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EDITOR Marcos Marcionilo CONSELHO EDITORIAL Ana Stahl Zilles [Unisinos] Angela Paiva Dionisio [UFPE] Carlos Alberto Faraco [UFPR] Celso Ferrarezi Jr. [UNIFAL] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP] Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela] José Ribamar Lopes Batista Jr. [UFPI/CTF/LPT] Kanavillil Rajagopalan [Unicamp] Marcos Bagno [UnB] Maria Marta Pereira Scherre [UFES] Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha] Roxane Rojo [UNICAMP] Salma Tannus Muchail [PUC-SP] Sírio Possenti [UNICAMP] Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB] Tommaso Raso [UFMG] Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva [UFMG/CNPq] O que é hipercorreção? Vamos começar nossa conversa lendo a definição que o Dicionário Houaiss oferece do termo ultracorreção: Nos estudos linguísticos, é mais habitual usar o termo hipercorreção que, como se vê no verbete do Houaiss, é um sinônimo de ultracorreção. Essa definição do dicionário está sintonizada com os resultados das pesquisas feitas nas décadas de 1960-70 pelo sociolinguista estadunidense William Labov. Para Labov, a hipercorreção é fruto do que ele chamou de insegurança linguística, aquilo que no dicionário Houaiss aparece como “o temor do falante de revelar uma classe socialmente discriminada”: a pessoa, para não ser acusada de “falar errado” (o que seria indício de pouca instrução formal e de origem social humilde), exagera no emprego daquilo que considera ser a forma “correta” e acaba obtendo o resultado exatamente oposto, que é… o erro. Um exemplo clássico de hipercorreção gerada por insegurança linguística é o emprego do verbo haver no plural, como em “houveram1 muitas reclamações sobre as mudanças de horário do metrô” — por ser impessoal, o verbo haver (quando tem sentido “existencial”) só é conjugado no singular: “houve muitas reclamações”. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, por sua vez, escreveu que muitas pessoas reconhecem a existência de uma “língua correta” (que ele chama de “língua legítima”), mas não conhecem plenamente esse modelo de correção (muitas vezes por não terem acesso, em sociedades desiguais e injustas, a uma educação de qualidade). Desse modo, na tentativa de alcançar esse ideal de “legitimidade” nos usos linguísticos, elas acabam cometendo inadequações e hipercorreções. Tipos de hipercorreção Voltando ao verbete do dicionário, vemos que os exemplos que aparecem ali se limitam à pronúncia (mantor por mantô, rúbrica por rubrica) ou na escolha das palavras (genitora, considerada mais “sofisticada” do que mãe). Mas também existe hipercorreção na morfossintaxe, isto é, nos modos como construímos nossas frases, nossos textos ou — para usar uma palavra mais conhecida — na gramática do que escrevemos. O caso do verbo haver no plural, que vimos acima, é um exemplo de hipercorreção morfossintática. O elemento morfo- vem do grego e significa “forma”: o erro de houveram está na forma do verbo, que deve ser houve. O termo sintaxe, também do grego, significa “organização, composição, combinação”: o erro de houveram está no fato de que não é correto “combinar” o radical houv- com a terminação -eram quando o verbo tem sentido impessoal nem fazer a concordância com o que vem depois (“reclamações”, no nosso exemplo). Neste breve manual, vamos nos ocupar principalmente dessas hipercorreções morfossintáticas porque nosso interesse aqui é a escrita formal, aquela que cria no leitor a expectativa de um texto coeso, coerente, que mostre uma escolha adequada de vocabulário e seja bem construído gramaticalmente. Justamente por ser formal é que essa escrita corre o risco maior de apresentar hipercorreções, se a pessoa que escreve não tiver segurança nos usos adequados dos recursos da língua. Infelizmente, muitos dos fenômenos de hipercorreção — ou pelo menos os mais comuns — se devem a um ensino de língua pouco satisfatório, resultante de uma concepção equivocada do que seja escrever bem. Muitas professoras e professores ainda parecem acreditar que a gente produz um bom texto escrito pela simples eliminação de determinadas palavras, que devem ser substituídas por outras. Alguns casos frequentes são a troca de que por o qual e de mas por porém. Ora, essas substituições não garantem, nem de longe, uma boa produção escrita: os fatores que realmente garantem um texto de qualidade são outros e eles é que deveriam ser objeto de ensino explícito e sistemático na educação linguística em todos os níveis2. Outro equívoco é supor que toda manifestação escrita tem que ser obrigatoriamente rebuscada, recheada de palavras e construções pouco habituais, tidas por mais “sofisticadas” (exatamente o que chamo, neste livro, de “falsas elegâncias”). Esse equívoco vem da ideia, sem fundamento, de que “escrever é diferente de falar” e de que é preciso “eliminar as marcas de oralidade da fala”. No entanto, um bom texto escrito é aquele que tem ritmo, que flui, que não faz a gente tropeçar o tempo todo em pedregulhos verbais. Costumo dizer que escrever bem é escrever simples: é perfeitamente possível obter um texto elegante sem precisar recorrer a pérolas postiças e medalhas enferrujadas3. Hipercorreção e mudança linguística Antes de partirmos para o exame dos casos de hipercorreção que selecionei para este livro, convém mencionar alguns fatos importantes no que diz respeito à noção de erro. Muitos usos já consagrados na escrita formal — incluindo a escrita literária — ainda são rotulados de “erros” pela tradição gramatical e, talvez até de forma mais autoritária, por pessoas que se apegam a uma concepção de “língua certa” anacrônica e obsoleta, pessoas que escrevem em jornais e revistas, em páginas da internet ou que criam canais de vídeo para difundir essas ideias mal fundamentadas de correção. São as pregadoras e os pregadores daquilo que o linguista brasileiro Carlos Alberto Faraco chamou de norma curta: uma noção de “língua certa” que se apega a uma dúzia e meia de casos gramaticais e trata deles com uma inflexibilidade que contradiz muitas vezes a postura mais relativizadora dos gramáticos e dicionaristas de formação. É triste ver que muitos livros didáticos de português adotados nas escolas tentam fixar essa norma curta no ensino, o que só contribui para a preservação de mitos como o de que “o português é uma das línguas mais difíceis do mundo”. Afinal, se eu, falante da língua, não me reconheço naquelas regras é porque, sem dúvida, meu modo de falar a língua é “errado” e não tenho capacidade para apreender toda a “complexidade” da gramática do meu próprio idioma materno. O resultado é uma baixa autoestima linguística. Isso também contribui para a cristalização da já citada insegurança linguística, que é o terreno fértil onde brotam e frutificam as hipercorreções. Um exemplo simples dessa diferença entre a norma curta preconizada por alguns livros didáticos em contradição com o que dizem os gramáticos e dicionaristas profissionais é o do uso de onde e aonde. Vejamos o que dizem dois livros didáticos: • “O pronome relativo onde deve ser empregado apenas para indicar um lugar concreto, nunca uma situação […]. Aonde é usado quando o verbo exige a preposição a”4. • “É preciso não confundir o emprego do pronome relativo onde com aonde. O primeiro indica permanência em um lugar enquanto o segundo indica movimento para um lugar”5. Agora vamos ver como se manifestam a esse respeito dois gramáticos e um dicionarista: • Embora a ponderável razão de maior clareza idiomática justifique o contraste que a disciplina gramatical procura estabelecer, na língua culta contemporânea, entre onde (= olugar em que) e aonde (= o lugar a que), cumpre ressaltar que esta distinção, praticamente anulada na linguagem coloquial, já não era rigorosa nos clássicos6. • O uso dos melhores autores […] não distingue onde de aonde. […] Por vezes ocorre o emprego simultâneo de um e outro advérbio com a mesma significação: “Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?” (Cláudio Manuel da Costa, Obras poéticas, I, p. 109); “Mas aonde te vais agora, / Onde vais, esposo meu?” (Machado de Assis, Poesias completas, p. 207). Note-se, na abonação machadiana, que a métrica não se oporia à repetição do aonde7. Os gramáticos e dicionaristas mais respeitados são filólogos de formação, têm profundo conhecimento da história da língua, da tradição literária, e sempre foram considerados como as fontes mais confiáveis no que diz respeito aos usos da língua tidos por corretos. Os defensores da norma curta, no entanto, passam por cima das lições ponderadas desses filólogos e tentam ser mais normativos do que a tradição normativa! Se Machado de Assis, considerado o mais importante escritor brasileiro, não distinguia onde e aonde (e isso no final do século 19!), por que insistir em querer que a gente faça essa diferença na terceira década do século 21? Os casos de hipercorreção que vamos analisar aqui não têm nada a ver, portanto, com esses supostos “erros mais comuns” que compõem a norma curta e são martelados há décadas pelos falsos especialistas, que agora podem contar, para nossa tristeza, com as tecnologias mais avançadas de comunicação. Essas pessoas costumam dizer que esses tais “erros” doem nos ouvidos, mas o que realmente dói nos nossos ouvidos é essa ladainha incessante que se revela, afinal, inútil: se a pregação contra esses “erros” tivesse algum efeito, eles