60). Por fim, há ainda pesquisas que enfatizam a dimensão política da escola. Juntamente com as pesquisas que analisam o fracasso sob a ótica da educação escolar excludente, compreendem a escola como uma instituição regida pela lógica da sociedade de classes; no entanto, dão maior atenção às relações hierárquicas de poder que se estabelecem dentro da escola. Para este grupo, há uma violência por parte da escola ao estruturar-se com base na cultura dominante e não reconhecer e, portanto, desvalorizar a cultura popular. Os trabalhos produzidos nesta perspectiva consideram os determinantes sociopolíticos do ensino e criticam as concepções tradicionais de fracasso escolar apontando elementos novos capazes de contribuir para sua superação. Fazem a crítica à tese de que as crianças das classes populares são carentes de cultura ou possuem deficiências cognitivas e emocionais; à relação pedagógica concebida como processo individual; às tentativas de superação do fracasso escolar por meio de medidas técnico-pedagógicas de inclusão nos sistemas escolar e social, todos eles centrados na idéia de escola como entidade abstrata. (ANGELUCCI et al., 2004, p. 63) Criticam ainda as relações estabelecidas de maneira linear entre problemas individuais e problemas de aprendizagem como explicação para as dificuldades de escolarização das crianças de classes populares por não considerarem a constituição do sujeito concreto inserido 19 num determinado lugar da hierarquia social. Ao estudarem a realidade social em que ocorre a escolarização das crianças pobres, esse grupo de pesquisadores/as questiona os problemas identificados pelos/as profissionais da escola e pelos/as elaboradores/as das políticas educacionais para explicar o fracasso, como “problemas emocionais”, “indisciplina”, “carência cultural”.“Essas categorias abstratas são ressignificadas e entendidas não mais como fenômeno individual, sintoma de conflitos intrapsíquicos, ou como expressão reativa da resistência a práticas escolares inadequadas, mas em sua positividade, como expressão do conflito de classes no interior da escola.” (ANGELUCCI et al., 2004, p. 63). Segundo Souza (2008), as discussões sobre o fracasso escolar passaram a ocupar espaço no campo da Psicologia Escolar e Educacional no bojo das críticas construídas pelos próprios profissionais da área sobre a atuação da Psicologia no campo da educação. A partir dos anos de 1980, os estudos sobre o fracasso escolar voltam-se para a escola e temas como vida diária escolar, práticas educacionais, relações institucionais na escola, processos de estigmatização, diferenças de classe social e de gênero na escola, bem como o papel das avaliações psicológicas como instrumentos de diagnóstico das crianças que apresentavam dificuldades de aprendizagem, passaram a ser abordados pelos estudiosos da área. A partir da crítica interna à própria atuação da Psicologia no campo da educação e da constatação das pesquisas de que os problemas de aprendizagem recaíam maciçamente sobre as crianças de classes populares, contribuem para que sejam questionadas as explicações que durante décadas atribuíram as causas do não aprender a questões psicológicas, biológicas ou socioculturais, evidenciando o caráter ideológico dessas explicações decorrentes de concepções preconceituosas sobre os pobres e a pobreza. Ainda segundo Souza (2008, p. 4), a partir do momento que se intensificaram as pesquisas sobre o cotidiano escolar ancoradas em uma perspectiva crítica de educação, os estudos sobre o fracasso escolar permitiram “demonstrar que existe um complexo universo de questões institucionais, políticas, individuais, estruturais e de funcionamento presentes na vida diária escolar que conduzem ao seu fracasso, mantendo os altos índices de exclusão, principalmente das crianças e adolescentes das camadas mais pobres de nossa sociedade.” Tomando-se o processo de escolarização como foco em vez de enfatizar os problemas de aprendizagem, desloca-se “o eixo da análise do indivíduo para a escola e o conjunto de relações institucionais, históricas, psicológicas, pedagógicas e políticas que se fazem presentes e constituem