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HIPERCORREÇÃO-ESCRITA-BAGNO

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Prévia do material em texto

EDITOR
Marcos	Marcionilo
CONSELHO	EDITORIAL
Ana	Stahl	Zilles	[Unisinos]
Angela	Paiva	Dionisio	[UFPE]
Carlos	Alberto	Faraco	[UFPR]
Celso	Ferrarezi	Jr.	[UNIFAL]
Egon	de	Oliveira	Rangel	[PUC-SP]
Henrique	Monteagudo	[Universidade	de	Santiago	de	Compostela]
José	Ribamar	Lopes	Batista	Jr.	[UFPI/CTF/LPT]
Kanavillil	Rajagopalan	[Unicamp]
Marcos	Bagno	[UnB]
Maria	Marta	Pereira	Scherre	[UFES]
Roberto	Mulinacci	[Universidade	de	Bolonha]
Roxane	Rojo	[UNICAMP]
Salma	Tannus	Muchail	[PUC-SP]
Sírio	Possenti	[UNICAMP]
Stella	Maris	Bortoni-Ricardo	[UnB]
Tommaso	Raso	[UFMG]
Vera	Lúcia	Menezes	de	Oliveira	e	Paiva	[UFMG/CNPq]
O	que	é	
hipercorreção?
Vamos	 começar	 nossa	 conversa	 lendo	 a	 definição	 que	 o	 Dicionário
Houaiss	oferece	do	termo	ultracorreção:
Nos	 estudos	 linguísticos,	 é	mais	 habitual	 usar	 o	 termo	hipercorreção
que,	como	se	vê	no	verbete	do	Houaiss,	é	um	sinônimo	de	ultracorreção.
Essa	 definição	 do	 dicionário	 está	 sintonizada	 com	 os	 resultados	 das
pesquisas	 feitas	 nas	 décadas	 de	 1960-70	 pelo	 sociolinguista
estadunidense	William	 Labov.	 Para	 Labov,	 a	 hipercorreção	 é	 fruto	 do
que	 ele	 chamou	 de	 insegurança	 linguística,	 aquilo	 que	 no	 dicionário
Houaiss	 aparece	 como	 “o	 temor	 do	 falante	 de	 revelar	 uma	 classe
socialmente	 discriminada”:	 a	 pessoa,	 para	 não	 ser	 acusada	 de	 “falar
errado”	(o	que	seria	indício	de	pouca	instrução	formal	e	de	origem	social
humilde),	 exagera	 no	 emprego	 daquilo	 que	 considera	 ser	 a	 forma
“correta”	e	acaba	obtendo	o	resultado	exatamente	oposto,	que	é…	o	erro.
Um	 exemplo	 clássico	 de	 hipercorreção	 gerada	 por	 insegurança
linguística	é	o	emprego	do	verbo	haver	no	plural,	como	em	“houveram1
muitas	reclamações	sobre	as	mudanças	de	horário	do	metrô”	—	por	ser
impessoal,	 o	 verbo	 haver	 (quando	 tem	 sentido	 “existencial”)	 só	 é
conjugado	no	singular:	“houve	muitas	reclamações”.
O	 sociólogo	 francês	Pierre	Bourdieu,	por	 sua	 vez,	 escreveu	que	muitas
pessoas	reconhecem	a	existência	de	uma	“língua	correta”	(que	ele	chama
de	 “língua	 legítima”),	 mas	 não	 conhecem	 plenamente	 esse	 modelo	 de
correção	(muitas	vezes	por	não	terem	acesso,	em	sociedades	desiguais	e
injustas,	 a	 uma	 educação	 de	 qualidade).	 Desse	 modo,	 na	 tentativa	 de
alcançar	esse	ideal	de	“legitimidade”	nos	usos	 linguísticos,	elas	acabam
cometendo	inadequações	e	hipercorreções.
	Tipos	de	hipercorreção
Voltando	ao	verbete	do	dicionário,	vemos	que	os	exemplos	que	aparecem
ali	se	 limitam	à	pronúncia	 (mantor	por	mantô,	rúbrica	por	 rubrica)	 ou
na	escolha	das	palavras	(genitora,	considerada	mais	“sofisticada”	do	que
mãe).	 Mas	 também	 existe	 hipercorreção	 na	morfossintaxe,	 isto	 é,	 nos
modos	 como	 construímos	nossas	 frases,	 nossos	 textos	 ou	—	para	usar
uma	palavra	mais	conhecida	—	na	gramática	do	que	escrevemos.
O	 caso	 do	 verbo	 haver	 no	 plural,	 que	 vimos	 acima,	 é	 um	 exemplo	 de
hipercorreção	 morfossintática.	 O	 elemento	 morfo-	 vem	 do	 grego	 e
significa	“forma”:	o	erro	de	houveram	está	na	forma	do	verbo,	que	deve
ser	 houve.	 O	 termo	 sintaxe,	 também	 do	 grego,	 significa	 “organização,
composição,	combinação”:	o	erro	de	houveram	está	no	fato	de	que	não	é
correto	 “combinar”	 o	 radical	houv-	 com	 a	 terminação	 -eram	 quando	 o
verbo	tem	sentido	 impessoal	nem	fazer	a	concordância	com	o	que	vem
depois	(“reclamações”,	no	nosso	exemplo).
Neste	 breve	 manual,	 vamos	 nos	 ocupar	 principalmente	 dessas
hipercorreções	morfossintáticas	porque	nosso	interesse	aqui	é	a	escrita
formal,	 aquela	 que	 cria	 no	 leitor	 a	 expectativa	 de	 um	 texto	 coeso,
coerente,	que	mostre	uma	escolha	adequada	de	vocabulário	e	seja	bem
construído	 gramaticalmente.	 Justamente	 por	 ser	 formal	 é	 que	 essa
escrita	corre	o	risco	maior	de	apresentar	hipercorreções,	se	a	pessoa	que
escreve	não	tiver	segurança	nos	usos	adequados	dos	recursos	da	língua.
Infelizmente,	muitos	dos	fenômenos	de	hipercorreção	—	ou	pelo	menos
os	mais	comuns	—	se	devem	a	um	ensino	de	 língua	pouco	satisfatório,
resultante	 de	 uma	 concepção	 equivocada	 do	 que	 seja	 escrever	 bem.
Muitas	 professoras	 e	 professores	 ainda	 parecem	 acreditar	 que	 a	 gente
produz	um	bom	texto	escrito	pela	simples	eliminação	de	determinadas
palavras,	 que	 devem	 ser	 substituídas	 por	 outras.	 Alguns	 casos
frequentes	são	a	troca	de	que	por	o	qual	e	de	mas	por	porém.	Ora,	essas
substituições	não	garantem,	nem	de	longe,	uma	boa	produção	escrita:	os
fatores	que	realmente	garantem	um	texto	de	qualidade	são	outros	e	eles
é	que	deveriam	ser	objeto	de	ensino	explícito	e	sistemático	na	educação
linguística	em	todos	os	níveis2.
Outro	 equívoco	 é	 supor	 que	 toda	 manifestação	 escrita	 tem	 que	 ser
obrigatoriamente	rebuscada,	recheada	de	palavras	e	construções	pouco
habituais,	tidas	por	mais	“sofisticadas”	(exatamente	o	que	chamo,	neste
livro,	 de	 “falsas	 elegâncias”).	 Esse	 equívoco	 vem	 da	 ideia,	 sem
fundamento,	 de	 que	 “escrever	 é	 diferente	 de	 falar”	 e	 de	 que	 é	 preciso
“eliminar	 as	 marcas	 de	 oralidade	 da	 fala”.	 No	 entanto,	 um	 bom	 texto
escrito	é	aquele	que	tem	ritmo,	que	flui,	que	não	faz	a	gente	tropeçar	o
tempo	todo	em	pedregulhos	verbais.	Costumo	dizer	que	escrever	bem	é
escrever	simples:	é	perfeitamente	possível	obter	um	texto	elegante	sem
precisar	recorrer	a	pérolas	postiças	e	medalhas	enferrujadas3.
	Hipercorreção	e	mudança	linguística
Antes	 de	 partirmos	 para	 o	 exame	 dos	 casos	 de	 hipercorreção	 que
selecionei	para	 este	 livro,	 convém	mencionar	 alguns	 fatos	 importantes
no	que	diz	respeito	à	noção	de	erro.
Muitos	 usos	 já	 consagrados	 na	 escrita	 formal	 —	 incluindo	 a	 escrita
literária	 —	 ainda	 são	 rotulados	 de	 “erros”	 pela	 tradição	 gramatical	 e,
talvez	até	de	 forma	mais	autoritária,	por	pessoas	que	se	apegam	a	uma
concepção	 de	 “língua	 certa”	 anacrônica	 e	 obsoleta,	 pessoas	 que
escrevem	 em	 jornais	 e	 revistas,	 em	 páginas	 da	 internet	 ou	 que	 criam
canais	 de	 vídeo	 para	 difundir	 essas	 ideias	 mal	 fundamentadas	 de
correção.	 São	 as	 pregadoras	 e	 os	 pregadores	 daquilo	 que	 o	 linguista
brasileiro	Carlos	Alberto	Faraco	chamou	de	norma	curta:	uma	noção	de
“língua	 certa”	que	 se	 apega	 a	uma	dúzia	 e	meia	de	 casos	 gramaticais	 e
trata	 deles	 com	 uma	 inflexibilidade	 que	 contradiz	 muitas	 vezes	 a
postura	mais	relativizadora	dos	gramáticos	e	dicionaristas	de	formação.
É	 triste	 ver	 que	 muitos	 livros	 didáticos	 de	 português	 adotados	 nas
escolas	tentam	fixar	essa	norma	curta	no	ensino,	o	que	só	contribui	para
a	preservação	de	mitos	 como	o	de	que	 “o	português	 é	uma	das	 línguas
mais	 difíceis	 do	 mundo”.	 Afinal,	 se	 eu,	 falante	 da	 língua,	 não	 me
reconheço	naquelas	regras	é	porque,	 sem	dúvida,	meu	modo	de	 falar	a
língua	 é	 “errado”	 e	 não	 tenho	 capacidade	 para	 apreender	 toda	 a
“complexidade”	 da	 gramática	 do	 meu	 próprio	 idioma	 materno.	 O
resultado	 é	 uma	 baixa	 autoestima	 linguística.	 Isso	 também	 contribui
para	a	cristalização	da	já	citada	insegurança	linguística,	que	é	o	terreno
fértil	onde	brotam	e	frutificam	as	hipercorreções.
Um	exemplo	 simples	dessa	diferença	entre	a	norma	curta	 preconizada
por	 alguns	 livros	 didáticos	 em	 contradição	 com	 o	 que	 dizem	 os
gramáticos	 e	 dicionaristas	 profissionais	 é	 o	 do	 uso	 de	 onde	 e	 aonde.
Vejamos	o	que	dizem	dois	livros	didáticos:
•	“O	pronome	relativo	onde	deve	ser	empregado	apenas	para	indicar	um	lugar	concreto,	nunca	uma
situação	[…].	Aonde	é	usado	quando	o	verbo	exige	a	preposição	a”4.
•	 “É	 preciso	 não	 confundir	 o	 emprego	 do	 pronome	 relativo	 onde	 com	 aonde.	 O	 primeiro	 indica
permanência	em	um	lugar	enquanto	o	segundo	indica	movimento	para	um	lugar”5.
Agora	vamos	ver	como	se	manifestam	a	esse	respeito	dois	gramáticos	e
um	dicionarista:
•	 Embora	 a	 ponderável	 razão	 de	 maior	 clareza	 idiomática	 justifique	 o	 contraste	 que	 a	 disciplina
gramatical	 procura	estabelecer,	 na	 língua	 culta	 contemporânea,	 entre	onde	 (=	olugar	 em	que)	 e
aonde	 (=	o	 lugar	a	que),	cumpre	ressaltar	que	esta	distinção,	praticamente	anulada	na	 linguagem
coloquial,	já	não	era	rigorosa	nos	clássicos6.
•	 O	 uso	 dos	melhores	 autores	 […]	 não	 distingue	onde	 de	aonde.	 […]	 Por	 vezes	 ocorre	 o	 emprego
simultâneo	de	um	e	outro	advérbio	com	a	mesma	significação:	“Nise?	Nise?	onde	estás?	aonde?
aonde?”	 (Cláudio	Manuel	da	Costa,	Obras	poéticas,	 I,	 p.	 109);	 “Mas	 aonde	 te	 vais	 agora,	 /	Onde
vais,	 esposo	 meu?”	 (Machado	 de	 Assis,	 Poesias	 completas,	 p.	 207).	 Note-se,	 na	 abonação
machadiana,	que	a	métrica	não	se	oporia	à	repetição	do	aonde7.
