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ALIMENTAR A MENTE ALIMENTAR A MENTE TRADUÇÃO E APRESENTAÇÃO HAMILTON FERNANDES Todos os direitos desta edição são reservados à Tikinet Edição Ltda. TIKIBOOKS Rua Santanésia, 528, 1º andar – Vila Pirajussara CEP 05580-050 – São Paulo – SP Tel.: (11) 2361-1808 / 1809 www.tikinet.com.br ISBN : 978-85-66241-05-1 Título original Feeding the mind Coordenação editorial Pedro Barros e Carlos Eduardo Chiba Tradução e apresentação Hamilton Fernandes Revisão e preparação da tradução Pedro Barros Capa Rodrigo Martins Projeto gráfico e diagramação Maurício Marcelo Apresentação No prefácio à primeira edição de Alimentar a mente 1 , o tradutor e editor William H. Draper dá alguns detalhes de como essa “pequena pérola da pena de Lewis Carroll”, segundo suas próprias palavras, veio a público: Em outubro de 1884, ele [Carroll] visitou uma paróquia em Derbyshire, onde tinha prometido, com base na amizade, fazer algo que para ele era o mais incomum dos favores – dar uma palestra diante de uma plateia. Lembro-me muito bem de seus modos tensos e hipersensíveis quando se apresentou diante da pequena sala repleta de cidadãos comuns, poucos dos quais tinham alguma ideia da reputação mundial daquela figura tímida e frágil diante deles. Ao fim da palestra, ele me entregou o manuscrito e disse: “Faça o que quiser com isso” . Trata-se de um texto crítico e bem-humorado em que o autor de Alice no país das maravilhas discorre sobre o significado e certos aspectos da leitura. Carroll, conhecido por suas comparações e metáforas insólitas, faz uma analogia entre a digestão do corpo humano e a interpretação daquilo que lemos, em termos de quantidade e qualidade, como “se a mente fosse igualmente visível e tangível – se pudéssemos, digamos, levá-la ao médico para um exame”. Mas o leitor do século XXI pode estar se perguntando – qual seria a importância das observações de um homem do final do século XIX sobre a leitura? Afinal, era um mundo mais “lento”, em que a informação era escassa e processada num outro ritmo. É justamente aí que está a surpresa: Carroll critica não só a superficialidade e o excesso, mas principalmente a falta de reflexão sobre tudo o que é lido – algo que talvez tenha atingido seu ápice hoje com os best-sellers de fácil digestão e a quantidade alucinatória de informações que viajam por esse buraco negro chamado “internet”. De qualquer forma, esperamos que se faça bom proveito dos conselhos do autor. Boa digestão! HAMILTON FERNANDES 1 Londres, Chatto & Windus, 1907. ALIMENTAR A MENTE Café da manhã, jantar e chá; em casos extremos, café da manhã, almoço rápido, jantar, chá, algo para forrar o estômago à noite e um copo de alguma bebida quente na hora de dormir. Que cuidados tomamos para alimentar o corpo, este felizardo! Mas quem faz o mesmo pela mente? E por que existe essa diferença? Seria o corpo assim tão mais importante? De forma alguma, mas a vida depende de um corpo alimentado, ao passo que podemos continuar a existir como animais (bem distante de seres humanos) ainda que a mente esteja completamente desnutrida e negligenciada. Portanto, a Natureza estipula, em caso de sérios descuidos com o corpo, terríveis consequências, aflições e dores, nos lembrando de nosso dever; e de algumas das funções necessárias à vida, ela mesma se encarrega, sem que possamos ter controle sobre o assunto. Seria desagradável senão impróprio se ficasse a nosso cargo administrar a própria digestão e circulação. “Meu Deus!”, alguém exclamaria, “esqueci de acionar meu coração pela manhã. E pensar que ele está parado há três horas”. “Não posso caminhar com você hoje à tarde”, diria um amigo. “Tenho nada menos que onze jantares para digerir. Deixei acumular na semana passada, estava muito ocupado, e o doutor disse que não vai se responsabilizar pelas consequências se eu não fizer nada logo!” Bem, quero dizer, as consequências de descuidar do corpo podem ser claramente vistas e sentidas; e seria da mesma forma para alguns se a mente fosse igualmente visível e tangível – se pudéssemos, digamos, levá-la ao médico para um exame. “Ora, o que você tem feito com sua mente nos últimos tempos? Com o que a tem alimentado? Está abatida, e a pulsação está muito baixa.” “Bem, doutor, não a tenho alimentado muito bem ultimamente. Dei a ela muitos docinhos ontem.” “Que tipo de docinhos?” “Bem, de todos os tipos, senhor.” “Ah, já imaginava. Mas pense nisso: se você continuar a enganá-la dessa maneira, vai estragar os dentes da mente e acabar na cama com indigestão mental. Você precisa fazer uma dieta de leituras superficiais nos próximos dias. Cuide-se! Nem pense em romances pesados!” Considerando a soma de experiências dolorosas que muitos de nós podemos ter quando alimentamos e cuidamos do corpo, creio que valeria a pena a ocasião para experimentar e traduzir algumas de suas regras para a relação com a mente. Primeiro, devemos oferecer à mente o tipo apropriado de alimento. Desde cedo, aprendemos o que vai ou não cair bem no corpo, e não é nada difícil recusar um tentador pedaço de pudim ou torta, que está associado em nossa memória a uma terrível indigestão, e cujo nome inevitavelmente lembra ruibarbo e leite de magnésia; mas são necessárias muitas lições para ficarmos convencidos de como são indigestas algumas de nossas leituras favoritas, e mais uma vez acabaremos jantando um romance insalubre, que certamente terá sua costumeira sucessão de abatimento, recusa ao trabalho e fadiga existencial – na verdade, um pesadelo mental. Mas devemos também ter o cuidado de oferecer alimento saudável na quantidade apropriada . Gula mental, ou excesso de leitura, é uma propensão perigosa, que leva a fraqueza do poder digestivo e, em alguns casos, a perda de apetite: sabemos que o pão é alimento bom e saudável, mas quem seria capaz de comer duas ou três baguetes de uma sentada? Ouvi falar de um médico que disse a seu paciente – cuja queixa era apenas gula e necessidade de se exercitar – que “o primeiro sintoma da hipernutrição é a deposição de tecido adiposo”, e sem dúvida alguma esse belo palavreado consolou o homem e sua crescente gordura armazenada. Eu me pergunto se existe na natureza algo que se pareça com uma MENTE GORDA. Creio que cheguei a encontrar uma ou duas: mentes que não conseguiam acompanhar o ritmo de conversas, mesmo as mais lentas; não tinham a capacidade de pular sobre um cercado lógico para salvar sua pele; ficavam sempre presas a um argumento raso; em suma, não serviam para nada e ficavam cambaleando, desamparadas, pelo mundo. Assim, mais uma vez, ainda que o alimento seja saudável e venha na quantidade apropriada, sabemos que não se deve consumir muitos tipos de uma só vez . Dê àquele que tem sede um litro de cerveja, um litro de cidra, ou mesmo um litro de chá, e ele provavelmente irá agradecê-lo (embora não tão calorosamente no último caso!). Mas imagine como ele se sentiria se você oferecesse a ele uma bandeja com uma pequena caneca de cerveja, uma de cidra e outra de chá gelado, uma de chá quente, uma de chocolate e os copos correspondentes de leite, água, conhaque com água tônica e leite desnatado? A mistura total poderia dar um litro, mas teria o mesmo impacto? Estabelecidos o tipo, a quantidade e a variedade adequados de nosso alimento mental, é preciso ter o cuidado de estabelecer intervalos apropriados entre as refeições, e não engoli-lo com pressa, sem mastigar, permitindo que seja totalmente digerido – regras para o corpo que são aplicáveis também à mente. Primeiro, os intervalos são tão necessários para a mente quantopara o corpo, com a diferença somente de que, enquanto o corpo precisa descansar três ou quatro horas antes de estar pronto para outra refeição, a mente muitas vezes só necessita de três ou quatro minutos. Creio que o intervalo exigido seja bem mais curto do que muitos supõem; e, pessoalmente, recomendo a qualquer pessoa que dedicará várias horas para pensar sobre um único assunto que experimente os efeitos de uma pausa – digamos a cada hora interromper as atividades por cinco minutos, tomando o cuidado de deixar a mente “desligada” durante esses cinco minutos e voltá-la inteiramente a outros assuntos. É surpreendente quanto de ímpeto e flexibilidade a mente recupera durante esses curtos períodos de descanso. Quanto à mastigação do alimento, a analogia com o processo mental é simplesmente refletir sobre o que lemos. Isso exige um esforço mental muito maior do que a mera aceitação passiva do conteúdo do autor. O esforço é tanto, que, como diz Coleridge, a mente muitas vezes “recusa furiosamente” colocar-se em tal dificuldade – estamos bem propensos a ignorar isso, preferindo o despejo contínuo de novos alimentos na pilha de coisas não digeridas, deixando a infeliz mente completamente atolada. Mas quanto maior é o esforço mais valioso certamente será o efeito. Uma hora