o dia a dia escolar.” (SOUZA, 2008, p. 4). A partir de meados dos anos 1990, segundo Souza (2008), o movimento de crítica 20 interna no campo da Psicologia se fortaleceu e, ao mesmo tempo em que profissionais da área migravam para o campo da saúde, outros se dedicavam à construção de novas formas de aproximação da Psicologia com a Educação Escolar em uma perspectiva crítica. Entretanto, o espaço deixado pela Psicologia foi sendo ocupado por outras explicações denominadas pela autora como “adaptacionistas”, advindas principalmente da Psicopedagogia e da Psicomotricidade, as quais atendiam de forma direta às demandas dos/as professores/as e gestores escolares. Esses dois campos de interface de conhecimentos da Psicologia com a Educação primam por realizar diagnósticos de caráter cognitivo, afetivo, pedagógico ou psicomotor, propondo uma série de atendimentos e de acompanhamentos individuais da criança ou do adolescente, reforçando a idéia de que o problema do não aprender está na criança e que o tratamento ou acompanhamento ou ainda a reeducação permitirão que esta criança volte a aprender. De perspectiva eminentemente clínica realizam o atendimento fora dos muros da escola, por profissionais que acabam por complementar as habilidades educacionais que não são obtidas pela criança na escola. (SOUZA, 2008, p. 9). O fortalecimento das áreas de Psicopedagogia e Psicomotricidade levou à formação de milhares de professores e psicólogos nestas especialidades no Brasil e, com o advento do fortalecimento da genética e da neuropsicologia, os aspectos biológicos voltaram a ser tomados como base dos problemas pedagógicos. Assim, a partir do ano de 2000, retornam as explicações organicistas centradas em distúrbios no campo da educação, renovando-se as explicações com discursos “cientificamente” aperfeiçoados. “Não se fala mais em eletroencefalograma para diagnosticar distúrbios ou problemas neurológicos, mas sim em ressonâncias magnéticas e sofisticações genéticas, mapeamentos cerebrais e reações químicas sofisticadas tecnologicamente.” (SOUZA, 2008, p. 10). Para a autora, embora os avanços tecnológicos tragam contribuições à compreensão de alguns processos humanos, sua aplicação no campo da educação retoma a lógica de explicações individualizantes do fenômeno educativo, desconsiderando que o processo de escolarização é determinado por diferentes dimensões do campo histórico, social e político, ultrapassando o universo da biologia e da neurologia. No entendimento de Souza (2008, p. 10) “o avanço das explicações organicistas para a compreensão do não aprender de crianças e adolescentes retoma os velhos verbetes tão questionados por setores da Psicologia, Educação e Medicina, a saber, dislexia, disortografia, disgrafia, dislalia, transtornos de déficit de atenção, com hiperatividade, sem hiperatividade e hiperatividade.” Por outro lado, os sistemas educacionais de estados e municípios brasileiros, também partindo de leituras parciais, fragmentadas e individualizantes do fracasso escolar, têm implementado políticas públicas de superação do fracasso escolar as quais, oscilam entre 21 programas de assistência social como merenda escolar, bolsa escola, bolsa família, e programas de cunho pedagógico como a ampliação do tempo para a alfabetização com a reorganização curricular das séries em ciclos, com supressão da retenção entre as séries; projetos de recuperação/reforço e inovações nos métodos e propostas de ensino, com ênfase na formação de professores e professoras. Algumas dessas medidas – aquelas que possuem um caráter mais pedagógico - que têm sido implementadas sob a justificativa de enfrentamento do fracasso escolar na alfabetização serão analisadas no próximo item. 2.2-POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO DO FRACASSO ESCOLAR NO BRASIL Nos últimos anos os dados de desempenho escolar têm relevado números alarmantes em relação a quantidade de crianças e adolescentes que avançam na escolaridade, e que no entanto, não alcançam os objetivos esperados. De acordo com Del Pino e Porto (2007, p. 2), os dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) apontam que 59% das