Os	 gramáticos	 e	 dicionaristas	 mais	 respeitados	 são	 filólogos	 de
formação,	têm	profundo	conhecimento	da	história	da	língua,	da	tradição
literária,	 e	 sempre	 foram	considerados	 como	as	 fontes	mais	 confiáveis
no	que	diz	respeito	aos	usos	da	língua	tidos	por	corretos.	Os	defensores
da	 norma	 curta,	 no	 entanto,	 passam	 por	 cima	 das	 lições	 ponderadas
desses	 filólogos	 e	 tentam	 ser	 mais	 normativos	 do	 que	 a	 tradição
normativa!	 Se	 Machado	 de	 Assis,	 considerado	 o	 mais	 importante
escritor	brasileiro,	não	distinguia	onde	e	aonde	(e	isso	no	final	do	século
19!),	 por	 que	 insistir	 em	 querer	 que	 a	 gente	 faça	 essa	 diferença	 na
terceira	década	do	século	21?
Os	casos	de	hipercorreção	que	vamos	analisar	aqui	não	têm	nada	a	ver,
portanto,	 com	 esses	 supostos	 “erros	 mais	 comuns”	 que	 compõem	 a
norma	curta	e	são	martelados	há	décadas	pelos	falsos	especialistas,	que
agora	 podem	 contar,	 para	 nossa	 tristeza,	 com	 as	 tecnologias	 mais
avançadas	de	comunicação.	Essas	pessoas	costumam	dizer	que	esses	tais
“erros”	doem	nos	ouvidos,	mas	o	que	realmente	dói	nos	nossos	ouvidos	é
essa	ladainha	incessante	que	se	revela,	afinal,	inútil:	se	a	pregação	contra
esses	“erros”	tivesse	algum	efeito,	eles	não	estariam	sendo	“cometidos”
por	tanta	gente	há	tanto	tempo!8
As	hipercorreções	apresentadas	neste	livro	constituem	usos	linguísticos
ainda	 rejeitados	 por	 boa	 parte	 dos	 gramáticos	 e	 dicionaristas,	 dos
escritores	 e	 tradutores,	 dos	 editores	 e	 das	 pessoas	 mais	 letradas	 em
geral.	 Quando	 digo	 “ainda	 rejeitados”	 é	 porque	 a	 história	 das	 línguas
demonstra	 que	muitos	 fenômenos	 de	 hipercorreção,	 por	 força	 do	 uso
frequente,	acabaram	se	transformando	em	regras	da	língua,	adotadas	e
normatizadas	pela	tradição	gramatical.	Assim,	hoje	em	dia	não	se	aceita
a	 pronúncia	 rúbrica	 para	 rubrica,	 mas	 a	 pronúncia	 pântano,	 única
considerada	correta	hoje	em	dia,	é	resultado	de	uma	hipercorreção,	pois
sua	origem	é	o	 italiano	pantáno,	 com	acentuação	paroxítona.	O	uso	 da
preposição	de	em	construções	como	“tenho	certeza	de	que	Pedro	esteve
aqui”	 é	 resultado	 também	 de	 uma	 hipercorreção	 histórica,	 do	mesmo
tipo	 que	 ocorre	 hoje	 em	 frases	 como	 “eu	 penso	 de	 que	 vai	 ser	 um
trabalho	complicado”.	Conclusão:	muito	do	que	foi	considerado	erro	no
passado	 —	 induzido	 pela	 hipercorreção	 —	 hoje	 é	 tido	 como	 a	 única
forma	correta,	 o	que	 leva	a	 gente	a	 imaginar	que	muito	do	que	agora	é
considerado	 hipercorreção	 pode	 vir	 a	 se	 tornar	 regra	 normatizada	 no
futuro.
No	 entanto,	 uma	 vez	 que	 a	 maioria	 das	 pessoas	 —	 incluindo	 as	 mais
letradas	 —	 não	 têm	 consciência	 desses	 fenômenos	 de	 mudança	 na
história	 da	 língua,	 nossa	 intenção	 aqui	 é	 trabalhar	 com	 os	 casos	 de
hipercorreção	que	são	vistos	hoje	como	usos	inadequados	que	devemos
evitar	na	escrita	 formal	 (que	permite	controle,	 revisão	e	 reformulação,
ao	 contrário	da	 fala	 espontânea,	 que	não	 tem	por	que	 ser	 submetida	 a
esses	processos	e	precisa	ter	toda	a	liberdade	possível	para	cumprir	sua
função	 primordial	 de	 permitir	 a	 interação	 social	 por	 meio	 da
linguagem.)
1.	POSSUIR
O	verbo	ter,	e	seu	equivalente	em	qualquer	língua	do	mundo,	figura	no
topo	da	 lista	dos	mais	 empregados.	 Junto	 com	ser,	 ver,	 dar,	 fazer,	 ir,
vir,	pôr,	querer,	poder,	dizer,	ouvir,	pegar,	saber,	levar,	trazer	etc.,	é
um	desses	 verbos	 imprescindíveis	 para	 a	 interação	 social	 por	meio	 da
linguagem	 em	 qualquer	 comunidade	 humana.	 Não	 por	 acaso,	 são
sempre	esses	os	primeiros	verbos	que	nos	ensinam	quando	aprendemos
línguas	 estrangeiras.	 Com	 esses	 e	 uns	 poucos	 outros	 é	 possível	 dizer
praticamente	qualquer	coisa	em	qualquer	língua.
Também	conhecemos	bem	a	versatilidade	de	ter:
●	verbo	pleno:	Minha	casa	tem	três	quartos.
●	verbo	suporte:	tenho	medo,	tenho	sede,	tenho	horror,	tenho	dó	etc.
●	verbo	“existencial”:	tem	muita	gente	nessa	sala;	hoje	tem	feijoada	etc.
●	verbo	auxiliar:	tenho	cantado,	teriam	falado,	tínhamos	viajado	etc.
Essa	alta	frequência	de	emprego	do	verbo	ter	acabou	agindo	contra	ele
mesmo.	Muitas	pessoas,	movidas	pela	visão	tradicional	de	que	a	escrita	é
sempre	rebuscada	e	de	que	a	fala	é	sempre	“descontraída”,	se	puseram	a
evitar	o	verbo	ter,	empregando	em	seu	lugar	um	suposto	sinônimo	mais
“sofisticado”,	o	verbo	possuir.
O	 problema	 não	 está	 no	 verbo	 em	 si,	 é	 claro,	 mas	 na	 inadequação	 de
alguns	de	seus	empregos9:
(1)	 Possuir	 seguido	 de	 complementos	 pouco	 adequados	 à	 semântica	 do
verbo:
	Você	possui	resiliência?	[…]	Ser	resiliente	significa	ter	disposição	e	coragem
para	lutar,	possuir	desenvoltura	para	se	superar	e	ter	atitude	para	solucionar
problemas,	e	não	aumentá-los.
	 Entre	 os	 jogadores	 de	 games	 para	 plataformas	 móveis	 (tablets	 e
smartphones),	a	pesquisa	aponta	que	o	país	possui	24	milhões	de	jogadores.
	Você	possui	ciclo	menstrual	saudável?	Veja	alguns	distúrbios	menstruais
	 […]	 o	 atestado	 de	 amamentação	 fornecido	 pelos	 médicos	 obstetras	 não
possui	nenhum	respaldo	na	esfera	trabalhista	ou	previdenciária.
(2)	Possuir	 empregado	 como	 verbo-curinga,	 em	 construções	 em	 que	 outro
verbo	poderia	conferir	mais	precisão	semântica	ao	enunciado:
	Tata	Nano	já	possui	500	mil	pedidos	de	compra	na	Índia!
	trata-se	de	um	modelo	de	automóvel.	Ora,	um	modelo	de	automóvel	não
pode	 “possuir	 pedidos”;	mais	 adequado	aqui	 seria	 empregar	 recebeu,	 por
exemplo.
	O	Consulado	Geral	de	Portugal,	 ao	pedir	o	HC	em	 favor	de	 […],	 sustentou
que	pelo	fato	de	o	português	viver	em	união	estável	com	brasileira	há	mais
de	 cinco	 anos	 e	 possuir	 três	 filhos	 e	 neta,	 também	 brasileiros,	 ele	 não
poderia	ter	sido	expulso	do	território	nacional.
	 o	 verbo	 possuir,	 quando	 tem	 como	 objeto	 uma	 pessoa,	 adquire	 o
significado	de	“possuir	sexualmente,	manter	relações	sexuais”,	o	que	torna	a
construção	 possuir	 três	 filhos	 e	 neta	 mais	 do	 que	 inadequada	 no	 texto.
Observe-se	que	aqui	estamos	no	campo	jurídico,	onde	a	hipercorreção	faz	a
festa,	 devido	 ao	 mito	 de	 que	 a	 linguagem	 jurídica	 tem	 de	 ser	 sempre
rebuscada	e,	de	preferência,	hermética.
	Carlos	possui	salário	de	R$	2.800,00	mensais	e	realizou	18	horas	extras.	Qual
o	valor	bruto	das	horas	extras	que	Carlos	terá	para	receber?	R:	R$	343,63.
	salário	não	é	algo	que	alguém	“possua”:	as	pessoas	recebem	salários.
	Cerca	de	87%	dos	internautas	de	5	a	18	anos	não	possuem	restrições	ao	uso
da	 internet	 e	 63%	dos	pais	não	 impõem	 regras	para	o	uso	que	 seus	 filhos
fazem	da	rede.
	aqui	o	verbo	possuir	ocupa	indevidamente	o	lugar	de	sofrer:	os	internautas
não	sofrem	restrições	dos	pais.
	Advogados	possuem	desconto	na	compra	de	scanner.
	 de	 novo,	 uma	 imcompatibilidade	 semântica	 entre	 possuir	 e	 seu	 objeto,
desconto.	 Aqui	 um	 verbo	 mais	 adequado	 seria	 recebem,	 têm	 direito	 a,
contam	com	etc.
	Vegetarianos	possuem	menor	risco	de	doenças	crônicas
	nova	incompatibilidade	entre	verbo	e	objeto:	os	vegetarianos	apresentam	/
exibem	/	demonstram	menor	risco	de	doenças	crônicas.
	 Homens	 têm	mais	 cartões	 de	 crédito	 e	 possuem	 fatura	 mais	 salgada	 que
mulheres.
	 a	 fatura	 não	 é	 algo	 que	 alguém	 “possua”;	 aqui	 o	 verbo	 seria	 até
dispensável,	 podendo	 ser	 substituído	 por	 um	 possessivo:	 “e	 sua	 fatura	 é
mais	salgada”.
(3)	Possuir	usado	com	muitafrequência	num	mesmo	texto,	sintoma	da	 falta
de	segurança	no	bom	domínio	da	escrita	formal	por	parte	de	quem	redigiu,
como	nessa	página	da	Wikipédia	sobre	a	região	Nordeste:
	A	Região	Nordeste	é	uma	das	cinco	regiões	do	Brasil	definidas	pelo	Instituto
Brasileiro	de	Geografia	e	Estatística	(IBGE)	em	1969.	Possui	área	equivalente
à	da	Mongólia	ou	do	estado	do	Amazonas,	população	equivalente	à	da	Itália
e	um	IDH	médio,	comparável	com	El	Salvador	(dados	de	2010).	[…]	É	a	região
brasileira	 que	 possui	 o	 maior	 número	 de	 estados	 (nove	 no	 total)	 […].	 O
território	 do	 Nordeste	 possui	 um	 enorme	 acervo	 de	 pinturas	 e	 gravuras
realizadas	sobre	um	suporte	fixo	pétreo,	seja	em	abrigos,	em	paredões	tipo
cânion	ou	em	afloramentos	rochosos.	[…]	A	região	possui	os	estados	com	a
maior	 e	 a	menor	 costa	 litorânea,	 respectivamente	 Bahia,	 com	 932	 km	 de
litoral	e	Piauí,	com	60	km	de	litoral.	A	região	toda	possui	3.338	km	de	praias.