não estariam sendo “cometidos” por tanta gente há tanto tempo!8 As hipercorreções apresentadas neste livro constituem usos linguísticos ainda rejeitados por boa parte dos gramáticos e dicionaristas, dos escritores e tradutores, dos editores e das pessoas mais letradas em geral. Quando digo “ainda rejeitados” é porque a história das línguas demonstra que muitos fenômenos de hipercorreção, por força do uso frequente, acabaram se transformando em regras da língua, adotadas e normatizadas pela tradição gramatical. Assim, hoje em dia não se aceita a pronúncia rúbrica para rubrica, mas a pronúncia pântano, única considerada correta hoje em dia, é resultado de uma hipercorreção, pois sua origem é o italiano pantáno, com acentuação paroxítona. O uso da preposição de em construções como “tenho certeza de que Pedro esteve aqui” é resultado também de uma hipercorreção histórica, do mesmo tipo que ocorre hoje em frases como “eu penso de que vai ser um trabalho complicado”. Conclusão: muito do que foi considerado erro no passado — induzido pela hipercorreção — hoje é tido como a única forma correta, o que leva a gente a imaginar que muito do que agora é considerado hipercorreção pode vir a se tornar regra normatizada no futuro. No entanto, uma vez que a maioria das pessoas — incluindo as mais letradas — não têm consciência desses fenômenos de mudança na história da língua, nossa intenção aqui é trabalhar com os casos de hipercorreção que são vistos hoje como usos inadequados que devemos evitar na escrita formal (que permite controle, revisão e reformulação, ao contrário da fala espontânea, que não tem por que ser submetida a esses processos e precisa ter toda a liberdade possível para cumprir sua função primordial de permitir a interação social por meio da linguagem.) 1. POSSUIR O verbo ter, e seu equivalente em qualquer língua do mundo, figura no topo da lista dos mais empregados. Junto com ser, ver, dar, fazer, ir, vir, pôr, querer, poder, dizer, ouvir, pegar, saber, levar, trazer etc., é um desses verbos imprescindíveis para a interação social por meio da linguagem em qualquer comunidade humana. Não por acaso, são sempre esses os primeiros verbos que nos ensinam quando aprendemos línguas estrangeiras. Com esses e uns poucos outros é possível dizer praticamente qualquer coisa em qualquer língua. Também conhecemos bem a versatilidade de ter: ● verbo pleno: Minha casa tem três quartos. ● verbo suporte: tenho medo, tenho sede, tenho horror, tenho dó etc. ● verbo “existencial”: tem muita gente nessa sala; hoje tem feijoada etc. ● verbo auxiliar: tenho cantado, teriam falado, tínhamos viajado etc. Essa alta frequência de emprego do verbo ter acabou agindo contra ele mesmo. Muitas pessoas, movidas pela visão tradicional de que a escrita é sempre rebuscada e de que a fala é sempre “descontraída”, se puseram a evitar o verbo ter, empregando em seu lugar um suposto sinônimo mais “sofisticado”, o verbo possuir. O problema não está no verbo em si, é claro, mas na inadequação de alguns de seus empregos9: (1) Possuir seguido de complementos pouco adequados à semântica do verbo: Você possui resiliência? […] Ser resiliente significa ter disposição e coragem para lutar, possuir desenvoltura para se superar e ter atitude para solucionar problemas, e não aumentá-los. Entre os jogadores de games para plataformas móveis (tablets e smartphones), a pesquisa aponta que o país possui 24 milhões de jogadores. Você possui ciclo menstrual saudável? Veja alguns distúrbios menstruais […] o atestado de amamentação fornecido pelos médicos obstetras não possui nenhum respaldo na esfera trabalhista ou previdenciária. (2) Possuir empregado como verbo-curinga, em construções em que outro verbo poderia conferir mais precisão semântica ao enunciado: Tata Nano já possui 500 mil pedidos de compra na Índia! trata-se de um modelo de automóvel. Ora, um modelo de automóvel não pode “possuir pedidos”; mais adequado aqui seria empregar recebeu, por exemplo. O Consulado Geral de Portugal, ao pedir o HC em favor de […], sustentou que pelo fato de o português viver em união estável com brasileira há mais de cinco anos e possuir três filhos e neta, também brasileiros, ele não poderia ter sido expulso do território nacional. o verbo possuir, quando tem como objeto uma pessoa, adquire o significado de “possuir sexualmente, manter relações sexuais”, o que torna a construção possuir três filhos e neta mais do que inadequada no texto. Observe-se que aqui estamos no campo jurídico, onde a hipercorreção faz a festa, devido ao mito de que a linguagem jurídica tem de ser sempre rebuscada e, de preferência, hermética. Carlos possui salário de R$ 2.800,00 mensais e realizou 18 horas extras. Qual o valor bruto das horas extras que Carlos terá para receber? R: R$ 343,63. salário não é algo que alguém “possua”: as pessoas recebem salários. Cerca de 87% dos internautas de 5 a 18 anos não possuem restrições ao uso da internet e 63% dos pais não impõem regras para o uso que seus filhos fazem da rede. aqui o verbo possuir ocupa indevidamente o lugar de sofrer: os internautas não sofrem restrições dos pais. Advogados possuem desconto na compra de scanner. de novo, uma imcompatibilidade semântica entre possuir e seu objeto, desconto. Aqui um verbo mais adequado seria recebem, têm direito a, contam com etc. Vegetarianos possuem menor risco de doenças crônicas nova incompatibilidade entre verbo e objeto: os vegetarianos apresentam / exibem / demonstram menor risco de doenças crônicas. Homens têm mais cartões de crédito e possuem fatura mais salgada que mulheres. a fatura não é algo que alguém “possua”; aqui o verbo seria até dispensável, podendo ser substituído por um possessivo: “e sua fatura é mais salgada”. (3) Possuir usado com muitafrequência num mesmo texto, sintoma da falta de segurança no bom domínio da escrita formal por parte de quem redigiu, como nessa página da Wikipédia sobre a região Nordeste: A Região Nordeste é uma das cinco regiões do Brasil definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1969. Possui área equivalente à da Mongólia ou do estado do Amazonas, população equivalente à da Itália e um IDH médio, comparável com El Salvador (dados de 2010). […] É a região brasileira que possui o maior número de estados (nove no total) […]. O território do Nordeste possui um enorme acervo de pinturas e gravuras realizadas sobre um suporte fixo pétreo, seja em abrigos, em paredões tipo cânion ou em afloramentos rochosos. […] A região possui os estados com a maior e a menor costa litorânea, respectivamente Bahia, com 932 km de litoral e Piauí, com 60 km de litoral. A região toda possui 3.338 km de praias. […] O rio Parnaíba é um dos poucos no mundo a possuir um delta em mar aberto, com uma área de manguezal de aproximadamente, 2.700 km². […] Todas as capitais da região Nordeste possuem região metropolitana (RM), com exceção de Teresina, que possui região integrada de desenvolvimento econômico (RIDE), por abrigar municípios de diferentes unidades federativas. […] Todos os nove estados nordestinos possuem ao menos uma área metropolitana em seu território, seja na sua totalidade (como Rio Grande do Norte e Sergipe) ou parcialmente (Piauí). Nesse sentido, o Maranhão possui três no total. São duas (São Luís e Sudoeste Maranhense), localizadas integralmente dentro do território maranhense, e outra (Grande Teresina) expande-se pelo Piauí. O estado da Paraíba possui o maior número de regiões metropolitanas (doze no total). Esse é um ótimo exemplo do que costumo chamar de “muleta textual”: um elemento, no caso possuir, usado em praticamente todas as frases do texto, o que o torna enfadonho, monótono, insosso. Além da repetição do verbo em si, também se repete a construção sintática: é sempre “X possui Y”, quando um texto bem escrito se caracteriza, entre outras coisas, pela diversidade de fórmulas sintáticas. Se nos limitássemos, porém, apenas ao verbo possuir, seria muito fácil substituí-lo por outros como ter, apresentar, exibir, dispor de, contar com, revelar, acolher e por aí vai. A hipercorreção chega ao cúmulo da inadequação em casos como os seguintes: Se você possui 18 anos e ainda não tirou seu título, fique atento ao prazo! Após a vitória do Estrelão por 1 a 0, os jornalistas catarinenses afirmaram que o clube é “quase amador” e que o Estado do Acre “não possui nada a ver com futebol”. Definitivamente, ninguém “possui anos” e a expressão cristalizada na língua é “não ter nada a ver”. São exemplificações claríssimas da tentativa de conferir “sofisticação” ao texto, tentativa completamente frustrada porque o resultado atesta a falta de habilidade na produção escrita. Sempre que a tentação de usar possuir murmurar em seus ouvidos, respire fundo, conte até dez e escreva… ter. Assim a hipercorreção recolhe suas nuvens pesadas e o texto adquire o brilho sereno de um céu azul sem nuvens. 