crianças “não aprendem a ler e escrever na escola brasileira”. Tais estimativas têm feito com que muitos pesquisadores e pesquisadoras voltem-se para a análise das políticas educacionais e as formas de enfrentamento utilizadas para reverter este quadro. Grande parte dessas pesquisas (HANFF, BARBOSA e KOCH, 2002; FERNANDES, 2005; DEL PINO e PORTO, 2007; ALAVARSE, 2009; MAINARDES, 2009; BAHIA, 2004 e 2009; RODRIGUES e BAQUERO, 2009; ESTEBAN, 2009) procuram discutir quais aspectos, inerentes a tais políticas, contribuem para que não estejam ocorrendo mudanças significativas nos índices de aproveitamento e consequentemente, na melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem das crianças. Desta forma, o objetivo deste texto é descrever de maneira breve o que as pesquisas vêm mostrando sobre as alternativas utilizadas para o enfrentamento do fracasso escolar no Brasil nos últimos anos, tendo como parâmetro os estudos mais recentes realizados a partir do ano de 2000. Para isso, utilizamos o procedimento de revisão sistemática, sintetizada por Mainardes (2009, p. 8). De acordo com ele, a principal intencionalidade da revisão sistemática é a de “elaborar a síntese da pesquisa existente em determinado campo ou temática, com a finalidade de responder questões específicas de investigação”, proceder “à análise e à sistematização de evidências apresentadas pordiferentes pesquisadores sobre um mesmo tópico”, alcançando uma “análise mais aprofundada e detalhada do conhecimento produzido”. 22 Entre as diferentes políticas de enfrentamento do fracasso escolar adotadas pelos estados brasileiros, destacaremos o sistema de organização por Ciclos, as Classes de Aceleração e a política de formação de professores/as. 2.2.1-Organização escolar por ciclos Para Barreto e Souza (2005, p. 660) os ciclos “[...] compreendem alternativas de organização do ensino básico, que ultrapassam a duração das séries anuais como referência temporal para o ensino e a aprendizagem, e estão associados à intenção de assegurar à totalidade dos alunos a permanência na escola e um ensino de qualidade.” Na organização escolar por ciclos, geralmente, a criança que ao fim de um ano letivo não atingir o nível de conhecimento esperado pela escola para aquela etapa tem a possibilidade de progredir para a série seguinte onde poderá continuar seus estudos sem que haja prejuízo com a repetência. Essa forma de organizar o ensino foi adotada por vários estados brasileiros nos últimos anos e tem sido um dos temas bastante discutidos pelas pesquisas brasileiras na última década. Segundo Arroyo (2006) a estrutura do trabalho pedagógico em ciclos possibilita às instituições escolares uma forma diferenciada de organizar a proposta educacional respeitando o tempo de desenvolvimento dos alunos, bem como adequar as ações pedagógicas aos conhecimentos adquiridos por eles e suas necessidades de formação. Entre os autores e autoras que fazem uma análise desta organização como política de enfrentamento situaremos os trabalhos de Fernandes (2005), Cruz (2008), Alavarse (2009), Mainardes (2009) e Rodrigues e Baquero (2009). O trabalho de Fernandes (2005, p. 58) afirma que os chamados Ciclos têm se constituído numa nova lógica de ensino para uma parcela das escolas brasileiras que buscam respostas para a problemática da repetência e da evasão, tendo como uma das suas principais características “a não interrupção da escolaridade dos estudantes ao longo de todo o ensino obrigatório”. Em pesquisa realizada em uma unidade escolar da rede de ensino público de Niterói, Rio de Janeiro, Fernandes analisa as repercussões que a organização por ciclos introduziu na escola e na prática dos docentes. Para ela, a escola ciclada2 vive uma grande tensão, uma vez que as mudanças necessárias para o seu perfeito funcionamento entram em conflito com a própria cultura escolar. 2 A autora utiliza o termo por ele ter se tornado senso comum entre docentes e técnicos das secretarias de Educação no Rio de Janeiro. 