[…]	O	rio	Parnaíba	é	um	dos	poucos	no	mundo	a	possuir	um	delta	em	mar
aberto,	 com	uma	área	de	manguezal	de	aproximadamente,	2.700	km².	 […]
Todas	 as	 capitais	 da	 região	Nordeste	 possuem	 região	metropolitana	 (RM),
com	exceção	de	Teresina,	que	possui	 região	 integrada	de	desenvolvimento
econômico	 (RIDE),	 por	 abrigar	 municípios	 de	 diferentes	 unidades
federativas.	[…]	Todos	os	nove	estados	nordestinos	possuem	ao	menos	uma
área	 metropolitana	 em	 seu	 território,	 seja	 na	 sua	 totalidade	 (como	 Rio
Grande	 do	 Norte	 e	 Sergipe)	 ou	 parcialmente	 (Piauí).	 Nesse	 sentido,	 o
Maranhão	possui	três	no	total.	São	duas	(São	Luís	e	Sudoeste	Maranhense),
localizadas	integralmente	dentro	do	território	maranhense,	e	outra	(Grande
Teresina)	expande-se	pelo	Piauí.	O	estado	da	Paraíba	possui	o	maior	número
de	regiões	metropolitanas	(doze	no	total).
Esse	é	um	ótimo	exemplo	do	que	costumo	chamar	de	“muleta	textual”:
um	elemento,	no	caso	possuir,	usado	em	praticamente	todas	as	frases	do
texto,	o	que	o	torna	enfadonho,	monótono,	insosso.	Além	da	repetição	do
verbo	 em	 si,	 também	 se	 repete	 a	 construção	 sintática:	 é	 sempre	 “X
possui	 Y”,	 quando	 um	 texto	 bem	 escrito	 se	 caracteriza,	 entre	 outras
coisas,	 pela	 diversidade	 de	 fórmulas	 sintáticas.	 Se	 nos	 limitássemos,
porém,	apenas	ao	verbo	possuir,	seria	muito	fácil	substituí-lo	por	outros
como	ter,	apresentar,	exibir,	dispor	de,	contar	com,	revelar,	acolher	e	por
aí	vai.
A	 hipercorreção	 chega	 ao	 cúmulo	 da	 inadequação	 em	 casos	 como	 os
seguintes:
	Se	você	possui	18	anos	e	ainda	não	tirou	seu	título,	fique	atento	ao	prazo!
	Após	a	 vitória	do	Estrelão	por	1	a	0,	os	 jornalistas	 catarinenses	afirmaram
que	o	clube	é	“quase	amador”	e	que	o	Estado	do	Acre	“não	possui	nada	a
ver	com	futebol”.
Definitivamente,	 ninguém	 “possui	 anos”	 e	 a	 expressão	 cristalizada	 na
língua	 é	 “não	 ter	 nada	 a	 ver”.	 São	 exemplificações	 claríssimas	 da
tentativa	 de	 conferir	 “sofisticação”	 ao	 texto,	 tentativa	 completamente
frustrada	 porque	 o	 resultado	 atesta	 a	 falta	 de	 habilidade	 na	 produção
escrita.
Sempre	que	a	tentação	de	usar	possuir	murmurar	em	seus	ouvidos,	respire
fundo,	 conte	 até	 dez	 e	 escreva…	 ter.	 Assim	 a	 hipercorreção	 recolhe	 suas
nuvens	 pesadas	 e	 o	 texto	 adquire	 o	 brilho	 sereno	 de	 um	 céu	 azul	 sem
nuvens.
2.	ENCONTRAR-SE
Assim	como	possuir	vem	sendo	tratado	como	o	equivalente	“sofisticado”
de	ter,	também	o	verbo	encontrar-se	foi	eleito	como	substituto	“menos
comum”	de	estar,	um	dos	verbos	mais	empregados	na	língua.
O	mais	conhecido	exemplo	do	uso	hipercorreto	de	encontrar-se,	 junto
com	 outros	 indícios	 de	 hipercorreção	 (o	 pronome	 o	 mesmo),	 está	 no
aviso	aposto	em	milhares	de	elevadores	do	Brasil:
	Antes	de	entrar	no	elevador,	 verifique	 se	o	mesmo	encontra-se	parado	no
andar.	Lei	nº	9.502/97
Escrito	 em	 perfeito	 juridiquês,	 ou	 seja,	 na	 linguagem	 empolada	 dos
textos	 legais,	 linguagem	 que	 muito	 frequentemente	 prima	 pela
hipercorreção,	o	anúncio	mais	complica	do	que	alerta.	Bastaria	escrever:
“Antes	de	entrar	no	elevador,	verifique	se	ele	está	parado	no	andar”.
Exemplos	do	uso	hipercorreto	de	encontrar-se:
	Gostaria	de	uma	 informação	de	algum	especialista	quanto	a	etapa	em	que
encontra-se	meu	processo	trabalhista	referente	a	Horas	Extras.
	 O	 meia	 Marco	 Aurélio	 Barbosa	 encontra-se	 desaparecido	 desde	 sábado
23/04/2011.
	 Acervo	 Virgílio	 Távora	 encontra-se	 disponível	 para	 pesquisas	 no	 Arquivo
Público	do	Estado	do	Ceará.
Na	busca	da	clareza	e	da	simplicidade	de	expressão,	vamos	tentar	reservar	o
verbo	encontrar-se	para	as	seguintes	situações:
•	 quando	 o	 se	 for	 um	 pronome-sujeito	 indefinido:	 “Aqui	 se	 encontra	 os
melhores	bolinhos	de	bacalhau	da	cidade”	“Aqui	[a	gente]	[você]	encontra
os	melhores	bolinhos	de	bacalhau	da	cidade”.
•	quando	se	for	um	pronome	reflexivo:	“Presidente	francês	encontra-se	com
o	primeiro-ministro	chinês”.
Nas	demais	situações,	vamos	evitar	“escrever	difícil”	e	empregar	o	bom	e
velho	estar,	que	é	um	dos	privilégios	da	nossa	língua,	que	diferencia	ser
de	estar,	enquanto	tantas	outras	têm	um	único	verbo.
3.	ONDE
A	 palavra	 onde	 vem	 passando	 por	 um	 processo	 chamado
discursivização,	 que	 é	 quando	uma	palavra	 se	 esvazia	 de	 seu	 conteúdo
semântico	 original	 (seu	 significado)	 e	 passa	 a	 servir	 como	 mero
organizador	do	discurso	 falado	ou	escrito.	É	 fácil	 verificar	 isso	quando
observamos	 alguns	 usos	 frequentes	 de	 onde.	 Num	material	 que	 reuni
para	 uma	 pesquisa,	 formado	 exclusivamente	 de	 textos	 escritos	 por
professoras	e	professores	em	formação	ou	já	na	ativa,	encontrei	diversos
exemplos	desses	usos:
	Muitos	 profissionais	 se	 recusam	a	 enxergar	 a	 língua	 falada	 e	 escrita	 como
meio	 para	 comunicação	 e	 expressão	 entre	 os	 falantes,	 onde	 esses,	 ao
fazerem	 uso	 dessa	 língua,	 não	 vão	 sequer	 lembrar	 das	 terríveis	 aulas	 de
decoreba.
	 E	 tempo	 de	 novas	 práticas	 pedagógicas,	 de	 professores	 que	 venham
enxergar	um	novo	horizonte,	onde	temos	de	que	mostrarmos	a	verdadeira
importância	de	falar,	aplicar	e	valorizar	a	nossa	língua	materna	como	ela	é,
um	tesouro	de	cada	um,	 independente	de	onde	veio	ou	da	família	a	quem
pertence,	 que	 cada	 indivíduo	 tem	 sua	 parcela	 de	 contribuição	 para
superarmos	 os	 desafios	 e	 dificuldades	 que	 a	 educação	 da	 nossa	 língua
materna	precisa	vencer.
	Em	uma	sociedade	que	não	houvesse	normas,	o	caos	já	teria	tomado	conta
da	 situação.	 A	 regulação	 quer	 seja	 social	 ou	 linguística	 é	 feita	 através	 de
inúmeros	 fatores,	 quer	 sejam	 “ascendentes	 ou	 descendentes”	 que
objetivam	centrar	a	realidade	 linguística	ou	social	em	um	padrão	aceitável,
onde	a	cidadania	e	a	comunicação	possam	chegar	ao	objetivo.
A	palavra	onde,	 nesses	 exemplos,	 tenta	 organizar	 um	 discurso	 escrito
dificilmente	 organizável,	 na	 medida	 em	 que	 revela	 um	 domínio
deficiente	das	convenções	da	escrita	formal.	Na	tentativa	de	elaborações
teóricas,	 os	 textos	produzidos	não	 esclarecem	o	que	de	 fato	pensa	 o(a)
autor(a)	acerca	das	questões	tratadas.	O	emprego	de	onde	em	tais	textos
é	sintoma	de	pouca	familiaridade	com	essa	modalidade	de	escrita.
Revelando-se	como	um	indício	de	domínio	 insuficiente	da	escrita	 formal,	a
palavra	 onde	 deve	 ser	 reservada	 exclusivamente	 para	 a	 função	 de
pronome/advérbio	de	 lugar,	 com	 referência	 clara	 a	 algum	 lugar	 (concreto
ou	figurado)	que	foi	mencionado	imediatamente	antes.
4.	CONCORDÂNCIA	DE	HAVER/TER/FAZER	IMPESSOAIS
Na	língua	falada	espontânea,	onde	o	verbo	haver	praticamente	deixou	de
existir,	é	o	verbo	ter	que	desempenha	quase	categoricamente	a	 função
dita	“existencial”.	E	em	muitas	ocasiões	podemos	ouvir	a	concordância
indevida,	 como	 nos	 exemplos	 abaixo,	 de	 língua	 falada,	 coletados	 no
corpus	do	NURC-Brasil10:
	eu	noto	que	antigamente	tinham	filmes	mais	assim…	com	maior	conteúdo
	e	então	nós	jogávamos	também,	tinham	mais	dois	casais…
Também	 em	 textos	 escritos	 é	 possível	 encontrar	 a	 concordânciahipercorrigida:
	 Afinadíssimo	 com	 as	 mais	 recentes	 pesquisas	 arqueológicas	 e
antropológicas,	 passa	 longe	 dos	 preconceitos	 de	 que	 não	 podem	 haver
ideias	dignas	desse	nome	na	mente	dos	“primitivos”	[…].
	Mas	 informações	 da	 área	 de	 saúde	 pública	 dão	 conta	 de	 que	 no	mês	 de
julho	 e	 nos	 primeiros	 dias	 de	 agosto	 não	 houveram	 casos	 de	 dengue	 em
Iporá.
É	necessário,	portanto,	ter	sempre	em	mente	que	esses	verbos:
•	como	“existenciais”,	se	mantêm	sempre	no	singular,	 independentemente
de	virem	seguidos	de	elementos	no	plural:	tinha	muitas	pessoas	no	evento;
houve	problemas;	havia	questões	para	resolver	etc.
•	como	verbos	auxiliares,	concordam	com	o	sujeito	do	verbo	principal:	eu
tenho	 viajado;	 nós	 tínhamos	 saído;	 elas	 haviam	 telefonado;	 se	 vocês
tivessem	chegado	antes	etc.
•	como	verbo	pleno,	ter,	obviamente,	concorda	com	o	sujeito:	nós	tínhamos
uma	casa	de	praia;	eles	tiveram	problemas	com	o	carro	etc.
O	mesmo	vale	para	o	verbo	fazer	quando	usado	para	se	referir	a	medidas
de	tempo:	ele	é	impessoal	e	deve	ficar	sempre	no	singular:
•	Faz	dez	anos	que	minha	família	se	mudou	para	São	Paulo.
•	Já	fazia	dois	meses	que	Jandira	não	recebia	notícias	de	João.
•	Ontem	fez	quinze	dias	que	comecei	no	emprego	novo.