2. ENCONTRAR-SE Assim como possuir vem sendo tratado como o equivalente “sofisticado” de ter, também o verbo encontrar-se foi eleito como substituto “menos comum” de estar, um dos verbos mais empregados na língua. O mais conhecido exemplo do uso hipercorreto de encontrar-se, junto com outros indícios de hipercorreção (o pronome o mesmo), está no aviso aposto em milhares de elevadores do Brasil: Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no andar. Lei nº 9.502/97 Escrito em perfeito juridiquês, ou seja, na linguagem empolada dos textos legais, linguagem que muito frequentemente prima pela hipercorreção, o anúncio mais complica do que alerta. Bastaria escrever: “Antes de entrar no elevador, verifique se ele está parado no andar”. Exemplos do uso hipercorreto de encontrar-se: Gostaria de uma informação de algum especialista quanto a etapa em que encontra-se meu processo trabalhista referente a Horas Extras. O meia Marco Aurélio Barbosa encontra-se desaparecido desde sábado 23/04/2011. Acervo Virgílio Távora encontra-se disponível para pesquisas no Arquivo Público do Estado do Ceará. Na busca da clareza e da simplicidade de expressão, vamos tentar reservar o verbo encontrar-se para as seguintes situações: • quando o se for um pronome-sujeito indefinido: “Aqui se encontra os melhores bolinhos de bacalhau da cidade” “Aqui [a gente] [você] encontra os melhores bolinhos de bacalhau da cidade”. • quando se for um pronome reflexivo: “Presidente francês encontra-se com o primeiro-ministro chinês”. Nas demais situações, vamos evitar “escrever difícil” e empregar o bom e velho estar, que é um dos privilégios da nossa língua, que diferencia ser de estar, enquanto tantas outras têm um único verbo. 3. ONDE A palavra onde vem passando por um processo chamado discursivização, que é quando uma palavra se esvazia de seu conteúdo semântico original (seu significado) e passa a servir como mero organizador do discurso falado ou escrito. É fácil verificar isso quando observamos alguns usos frequentes de onde. Num material que reuni para uma pesquisa, formado exclusivamente de textos escritos por professoras e professores em formação ou já na ativa, encontrei diversos exemplos desses usos: Muitos profissionais se recusam a enxergar a língua falada e escrita como meio para comunicação e expressão entre os falantes, onde esses, ao fazerem uso dessa língua, não vão sequer lembrar das terríveis aulas de decoreba. E tempo de novas práticas pedagógicas, de professores que venham enxergar um novo horizonte, onde temos de que mostrarmos a verdadeira importância de falar, aplicar e valorizar a nossa língua materna como ela é, um tesouro de cada um, independente de onde veio ou da família a quem pertence, que cada indivíduo tem sua parcela de contribuição para superarmos os desafios e dificuldades que a educação da nossa língua materna precisa vencer. Em uma sociedade que não houvesse normas, o caos já teria tomado conta da situação. A regulação quer seja social ou linguística é feita através de inúmeros fatores, quer sejam “ascendentes ou descendentes” que objetivam centrar a realidade linguística ou social em um padrão aceitável, onde a cidadania e a comunicação possam chegar ao objetivo. A palavra onde, nesses exemplos, tenta organizar um discurso escrito dificilmente organizável, na medida em que revela um domínio deficiente das convenções da escrita formal. Na tentativa de elaborações teóricas, os textos produzidos não esclarecem o que de fato pensa o(a) autor(a) acerca das questões tratadas. O emprego de onde em tais textos é sintoma de pouca familiaridade com essa modalidade de escrita. Revelando-se como um indício de domínio insuficiente da escrita formal, a palavra onde deve ser reservada exclusivamente para a função de pronome/advérbio de lugar, com referência clara a algum lugar (concreto ou figurado) que foi mencionado imediatamente antes. 4. CONCORDÂNCIA DE HAVER/TER/FAZER IMPESSOAIS Na língua falada espontânea, onde o verbo haver praticamente deixou de existir, é o verbo ter que desempenha quase categoricamente a função dita “existencial”. E em muitas ocasiões podemos ouvir a concordância indevida, como nos exemplos abaixo, de língua falada, coletados no corpus do NURC-Brasil10: eu noto que antigamente tinham filmes mais assim… com maior conteúdo e então nós jogávamos também, tinham mais dois casais… Também em textos escritos é possível encontrar a concordânciahipercorrigida: Afinadíssimo com as mais recentes pesquisas arqueológicas e antropológicas, passa longe dos preconceitos de que não podem haver ideias dignas desse nome na mente dos “primitivos” […]. Mas informações da área de saúde pública dão conta de que no mês de julho e nos primeiros dias de agosto não houveram casos de dengue em Iporá. É necessário, portanto, ter sempre em mente que esses verbos: • como “existenciais”, se mantêm sempre no singular, independentemente de virem seguidos de elementos no plural: tinha muitas pessoas no evento; houve problemas; havia questões para resolver etc. • como verbos auxiliares, concordam com o sujeito do verbo principal: eu tenho viajado; nós tínhamos saído; elas haviam telefonado; se vocês tivessem chegado antes etc. • como verbo pleno, ter, obviamente, concorda com o sujeito: nós tínhamos uma casa de praia; eles tiveram problemas com o carro etc. O mesmo vale para o verbo fazer quando usado para se referir a medidas de tempo: ele é impessoal e deve ficar sempre no singular: • Faz dez anos que minha família se mudou para São Paulo. • Já fazia dois meses que Jandira não recebia notícias de João. • Ontem fez quinze dias que comecei no emprego novo. 5. TRATAR-SE DE A locução tratar-se de é uma fórmula fixa. Ela é impessoal ou, se preferirmos, traz seu sujeito devidamente cristalizado, um sujeito indeterminado: se (“a gente trata de”). O importante é que ela só é empregada no singular. A concordância com substantivos no plural representa uma regra inexistente: a concordância do verbo com seu complemento! A presença da preposição de bloqueia qualquer tentativa de concordância. É pouco provável que alguém escreva “precisam-se de soluções rápidas para o problema do saneamento na cidade”, já que o sujeito, aqui também, é se, singular. Pode ser que o excesso de concordância seja motivado pela regra gramatical que insiste em nos exigir o plural em ocorrências como “alugam-se salas”, muito embora a linguística brasileira já tenha provado há mais de um século que essa concordância é irracional e ilógica11. O receio de “errar” na concordância leva muitas pessoas, inclusive indivíduos altamente letrados, a atingir o efeito contrário: erram no momento em que flexionam o verbo no plural: Tratam-se de espécies de rostro no, tão ou mais longo que o corpo, fortemente recurvado do meio para o ápice; fêmures armados de robusto dente em baixo. Tratam-se de recursos interposto contra sentenças prolatada no Juizado Especial Federal Cível desta Seção Judiciária, que declarando a prescrição quinquenal, julgou parcialmente procedente o pedido de pagamento de diferenças decorrentes do salário-maternidade requerido fora do termo legal pela segurada especial (rurícola), com correção monetária pela tabela do Conselho da Justiça Federal desde a data do parto, tomando-se como base de cálculo o salário mínimo daquela época, além do acréscimo de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, desde a citação. observe-se aqui o típico linguajar jurídico que, muitas vezes, de tão empolado, incorre em erros: no caso, o plural de “trata-se de” e, logo a seguir, a não concordância de “recursos” com “interposto” e de “sentenças” com o adjetivo “prolatada”. Tratam-se de regras básicas sobre o fundamento e a forma de atuação do Ministério Público. Entre os pontos que foram pouco ou mal cobertos pela Folha, alguns até ignorados por ela nesse episódio, destacam-se os que se seguem. Em primeiro lugar, a motivação dos fraudadores, até agora não é satisfatoriamente inteligível. Ou se tratavam de uns completos trapalhões ou alguma coisa ainda precisa ser revelada sobre as razões que os levaram a cometer ato tão desastrado. Agora empregue a vírgula antes do que nos casos necessários por se tratarem de frases explicativas. Outro equívoco é tentar atribuir um sujeito à locução tratar-se de: Mas por essa matéria já ter sido colocada e retirada várias vezes do ensino, muitas pessoas nem sabem do que se trata a Sociologia, e é por não saberem que eles acabam menosprezando essa matéria tão interessante, e algumas pessoas até questionam os formados em sociologia. CEE x MEC — Afinal, do que se trata essa briga? Este livro trata-se de uma introdução às RI. A preocupação do autor foi exclusivamente com o leitor que inicia-se na nova formação ou está interessado em compreender as facetas do mundo atual. Em síntese, é preciso saber que tratar-se de: • é uma locução impessoal, ou seja, não tem sujeito; • é um sintagma que introduz complementos oblíquos, ou seja, seu verbo não tem por que concordar com esses complementos; • em sentenças interrogativas (diretas ou indiretas), a fórmula correta é: Sociologia: do que se trata? O diretor te chamou com urgência, mas não me pergunte do que se trata, porque eu não sei. Por fim, tratar-se de com muita frequência significa simplesmente ser. Assim, sempre em busca de um estilo mais claro e menos afetado, podemos sugerir que, quando existir essa equivalência, se prefira sempre o bom e seguro verbo ser: • Do que se trata a Sociologia? O que é a Sociologia? • Este livro trata-se de uma obra de referência Este livro é uma obra de referência. • *Afinal, do que se trata essa briga? Afinal, que briga é essa? / Por que essa briga? / Qual o motivo dessa briga? 