de reflexão constante sobre determinado assunto (uma caminhada solitária é uma boa oportunidade para isso) equivale a duas ou três horas de leitura. Considere ainda outro efeito da digestão completa dos livros que lemos: o arranjo e a organização dos assuntos em nossas mentes, de modo que podemos citá-los de imediato quando quisermos. Sam Slick 1 conta que aprendeu várias línguas durante a vida, mas de certa forma “não conseguia separar os idiomas” em sua mente. E não são poucas as mentes que seguem ansiosas de um livro para outro, sem parar para digerir ou organizar nada, colocando-se nessa condição, e o pobre dono desse tipo de mente percebe que está longe de corresponder àquilo que os amigos esperam dele. “Um homem que leu muitos livros. Você pode testá-lo com qualquer assunto, e ele saberá o que dizer.” Volte-se para esse homem que leu muitos livros. Faça uma pergunta, digamos, sobre a história da Inglaterra (supondo que ele acabou de ler Macaulay 2 ). Ele sorri gentilmente, tenta assumir um ar de quem sabe tudo sobre o assunto e mergulha em seus pensamentos para responder a questão. Logo surgem diversos fatos com potencial, mas após uma análise descobre-se que pertencem ao século errado e são descartados. Uma segunda tentativa traz um fato mais próximo da realidade, mas que, infelizmente, vem acompanhado de um emaranhado de outras coisas – um fato da política econômica, uma regra aritmética, a idade de seus sobrinhos, um verso da “Elegia” de Gray 3 e, no meio dessas ideias, o fato que ele busca está irremediavelmente entrelaçado e misturado. Enquanto isso, todos aguardam sua resposta, e, conforme o silêncio fica cada vez mais desconfortável, nosso amigo de muitas leituras terá de balbuciar uma resposta incompleta, que será quase tão clara ou satisfatória quanto à que um colegial daria. E tudo isso por ele querer colocar o conhecimento nos devidos lotes e rotulá-los. É possível reconhecer à primeira vista a infeliz vítima de uma alimentação mental precipitada? Desconfiaria que se trata de um desses casos? Nós o vemos vagando lugubremente pela sala de leitura, experimentando prato após prato – quer dizer, livro após livro – sem se apegar a nenhum. Primeiro, um bocado de romance; mas não, eca!, na última semana foi a única coisa que comeu e cansou do gosto. Então uma fatia de ciência; mas já se sabe que o resultado disso será: ah, claro, duro demais para seus dentes. E assim por diante em sua vagueação fatigante – ele tentou (e falhou) ontem e provavelmente vai tentar e falhar amanhã. O senhor Oliver Wendell Holmes, em seu divertido livro The professor at the breakfast table [O professor à mesa no café da manhã], apresenta a seguinte regra para saber se um ser humano é jovem ou velho: “Eis a experiência crucial – ofereça uma boa quantidade de pão doce ao indivíduo dez minutos antes do jantar. Se for facilmente aceita e devorada, a juventude está provada”. Ele afirma que um ser humano, “se for jovem, vai comer qualquer coisa a qualquer hora do dia ou da noite”. Para se certificar da saúde do apetite mental do animal humano, coloque em suas mãos um pequeno tratado bem escrito sobre um tema popular, mas que não seja lá muito empolgante – um pãozinho mental. Se for lido com entusiasmo e grande atenção, e se o leitor souber responder questões sobre o assunto depois , a mente está em perfeita ordem de funcionamento. Se o texto for gentilmente devolvido ou apenas percorrido com os olhos por alguns minutos, e o leitor disser “Não consigo ler esse livro idiota! Poderia me emprestar o segundo volume daquele livro de suspense?”, você pode estar igualmente certo de que há algo errado com a digestão mental. Se este ensaio deu a você dicas úteis sobre esse assunto importante que é a leitura e fez ver que o interesse do indivíduo deve ser apenas “ler, distinguir, aprender e digerir interiormente” os bons livros que surgirem pelo caminho, seu propósito foi cumprido. 1 Personagem do cartum satírico criado por Thomas Chandler Haliburton, que apareceu pela primeira vez no jornal canadense Novascotian em 1835. (N.T.) 2 Thomas Macaulay (1800-1859): poeta, político e historiador britânico conhecido por seus estudos sobre a história da Inglaterra. (N.T.) 3 Referência à “Elegia escrita num cemitério campestre”, de Thomas Gray (1716-1771). (N.T.) Table of Contents Apresentação Alimentar a mente Apresentação Alimentar a mente
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