5.	TRATAR-SE	DE
A	 locução	 tratar-se	 de	 é	 uma	 fórmula	 fixa.	 Ela	 é	 impessoal	 ou,	 se
preferirmos,	 traz	 seu	 sujeito	 devidamente	 cristalizado,	 um	 sujeito
indeterminado:	 se	 (“a	 gente	 trata	 de”).	 O	 importante	 é	 que	 ela	 só	 é
empregada	 no	 singular.	 A	 concordância	 com	 substantivos	 no	 plural
representa	 uma	 regra	 inexistente:	 a	 concordância	 do	 verbo	 com	 seu
complemento!	A	presença	da	preposição	de	bloqueia	qualquer	tentativa
de	concordância.	É	pouco	provável	que	alguém	escreva	“precisam-se	 de
soluções	 rápidas	 para	 o	 problema	 do	 saneamento	 na	 cidade”,	 já	 que	 o
sujeito,	 aqui	 também,	 é	 se,	 singular.	 Pode	 ser	 que	 o	 excesso	 de
concordância	 seja	 motivado	 pela	 regra	 gramatical	 que	 insiste	 em	 nos
exigir	o	plural	em	ocorrências	como	“alugam-se	salas”,	muito	embora	a
linguística	 brasileira	 já	 tenha	 provado	 há	mais	 de	 um	 século	 que	 essa
concordância	é	irracional	e	ilógica11.
O	 receio	 de	 “errar”	 na	 concordância	 leva	 muitas	 pessoas,	 inclusive
indivíduos	 altamente	 letrados,	 a	 atingir	 o	 efeito	 contrário:	 erram	 no
momento	em	que	flexionam	o	verbo	no	plural:
	 Tratam-se	 de	 espécies	 de	 rostro	 no,	 tão	 ou	 mais	 longo	 que	 o	 corpo,
fortemente	 recurvado	do	meio	para	o	ápice;	 fêmures	armados	de	 robusto
dente	em	baixo.
	 Tratam-se	 de	 recursos	 interposto	 contra	 sentenças	 prolatada	 no	 Juizado
Especial	 Federal	 Cível	 desta	 Seção	 Judiciária,	 que	 declarando	 a	 prescrição
quinquenal,	 julgou	 parcialmente	 procedente	 o	 pedido	 de	 pagamento	 de
diferenças	 decorrentes	 do	 salário-maternidade	 requerido	 fora	 do	 termo
legal	pela	segurada	especial	(rurícola),	com	correção	monetária	pela	tabela
do	 Conselho	 da	 Justiça	 Federal	 desde	 a	 data	 do	 parto,	 tomando-se	 como
base	de	cálculo	o	salário	mínimo	daquela	época,	além	do	acréscimo	de	juros
de	mora	de	1%	(um	por	cento)	ao	mês,	desde	a	citação.
	 observe-se	 aqui	 o	 típico	 linguajar	 jurídico	 que,	 muitas	 vezes,	 de	 tão
empolado,	 incorre	 em	 erros:	 no	 caso,	 o	 plural	 de	 “trata-se	 de”	 e,	 logo	 a
seguir,	a	não	concordância	de	“recursos”	com	“interposto”	e	de	“sentenças”
com	o	adjetivo	“prolatada”.
	Tratam-se	de	 regras	básicas	 sobre	o	 fundamento	e	a	 forma	de	atuação	do
Ministério	Público.
	Entre	 os	 pontos	 que	 foram	 pouco	 ou	mal	 cobertos	 pela	 Folha,	 alguns	 até
ignorados	 por	 ela	 nesse	 episódio,	 destacam-se	 os	 que	 se	 seguem.	 Em
primeiro	 lugar,	 a	 motivação	 dos	 fraudadores,	 até	 agora	 não	 é
satisfatoriamente	inteligível.	Ou	se	tratavam	de	uns	completos	trapalhões	ou
alguma	 coisa	 ainda	 precisa	 ser	 revelada	 sobre	 as	 razões	 que	 os	 levaram	a
cometer	ato	tão	desastrado.
	 Agora	 empregue	 a	 vírgula	 antes	 do	 que	 nos	 casos	 necessários	 por	 se
tratarem	de	frases	explicativas.
Outro	equívoco	é	tentar	atribuir	um	sujeito	à	locução	tratar-se	de:
	Mas	por	essa	matéria	já	ter	sido	colocada	e	retirada	várias	vezes	do	ensino,
muitas	 pessoas	 nem	 sabem	 do	 que	 se	 trata	 a	 Sociologia,	 e	 é	 por	 não
saberem	que	eles	acabam	menosprezando	essa	matéria	tão	interessante,	e
algumas	pessoas	até	questionam	os	formados	em	sociologia.
	CEE	x	MEC	—	Afinal,	do	que	se	trata	essa	briga?
	 Este	 livro	 trata-se	 de	 uma	 introdução	 às	 RI.	 A	 preocupação	 do	 autor	 foi
exclusivamente	 com	 o	 leitor	 que	 inicia-se	 na	 nova	 formação	 ou	 está
interessado	em	compreender	as	facetas	do	mundo	atual.
Em	síntese,	é	preciso	saber	que	tratar-se	de:
•	é	uma	locução	impessoal,	ou	seja,	não	tem	sujeito;
•	é	um	sintagma	que	 introduz	complementos	oblíquos,	ou	seja,	seu	verbo
não	tem	por	que	concordar	com	esses	complementos;
•	em	sentenças	interrogativas	(diretas	ou	indiretas),	a	fórmula	correta	é:
	Sociologia:	do	que	se	trata?
	O	diretor	te	chamou	com	urgência,	mas	não	me	pergunte	do	que	se	trata,
porque	eu	não	sei.
Por	fim,	tratar-se	de	com	muita	frequência	significa	simplesmente	ser.
Assim,	 sempre	 em	 busca	 de	 um	 estilo	 mais	 claro	 e	 menos	 afetado,
podemos	 sugerir	 que,	 quando	 existir	 essa	 equivalência,	 se	 prefira
sempre	o	bom	e	seguro	verbo	ser:
•	Do	que	se	trata	a	Sociologia?	 	O	que	é	a	Sociologia?
•	Este	 livro	 trata-se	 de	uma	 obra	 de	 referência	 	 Este	 livro	 é	 uma	 obra	 de
referência.
•	*Afinal,	do	que	se	trata	essa	briga?	 	Afinal,	que	briga	é	essa?	 /	 Por	 que
essa	briga?	/	Qual	o	motivo	dessa	briga?
6.	CONCORDÂNCIA	INDEVIDA	EM	ORAÇÕES	CLIVADAS	(É	…
QUE)
Leia	com	atenção	os	seguintes	exemplos:
	“Não	pago,	não	pagaria.	Espaço	público	não	é	mercadoria”.	Foram	com	essas
palavras	 de	 ordem	 que	 mais	 de	 duas	 mil	 pessoas	 protestaram	 ontem	 à
noite	contra	a	cobrança	de	R$	4	para	cada	quatro	horas	de	estacionamento
nos	shoppings	de	Aracaju.
	 São	 de	 pessoas	 assim	 que	 o	 mundo	 precisa	 para	 ser	 melhor.	 Pessoas
convictas	de	que	o	bem	é	sempre	a	melhor	escolha	e	que	sem	ele	não	se
pode	ser	feliz.
	Não	foram	as	conversas.	Não	foram	os	beijos.	Não	foram	os	abraços.	Muito
menos	suas	ligações.	Não	foram	as	noites	mal	dormidas	pensando	em	você,
não	foi.	Não	foram	as	trocas	de	olhares,	muito	menos	sua	respiração	ao	pé
do	 meu	 ouvido.	 Não	 foram	 as	 canções	 que	 você	 mandava,	 nem	 muito
menos	as	que	você	costumava	cantar	para	mim.	Não	foram	as	tentativas	de
descrever	 você	 nos	 meus	 textos	 pra	 complementar	 o	 que	 deixei	 de	 dizer
quando	 você	me	 deixou	 sem	 palavras.	Não	 foram	pelos	 passos	 que	 você
conduziu	nas	nossas	danças.	Não	foram	pelos	sorrisos	que	você	conseguiu
arrancar	de	mim.	Não	foi	pela	saudade	que	você	deixou	quando	se	foi,	nem
pela	 felicidade	 de	 quando	 chegou,	 porque	 não	 foi.	 Não	 foi	 por	 você	 que
comecei	 a	 colecionar	 meus	 melhores	 sonhos,	 nem	 foi	 pelo	 suspiros	 pela
manhã.	 Não,	 não	 foi…	 Não	 foi!	 E	 que	 se	 for	 preciso	 repito	 quantas	 vezes
forem	necessárias	para	me	convencer	de	que	não	foram	por	esses	motivos
que	me	apaixonei	por	você.
Estamos	aqui	numa	situação	parecida	com	a	que	vimos	logo	acima,	com
a	 locução	 tratar-se	 de:	 a	 concordância	 indevida	 do	 verbo	 ser	 com	um
complemento,	analisado	erroneamente	como	sujeito.
Quando	queremos	dar	ênfase	a	um	determinado	elemento	do	que	vamos
expressar,	 podemos	 recorrer	 ao	 que	 se	 chama	 de	 clivagem.	 O	 verbo
clivar	 significa	 “fragmentar,	 separar”.	 Uma	 sentença	 clivada	 é	 aquela
que	resulta	precisamente	da	separação,	do	destaque	que	queremos	dar	a
um	elemento	do	enunciado:
Na	 sentença	 clivada,	 o	 complemento	 “alemão”	 é	 topicalizado,	 isto	 é,
trazido	para	a	frente,	para	o	início	do	enunciado,	a	fim	de	ser	enfatizado.
A	sentença	clivada,	portanto,	tem	um	efeito	pragmático	bem	claro,	que	é
o	de	trazer	para	o	primeiro	plano	a	informação	principal	do	enunciado.
Para	 isso,é	 preciso	 romper	 com	 a	 neutralidade	 da	 sentença	 em	 sua
ordem	habitual,	direta.
Na	sentença	clivada	em	que	ocorre	um	complemento,	o	verbo	ser	deve
permanecer	sempre	no	singular,	porque	nesse	caso	ele	é	unipessoal,	ou
seja,	 só	se	conjuga	na	3a	pessoa,	exatamente	como	vimos	com	 tratar-se
de.
Num	excesso	de	zelo	por	não	 ferir	as	regras	de	concordância	verbal	—
que,	 como	 sabemos,	 são	 as	 que	 mais	 atraem	 a	 atenção	 dos	 falantes
letrados,	que	se	servem	dela	para	discriminar	os	que	“falam	errado”	—,
muitas	pessoas	conjugam	o	verbo	ser	 das	 sentenças	 clivadas	no	plural,
estabelecendo	uma	concordância	não	prevista	pela	gramática	da	língua
(nem	 pela	 gramática	 intuitiva	 do	 falante	 nem	 pela	 gramática
normativa!).	Assim,	as	construções	corretas	são:
	 Foram	 com	 essas	 palavras	 de	 ordem	 que	 mais	 de	 duas	 mil	 pessoas
protestaram
	Foi	com	essas	palavras	de	ordem	que	mais	de	duas	mil	pessoas	protestaram
	São	de	pessoas	assim	que	o	mundo	precisa	para	ser	melhor
	É	de	pessoas	assim	que	o	mundo	precisa	para	ser	melhor.
	Não	foram	pelos	passos	que	 você	 conduziu	nas	nossas	danças.	Não	 foram
pelos	sorrisos	que	você	conseguiu	arrancar	de	mim.[…]	não	foram	por	esses
motivos	que	me	apaixonei	por	você
	Não	 foi	pelos	passos	que	você	conduziu	nas	nossas	danças.	Não	foi	pelos
sorrisos	que	você	conseguiu	arrancar	de	mim.	[…]	não	foi	por	esses	motivos
que	me	apaixonei	por	você.
É	necessário,	portanto,	ficar	atento	a	essas	construções.	Um	claro	sinal
de	que	a	concordância	não	deve	ser	feita	é	a	presença	frequente	de	uma
preposição	depois	do	verbo	ser:	se	tem	preposição,	o	elemento	a	seguir
só	pode	ser	um	complemento,	jamais	um	sujeito:
●	Foi	com	esses	amigos	que	passei	o	Ano	Novo.
●	É	para	os	Estados	Unidos	que	a	Janete	vai	se	mudar.
●	Foi	por	essas	e	outras	que	ela	abandonou	a	carreira	de	atriz.
●	Era	das	novas	contratações	que	a	diretora	estava	falando.
7.	PARTICÍPIOS	PASSADOS	IRREGULARES
Os	particípios	passados	são	aquelas	formas	verbais	terminadas	em	-ado
e	-ido:	tinha	comprado,	teria	perdido,	tínhamos	vendido.	Também	podem
funcionar	como	substantivos	—	as	deputadas,	 os	 empregados,	 a	 subida
—	e,	principalmente,	como	adjetivos:	roupas	passadas,	carros	vendidos,
lucro	garantido	etc.