23 Como política de superação do fracasso é possível que a escola em ciclos se torne uma boa alternativa a partir do momento em que esta opção vier acompanhada de uma nova organização “espaço-temporal, de estruturação curricular, de avaliação e de organização do trabalho”. (p. 64), como uma meta a ser traçada e cumprida em longo prazo. No entanto, observa-se uma descontinuidade de ações nas escolas e principalmente, nos seus profissionais, causada pela alta rotatividade do corpo docente no contexto pesquisado. A rotatividade detectada nas escolas brasileiras com ciclos, reafirmada pelos dados qualitativos, é apontada como um problema para o trabalho pedagógico a ser desenvolvido. A literatura relata a necessidade de um trabalho em equipe. Sabemos que a formação de equipe de trabalho depende do tempo de troca, de reflexão, de conhecimento do trabalho dos colegas, da confiança nas orientações da supervisão e direção. (FERNANDES, 2005, p. 73). Assim, a escola em ciclos é uma escola de “contrastes” que produz como resultado das inúmeras discrepâncias vivenciadas no seu cotidiano, um clima de verdadeira instabilidade por parte dos/as estudantes “em relação ao que aprendem, terminando o ensino fundamental ou até mesmo a escolaridade básica com defasagem de conteúdo e algumas competências pouco desenvolvidas como leitura, por exemplo”. (idem, p. 74). Cruz (2008) analisa as práticas de alfabetização em uma escola organizada por ciclos, cujos resultados foram positivos para esta etapa da aprendizagem. A pesquisa que deu margem as suas reflexões foi desenvolvida em uma escola municipal da cidade de Recife que estava no rol das que obtiveram as quatro melhores médias na Prova Brasil de 2005 e na Avaliação Nacional de Rendimento Escolar (ANRESC) quanto ao nível de leitura e escrita. No caso do Recife, a alfabetização deve ocorrer durante o primeiro ciclo que engloba os três primeiros anos do Ensino Fundamental. De acordo com a autora, (2008, p. 01) a proposta da Secretaria Municipal é a de “proporcionar à criança um maior tempo para a apropriação da leitura e da escrita”. Contudo, não é explicitado nos documentos oficiais como deve ocorrer a progressão dos alunos, “gerando indefinições entre os professores quanto ao uso da promoção automática ou da progressão continuada”. (p. 01). A observação na escola que obteve um dos melhores desempenhos mostrou que esta indefinição foi superada pelo estabelecimento de práticas diferenciadas de alfabetização e letramento, nas quais se realizavam atividades diversificadas com agrupamento de alunos/as e intervenções individuais e, principalmente, porque a escola tomou decisões coletivas sobre a maneira como os conhecimentos deveriam ser graduados de acordo com o avanço das crianças para as turmas de 1º, 2º e 3º anos do ciclo. A autora aponta que o estabelecimento de metas para cada ano do 1º ciclo, embora não esteja claramente explicitado nas propostas 24 curriculares, é condição fundamental para que ocorra a progressão a que se referem tais documentos e por isso, deve ser discutida e refletida pela escola. Isso explica um dos motivos pelos quais, diferentemente da escola pesquisada, que obteve uma das melhores médias, os dados das avaliações realizadas tanto pelo Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), quanto da Prova Brasil e da Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC) revelaram que os alunos das escolas públicas municipais de Recife concluem o 1º ciclo “sem o domínio da leitura e da escrita alfabética, apresentando profundas dificuldades em leitura e produção textual”. (CRUZ, 2008, p. 01) Entre os dilemas enfrentados na implantação dos sistemas de Ciclo e Progressão continuada se encontram as inquietações dos/as docentes quanto ao modelo de avaliação, uma vez que este não está claro para a maioria dos profissionais. Este fator contribui para que a escola não estabeleça critérios para a aprendizagem acarretando a “promoção sem o domínio ou compreensão de muitos conteúdos de ensino”. Assim, muitas crianças não apresentam um desempenho satisfatório e mesmo assim são promovidas, circunstância que tem gerado um “aprisionamento em situações de exclusão” (BAHIA, 2004, p. 10), pois lhes é negado o direito aos saberes escolares e ao ensino de qualidade. Os ciclos não