6. CONCORDÂNCIA INDEVIDA EM ORAÇÕES CLIVADAS (É … QUE) Leia com atenção os seguintes exemplos: “Não pago, não pagaria. Espaço público não é mercadoria”. Foram com essas palavras de ordem que mais de duas mil pessoas protestaram ontem à noite contra a cobrança de R$ 4 para cada quatro horas de estacionamento nos shoppings de Aracaju. São de pessoas assim que o mundo precisa para ser melhor. Pessoas convictas de que o bem é sempre a melhor escolha e que sem ele não se pode ser feliz. Não foram as conversas. Não foram os beijos. Não foram os abraços. Muito menos suas ligações. Não foram as noites mal dormidas pensando em você, não foi. Não foram as trocas de olhares, muito menos sua respiração ao pé do meu ouvido. Não foram as canções que você mandava, nem muito menos as que você costumava cantar para mim. Não foram as tentativas de descrever você nos meus textos pra complementar o que deixei de dizer quando você me deixou sem palavras. Não foram pelos passos que você conduziu nas nossas danças. Não foram pelos sorrisos que você conseguiu arrancar de mim. Não foi pela saudade que você deixou quando se foi, nem pela felicidade de quando chegou, porque não foi. Não foi por você que comecei a colecionar meus melhores sonhos, nem foi pelo suspiros pela manhã. Não, não foi… Não foi! E que se for preciso repito quantas vezes forem necessárias para me convencer de que não foram por esses motivos que me apaixonei por você. Estamos aqui numa situação parecida com a que vimos logo acima, com a locução tratar-se de: a concordância indevida do verbo ser com um complemento, analisado erroneamente como sujeito. Quando queremos dar ênfase a um determinado elemento do que vamos expressar, podemos recorrer ao que se chama de clivagem. O verbo clivar significa “fragmentar, separar”. Uma sentença clivada é aquela que resulta precisamente da separação, do destaque que queremos dar a um elemento do enunciado: Na sentença clivada, o complemento “alemão” é topicalizado, isto é, trazido para a frente, para o início do enunciado, a fim de ser enfatizado. A sentença clivada, portanto, tem um efeito pragmático bem claro, que é o de trazer para o primeiro plano a informação principal do enunciado. Para isso,é preciso romper com a neutralidade da sentença em sua ordem habitual, direta. Na sentença clivada em que ocorre um complemento, o verbo ser deve permanecer sempre no singular, porque nesse caso ele é unipessoal, ou seja, só se conjuga na 3a pessoa, exatamente como vimos com tratar-se de. Num excesso de zelo por não ferir as regras de concordância verbal — que, como sabemos, são as que mais atraem a atenção dos falantes letrados, que se servem dela para discriminar os que “falam errado” —, muitas pessoas conjugam o verbo ser das sentenças clivadas no plural, estabelecendo uma concordância não prevista pela gramática da língua (nem pela gramática intuitiva do falante nem pela gramática normativa!). Assim, as construções corretas são: Foram com essas palavras de ordem que mais de duas mil pessoas protestaram Foi com essas palavras de ordem que mais de duas mil pessoas protestaram São de pessoas assim que o mundo precisa para ser melhor É de pessoas assim que o mundo precisa para ser melhor. Não foram pelos passos que você conduziu nas nossas danças. Não foram pelos sorrisos que você conseguiu arrancar de mim.[…] não foram por esses motivos que me apaixonei por você Não foi pelos passos que você conduziu nas nossas danças. Não foi pelos sorrisos que você conseguiu arrancar de mim. […] não foi por esses motivos que me apaixonei por você. É necessário, portanto, ficar atento a essas construções. Um claro sinal de que a concordância não deve ser feita é a presença frequente de uma preposição depois do verbo ser: se tem preposição, o elemento a seguir só pode ser um complemento, jamais um sujeito: ● Foi com esses amigos que passei o Ano Novo. ● É para os Estados Unidos que a Janete vai se mudar. ● Foi por essas e outras que ela abandonou a carreira de atriz. ● Era das novas contratações que a diretora estava falando. 7. PARTICÍPIOS PASSADOS IRREGULARES Os particípios passados são aquelas formas verbais terminadas em -ado e -ido: tinha comprado, teria perdido, tínhamos vendido. Também podem funcionar como substantivos — as deputadas, os empregados, a subida — e, principalmente, como adjetivos: roupas passadas, carros vendidos, lucro garantido etc. Ao lado das formas regulares terminadas em -ado e -ido, existem alguns particípios passados irregulares, com formas próprias: feito, dito, escrito, visto, aberto… Além desses, existem verbos que apresentam duas formas de particípio passado — na gramática eles recebem o curioso nome de verbos abundantes. Os de uso mais frequente são os seguintes: INFINITIVO PARTICÍPIOREGULAR PARTICÍPIO IRREGULAR aceitar aceitado aceito acender acendido aceso eleger elegido eleito entregar entregado entregue envolver envolvido envolto enxugar enxugado enxuto expressar expressado expresso exprimir exprimido expresso expulsar expulsado expulso extinguir extinguido extinto ganhar ganhado ganho gastar gastado gasto imprimir imprimido impresso juntar juntado junto limpar limpado limpo matar matado morto morrer morrido morto pagar pagado pago pegar pegado pego prender prendido preso salvar salvado salvo soltar soltado solto suspender suspendido suspenso Uma crença muito difundida é a de que, diante de duas formas linguísticas com o mesmo significado, aquela menos regular, mais distante dos usos espontâneos, é a mais correta ou mais sofisticada. Essa crença é responsável, como já vimos, por muitos casos de hipercorreção que acabam levando a pessoa a cometer um erro. Muita gente acha que as formas regulares dos verbos acima devem ser evitadas — no lugar delas é preciso empregar as formas irregulares. Alguém certa vez quis me corrigir quando eu disse que já tinha pagado uma conta: “Não é pagado, é pago!”. Observe que a maioria dos particípios irregulares dos verbos acima são empregados unicamente como adjetivos: ninguém diria, por exemplo, “ele já tinha limpo o chão depois da festa”, mas limpado. Com outros verbos, porém, muito frequentes, a hipercorreção leva algumas pessoas a empregar quase unicamente esses particípios irregulares: tinha pago a conta, tinham aceito o convite, teriam entregue o relatório, se tivesse salvo o arquivo… Esses usos já estão consagrados, não há nada de errado com eles. O problema é acreditar, sem razão, que somente eles estão corretos — o que não é verdade. É perfeitamente legítimo, aceitável e conforme à gramática da língua dizer tinha pagado a conta, tinham aceitado o convite, teriam entregado o relatório, se tivesse salvado o arquivo… Não tem por que torcer o nariz para eles! Ainda sobre a combinação de particípio passado irregular com hipercorreção, cabe falar de algumas inovações que surgiram há pouco tempo e, por isso, sofrem a condenação unânime da maioria dos falantes mais letrados. Por impulso de um fenômeno chamado economia linguística, os falantes tendem a regularizar os paradigmas linguísticos, eliminando as formas irregulares e reconduzindo-as às formas analógicas, mais fáceis de armazenar na memória. Incontáveis particípios irregulares do latim se transformaram em particípios regulares em português: cultu- > colhido; surtu- > surgido; offertu- > oferecido etc. No entanto, uma das principais características da hipercorreção é precisamente exagerar na formação irregular de elementos linguísticos, movimento que vai na contramão da tendência, mais natural, de regularização. Assim como, não faz muito tempo, surgiu o particípio passado irregular pego para o verbo pegar (e que era censurado como “erro” pelos gramáticos e dicionaristas até a década de 1950 e hoje é aceito alegremente por todo mundo), atualmente é comum ouvirmos as formas trago e chego como particípios irregulares dos verbos trazer e chegar. Se tais formas vencerão a barreira social e se instalarão nas variedades urbanas de prestígio — tal como aconteceu com pego — é algo que só o tempo dirá. Por ora, os falantes mais letrados parecem rejeitar esses particípios irregulares, e a pessoa que os emprega pode sofrer pesada recriminação. As únicas formas aceitas são trazido e chegado, perfeitamente regulares. 8. “O MESMO” COMO PRONOME Poucos fenômenos de hipercorreção caracterizam tão bem a insegurança linguística e o domínio insuficiente da escrita formal do que o uso pronominal de o mesmo (e flexões). Em praticamente todos os casos em que aparece é possível não empregar pronome algum ou empregar o pronome ele (e flexões). Justamente por nunca ocorrer espontaneamente na língua falada é que o mesmo se tornou (junto com o qual, que vamos ver adiante) esse sintoma tão eloquente da hipercorreção e da insegurança linguística. E, como sempre, por ter essa origem é que seu uso ocorre em textos truncados, francamente mal escritos, confusos. Observe: Na noite de ontem, 29, quarta-feira, por volta das 21h15min a equipe Polícia Militar estava em patrulhamento quando avistou um homem em atitude suspeita; foi dado voz de abordagem para o cidadão e o mesmo se recusou a colocar a mão na cabeça, vindo a dizer que não aceitaria a abordagem da equipe policial. Ao ser indagado sobre a tornozeleira, o mesmo disse que não sabia do que era e que era para equipe procurar no sistema quais seriam os seus antecedentes; disse ainda que estava fumando e que não largaria o cigarro por causa de uma “abordagem de merda” e que a equipe não poderia realizar abordagem nele porque o mesmo não tinha nada de errado, e que já pagou tudo que “devia”. Após algumas tentativas o mesmo disse o nome, foi solicitado apoio, onde o indivíduo recebeu voz de prisão. Ele se recusou e entrou na residência