Ao	lado	das	formas	regulares	terminadas	em	-ado	e	-ido,	existem	alguns
particípios	passados	irregulares,	com	formas	próprias:	feito,	dito,	escrito,
visto,	aberto…	Além	desses,	existem	verbos	que	apresentam	duas	formas
de	particípio	passado	—	na	gramática	eles	recebem	o	curioso	nome	de
verbos	abundantes.	Os	de	uso	mais	frequente	são	os	seguintes:
INFINITIVO PARTICÍPIOREGULAR
PARTICÍPIO
IRREGULAR
aceitar aceitado aceito
acender acendido aceso
eleger elegido eleito
entregar entregado entregue
envolver envolvido envolto
enxugar enxugado enxuto
expressar expressado expresso
exprimir exprimido expresso
expulsar expulsado expulso
extinguir extinguido extinto
ganhar ganhado ganho
gastar gastado gasto
imprimir imprimido impresso
juntar juntado junto
limpar limpado limpo
matar matado morto
morrer morrido morto
pagar pagado pago
pegar pegado pego
prender prendido preso
salvar salvado salvo
soltar soltado solto
suspender suspendido suspenso
Uma	 crença	 muito	 difundida	 é	 a	 de	 que,	 diante	 de	 duas	 formas
linguísticas	 com	 o	 mesmo	 significado,	 aquela	 menos	 regular,	 mais
distante	dos	usos	espontâneos,	é	a	mais	correta	ou	mais	sofisticada.	Essa
crença	é	responsável,	como	já	vimos,	por	muitos	casos	de	hipercorreção
que	acabam	levando	a	pessoa	a	cometer	um	erro.
Muita	gente	acha	que	as	 formas	regulares	dos	verbos	acima	devem	ser
evitadas	 —	 no	 lugar	 delas	 é	 preciso	 empregar	 as	 formas	 irregulares.
Alguém	certa	vez	quis	me	corrigir	quando	eu	disse	que	 já	tinha	pagado
uma	conta:	“Não	é	pagado,	é	pago!”.
Observe	que	a	maioria	dos	particípios	irregulares	dos	verbos	acima	são
empregados	 unicamente	 como	 adjetivos:	 ninguém	 diria,	 por	 exemplo,
“ele	 já	 tinha	 limpo	 o	 chão	 depois	 da	 festa”,	 mas	 limpado.	 Com	 outros
verbos,	porém,	muito	frequentes,	a	hipercorreção	leva	algumas	pessoas
a	empregar	quase	unicamente	esses	particípios	irregulares:	tinha	pago	a
conta,	 tinham	 aceito	 o	 convite,	 teriam	 entregue	 o	 relatório,	 se	 tivesse
salvo	o	arquivo…	Esses	usos	já	estão	consagrados,	não	há	nada	de	errado
com	 eles.	 O	 problema	 é	 acreditar,	 sem	 razão,	 que	 somente	 eles	 estão
corretos	—	 o	 que	 não	 é	 verdade.	 É	 perfeitamente	 legítimo,	 aceitável	 e
conforme	 à	 gramática	 da	 língua	 dizer	 tinha	 pagado	 a	 conta,	 tinham
aceitado	 o	 convite,	 teriam	 entregado	 o	 relatório,	 se	 tivesse	 salvado	 o
arquivo…	Não	tem	por	que	torcer	o	nariz	para	eles!
Ainda	 sobre	 a	 combinação	 de	 particípio	 passado	 irregular	 com
hipercorreção,	cabe	 falar	de	algumas	 inovações	que	surgiram	há	pouco
tempo	e,	por	isso,	sofrem	a	condenação	unânime	da	maioria	dos	falantes
mais	letrados.
Por	impulso	de	um	fenômeno	chamado	economia	linguística,	os	falantes
tendem	a	regularizar	os	paradigmas	 linguísticos,	eliminando	as	 formas
irregulares	 e	 reconduzindo-as	 às	 formas	 analógicas,	 mais	 fáceis	 de
armazenar	na	memória.	 Incontáveis	particípios	 irregulares	do	 latim	se
transformaram	em	particípios	regulares	em	português:	cultu-	>	colhido;
surtu-	>	surgido;	offertu-	>	oferecido	etc.
No	 entanto,	 uma	 das	 principais	 características	 da	 hipercorreção	 é
precisamente	exagerar	na	formação	irregular	de	elementos	linguísticos,
movimento	 que	 vai	 na	 contramão	 da	 tendência,	 mais	 natural,	 de
regularização.
Assim	como,	não	faz	muito	tempo,	surgiu	o	particípio	passado	irregular
pego	 para	 o	 verbo	 pegar	 (e	 que	 era	 censurado	 como	 “erro”	 pelos
gramáticos	 e	 dicionaristas	 até	 a	 década	 de	 1950	 e	 hoje	 é	 aceito
alegremente	por	todo	mundo),	atualmente	é	comum	ouvirmos	as	formas
trago	e	chego	como	particípios	 irregulares	dos	verbos	trazer	e	chegar.
Se	tais	formas	vencerão	a	barreira	social	e	se	 instalarão	nas	variedades
urbanas	de	prestígio	—	tal	como	aconteceu	com	pego	—	é	algo	que	só	o
tempo	 dirá.	 Por	 ora,	 os	 falantes	 mais	 letrados	 parecem	 rejeitar	 esses
particípios	 irregulares,	 e	 a	 pessoa	 que	 os	 emprega	 pode	 sofrer	 pesada
recriminação.	 As	 únicas	 formas	 aceitas	 são	 trazido	 e	 chegado,
perfeitamente	regulares.
8.	“O	MESMO”	COMO	PRONOME
Poucos	 fenômenos	 de	 hipercorreção	 caracterizam	 tão	 bem	 a
insegurança	linguística	e	o	domínio	insuficiente	da	escrita	formal	do	que
o	 uso	 pronominal	 de	 o	 mesmo	 (e	 flexões).	 Em	 praticamente	 todos	 os
casos	 em	 que	 aparece	 é	 possível	 não	 empregar	 pronome	 algum	 ou
empregar	o	pronome	ele	(e	flexões).
Justamente	por	nunca	ocorrer	espontaneamente	na	língua	falada	é	que	o
mesmo	 se	 tornou	 (junto	 com	 o	 qual,	 que	 vamos	 ver	 adiante)	 esse
sintoma	tão	eloquente	da	hipercorreção	e	da	insegurança	linguística.	E,
como	 sempre,	 por	 ter	 essa	 origem	 é	 que	 seu	 uso	 ocorre	 em	 textos
truncados,	francamente	mal	escritos,	confusos.	Observe:
	Na	noite	de	ontem,	29,	quarta-feira,	por	volta	das	21h15min	a	equipe	Polícia
Militar	 estava	 em	 patrulhamento	 quando	 avistou	 um	 homem	 em	 atitude
suspeita;	foi	dado	voz	de	abordagem	para	o	cidadão	e	o	mesmo	se	recusou	a
colocar	a	mão	na	cabeça,	 vindo	a	dizer	que	não	aceitaria	a	abordagem	da
equipe	 policial.	 Ao	 ser	 indagado	 sobre	 a	 tornozeleira,	 o	mesmo	 disse	 que
não	 sabia	 do	 que	 era	 e	 que	 era	 para	 equipe	 procurar	 no	 sistema	 quais
seriam	 os	 seus	 antecedentes;	 disse	 ainda	 que	 estava	 fumando	 e	 que	 não
largaria	o	cigarro	por	causa	de	uma	“abordagem	de	merda”	e	que	a	equipe
não	poderia	 realizar	 abordagem	nele	 porque	 o	mesmo	não	 tinha	 nada	 de
errado,	e	que	já	pagou	tudo	que	“devia”.	Após	algumas	tentativas	o	mesmo
disse	o	nome,	foi	solicitado	apoio,	onde	o	indivíduo	recebeu	voz	de	prisão.
Ele	se	recusou	e	entrou	na	residência	e	dizendo	que	não	sairia.	Na	residência
se	 encontrava	 sua	 mãe,	 onde	 relatou	 que	 o	 filho	 estava	 dando	 muito
trabalho	 e	 queera	 pra	 equipe	 levar	 o	 mesmo	 preso;	 foi	 necessário	 a
utilização	do	uso	da	força	para	contê-lo,	no	momento	em	que	a	equipe	foi
colocá-lo	no	camburão	o	mesmo	se	recusou	a	entrar,	voltando	a	desacatar
os	 policiais;	 após	 alguns	 minutos	 resistindo	 a	 equipe	 conseguiu	 conter	 o
indivíduo;	o	mesmo	foi	encaminhando	para	a	sede	da	2ª	Cia	para	a	lavratura
do	presente	boletim,	posteriormente	ao	Hospital	Santa	Casa	para	realização
do	laudo	de	lesão	e	após	para	14ª	DRP	para	os	procedimentos	cabíveis.
O	texto,	 literalmente,	fala	por	si	e	dispensa	comentários,	a	não	ser	o	de
que	 se	 trata	 de	 um	 perfeito	 desastre	 segundo	 qualquer	 critério	 usado
para	 avaliar	 uma	 redação	 minimamente	 aceitável.	 Como	 acontece
frequentemente,	o	uso	pronominal	de	o	mesmo	é	o	indício	mais	claro	de
um	fraco	domínio	da	escrita	formal:	no	mesmo	texto	aparecem	erros	de
concordância	(“foi	dado	voz	de	abordagem”	em	lugar	de	“foi	dada	voz	de
abordagem”,	 “foi	necessário	 a	 utilização”	 em	 lugar	 de	 “foi	 necessária	 a
utilização”),	 uso	 inadequado	 de	 onde	 (“foi	 solicitado	 apoio,	 onde	 o
indivíduo	 recebeu	 voz	 de	 prisão”),	 além	 de	 um	 pleonasmo	 como	 “foi
necessário	a	utilização	do	uso	da	força”.
Como	 eu	 já	 disse	 mais	 acima,	 escrever	 bem	 não	 é	 escrever	 complicado,
porque	sob	essa	complicação	o	que	se	esconde	quase	sempre	é	a	imperícia
na	 produção	 textual.	 Prova	 disso	 é	 que	 o	 uso	 pronominal	 de	 o	 mesmo
praticamente	 nunca	 ocorre	 nos	 textos	 dos	 nossos	 melhores	 escritores,
tradutores,	 jornalistas,	 ensaístas	 etc.	 É	 uma	 das	 mais	 enferrujadas	 das
medalhas	 enferrujadas	 resultantes	 da	 hipercorreção:	 brilho	 falso,	 falsa
elegância,	rebuscamento	oco	e	desnecessário.
Já	mencionei,	ao	tratar	do	verbo	encontrar-se,	do	aviso	que	aparece	em
tantos	elevadores	do	país:	“verifique	se	o	mesmo	encontra-se	parado	no
andar”.	Bastava	um	simples	ele:	 “Antes	de	entrar	no	elevador,	verifique
se	ele	está	parado	no	andar”.	Não	por	acaso,	um	aviso	emitido	por	uma
câmara	legislativa	em	juridiquês	típico.
Sendo	assim:
	Não	bata	o	portão:	o	mesmo	se	fecha	automaticamente.
	Não	bata	o	portão:	ele	se	fecha	automaticamente.
	Esta	praça	é	de	todos	nós:	ajude-nos	a	conservar	a	mesma	sempre	bonita.
	Esta	praça	é	de	todos	nós:	ajude-nos	a	conservá-la	sempre	bonita.
	Foi	encontrado	um	veículo	abandonado	à	margem	da	estrada.	Havia	drogas
no	interior	do	mesmo.
	Havia	drogas	em	seu	interior	/	no	interior	dele	/	no	interior.
9.	EQUÍVOCO	DE	ANÁLISE	DE	OS/AS	COMO	SUJEITO
Se	existe	uma	coisa	que	é	possível	afirmar	sobre	o	português	brasileiro
sem	medo	de	cometer	engano	é	que,	nessa	língua,	os	pronomes	oblíquos
o/a/os/as	 não	 fazem	 parte	 da	 gramática	 intuitiva	 dos	 falantes.	 O
emprego	 desses	 pronomes,	 muito	 raro,	 é	 fruto	 exclusivo	 da
escolarização.	Assim,	 os	 textos	 escritos	 formais	 (e	 a	 fala	 formal	 que	 se
inspira	neles)	 são	o	principal	 lugar	de	emprego	dos	oblíquos	o/a/os/as.