alcançaram os objetivos esperados porque medidas importantes deixaram de ser levadas em conta na sua efetivação. Entre elas, Bahia (2009, p. 321) destaca: [...] avaliação institucional (interna e externa); avaliação da aprendizagem ao longo do processo, conduzindo a uma avaliação contínua e cumulativa da aprendizagem do aluno, de modo a permitir a apreciação de seu desempenho em todo o ciclo; atividades de reforço e de recuperação paralelas e contínuas ao longo do processo e, se necessário, ao final do ciclo ou nível; meios alternativos de adaptação, reforço, reclassificação, avanço, reconhecimento, aproveitamento e aceleração de estudos; indicadores de desempenho; controle da freqüência dos alunos; contínua melhoria do ensino; forma de implantação, implementação e avaliação do projeto; dispositivos regimentais adequados; articulação com as famílias no acompanhamento do aluno ao longodo processo, fornecendo-lhes informações sistemáticas sobre freqüência e aproveitamento escolar. Alavarse (2009, p. 40) evidencia que o sistema de ciclos “não alcançou os resultados prognosticados há mais de duas décadas”. Para o autor, os agentes responsáveis pelas políticas educacionais acreditam que o fracasso escolar é favorecido pela seriação e que, portanto, a pura adoção de ciclos produziria um resultado mais positivo atenuando os critérios tradicionais de avaliação. Entretanto, as políticas não explicitam claramente como as medidas devem ocorrer de maneira que, em muitas escolas onde essa alternativa de organização tem ocorrido “acaba-se operando uma apropriação da proposta de tal modo que vêm a resultar em algo distinto daquilo que se cogitava no plano da política educacional”. (p. 40). 25 Assim, a potencialização dos ciclos como política de enfrentamento do fracasso esbarra na ausência de medidas que dotem as escolas de adequadas condições materiais e de trabalho para seus profissionais. Nas palavras de Alavarse (2009, p .46) [...] os ciclos podem estar significando um período mais longo que o tradicional ano letivo durante o qual não estejam sendo mobilizadas, efetivamente, estratégias e condições para um nítido contraste com a seriação e, principalmente, para alavancar as aprendizagens. Como resultado, com uma ou outra forma, não se estaria garantindo que todos aprendam. E essa é uma realidade mencionada pela maioria das pesquisas que envolvem direta ou indiretamente o tema da organização por ciclos. Mainardes (2009) mapeou e analisou tais pesquisas no período de 2000 a 2006, incluindo teses de doutorado, dissertações de mestrado, livros, capítulos de livros e artigos publicados em periódicos. Ao problematizar o conteúdo das teses e dissertações produzidas o autor constata que a maioria dos trabalhos aponta que, apesar da implantação dos ciclos ter possibilitado a diminuição nas taxas de retenção e evasão, “o ‘não-aprender’ se configura no cotidiano da sala de aula”. (MAINARDES, 2009, p. 11 - destaques do autor). O estudo de Rodrigues e Baquero (2009, p. 01) envolvendo a discussão sobre a exclusão por conhecimento a partir de uma pesquisa realizada em classes de alfabetização da rede escolar municipal de Porto Alegre entre os anos de 2005 a 2007 mostra que a proposta de “ciclos de formação”3 – pouco contribuiu para que ocorresse a ampliação da aprendizagem, constituindo-se em um verdadeiro “movimento de exclusão explícita” (p. 03). Após analisar o movimento geral de aproveitamento de todas as escolas da rede municipal e focar nas duas escolas com maior e menor índice de crianças mantidas no I ciclo (6-8,11 anos), as autoras constataram que os índices variam porque fica a cargo de cada escola e não da Secretaria Municipal de Educação (SMED – Porto Alegre/RS), discutir sobre os critérios de retenção/manutenção. Mesmo nas escolas que apresentavam índice zero de retenção/reprovação, observou-se que esse resultado “satisfatório” nem sempre representava “efetivas aprendizagens da leitura e da escrita e que, em muitas situações, um número significativo de alunos avançava por muitos anos de escolarização sem um conhecimento mínimo do sistema alfabético para que pudesse ser considerado alfabetizado”. (RODRIGUES e BAQUERO, 2009, p. 12). Em geral, a semelhança nos termos utilizados pelos/as diferentes autores/as como “exclusão branda” (FREITAS, 2002), “escola de contrastes” (FERNANDES, 2005), 3 O ciclo recebeu esta denominação em Porto Alegre tendo em vista que as três fases que atendem crianças entre 06 e 14 anos foram pensadas levando-se em conta não apenas o nível de aprendizagem, mas também as etapas do desenvolvimento. 