e dizendo que não sairia. Na residência se encontrava sua mãe, onde relatou que o filho estava dando muito trabalho e queera pra equipe levar o mesmo preso; foi necessário a utilização do uso da força para contê-lo, no momento em que a equipe foi colocá-lo no camburão o mesmo se recusou a entrar, voltando a desacatar os policiais; após alguns minutos resistindo a equipe conseguiu conter o indivíduo; o mesmo foi encaminhando para a sede da 2ª Cia para a lavratura do presente boletim, posteriormente ao Hospital Santa Casa para realização do laudo de lesão e após para 14ª DRP para os procedimentos cabíveis. O texto, literalmente, fala por si e dispensa comentários, a não ser o de que se trata de um perfeito desastre segundo qualquer critério usado para avaliar uma redação minimamente aceitável. Como acontece frequentemente, o uso pronominal de o mesmo é o indício mais claro de um fraco domínio da escrita formal: no mesmo texto aparecem erros de concordância (“foi dado voz de abordagem” em lugar de “foi dada voz de abordagem”, “foi necessário a utilização” em lugar de “foi necessária a utilização”), uso inadequado de onde (“foi solicitado apoio, onde o indivíduo recebeu voz de prisão”), além de um pleonasmo como “foi necessário a utilização do uso da força”. Como eu já disse mais acima, escrever bem não é escrever complicado, porque sob essa complicação o que se esconde quase sempre é a imperícia na produção textual. Prova disso é que o uso pronominal de o mesmo praticamente nunca ocorre nos textos dos nossos melhores escritores, tradutores, jornalistas, ensaístas etc. É uma das mais enferrujadas das medalhas enferrujadas resultantes da hipercorreção: brilho falso, falsa elegância, rebuscamento oco e desnecessário. Já mencionei, ao tratar do verbo encontrar-se, do aviso que aparece em tantos elevadores do país: “verifique se o mesmo encontra-se parado no andar”. Bastava um simples ele: “Antes de entrar no elevador, verifique se ele está parado no andar”. Não por acaso, um aviso emitido por uma câmara legislativa em juridiquês típico. Sendo assim: Não bata o portão: o mesmo se fecha automaticamente. Não bata o portão: ele se fecha automaticamente. Esta praça é de todos nós: ajude-nos a conservar a mesma sempre bonita. Esta praça é de todos nós: ajude-nos a conservá-la sempre bonita. Foi encontrado um veículo abandonado à margem da estrada. Havia drogas no interior do mesmo. Havia drogas em seu interior / no interior dele / no interior. 9. EQUÍVOCO DE ANÁLISE DE OS/AS COMO SUJEITO Se existe uma coisa que é possível afirmar sobre o português brasileiro sem medo de cometer engano é que, nessa língua, os pronomes oblíquos o/a/os/as não fazem parte da gramática intuitiva dos falantes. O emprego desses pronomes, muito raro, é fruto exclusivo da escolarização. Assim, os textos escritos formais (e a fala formal que se inspira neles) são o principal lugar de emprego dos oblíquos o/a/os/as. Não resta dúvida de que cabe, sim, à escola continuar ensinando esse emprego, uma vez que esses pronomes contribuem para a manutenção da coesão textual e dão ritmo mais fluente ao texto. É preciso, no entanto, ter cuidado com esses pronomes: justamente por não pertencerem à nossa intuição linguística, é comum ocorrerem análises sintáticas equivocadas, em que os/as, que desempenham única e exclusivamente a função de objeto direto, são interpretados como sujeito do verbo que os acompanha: Quem anda em pecado é escravo, pois teme todo o tempo que alguém o descubra. Eles ficam tensos, e se você, por acaso, dizer-lhes que os viram em algum lugar, gaguejando, ou ficando ruborizados, inventam logo uma justificativa. o sujeito é você, portanto, o correto seria “se você, por acaso, lhes disser que os viu…”. Vamos ajudar o Zac Efron a beijar a sua namorada para disfarçar e se esconder do paparazzo que os perseguem. o sujeito é paparazzo, singular, portanto o verbo também deve estar no singular: “o paparazzo que os persegue”. Obviamente que estas fantasias, que inclusive já começaram a ser reproduzidas, não serão da mesma forma que seriam anteriormente ao incêndio que as destruíram, pois é humanamente impossível refazer um trabalho de quase um ano em menos de trinta dias. sujeito: incêndio, portanto: “ao incêndio que as destruiu”. Muitas destas pessoas nem dão continuidade num centro de prática séria, e vão embora depois de uma, duas — algumas — visitas. Outras pessoas, depois de algumas sessões de meditação, sentindo algum alívio do problema imediato que as trouxeram até o zazen, já relaxam os seus questionamentos. sujeito: problema imediato; portanto: “problema imediato que as trouxe”. Nos últimos dias, em Adelaide (Austrália), foi anunciada uma nova medicação a ser comercializada ainda este ano com um fator de crescimento natural, o GM-CSF, que protege embriões artificialmente implantados no útero materno e os tornam mais resistentes. sujeito: um fator de crescimento natural; portanto: “e os torna mais resistentes”. Desse modo, sempre que você for usar os pronomes os/as cuide para que o verbo que vem depois deles esteja em concordância com o sujeito, e não com esses oblíquos: 10. VOSSO Sabemos que o pronome vós não existe praticamente mais em nenhum lugar do mundo onde se fala português, seja na Europa, na América, na África ou na Ásia. Em Portugal, é empregado numa pequena região e, mesmo assim, censurado pela norma-padrão do português europeu. Junto com o sujeito vós, também se extinguiram o clítico vos, o complemento oblíquo convosco e o possessivo vosso (e flexões). Essas formas extintas só estão preservadas em textos parados no tempo como orações tradicionais, hinos religiosos ou cívicos, traduções clássicas da Bíblia etc. Não há motivo nenhum, portanto, para que as pessoas usem o possessivo vosso hoje, no Brasil, em pleno século 21. Mesmo quando alguém — por pura afetação ou por rigidez de protocolo — emprega as formas de tratamento do tipo Vossa Excelência, Vossa Eminência, Vossa Senhoria etc., o possessivo referente a tais formas é seu (e flexões): “Vossa Excelência pode ocupar o seu lugar à mesa, por favor”. Quando se trata de você(s) ou o senhor/a senhora (e plurais), também o possessivo adequado é seu/sua/seus/suas e não vosso. 11. O QUAL Ao lado do uso de o mesmo como pronome, um dos mais nítidos índices de insegurança linguística e, por conseguinte, sintoma de hipercorreção, é o emprego do pronome relativo o qual (e flexões). Existe, na nossa pedagogia de língua, uma série de prescrições que se cristalizaram sem nenhum motivo que as sustente. Uma dessas é a mania que muitas e muitos docentes têm de dizer a seus alunos que é preciso evitar a palavra que, sem, no entanto, oferecer alternativas adequadas para evitar o que. A única coisa que se costuma dizer é que, no lugar do que, é possível usar o qual. O resultado disso é que, junto com as demais marcas de hipercorreção, esse pronome relativo aparece repetidas vezes num mesmo texto e, quase sempre, de modo errado. O pronome o qual pode ser empregado quando o verbo da oração adjetiva é transitivo indireto e seu complemento é recuperado pelo pronome relativo, combinado com a preposição regida pelo verbo: ● A China é um país com o qual o Brasil mantém um intenso comércio. ● A ponte pela qual passamos ontem foi levada pela enxurrada. ● O telefone celular hoje em dia é um apetrecho sem o qual muita gente não consegue viver. ● O avião no qual viajamos era novo em folha. Quando a preposição é monossilábica, também é possível empregar o relativo que: ● A China é um país com que o Brasil mantém um intenso comércio. ● A ponte por que passamos ontem foi levada pela enxurrada. ● O avião em que viajamos era novoem folha. Esse emprego de PREPOSIÇÃO + QUE, no entanto, é característico de um estilo mais caprichado, sobretudo literário: o mais comum é mesmo PREPOSIÇÃO + O QUAL/A QUAL/OS QUAIS/AS QUAIS. Sendo assim, é preciso abandonar a prescrição incompleta de “evitar o que” e apresentar aos alunos opções realmente válidas para a construção de seus textos. A ideia de substituir todo e qualquer que por o qual só gera resultados como os seguintes: É estranho sentir saudade de algo o qual mal vivi ou evitava viver. Eu aluguei um imóvel o qual fui morar com meus pais já idosos. Enfarto: O lado o qual muitos desconhecem ou fingem não existir consigo. Kleberson retorna ao Atlético-PR, clube o qual o revelou para o futebol Chegamos a um ponto o qual eu nunca imaginei chegar Um fato o qual não posso deixar de registrar! Caso que chocou o País, o qual uma criança foi arremessada pela janela de seu quarto, aparentemente pelos pais, e morreu ao atingir o solo. A empresa o qual você está conhece bem o mercado e as estratégias dos concorrentes? O trabalho se fez necessário, pois sem o qual não havia como chegar até a escola. Em todos os exemplos acima, o pronome o qual está empregado de forma completamente equivocada. O que mais surpreende é a falta de percepção das pessoas de que o qual é variável em gênero e em número: muitos empregam a forma masculina singular para qualquer referente: ● a empresa o qual você está a empresa na qual você está ● uma cidade o qual muitos admiram uma cidade que muitos admiram ● lugares o qual nunca estive lugares nos quais nunca estive ● TV para o qual trabalha TV para a qual trabalha Outro emprego também equivocado é o de o qual como sujeito, quando não há nenhuma ambiguidade presente: Kleberson retorna ao Atlético-PR, clube o