Não	 resta	 dúvida	 de	 que	 cabe,	 sim,	 à	 escola	 continuar	 ensinando	 esse
emprego,	uma	vez	que	esses	pronomes	contribuem	para	a	manutenção
da	coesão	textual	e	dão	ritmo	mais	fluente	ao	texto.
É	preciso,	no	entanto,	ter	cuidado	com	esses	pronomes:	justamente	por
não	 pertencerem	 à	 nossa	 intuição	 linguística,	 é	 comum	 ocorrerem
análises	sintáticas	equivocadas,	em	que	os/as,	que	desempenham	única
e	 exclusivamente	 a	 função	 de	 objeto	 direto,	 são	 interpretados	 como
sujeito	do	verbo	que	os	acompanha:
	Quem	anda	em	pecado	é	escravo,	pois	 teme	 todo	o	 tempo	que	alguém	o
descubra.	Eles	ficam	tensos,	e	se	você,	por	acaso,	dizer-lhes	que	os	viram	em
algum	 lugar,	 gaguejando,	 ou	 ficando	 ruborizados,	 inventam	 logo	 uma
justificativa.
	o	sujeito	é	você,	 portanto,	o	 correto	 seria	 “se	 você,	por	acaso,	 lhes	disser
que	os	viu…”.
	 Vamos	 ajudar	 o	 Zac	 Efron	 a	 beijar	 a	 sua	 namorada	 para	 disfarçar	 e	 se
esconder	do	paparazzo	que	os	perseguem.
	o	 sujeito	 é	paparazzo,	 singular,	 portanto	 o	 verbo	 também	 deve	 estar	 no
singular:	“o	paparazzo	que	os	persegue”.
	 Obviamente	 que	 estas	 fantasias,	 que	 inclusive	 já	 começaram	 a	 ser
reproduzidas,	 não	 serão	 da	 mesma	 forma	 que	 seriam	 anteriormente	 ao
incêndio	 que	 as	 destruíram,	 pois	 é	 humanamente	 impossível	 refazer	 um
trabalho	de	quase	um	ano	em	menos	de	trinta	dias.
	sujeito:	incêndio,	portanto:	“ao	incêndio	que	as	destruiu”.
	Muitas	destas	pessoas	nem	dão	continuidade	num	centro	de	prática	séria,	e
vão	 embora	 depois	 de	 uma,	 duas	 —	 algumas	 —	 visitas.	 Outras	 pessoas,
depois	 de	 algumas	 sessões	 de	 meditação,	 sentindo	 algum	 alívio	 do
problema	 imediato	 que	 as	 trouxeram	 até	 o	 zazen,	 já	 relaxam	 os	 seus
questionamentos.
	sujeito:	problema	imediato;	portanto:	“problema	imediato	que	as	trouxe”.
	 Nos	 últimos	 dias,	 em	 Adelaide	 (Austrália),	 foi	 anunciada	 uma	 nova
medicação	a	ser	comercializada	ainda	este	ano	com	um	fator	de	crescimento
natural,	 o	 GM-CSF,	 que	 protege	 embriões	 artificialmente	 implantados	 no
útero	materno	e	os	tornam	mais	resistentes.
	 sujeito:	 um	 fator	 de	 crescimento	 natural;	 portanto:	 “e	 os	 torna	 mais
resistentes”.
Desse	modo,	sempre	que	você	for	usar	os	pronomes	os/as	cuide	para	que
o	 verbo	 que	 vem	depois	 deles	 esteja	 em	 concordância	 com	o	 sujeito,	 e
não	com	esses	oblíquos:
10.	VOSSO
Sabemos	que	o	pronome	vós	não	existe	praticamente	mais	em	nenhum
lugar	do	mundo	onde	se	fala	português,	seja	na	Europa,	na	América,	na
África	 ou	 na	 Ásia.	 Em	 Portugal,	 é	 empregado	 numa	 pequena	 região	 e,
mesmo	 assim,	 censurado	 pela	 norma-padrão	 do	 português	 europeu.
Junto	 com	 o	 sujeito	 vós,	 também	 se	 extinguiram	 o	 clítico	 vos,	 o
complemento	 oblíquo	convosco	 e	 o	 possessivo	vosso	 (e	 flexões).	 Essas
formas	extintas	só	estão	preservadas	em	textos	parados	no	tempo	como
orações	 tradicionais,	hinos	 religiosos	ou	cívicos,	 traduções	clássicas	da
Bíblia	etc.
Não	há	motivo	nenhum,	portanto,	para	que	as	pessoas	usem	o	possessivo
vosso	hoje,	no	Brasil,	em	pleno	século	21.	Mesmo	quando	alguém	—	por
pura	 afetação	 ou	 por	 rigidez	 de	 protocolo	 —	 emprega	 as	 formas	 de
tratamento	 do	 tipo	Vossa	 Excelência,	 Vossa	 Eminência,	 Vossa	 Senhoria
etc.,	 o	 possessivo	 referente	 a	 tais	 formas	 é	 seu	 (e	 flexões):	 “Vossa
Excelência	pode	ocupar	o	seu	lugar	à	mesa,	por	favor”.
Quando	se	trata	de	você(s)	ou	o	senhor/a	senhora	(e	plurais),	também	o
possessivo	adequado	é	seu/sua/seus/suas	e	não	vosso.
11.	O	QUAL
Ao	lado	do	uso	de	o	mesmo	como	pronome,	um	dos	mais	nítidos	índices
de	insegurança	linguística	e,	por	conseguinte,	sintoma	de	hipercorreção,
é	o	emprego	do	pronome	relativo	o	qual	(e	flexões).
Existe,	 na	 nossa	 pedagogia	 de	 língua,	 uma	 série	 de	 prescrições	 que	 se
cristalizaram	 sem	 nenhum	 motivo	 que	 as	 sustente.	 Uma	 dessas	 é	 a
mania	que	muitas	 e	muitos	docentes	 têm	de	dizer	 a	 seus	 alunos	que	 é
preciso	 evitar	 a	 palavra	 que,	 sem,	 no	 entanto,	 oferecer	 alternativas
adequadas	para	evitar	o	que.	A	única	coisa	que	se	costuma	dizer	é	que,
no	 lugar	do	que,	 é	possível	usar	o	qual.	O	 resultado	 disso	 é	 que,	 junto
com	as	demais	marcas	de	hipercorreção,	esse	pronome	relativo	aparece
repetidas	vezes	num	mesmo	texto	e,	quase	sempre,	de	modo	errado.
O	 pronome	 o	 qual	 pode	 ser	 empregado	 quando	 o	 verbo	 da	 oração
adjetiva	 é	 transitivo	 indireto	 e	 seu	 complemento	 é	 recuperado	 pelo
pronome	relativo,	combinado	com	a	preposição	regida	pelo	verbo:
●	A	China	é	um	país	com	o	qual	o	Brasil	mantém	um	intenso	comércio.
●	A	ponte	pela	qual	passamos	ontem	foi	levada	pela	enxurrada.
●	O	telefone	celular	hoje	em	dia	é	um	apetrecho	sem	o	qual	muita	gente	não
consegue	viver.
●	O	avião	no	qual	viajamos	era	novo	em	folha.
Quando	 a	 preposição	 é	monossilábica,	 também	 é	 possível	 empregar	 o
relativo	que:
●	A	China	é	um	país	com	que	o	Brasil	mantém	um	intenso	comércio.
●	A	ponte	por	que	passamos	ontem	foi	levada	pela	enxurrada.
●	O	avião	em	que	viajamos	era	novoem	folha.
Esse	 emprego	 de	 PREPOSIÇÃO	 +	 QUE,	 no	 entanto,	 é	 característico	 de	 um
estilo	 mais	 caprichado,	 sobretudo	 literário:	 o	 mais	 comum	 é	 mesmo
PREPOSIÇÃO	+	O	QUAL/A	QUAL/OS	QUAIS/AS	QUAIS.
Sendo	assim,	é	preciso	abandonar	a	prescrição	 incompleta	de	“evitar	o
que”	e	apresentar	aos	alunos	opções	realmente	válidas	para	a	construção
de	seus	 textos.	A	 ideia	de	substituir	 todo	e	qualquer	que	por	o	qual	 só
gera	resultados	como	os	seguintes:
	É	estranho	sentir	saudade	de	algo	o	qual	mal	vivi	ou	evitava	viver.
	Eu	aluguei	um	imóvel	o	qual	fui	morar	com	meus	pais	já	idosos.
	Enfarto:	O	lado	o	qual	muitos	desconhecem	ou	fingem	não	existir	consigo.
	Kleberson	retorna	ao	Atlético-PR,	clube	o	qual	o	revelou	para	o	futebol
	Chegamos	a	um	ponto	o	qual	eu	nunca	imaginei	chegar
	Um	fato	o	qual	não	posso	deixar	de	registrar!
	Caso	que	chocou	o	País,	o	qual	uma	criança	foi	arremessada	pela	janela	de
seu	quarto,	aparentemente	pelos	pais,	e	morreu	ao	atingir	o	solo.
	A	 empresa	o	qual	 você	 está	 conhece	bem	o	mercado	e	 as	 estratégias	 dos
concorrentes?
	O	trabalho	se	fez	necessário,	pois	sem	o	qual	não	havia	como	chegar	até	a
escola.
Em	 todos	 os	 exemplos	 acima,	 o	 pronome	 o	 qual	 está	 empregado	 de
forma	 completamente	 equivocada.	O	 que	mais	 surpreende	 é	 a	 falta	 de
percepção	das	pessoas	de	que	o	qual	é	variável	em	gênero	e	em	número:
muitos	empregam	a	forma	masculina	singular	para	qualquer	referente:
●	a	empresa	o	qual	você	está	 	a	empresa	na	qual	você	está
●	uma	cidade	o	qual	muitos	admiram	 	uma	cidade	que	muitos	admiram
●	lugares	o	qual	nunca	estive	 	lugares	nos	quais	nunca	estive
●	TV	para	o	qual	trabalha	 	TV	para	a	qual	trabalha
Outro	emprego	também	equivocado	é	o	de	o	qual	como	sujeito,	quando
não	há	nenhuma	ambiguidade	presente:
	Kleberson	retorna	ao	Atlético-PR,	clube	o	qual	o	revelou
	clube	que	o	revelou
De	igual	modo,	o	emprego	desnecessário	de	o	qual	como	objeto	direto:
●	saudade	de	algo	o	qual	mal	vivi	 	saudade	de	algo	que	mal	vivi
●	 Enfarto:	 O	 lado	 o	 qual	 muitos	 desconhecem	 	 o	 lado	 que	 muitos
desconhecem
●	Um	 fato	o	 qual	 não	 posso	 deixar	 de	 registrar	 	um	 fato	 que	 não	 posso
deixar	de	registrar
E,	 por	 fim,	 os	 casos	 mais	 frequentes:	 o	 emprego	 de	 o	 qual	 sem	 a
preposição	regida	pelo	verbo	ou	pelo	nome	que	o	relativo	retoma:
●	aluguei	um	imóvel	o	qual	fui	morar	 	aluguei	um	imóvel	no	qual	fui	morar
●	Chegamos	a	um	ponto	o	qual	eu	nunca	imaginei	chegar	 	um	ponto	ao	qual
nunca	imaginei	chegar
●	Caso	que	chocou	o	País,	o	qual	uma	criança	foi	arremessada	pela	janela	de
seu	quarto	 	caso	no	qual/em	que	uma	criança	foi	arremessada
Ocorrem	 também	 situações	 em	 que	 o	 emprego	 de	 o	 qual	 se	 faz	 do
mesmo	 modo	 que	 vimos	 acima	 com	 onde,	 ou	 seja,	 como	 um
reorganizador	 do	 discurso,	 um	 marcador	 conversacional,	 e	 não	 como
um	pronome	de	fato:
●	Cobrança	de	 serviço	o	qual	 foi	 dito	 que	 não	 seria	 cobrado	 	 cobrança	 de
serviço	que	disseram	que	não	seria	cobrado
●	O	trabalho	se	fez	necessário,	pois	sem	o	qual	não	havia	como	chegar	até	a
escola	 	pois	sem	ele	não	havia	como	chegar	até	a	escola.