26 “aprisionamento em situações de exclusão” (BAHIA, 2009), “movimento de exclusão explícita” (RODRIGUES e BAQUERO, 2009) entre tantos outros, mostra que a organização escolar por ciclos não tem funcionado efetivamente como política capaz de enfrentar o fracasso escolar. Ao contrário, de maneira camuflada, pois melhoram as estatísticas e a imagem dos governos, projetos como Ciclo Básico e Sistema de Progressão Continuada têm gerado nas escolas públicas do país “semi-analfabetos ao final do ensino fundamental”. (ALVES, 2006, p. 65). Passaremos a analisar então a proposta de Classes de Aceleração. 2.2.2-As classes de aceleração As classes de aceleração objetivam oferecer aos/as alunos/as com defasagem idade/série a oportunidade de corrigi-la, acelerando a escolaridade em duas ou três séries, procurando elevar a auto-estima dos/as mesmos/as por meio de atendimento qualificado, diversificado e dinâmico. Essa oportunidade visa atender tanto aos/as alunos/as vítimas de repetência quanto aos que entraram na escola tardiamente. Entre as autoras que discutem a política de classes de aceleração destacam-se Hanff, Barbosa e Koch (2002), Patto (2005), Bahia (2004), Breda, Oliveira e Miranda (2006) e Miranda (2007). Hanff, Barbosa e Koch (2002) analisam a implantação da política nacional das Classes de Aceleração no Estado de Santa Catarina, especialmente na cidade de Florianópolis a partir do ano de 1998. A partir de uma pesquisa desenvolvida em seis escolas municipais de Florianópolis, as autoras buscaram analisar o processo histórico de implantação das Classes de Aceleração, bem como o processo de formação docente para trabalhar com esta nova realidade, as estratégias pedagógicas utilizadas e os resultados da proposta na aprendizagem dos alunos. O projeto se constituía como uma medida de superação do alarmante número de crianças atrasadas na sua formação escolar, sendo que o governo federal estimulava e de certa forma, pressionava para que os estados aderissem ao Sistema de Classes de Aceleração da Aprendizagem. Desta forma, em 1997, chegam em Santa Catarina, as classes de aceleração embaladas na denúncia do fracasso escolar das escolas públicas, do número de reprovações e multirreprovações, pela influência direta e indireta de experiências realizadas em outros estados brasileiros e, principalmente, pela pressão exercida pelo governo federal e órgãos internacionais na implantação do Projeto, com base na Lei 9.394/96. (HANFF, BARBOSA e KOCH 2002, p. 30). O principal objetivo da implantação era “proporcionar melhores condições para a recuperação do/a aluno/a em situação de defasagem na aprendizagem e em relação à idade/série, possibilitando-lhe real avanço no seu processo de apropriação do conhecimento”. 27 (idem, p. 31). Todavia, a incumbência de solucionar o fracasso restringiu-se a ação dos docentes a quem foi destinado o maior número de atribuições para que as classes pudessem funcionar em cada unidade escolar. Assim, enquanto a Secretaria Municipal se eximia da maior parte das responsabilidades, o processo de implantação ocorria mediante muitas variações em cada escola. Sem uma base consistente, a política, que a princípio deveria constituir-se numa alternativa para o enfrentamento do fracasso, transformou-se em outra forma de estigmatização dos alunos, uma vez que as Classes de Aceleração, ao isolarem-se do restante da escola, eram vistas por muitos profissionais como “uma forma de ‘livrar-se’ dos alunos que apresentavam problemas de comportamento ou aprendizagem, mais do que uma possibilidade de progressão”. (HANFF, BARBOSA e KOCH, 2002, p. 32). De acordo com a análise realizada por Patto (2005, p. 21): [...] reunir ‘repetentes’, ‘difíceis’, ‘indisciplinados’, ‘atrasados’, ‘meninos de alto risco’ – os filhos maltratados do Ciclo Básico – numa única sala de aula, para evitar que fossem rotulados em classes comuns, pode ser um tiro pela culatra, pois as classes de aceleração passaram a ser vistas como perigosas, pois foco de indesejáveis. (Destaques da autora). As Classes de Aceleração acabaram por se constituir numa política compensatória,sem vínculo com o conjunto de discussões que ocorriam nas escolas, tendo inclusive uma coordenação específica e, ao contrário de irem se desfazendo à medida que os alunos avançassem, foram criadas classes de aceleração até mesmo no Ensino Médio, contrariando sua lógica de implantação segundo a qual essas turmas “não vieram para ficar. Foram medida provisória para remediar rapidamente a defasagem série-idade já instalada, enquanto não se tomavam medidas preventivas mais duradouras”. (PATTO, 2005, p. 23). Bahia (2009, p. 03) mostra que no Estado de São Paulo as classes de aceleração foram implantadas com o objetivo de “recuperar o percurso escolar dos/as alunos/as em situação de defasagem idade-série, especialmente os multirrepetentes do Ciclo Básico (1ªs e 2ªs séries) à 4ª série do Ensino Fundamental”. As classes funcionariam a partir da idéia de correção do fluxo idade-série. Na opinião da autora essa premissa não era realidade na prática. A pesquisa desenvolvida durante três anos no município de Diadema/SP, em que foram acompanhados 52 alunos que participaram do Projeto Classes de Aceleração (Bahia, 2004, p. 03) mostrou que essas crianças permanecem vários anos numa mesma série, e por isso “não ‘avançam’ do ponto de vista da idade-série, apenas freqüentam uma Classe de Aceleração com o objetivo de correção do desempenho”. (Destaque da autora). 28 A pesquisa também mostrou que ao retornarem para as classes regulares, os docentes avaliam como insatisfatório o desempenho dos alunos em relação aos conteúdos. Na opinião da autora, as Classes de Aceleração, da maneira como foram organizadas, apenas mascaravam uma situação de “reclusão dos excluídos”, pois “apesar de garantir a permanência na escola de alguns alunos estigmatizados pelo fracasso, parece não estar garantindo a qualidade da aprendizagem”. (BAHIA, 2004, p. 04). Em Rondônia, a pesquisa de Breda, Oliveira e Miranda (2006) afirma haver poucos dados sobre a implantação das Classes de Aceleração. As poucas informações disponíveis, principalmente nos documentos oficiais apontam que o programa foi implantado no Estado entre os anos de 1997 e 1998, pela Secretaria de Estado de Educação, fundamentado pelo art. 24 - inciso V, alínea “b” da LDB 9394/96. De acordo com Breda, Oliveira e Miranda (2006, p. 02). Respondendo a essa necessidade de mudança na prática educativa, a Secretaria de Estado de Educação de Rondônia, a fim de atender aos alunos do Ensino Fundamental com defasagem idade/série, propõem e consolida o Projeto de Classe de Aceleração da Aprendizagem que procura reverter esse quadro e saldar a dívida social com esses alunos numa dimensão pedagógica que avance rumo ao sucesso escolar. De acordo com a Instrução Normativa N° 001/GI/SEDUC (RONDÔNIA, 2005) em seu Artigo 2º, as classes de aceleração seriam organizadas obedecendo aos seguintes critérios: I - CAA – Alunos não alfabetizados ou em processo de alfabetização, independente da série de origem, com a garantia de permanência de mais de 01 (um) ano na Classe de Aceleração II; II – CAA II – Alunos alfabetizados com desenvolvimento cognitivo superior aos alunos da CAA I, objetivando a conquista da autonomia na leitura e escrita e relação aos pontos de chegada dos componentes curriculares; III – Os alunos que farão parte das CAA deverão apresentar, no mínimo 02 (dois) anos de defasagem idade/série, com idade mínima de 09 (nove) anos e máxima de 13 (treze). Embora o que se espere seja, principalmente, a superação da distorção idade série, ao comparar o número de anos que cada criança permanecia nas classes de aceleração, tendo como análise quantitativa alunos/as das escolas públicas estaduais dos municípios de Rolim de Moura e Nova Brasilândia, no interior do Estado, Miranda (2007, p. 43) chega a conclusão de que o Programa CAA em Rondônia não tem cumprido com seu objetivo de eliminar a distorção idade série, uma vez que a permanência dos alunos e alunas nas classes de Aceleração II, por força da reformulação das regras do programa, implica na continuação da defasagem por ocasião de reinserção dos mesmos no ensino regular. O que se confirma com este estudo é que o Projeto Classe de Aceleração da Aprendizagem, no Estado de Rondônia, na forma legal como está constituído, não 29 alcançará seu objetivo de redução da distorção idade/série enquanto considerar o CAA II como uma nova “chance” ou “oportunidade” para os alunos que “pouco avançaram no CAA I”. Em síntese, as pesquisas realizadas nos trabalhos revistos, apontam que as classes de Aceleração não passaram de medidas remediativas que se constituíram como uma proposta isolada, uma vez que as condições estruturais gerais necessárias para uma educação de qualidade não foram modificadas, agravando a situação do fracasso escolar. 2.2.3-Formação de professores/as A política de formação de professores e professoras tem sido uma das medidas de maior investimento dos estados brasileiros no combate ao fracasso escolar. De acordo com Souza (2002, p. 251), os órgãos governamentais difundiram a idéia de que os altos índices de fracasso escolar atestam a “incompetência dos professores” (destaque da autora), que seria gerada, sobretudo pela má qualidade de sua formação. Tanto as pesquisas, como as políticas educacionais que partem desse argumento sustentam uma postura na qual “para melhorar a qualidade da escola é preciso que seus professores sejam mais bem capacitados por meio de cursos de formação contínua, nos quais poderão suprir as deficiências de sua formação inicial e entrarão em contato com novas teorias, metodologias e técnicas de ensino aprendizagem”. (SOUZA, 2002, p, 251 - grifos nossos). Ao analisar as críticas que apontam para a formação docente como inadequada para o atendimento aos desafios da sociedade atual Zibetti (2007, p. 01) evidencia que: Em decorrência disso temos assistido em todo o Brasil a proliferação de cursos de formação de professores e professoras (em nível superior e cursos de aperfeiçoamento), tanto em programas especiais oferecidos pelas universidades e financiados pelos governos estaduais e municipais com verbas do FUNDEF (Fundo de Financiamento e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e valorização do magistério), quanto pagos pelos/as próprios/as profissionais, muitos deles na modalidade a distância, ou em sistemas híbridos que utilizam as tecnologias da comunicação e da informação. Essa proliferação de cursos deve-se ao fato de que, mesmo para o Ministério da Educação (MEC) o “fracasso escolar é, em grande parte, devido à incompetência de professores mal formados” (ALVES, 2006, p. 69). Nesse sentido, o MEC tem determinado a política de formação de professores/a no país, preocupando-se não apenas com a elaboração de documentos norteadores da formação continuada, como também estabelecendo diretrizes para a formação inicial. Essa preocupação evidencia-se na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96) ao colocar os docentes e sua formação como fatores decisivos para a 30 elevação da qualidade do ensino e da aprendizagem, principalmente na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Ao analisar o discurso presente nos Referenciais para Formação de Professores elaborado pelo MEC, Alves (2006, p. 54) evidencia que o documento sustenta haver uma grande relação entre “deficiências na formação dos docentes e o fracasso escolar no Brasil”. Segundo o autor, a tendência atual dos mecanismos governamentais é a de investir na formação continuada ou na capacitação em serviço, uma vez que buscam seguir as recomendações do Banco Mundial cujo entendimento é o de que “a formação inicial de boa qualidade dos docentes tem pouco impacto sobre a qualidade da educação e do rendimento escolar” (ibidem, p. 59). Apesar dos altos investimentos, Colello e Silva (2007, p. 03) mostram que as políticas de formação docente
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