qual o revelou clube que o revelou De igual modo, o emprego desnecessário de o qual como objeto direto: ● saudade de algo o qual mal vivi saudade de algo que mal vivi ● Enfarto: O lado o qual muitos desconhecem o lado que muitos desconhecem ● Um fato o qual não posso deixar de registrar um fato que não posso deixar de registrar E, por fim, os casos mais frequentes: o emprego de o qual sem a preposição regida pelo verbo ou pelo nome que o relativo retoma: ● aluguei um imóvel o qual fui morar aluguei um imóvel no qual fui morar ● Chegamos a um ponto o qual eu nunca imaginei chegar um ponto ao qual nunca imaginei chegar ● Caso que chocou o País, o qual uma criança foi arremessada pela janela de seu quarto caso no qual/em que uma criança foi arremessada Ocorrem também situações em que o emprego de o qual se faz do mesmo modo que vimos acima com onde, ou seja, como um reorganizador do discurso, um marcador conversacional, e não como um pronome de fato: ● Cobrança de serviço o qual foi dito que não seria cobrado cobrança de serviço que disseram que não seria cobrado ● O trabalho se fez necessário, pois sem o qual não havia como chegar até a escola pois sem ele não havia como chegar até a escola. Um pouco de análise gramatical não faz mal a ninguém, pelo contrário: Limpeza é item com o qual o consumidor mais se importa que termo da sentença o qual retoma? R.: Item. por que se empregou o qual no masculino nessa sentença? R.: Porque ele retoma item, que é masculino singular. por que antes do pronome aparece com? R.: por causa do verbo importar-se: quem se importa, se importa com alguma coisa. se no lugar de item tivéssemos coisa, como ficaria a sentença? R.: Limpeza é coisa com a qual consumidor mais se importa. As gramáticas nos ensinam que é preciso usar o qual quando, numa frase, existirem dois elementos que podem ser recuperados pelo pronome relativo; para evitar ambiguidade, usa-se o qual para retomar o que estiver mais próximo: O principal adversário do prefeito, o qual esteve hoje em nosso estúdio, não aceitou nosso convite para um debate. Para deixar claro que quem esteve no estúdio foi o prefeito, e não seu adversário, usa-se o qual. Casos assim, no entanto, são extremamente raros, e o mais conveniente, sempre, é procurar escrever de forma a evitar possíveis ambiguidades de interpretação. Desse modo, vamos reservar o qual para os usos preposicionados que vimos acima. 12. NUM / NUMA / NUNS / NUMAS Por algum motivo inexplicado (mais uma prescrição da escola?), muitas pessoas recentemente têm evitado escrever num, numa etc., alegando que isso é “coisa da oralidade”. Está aqui em ação o princípio da hipercorreção que apresentamos acima, agravado pelo mito de que é possível “evitar marcas da oralidade na escrita” — se evitarmos todas as marcas da oralidade na escrita, não poderemos escrever mais nada, uma vez que a escrita é uma forma simbólica de representar… a oralidade! Podemos escrever à vontade em um, em uma etc. Só não devemos alegar que essas formas são mais “elegantes” ou mais “corretas” do que num, numa etc., que estão registradas na língua há mais de quinhentos anos, usadas em toda a literatura da língua desde sempre! Além do mais, tem uma grande incoerência aí: se ninguém escreve em ela, em o, em esse, em aquela etc., por que dar esse tratamento somente ao num? 13. “CUJO O” Todas as pesquisas feitas sobre o pronome cujo deixam bem claro que ele não faz parte da nossa intuição linguística, ou seja, seu uso é uma regra gramatical que não pertence à nossa língua materna. Justamente por isso, seu emprego é considerado difícil por muitas pessoas. Por causa dessa sua qualidade de “corpo estranho” na língua, cujo frequentemente aparece em construções onde seu uso é totalmente equivocado, mesmo quando feito por pessoas muito letradas: Inventário, cujo o filho não concorda com o que tem para receber por direito. Nesse exemplo temos uma construção perfeitamente agramatical, ou seja, inaceitável para a intuição linguística do falante nativo e, também, errada do ponto de vista da tradição normativa. Sabemos que cujo é um relativo indicador de posse: na sentença acima, atribui-se um filho a “inventário”, o que não faz nenhum sentido. Uma construção mais adequada seria algo como: “Inventário com o qual um filho não concorda quanto ao que tem para receber por direito”. Outro erro presente no exemplo é o emprego do artigo o depois do relativo cujo. Mais uma vez, temos aqui um exemplo extraído da linguagem jurídica na qual, na ânsia de escrever de forma rebuscada e, se possível, hermética para o “leigo”, o que mais encontramos é hipercorreção. O problema é muito simples de enunciar: nunca se usa artigo depois do pronome relativo cujo (e flexões). Portanto, nos exemplos abaixo (todos em juridiquês), o emprego do artigo é um erro: Pode uma assembleia aprovar conta cujo o gasto de origem contraria a Convenção? Certidões relativas às empresas falidas ou em concordata devem ser obtidas junto aos Liquidantes Judiciais, cujo o endereço é Avenida Nilo Peçanha n° 11, 3° andar - Castelo, Rio de Janeiro/ RJ. Dívida cuja a existência é anterior à renovação do contrato. Através do presente, ficam notificados os senhores advogados e/ou Rosálio Leopoldo de Souza, Valéria da Silva Fidélis (Adv. Reclamada), das DECISÕES prolatadas no processo Nº 0000576- 88.2010.7.22.0001, cujos os resultados e conclusões são os seguintes: RESULTADO: JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO 14. MEDIANTE O verbo latino mediare (“mediar”) tinha como particípio presente, no acusativo singular, a forma mediantem que, com a perda do -m final, resultou na palavra mediante do português. O antigo particípio presente se gramaticalizou na preposição mediante, com o sentido de “por meio de”, “graças a”, “através de”, “por intermédio de” etc. No entanto, pelasemelhança com diante, muitas pessoas vêm empregando mediante com o sentido de “diante disso”, “frente a isso” etc. Não existe nenhum parentesco entre diante e mediante. Por isso, estão errados usos como os que aparecem nos seguintes exemplos, onde o correto seria diante de, devido a, por isso…: Qual o nosso futuro mediante isso? Através de busca em vários sites da internet, encontramos apenas nomes de escolas e professores que atuam nesta área. Mediante isso agendamos com uma professora do Departamento de Letras da Universidade de Caxias do Sul — UCS — que nos orientou e forneceu material para darmos início à pesquisa. O estágio supervisionado tem como natureza o conhecimento da aplicação dos conhecimentos teóricos pelas empresas. Mediante essas características, o NEA mantém em seu acervo materiais que são pesquisados pelos alunos dos cursos envolvidos. 15. EMPREGO INCORRETO DA ÊNCLISE Uma das mais persistentes e renitentes irracionalidades da tradição gramatical brasileira é a condenação daquela que é, simplesmente, a nossa regra única de colocação pronominal: a próclise ao verbo principal, sobretudo em início de frase. Essa perseguição descabida — e, repito, irracional — só tem como resultado fazer crescer a já grande insegurança linguística de tantos brasileiros no trato com sua língua materna, sobretudo em situações de maior formalidade de linguagem. Aqui é onde vemos mais claramente em ação o princípio da hipercorreção que leva à ideia de que “se é assim que eu falo, então deve estar errado”. Ora, se a próclise — o pronome antes do verbo — é a única colocação pronominal intuitiva do brasileiro, quando ele tiver de escrever um texto minimamente formal, vai recorrer quase exclusivamente à ênclise (o pronome depois do verbo) — se ela é contraintuitiva, deve ser, por essa distorção de raciocínio, a mais “certa”. Disso resultam textos pouco fluentes, muitas vezes repletos de problemas de toda ordem, mas com todos os pronomes oblíquos em ênclise (quando não aparecem também as mesóclises, muito mais estranhas ainda à nossa língua materna). A ênclise em si não é nenhum problema. O problema está, como sempre, nos usos hipercorrigidos, que não seguem nem a gramática intuitiva do PB contemporâneo nem a tradição gramatical. São eles, principalmente: ● A ênclise com verbos no futuro do presente e no condicional (futuro do pretérito): Farei-te; daremos-lhe; poderia-se; convidará-me etc. A tradição gramatical recomenda a mesóclise nesses casos (far-te-ei, dar-lhe-emos, poder-se-ia, convidar-me-à etc.), mas todos sabemos que a mesóclise simplesmente não existe na nossa língua, e mesmo os manuais de redação das grandes empresas jornalísticas proíbem o seu uso por parte dos redatores da casa. Para muita gente, a mesóclise chega a ser ridícula e é usada para obter humor. A solução é explicitar o sujeito: Eu te farei / Nós lhe daremos / Ele me convidará etc. Ou, de modo igualmente válido, simplesmente iniciar a sentença com o clítico: Te farei / Lhe daremos / Se poderia; Me convidará. Repetindo: a proibição de iniciar sentença com um pronome oblíquo é absolutamente irracional e não tem apoio em absolutamente nenhum argumento de ordem fonética, morfológica, sintática etc. E nossa melhor literatura, de cem anos para cá, já vem desobedecendo alegremente a regra irracional. ● A ênclise com particípio passado: tinha permitido-lhe, havia convidado-me, tínhamos encontrado-a etc. A tradição gramatical recomenda o oblíquo antes do verbo auxiliar (Pedro lhe tinha permitido usar o carro; Ela me havia convidado; Nós a tínhamos encontrado etc.). Mas, seguindo a regra única já citada, o clítico pode vir tranquilamente interposto entre o auxiliar e o particípio passado: Pedro tinha lhe permitido usar o carro etc. Essa colocação também já está consagrada na escrita formal brasileira há muito tempo. Até uns cinquenta anos atrás, era costume usar um hífen: Pedro tinha-lhe permitido usar o carro. Mas isso também já foi abandonado. São portanto erradas as construções como as dos exemplos abaixos: Primeiro recurso conhecido e dado-lhe provimento. Encontrarei-me então no chão á procura de mim… Segundo Mendes declarou à revista Veja e confirmou em entrevistas, Lula teria ofertado-lhe “blindagem” na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que apura o escândalo Cachoeira-Demóstenes-Delta. O motivo da proteção na CPMI teria sido o financiamento feito por Cachoeira de uma viagem a Berlim feita por Mendes em companhia de Demóstenes. […] O “Mensalão”, que Mendes sustenta haver Lula pedido-lhe para adiar, já foi objeto de sessões administrativas (com participação de Mendes), quando se acertou até o tempo para manifestação das partes. Me parece que já passou da hora de nosso ensino de língua materna abandonar esses medos infundados de errar no que não está errado e assumir de vez o português brasileiro culto contemporâneo como seu verdadeiro objeto de trabalho! Próclise para todos em todos os lugares! 