Um	pouco	de	análise	gramatical	não	faz	mal	a	ninguém,	pelo	contrário:
Limpeza	é	item	com	o	qual	o	consumidor	mais	se	importa
	que	termo	da	sentença	o	qual	retoma?
R.:	Item.
	por	que	se	empregou	o	qual	no	masculino	nessa	sentença?
R.:	Porque	ele	retoma	item,	que	é	masculino	singular.
	por	que	antes	do	pronome	aparece	com?
R.:	 por	 causa	 do	 verbo	 importar-se:	 quem	 se	 importa,	 se	 importa	 com
alguma	coisa.
	se	no	lugar	de	item	tivéssemos	coisa,	como	ficaria	a	sentença?
R.:	Limpeza	é	coisa	com	a	qual	consumidor	mais	se	importa.
As	 gramáticas	 nos	 ensinam	 que	 é	 preciso	 usar	 o	 qual	 quando,	 numa
frase,	 existirem	 dois	 elementos	 que	 podem	 ser	 recuperados	 pelo
pronome	relativo;	para	evitar	ambiguidade,	usa-se	o	qual	para	retomar	o
que	estiver	mais	próximo:
	O	principal	adversário	do	prefeito,	o	qual	esteve	hoje	em	nosso	estúdio,	não
aceitou	nosso	convite	para	um	debate.
	Para	 deixar	 claro	 que	 quem	 esteve	 no	 estúdio	 foi	 o	 prefeito,	 e	 não	 seu
adversário,	usa-se	o	qual.
Casos	assim,	no	entanto,	são	extremamente	raros,	e	o	mais	conveniente,
sempre,	é	procurar	escrever	de	forma	a	evitar	possíveis	ambiguidades	de
interpretação.	 Desse	 modo,	 vamos	 reservar	 o	 qual	 para	 os	 usos
preposicionados	que	vimos	acima.
12.	NUM	/	NUMA	/	NUNS	/	NUMAS
Por	algum	motivo	inexplicado	(mais	uma	prescrição	da	escola?),	muitas
pessoas	 recentemente	 têm	evitado	 escrever	num,	numa	 etc.,	 alegando
que	 isso	 é	 “coisa	 da	 oralidade”.	 Está	 aqui	 em	 ação	 o	 princípio	 da
hipercorreção	 que	 apresentamos	 acima,	 agravado	 pelo	 mito	 de	 que	 é
possível	“evitar	marcas	da	oralidade	na	escrita”	—	se	evitarmos	todas	as
marcas	da	oralidade	na	escrita,	não	poderemos	escrever	mais	nada,	uma
vez	que	a	escrita	é	uma	forma	simbólica	de	representar…	a	oralidade!
Podemos	escrever	à	vontade	em	um,	em	uma	 etc.	 Só	não	devemos	alegar
que	 essas	 formas	 são	 mais	 “elegantes”	 ou	 mais	 “corretas”	 do	 que	 num,
numa	 etc.,	 que	 estão	 registradas	 na	 língua	 há	 mais	 de	 quinhentos	 anos,
usadas	em	toda	a	literatura	da	língua	desde	sempre!	Além	do	mais,	tem	uma
grande	incoerência	aí:	se	ninguém	escreve	em	ela,	em	o,	em	esse,	em	aquela
etc.,	por	que	dar	esse	tratamento	somente	ao	num?
13.	“CUJO	O”
Todas	as	pesquisas	 feitas	 sobre	o	pronome	cujo	 deixam	bem	claro	que
ele	 não	 faz	 parte	 da	 nossa	 intuição	 linguística,	 ou	 seja,	 seu	 uso	 é	 uma
regra	gramatical	que	não	pertence	à	nossa	 língua	materna.	Justamente
por	isso,	seu	emprego	é	considerado	difícil	por	muitas	pessoas.
Por	 causa	 dessa	 sua	 qualidade	 de	 “corpo	 estranho”	 na	 língua,	 cujo
frequentemente	 aparece	 em	 construções	 onde	 seu	 uso	 é	 totalmente
equivocado,	mesmo	quando	feito	por	pessoas	muito	letradas:
	 Inventário,	 cujo	 o	 filho	 não	 concorda	 com	 o	 que	 tem	 para	 receber	 por
direito.
Nesse	 exemplo	 temos	 uma	 construção	 perfeitamente	 agramatical,	 ou
seja,	inaceitável	para	a	intuição	linguística	do	falante	nativo	e,	também,
errada	do	ponto	de	vista	da	tradição	normativa.	Sabemos	que	cujo	é	um
relativo	 indicador	 de	 posse:	 na	 sentença	 acima,	 atribui-se	 um	 filho	 a
“inventário”,	 o	 que	 não	 faz	 nenhum	 sentido.	 Uma	 construção	 mais
adequada	seria	algo	como:	“Inventário	com	o	qual	um	filho	não	concorda
quanto	 ao	 que	 tem	 para	 receber	 por	 direito”.	 Outro	 erro	 presente	 no
exemplo	é	o	emprego	do	artigo	o	depois	do	relativo	cujo.	Mais	uma	vez,
temos	aqui	um	exemplo	extraído	da	linguagem	jurídica	na	qual,	na	ânsia
de	escrever	de	forma	rebuscada	e,	se	possível,	hermética	para	o	“leigo”,	o
que	mais	encontramos	é	hipercorreção.
O	 problema	 é	muito	 simples	 de	 enunciar:	nunca	 se	 usa	 artigo	 depois	 do
pronome	relativo	cujo	(e	flexões).
Portanto,	 nos	 exemplos	 abaixo	 (todos	 em	 juridiquês),	 o	 emprego	 do
artigo	é	um	erro:
	 Pode	 uma	 assembleia	 aprovar	 conta	 cujo	 o	 gasto	 de	 origem	 contraria	 a
Convenção?
	Certidões	relativas	às	empresas	falidas	ou	em	concordata	devem	ser	obtidas
junto	aos	Liquidantes	Judiciais,	cujo	o	endereço	é	Avenida	Nilo	Peçanha	n°
11,	3°	andar	-	Castelo,	Rio	de	Janeiro/	RJ.
	Dívida	cuja	a	existência	é	anterior	à	renovação	do	contrato.
	Através	do	presente,	ficam	notificados	os	senhores	advogados	e/ou	Rosálio
Leopoldo	de	Souza,	Valéria	da	Silva	Fidélis	 (Adv.	Reclamada),	das	DECISÕES
prolatadas	no	processo	Nº	0000576-	88.2010.7.22.0001,	cujos	os	resultados
e	 conclusões	 são	 os	 seguintes:	 RESULTADO:	 JULGADO	 PROCEDENTE	 O
PEDIDO
14.	MEDIANTE
O	 verbo	 latino	mediare	 (“mediar”)	 tinha	 como	 particípio	 presente,	 no
acusativo	 singular,	 a	 forma	mediantem	 que,	 com	 a	 perda	 do	 -m	 final,
resultou	na	palavra	mediante	do	português.
O	antigo	particípio	presente	se	gramaticalizou	na	preposição	mediante,
com	o	sentido	de	“por	meio	de”,	“graças	a”,	“através	de”,	“por	intermédio
de”	 etc.	No	 entanto,	 pelasemelhança	 com	diante,	muitas	pessoas	 vêm
empregando	mediante	 com	o	 sentido	de	 “diante	disso”,	 “frente	 a	 isso”
etc.	Não	existe	nenhum	parentesco	entre	diante	e	mediante.	 Por	 isso,
estão	errados	usos	como	os	que	aparecem	nos	seguintes	exemplos,	onde
o	correto	seria	diante	de,	devido	a,	por	isso…:
	Qual	o	nosso	futuro	mediante	isso?
	Através	de	busca	em	vários	sites	da	internet,	encontramos	apenas	nomes	de
escolas	e	professores	que	atuam	nesta	área.	Mediante	isso	agendamos	com
uma	professora	 do	Departamento	 de	 Letras	 da	Universidade	 de	 Caxias	 do
Sul	—	UCS	—	 que	 nos	 orientou	 e	 forneceu	material	 para	 darmos	 início	 à
pesquisa.
	O	estágio	supervisionado	tem	como	natureza	o	conhecimento	da	aplicação
dos	conhecimentos	teóricos	pelas	empresas.	Mediante	essas	características,
o	NEA	mantém	em	seu	acervo	materiais	que	são	pesquisados	pelos	alunos
dos	cursos	envolvidos.
15.	EMPREGO	INCORRETO	DA	ÊNCLISE
Uma	 das	 mais	 persistentes	 e	 renitentes	 irracionalidades	 da	 tradição
gramatical	 brasileira	 é	 a	 condenação	 daquela	 que	 é,	 simplesmente,	 a
nossa	 regra	 única	 de	 colocação	 pronominal:	 a	 próclise	 ao	 verbo
principal,	sobretudo	em	início	de	frase.	Essa	perseguição	descabida	—
e,	repito,	 irracional	—	só	 tem	como	resultado	 fazer	crescer	a	 já	grande
insegurança	 linguística	 de	 tantos	 brasileiros	 no	 trato	 com	 sua	 língua
materna,	sobretudo	em	situações	de	maior	formalidade	de	linguagem.
Aqui	 é	 onde	 vemos	 mais	 claramente	 em	 ação	 o	 princípio	 da
hipercorreção	que	leva	à	ideia	de	que	“se	é	assim	que	eu	falo,	então	deve
estar	errado”.	Ora,	se	a	próclise	—	o	pronome	antes	do	verbo	—	é	a	única
colocação	 pronominal	 intuitiva	 do	 brasileiro,	 quando	 ele	 tiver	 de
escrever	 um	 texto	 minimamente	 formal,	 vai	 recorrer	 quase
exclusivamente	 à	 ênclise	 (o	 pronome	 depois	 do	 verbo)	 —	 se	 ela	 é
contraintuitiva,	deve	ser,	por	essa	distorção	de	raciocínio,	a	mais	“certa”.
Disso	 resultam	 textos	 pouco	 fluentes,	 muitas	 vezes	 repletos	 de
problemas	 de	 toda	 ordem,	 mas	 com	 todos	 os	 pronomes	 oblíquos	 em
ênclise	 (quando	 não	 aparecem	 também	 as	 mesóclises,	 muito	 mais
estranhas	ainda	à	nossa	língua	materna).
A	ênclise	em	si	não	é	nenhum	problema.	O	problema	está,	como	sempre,
nos	usos	hipercorrigidos,	que	não	seguem	nem	a	gramática	intuitiva	do
PB	contemporâneo	nem	a	tradição	gramatical.	São	eles,	principalmente:
●	 A	 ênclise	 com	 verbos	 no	 futuro	 do	 presente	 e	 no	 condicional	 (futuro	 do
pretérito):	 Farei-te;	 daremos-lhe;	 poderia-se;	 convidará-me	 etc.	 A	 tradição
gramatical	 recomenda	 a	 mesóclise	 nesses	 casos	 (far-te-ei,	 dar-lhe-emos,
poder-se-ia,	 convidar-me-à	 etc.),	 mas	 todos	 sabemos	 que	 a	 mesóclise
simplesmente	não	existe	na	nossa	língua,	e	mesmo	os	manuais	de	redação
das	 grandes	 empresas	 jornalísticas	 proíbem	 o	 seu	 uso	 por	 parte	 dos
redatores	 da	 casa.	 Para	muita	 gente,	 a	mesóclise	 chega	 a	 ser	 ridícula	 e	 é
usada	para	obter	humor.	A	solução	é	explicitar	o	sujeito:	Eu	te	 farei	/	Nós
lhe	 daremos	 /	 Ele	 me	 convidará	 etc.	 Ou,	 de	 modo	 igualmente	 válido,
simplesmente	 iniciar	a	sentença	com	o	clítico:	Te	farei	/	Lhe	daremos	/	Se
poderia;	Me	convidará.	Repetindo:	a	proibição	de	iniciar	sentença	com	um
pronome	 oblíquo	 é	 absolutamente	 irracional	 e	 não	 tem	 apoio	 em
absolutamente	 nenhum	 argumento	 de	 ordem	 fonética,	 morfológica,
sintática	 etc.	 E	 nossa	 melhor	 literatura,	 de	 cem	 anos	 para	 cá,	 já	 vem
desobedecendo	alegremente	a	regra	irracional.