16. CONFUSÃO ENTRE VERBO CONJUGADO E INFINITIVO VERBAL Certa vez, recebi uma comovente mensagem de um “jovem estudante de Letras” do estado do Tocantins. Ao falar de como a ciência linguística tinha mudado sua vida, ele escreveu frases como as seguintes: “eu nunca me sentir à vontade e seguro para falar”; “apesar de gostar muito de lê”; “quando terminei de lê”; “infelizmente, perdir meu precioso tempo”. Na mesma época, fui convidado a dar uma palestra numa cidade do interior da Bahia. A pessoa que me convidava escreveu: “você estar livre para discorrer o tema”. Mais recentemente, numa rede social, encontrei duas postagens com os seguintes dizeres: “Pode não dá certo, mas você só vai saber se arriscar” e “Você acha ela bonita? Então click no link para vê como ela era antes”. A essa altura, você já percebeu (espero) a questão que vou tratar aqui e que aparece já no título da seção. Vem ocorrendo uma confusão por parte de muitas pessoas no momento de escrever verbos no infinitivo e verbos conjugados. Como tudo o que acontece na língua, essa confusão não é obra do acaso. Afinal, se tantas pessoas “erram” de maneira idêntica, tem que haver uma explicação lógica para o “erro” — e, de fato, tudo o que se chama de “erro” em língua tem uma razão de ser, tem uma explicação. Para começar, é preciso ter consciência de que não é todo e qualquer verbo que se deixa apanhar nessa rede. Os poucos exemplos dados acima já nos permitem tirar pelo menos uma conclusão: o fato ocorre quando o verbo conjugado tem uma forma que, na pronúncia, é idêntica à do infinitivo. Esse caso se resume a poucos verbos: crer/crê; dar/dá; estar/está; ler/lê; ver/vê. Poucos, sim, mas com uma altíssima frequência de uso. Esses verbos estão conjugados no presente, mas o mesmo fenômeno ocorre com verbos da 3a conjugação no pretérito perfeito: ouvir/ouvi; sentir/senti; corrigir/corrigi etc. Ao responder ao convite para a palestra, chamei a atenção da pessoa, que trabalhava na secretaria de educação do município, para o uso que ela fazia da forma estar no lugar de está. Curiosamente, na mensagem seguinte, ela agradeceu minha observação: “Obrigado, professor, já corrigir”. O que para muitas pessoas seria motivo para fazer uma piada e arrancar risos da plateia, para mim era um dado de pesquisa importante, a confirmar minhas hipóteses. No caso do estudante de Tocantins, a ocorrência de perdir em vez de perdi (infinitivo: perder) revela também um fenômeno de hipercorreção, ou seja, a tentativa de acertar sempre, exagerando uma regra normatizada. As pessoasque confundem os infinitivos com as formas conjugadas provavelmente já eliminaram de vez em sua variedade linguística o som [r] do final das palavras e, principalmente, dos infinitivos verbais. Por isso, no momento de escrever, e sabendo que em algumas ocasiões deve existir um r no final da palavra, elas escrevem essa letra sem ter muita certeza de onde ela deveria aparecer. Como tudo o que acontece na língua, estamos aqui na presença de um fenômeno híbrido, no qual interferem traços da variedade linguística do falante (a eliminação do [r] do final das palavras na pronúncia) e o sentimento de insegurança linguística que leva à hipercorreção (escrita do r onde ele não deveria aparecer pelas regras da ortografia oficial). Diversos estudiosos da fonologia, a ciência dos sons das línguas, apontam para a existência, nas diferentes línguas do mundo, de uma tendência à “sílaba ideal” — um conjunto de sons que segue a ordem CVCV, isto é, consoante-vogal-consoante-vogal, como em cavalo. Por que essa sílaba é ideal? Porque, do ponto de vista articulatório, é melhor iniciar uma palavra com uma explosão/oclusão e terminá-la com uma vogal, que é uma passagem livre do ar pela garganta e pela boca. Analisando centenas de línguas diferentes, os pesquisadores têm demonstrado que essa tendência se verifica na história das línguas. Algumas já atingiram esse ideal, como o japonês, o malaio, o tupi entre várias outras, que não admitem encontros consonantais nem palavras terminadas em consoantes. Veja que a palavra cruz foi transformada pelos falantes de tupi em curuçá, assim como Brasil em japonês é Burajiru. Em muitas línguas também, o [r] pode se reduzir a uma simples aspiração (um “sopro”) e, mais tarde, desaparecer. No inglês britânico culto, por exemplo, o [r] em final de sílaba ou de palavra não é pronunciado, e o mesmo acontece em alemão. No francês, o [r] dos infinitivos da conjugação mais comum, a que termina em -er, não é pronunciado, de modo que parler (“falar”) se pronuncia parlê. No catalão, todo [r] em final de palavra é omitido. Em muitas variedades do espanhol falado na América o [r] final dos infinitivos também cai, e o resultado são formas idênticas à do português brasileiro como amá, cantá, esperá etc. Quando um mesmo fenômeno ocorre em muitas línguas, é porque se trata de alguma tendência natural que nós, seres humanos, deixamos agir no momento de falar. Tudo isso explica satisfatoriamente a confusão que já aparece em textos formais entre dá/dar, está/estar, corrigi/corrigir etc. Por isso, na hora de escrever, é importante estarmos atentos a isso. Como já vimos em alguns casos de hipercorreção por aqui, um pouco de análise linguística não faz mal a ninguém. Vamos observar, por exemplo, o refrão da conhecida canção “Quem te viu, quem te vê”, de Chico Buarque: Hoje o samba saiu procurando você, quem te viu, quem te vê, quem não a conhece não pode mais ver pra crer, quem jamais a esquece não pode reconhecer. Reflita e responda: por que no segundo verso aparece vê e no terceiro aparece ver? Depois de verbos auxiliares, a única forma possível é o infinitivo, escrito portanto com r no final: ● Olga não vê a dificuldade que vai enfrentar mas ● Olga não quer ver a dificuldade que vai enfrentar ● Olga não pode ver a dificuldade que vai enfrentar ● Olga não consegue ver a dificuldade que vai enfrentar ● Olga não parece ver a dificuldade que vai enfrentar ● Olga não deve ver a dificuldade que vai enfrentar ● Olga não sabe ver a dificuldade que vai enfrentar etc. 17. TINHA FALADO / HAVIA FALADO Os dois verbos empregados em português como auxiliares para a formação dos tempos compostos são ter e haver. O verbo haver, no entanto, já desapareceu da fala espontânea, tanto como auxliar quanto como “existencial”, substituído por ter. Como auxiliar, ele sobrevive, na escrita formal, em alguns poucos tempos compostos, especialmente o chamado pretérito-mais-que-perfeito (havia falado, havíamos chegado etc.). É perfeitamente legítimo empregar o verbo haver como auxiliar na formação dos tempos compostos. O que não é legítimo nem tem justificativa é a atitude, assumida recentemente por muitas pessoas, de considerar que no pretérito-mais-que-perfeito composto só se deve usar haver, como se formas do tipo tinha falado, tinha comprado, tinham reagido etc. fossem menos “elegantes” ou mais “coloquiais”. Não são: elas estão registradas há séculos na língua, e na literatura moderna são de longe as mais empregadas. Observe que vai ser difícil encontrar quem fale ou escreva “hei viajado muito esse ano”, “eu haveria aceitado o convite” ou “às dez horas vocês já haverão chegado a Brasília”. O uso auxiliar de haver vai se confinando cada vez mais a alguns poucos tempos compostos. Quem preferir usar “havia falado”, fique à vontade, mas não tente convencer ninguém de que “tinha falado” deve ser evitado, porque não deve. 18. O PORQUÊ Uma dificuldade comum para quem escreve — incluindo profissionais da escrita — é saber distinguir por que, por quê, porque e porquê. A dica mais conhecida é de que, nas interrogações, se escreve por que, separado, enquanto nas respostas se usa porque, junto12. Quando o que é a última palavra da frase, ele vem acentuado: “Ele se aborreceu comigo sem me explicar por quê”. Por sua vez, a palavra porquê é um substantivo e sempre vem acompanhada do artigo o: “Ele não quis me explicar o porquê de seu aborrecimento comigo”. E com muita frequência, como no exemplo, vem seguido da preposição de, sozinha ou combinada com os artigos (do / da / dos / das). Talvez por causa da dificuldade de distinguir entre por que e porque, muitas pessoas vêm empregando, nas perguntas indiretas, a forma o porquê, quando um simples por que bastaria: Gostaria que o Banco Itaú me esclarecesse o porquê de meu CPF constar no registro do SIS-Bacen Gostaria que o Banco Itaú me esclarecesse por que meu CPF consta no registro do SIS-Bacen. Explique o porquê a Resistência Medicamentosa pode ser um processo vantajoso. Explique por que a Resistência Medicamentosa pode ser um processo vantajoso. [Para empregar “o porquê” teria sido necessário formular a frase assim: “Explique o porquê da [ou de a] Resistência Medicamentosa poder ser um processo vantajoso”. O uso de por que simplifica a redação, além de evitar prováveis erros.] Meu boleto veio mais caro do que o anunciado no site da loja: pode me explicar o porquê? Meu boleto veio mais caro do que o anunciado no site da loja: pode me explicar por quê? O deputado quis saber o porquê seu voto não apareceu no painel eletrônico. O deputado quis saber por que seu voto não apareceu no painel eletrônico. [Aqui, novamente, teria sido necessário usar de e o verbo no infinitivo passado: O deputado quis saber o porquê de seu voto não ter aparecido no painel eletrônico.] Em perguntas indiretas, portanto, a forma escrita que ocorre é sempre por que, separado. Se for a última palavra da frase, por quê. O uso de o porquê torna o texto desnecessariamente pesado, já que exigiria, como vimos acima, o emprego da preposição de e a reformulação do tempo verbal no infinitivo. Para que complicar? Não há por quê. 19. USO DA PREPOSIÇÃO SOBRE À MANEIRA DO INGLÊS O predomínio praticamente absoluto do inglês como língua de comunicação mundial — algo que algumas pessoas têm chamado de imperialismo linguístico — tem, entre outras consequências, a impregnação de construções próprias daquela língua na morfossintaxe de outras línguas, além, é claro, da adoçãode incontáveis palavras. Recentemente, no Brasil, um dos resultados dessa “colonização” gramatical é um uso da preposição sobre completamente estranho à gramática do português. Trata-se, evidentemente, de uma tentativa capenga de traduzir frases do inglês em que aparece a preposição about. Embora em muitas circunstâncias seja possível traduzir about por sobre, existem diversos usos muito específicos de about em inglês que não correspondem ao nosso sobre. Em inglês, por exemplo, é absolutamente normal dizer: “Love is about sharing all the good and bad moments in life”. Uma boa tradução para isso seria: “Amar é compartilhar todos os bons e maus momentos da vida”. Veja que nessa tradução simplesmente não aparece nada no lugar do about inglês: o verbo é basta. Uma tradução como “Amar é sobre compartilhar todos os bons e maus momentos da vida” faz um uso da preposição sobre que não corresponde a nenhuma das possibilidades autênticas previstas em português. Outro erro frequente na tradução do about inglês é o emprego de trata- se de. Como vimos acima, trata-se de é impessoal, não admite sujeito. No entanto, muita gente, ao querer traduzir about por trata-se de, acaba caindo no erro de atribuir sujeito à locução do português. Algo como: “Amar trata-se de compartilhar todos os bons e maus momentos da vida”. O escritor Sérgio Rodrigues censurou, com razão, esse uso de sobre num texto intitulado: “Ser brasileiro é sobre imitar o inglês”13. Ele analisa esse uso equivocado de sobre como reflexo na nossa baixa autoestima cultural e, consequentemente, linguística. Essa interpretação do fenômeno vai na mesma linha, me parece, da definição que venho dando aqui de hipercorreção: o desejo de parecer mais “sofisticado” que leva ao erro puro e simples. Em muitas ocasiões, como lembra o mesmo Sérgio Rodrigues, é possível traduzir “is about” por tem a ver com ou ter relação com. Ele critica, por exemplo, uma pessoa que escreveu: “Liberdade não é sobre transar na primeira noite, e sim sobre não querer transar e não transar”. Muito melhor teria sido escrever: “Liberdade não tem a ver com transar na primeira noite, e sim com não querer transar e não transar”. Hipercorreção com colonização linguística é um problema em dose dupla para a boa produção de textos escritos formais. Se na prática da tradução esse uso de sobre à inglesa é dispensável, porque em tudo contrário às regras da língua, ainda pior é fazer esse uso diretamente em português, como numa musiquinha bem autoajuda que andou circulando um tempo atrás: Não é sobre ter todas pessoas do mundo pra si É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós… O que vai na contramão da gramática do português são esses é sobre sem sujeito. Aqui ficaria mais adequada a locução trata-se de, porque ela, sim, como vimos, é impessoal: “Não se trata de ter todas as pessoas do mundo para si”. Em inglês é muito comum a construção “X is all about”, que reforça o “X is about”. Por exemplo, depois de explicar o que faz em seu trabalho, uma pessoa pode dizer: “That’s what my job is all about”. Um modo de traduzir isso seria: “É disso que consiste todo o meu trabalho” ou algo semelhante. Nunca jamais: “Meu trabalho é sobre tudo isso” — menos ainda: “Meu trabalho trata-se de tudo isso”. Na conclusão, bem irônica, de seu texto, Sérgio Rodrigues escreve: Vai ver que o errado sou eu e que um dia teremos de traduzir para o “sobrismo” diversas frases famosas de nossa história: “Um país é sobre homens e livros” (Monteiro Lobato); “Governar é sobre abrir estradas” (Washington Luís); “O mundo é sobre um moinho” (Cartola). Na história do português, foram adotadas algumas construções sintáticas vindas de outras línguas, especialmente do francês e do espanhol. Mas são idiomas próximos, da mesma família, de maneira que essas adoções não constituíram um “corpo estranho” na gramática do português. O mesmo não se pode dizer desse uso de sobre, que resulta, na verdade, de tradução malfeita e, muito provavelmente, de uma subserviência ao que vem do centro do império. Talvez isso garanta que a hipótese lançada por Sérgio Rodrigues não se confirme e que o modismo passe logo. 20. O QUÃO Um caso parecido com o uso do sobre “à inglesa” e também de o porquê que já vimos é o da presença cada vez mais frequente em textos escritos da forma o quão. Acredito que essa reaparição de um advérbio que tinha desaparecido da prática escrita contemporânea também se deve a traduções apressadas e capengas do inglês, neste caso do advérbio how. Uma frase como “You don’t know how difficult my life is” seria bem traduzida por “Você não sabe o quanto é difícil a minha vida” ou “o quanto a minha vida é difícil”, ainda mais natural. Traduzir por “o quão difícil é a minha vida” deixa um cheiro de mofo no ar, além de estar errado. E assim como ocorre frequentemente com os casos de hipercorreção, não corresponde aos usos correntes, espontâneos, à fala autenticamente brasileira, mesmo das pessoas ditas “cultas”. É pouco provável que numa conversa entre essas pessoas, ainda que marcada por algum grau de formalidade, apareça “o quão”. Já disse e repito: um texto escrito que tenha a fluidez, o ritmo e a naturalidade da fala é sempre um prazer para os olhos e para os ouvidos, se lido em voz alta14. Da tradução ruim para a produção de textos diretamente mal ajambrados em português foi um pulo. Seguem alguns exemplos: Eleições nos EUA: O quão diferente seria um segundo mandato de Trump (e por que essa perspectiva assusta tanto seus críticos)? Mr. Perfect: O quão perfeito você é? [título de um livro, evidentemente {mal} traduzido!] O quão efetivos são os mandatos de financiadores para o acesso aberto? Não importa o quão bonita são as suas fotos ou o quão reais são as suas citações, algumas pessoas nunca vão apertar o botão “CURTIR” só porque é você. O quão perigoso é o coronavírus comparado a outras doenças? Quais são os problemas com esses exemplos? O primeiro deles é que, no uso tradicional de quão em português, especialmente em interrogações, não se emprega o artigo o, mas apenas quão seguido do adjetivo: “quão diferente seria um segundo mandato?”, “quão perfeito você é?”, “quão perigoso é o coronavírus?”. Outro erro presente num dos exemplos é o modo verbal: “não importa quão bonitas sejam as suas fotos ou quão reais sejam as suas citações…”. A forma o quão, com o artigo o, tem o valor de uma conjunção integrante, isto é, que une duas orações: A principal conjunção integrante é que e pode ser substituída por o quão se o objetivo for intensificar o adjetivo: Para usar o quão, com o artigo, é necessário, portanto, haver duas orações que precisam ser “integradas”. O segundo problema é que, como já adiantei, esse uso de [o] quão + adjetivo foi abandonado há bom tempo na escrita literária, ensaística etc. e é sentido pelos bons estilistas da língua como “cafona”, antiquado, tanto quanto a mesóclise e palavras do tipo outrossim, destarte, entrementes etc. A construção que se firmou entre nós é o quanto + ser + adjetivo: “O quanto é perigoso o coronavírus se comparado a outras doenças?”. Também é possível ocorrer na fórmula o quanto + sujeito + ser + adjetivo: “O quanto o coronavírus é perigoso se comparado a outras doenças?”. Também como integrante: “Ele deixou claro o quanto ficou decepcionado com o resultado do trabalho”. Leia em voz alta: não soa mais natural? De novo, a pergunta: para que usar uma forma antiquada — e, para piorar, de maneira errada
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