●	A	ênclise	com	particípio	passado:	tinha	permitido-lhe,	havia	convidado-me,
tínhamos	 encontrado-a	 etc.	 A	 tradição	 gramatical	 recomenda	 o	 oblíquo
antes	do	verbo	auxiliar	(Pedro	lhe	tinha	permitido	usar	o	carro;	Ela	me	havia
convidado;	Nós	a	tínhamos	encontrado	etc.).	Mas,	seguindo	a	regra	única	já
citada,	 o	 clítico	 pode	 vir	 tranquilamente	 interposto	 entre	 o	 auxiliar	 e	 o
particípio	 passado:	 Pedro	 tinha	 lhe	 permitido	 usar	 o	 carro	 etc.	 Essa
colocação	também	já	está	consagrada	na	escrita	formal	brasileira	há	muito
tempo.	 Até	 uns	 cinquenta	 anos	 atrás,	 era	 costume	 usar	 um	 hífen:	 Pedro
tinha-lhe	permitido	usar	o	carro.	Mas	isso	também	já	foi	abandonado.
São	portanto	erradas	as	construções	como	as	dos	exemplos	abaixos:
	Primeiro	recurso	conhecido	e	dado-lhe	provimento.
	Encontrarei-me	então	no	chão	á	procura	de	mim…
	Segundo	Mendes	declarou	à	 revista	Veja	 e	 confirmou	em	entrevistas,	 Lula
teria	ofertado-lhe	“blindagem”	na	Comissão	Parlamentar	Mista	de	Inquérito
(CPMI)	 que	 apura	 o	 escândalo	 Cachoeira-Demóstenes-Delta.	 O	 motivo	 da
proteção	 na	 CPMI	 teria	 sido	 o	 financiamento	 feito	 por	 Cachoeira	 de	 uma
viagem	 a	 Berlim	 feita	 por	 Mendes	 em	 companhia	 de	 Demóstenes.	 […]	 O
“Mensalão”,	 que	Mendes	 sustenta	 haver	 Lula	 pedido-lhe	 para	 adiar,	 já	 foi
objeto	de	sessões	administrativas	(com	participação	de	Mendes),	quando	se
acertou	até	o	tempo	para	manifestação	das	partes.
Me	 parece	 que	 já	 passou	 da	 hora	 de	 nosso	 ensino	 de	 língua	 materna
abandonar	 esses	medos	 infundados	 de	 errar	 no	 que	 não	 está	 errado	 e
assumir	 de	 vez	 o	 português	 brasileiro	 culto	 contemporâneo	 como	 seu
verdadeiro	objeto	de	trabalho!	Próclise	para	todos	em	todos	os	lugares!
16.	CONFUSÃO	ENTRE	VERBO	CONJUGADO	E	INFINITIVO
VERBAL
Certa	vez,	recebi	uma	comovente	mensagem	de	um	“jovem	estudante	de
Letras”	 do	 estado	 do	 Tocantins.	 Ao	 falar	 de	 como	 a	 ciência	 linguística
tinha	mudado	sua	vida,	ele	escreveu	frases	como	as	seguintes:	“eu	nunca
me	sentir	à	vontade	e	seguro	para	 falar”;	 “apesar	de	gostar	muito	de	 lê”;
“quando	 terminei	 de	 lê”;	 “infelizmente,	 perdir	meu	 precioso	 tempo”.	 Na
mesma	época,	fui	convidado	a	dar	uma	palestra	numa	cidade	do	interior
da	 Bahia.	 A	 pessoa	 que	 me	 convidava	 escreveu:	 “você	 estar	 livre	 para
discorrer	o	tema”.	Mais	recentemente,	numa	rede	social,	encontrei	duas
postagens	com	os	seguintes	dizeres:	“Pode	não	dá	certo,	mas	você	só	vai
saber	 se	 arriscar”	 e	 “Você	 acha	 ela	 bonita?	 Então	 click	 no	 link	 para	 vê
como	ela	era	antes”.
A	essa	altura,	você	 já	percebeu	(espero)	a	questão	que	vou	tratar	aqui	e
que	 aparece	 já	 no	 título	 da	 seção.	 Vem	 ocorrendo	 uma	 confusão	 por
parte	de	muitas	pessoas	no	momento	de	escrever	verbos	no	infinitivo	e
verbos	conjugados.	Como	tudo	o	que	acontece	na	língua,	essa	confusão
não	 é	 obra	 do	 acaso.	 Afinal,	 se	 tantas	 pessoas	 “erram”	 de	 maneira
idêntica,	tem	que	haver	uma	explicação	lógica	para	o	“erro”	—	e,	de	fato,
tudo	o	que	se	chama	de	“erro”	em	língua	tem	uma	razão	de	ser,	tem	uma
explicação.
Para	 começar,	 é	 preciso	 ter	 consciência	 de	 que	 não	 é	 todo	 e	 qualquer
verbo	que	se	deixa	apanhar	nessa	rede.	Os	poucos	exemplos	dados	acima
já	nos	permitem	tirar	pelo	menos	uma	conclusão:	o	fato	ocorre	quando	o
verbo	 conjugado	 tem	 uma	 forma	 que,	 na	 pronúncia,	 é	 idêntica	 à	 do
infinitivo.	 Esse	 caso	 se	 resume	 a	 poucos	 verbos:	 crer/crê;	 dar/dá;
estar/está;	ler/lê;	ver/vê.	Poucos,	sim,	mas	com	uma	altíssima	frequência
de	 uso.	 Esses	 verbos	 estão	 conjugados	 no	 presente,	 mas	 o	 mesmo
fenômeno	 ocorre	 com	 verbos	 da	 3a	 conjugação	 no	 pretérito	 perfeito:
ouvir/ouvi;	sentir/senti;	corrigir/corrigi	etc.
Ao	responder	ao	convite	para	a	palestra,	chamei	a	atenção	da	pessoa,	que
trabalhava	na	 secretaria	de	 educação	do	município,	 para	o	uso	que	 ela
fazia	 da	 forma	 estar	 no	 lugar	 de	 está.	 Curiosamente,	 na	 mensagem
seguinte,	 ela	 agradeceu	 minha	 observação:	 “Obrigado,	 professor,	 já
corrigir”.	O	que	para	muitas	pessoas	seria	motivo	para	fazer	uma	piada	e
arrancar	risos	da	plateia,	para	mim	era	um	dado	de	pesquisa	importante,
a	confirmar	minhas	hipóteses.
No	 caso	 do	 estudante	 de	 Tocantins,	 a	 ocorrência	 de	 perdir	 em	 vez	 de
perdi	(infinitivo:	perder)	revela	também	um	fenômeno	de	hipercorreção,
ou	 seja,	 a	 tentativa	 de	 acertar	 sempre,	 exagerando	 uma	 regra
normatizada.	 As	 pessoasque	 confundem	 os	 infinitivos	 com	 as	 formas
conjugadas	 provavelmente	 já	 eliminaram	 de	 vez	 em	 sua	 variedade
linguística	 o	 som	 [r]	 do	 final	 das	 palavras	 e,	 principalmente,	 dos
infinitivos	verbais.	Por	isso,	no	momento	de	escrever,	e	sabendo	que	em
algumas	 ocasiões	 deve	 existir	 um	 r	 no	 final	 da	 palavra,	 elas	 escrevem
essa	letra	sem	ter	muita	certeza	de	onde	ela	deveria	aparecer.
Como	 tudo	o	que	acontece	na	 língua,	 estamos	aqui	na	presença	de	um
fenômeno	híbrido,	no	qual	interferem	traços	da	variedade	linguística	do
falante	 (a	 eliminação	 do	 [r]	 do	 final	 das	 palavras	 na	 pronúncia)	 e	 o
sentimento	de	insegurança	linguística	que	leva	à	hipercorreção	(escrita
do	r	onde	ele	não	deveria	aparecer	pelas	regras	da	ortografia	oficial).
Diversos	 estudiosos	 da	 fonologia,	 a	 ciência	 dos	 sons	 das	 línguas,
apontam	 para	 a	 existência,	 nas	 diferentes	 línguas	 do	 mundo,	 de	 uma
tendência	 à	 “sílaba	 ideal”	—	 um	 conjunto	 de	 sons	 que	 segue	 a	 ordem
CVCV,	isto	é,	consoante-vogal-consoante-vogal,	como	em	cavalo.	Por	que
essa	 sílaba	 é	 ideal?	 Porque,	 do	 ponto	 de	 vista	 articulatório,	 é	 melhor
iniciar	 uma	 palavra	 com	 uma	 explosão/oclusão	 e	 terminá-la	 com	 uma
vogal,	 que	 é	 uma	 passagem	 livre	 do	 ar	 pela	 garganta	 e	 pela	 boca.
Analisando	 centenas	 de	 línguas	 diferentes,	 os	 pesquisadores	 têm
demonstrado	 que	 essa	 tendência	 se	 verifica	 na	 história	 das	 línguas.
Algumas	 já	atingiram	esse	 ideal,	como	o	 japonês,	o	malaio,	o	tupi	entre
várias	 outras,	 que	 não	 admitem	 encontros	 consonantais	 nem	 palavras
terminadas	 em	 consoantes.	 Veja	 que	 a	 palavra	 cruz	 foi	 transformada
pelos	 falantes	 de	 tupi	 em	 curuçá,	 assim	 como	 Brasil	 em	 japonês	 é
Burajiru.
Em	 muitas	 línguas	 também,	 o	 [r]	 pode	 se	 reduzir	 a	 uma	 simples
aspiração	 (um	 “sopro”)	 e,	mais	 tarde,	 desaparecer.	 No	 inglês	 britânico
culto,	 por	 exemplo,	 o	 [r]	 em	 final	 de	 sílaba	 ou	 de	 palavra	 não	 é
pronunciado,	 e	 o	 mesmo	 acontece	 em	 alemão.	 No	 francês,	 o	 [r]	 dos
infinitivos	 da	 conjugação	 mais	 comum,	 a	 que	 termina	 em	 -er,	 não	 é
pronunciado,	 de	 modo	 que	 parler	 (“falar”)	 se	 pronuncia	 parlê.	 No
catalão,	todo	[r]	em	final	de	palavra	é	omitido.	Em	muitas	variedades	do
espanhol	 falado	 na	 América	 o	 [r]	 final	 dos	 infinitivos	 também	 cai,	 e	 o
resultado	 são	 formas	 idênticas	 à	 do	 português	 brasileiro	 como	 amá,
cantá,	 esperá	 etc.	 Quando	 um	 mesmo	 fenômeno	 ocorre	 em	 muitas
línguas,	 é	 porque	 se	 trata	 de	 alguma	 tendência	 natural	 que	 nós,	 seres
humanos,	deixamos	agir	no	momento	de	falar.
Tudo	isso	explica	satisfatoriamente	a	confusão	que	já	aparece	em	textos
formais	entre	dá/dar,	está/estar,	corrigi/corrigir	etc.	Por	isso,	na	hora	de
escrever,	é	importante	estarmos	atentos	a	isso.	Como	já	vimos	em	alguns
casos	de	hipercorreção	por	aqui,	um	pouco	de	análise	linguística	não	faz
mal	a	ninguém.
Vamos	 observar,	 por	 exemplo,	 o	 refrão	da	 conhecida	 canção	 “Quem	 te
viu,	quem	te	vê”,	de	Chico	Buarque:
Hoje	o	samba	saiu	procurando	você,
quem	te	viu,	quem	te	vê,
quem	não	a	conhece	não	pode	mais	ver	pra	crer,
quem	jamais	a	esquece	não	pode	reconhecer.
Reflita	 e	 responda:	 por	 que	 no	 segundo	 verso	 aparece	 vê	 e	 no	 terceiro
aparece	ver?
Depois	de	verbos	auxiliares,	a	única	forma	possível	é	o	infinitivo,	escrito
portanto	com	r	no	final:
●	Olga	não	vê	a	dificuldade	que	vai	enfrentar
mas
●	Olga	não	quer	ver	a	dificuldade	que	vai	enfrentar
●	Olga	não	pode	ver	a	dificuldade	que	vai	enfrentar
●	Olga	não	consegue	ver	a	dificuldade	que	vai	enfrentar
●	Olga	não	parece	ver	a	dificuldade	que	vai	enfrentar
●	Olga	não	deve	ver	a	dificuldade	que	vai	enfrentar
●	Olga	não	sabe	ver	a	dificuldade	que	vai	enfrentar	etc.
17.	TINHA	FALADO	/	HAVIA	FALADO
Os	 dois	 verbos	 empregados	 em	 português	 como	 auxiliares	 para	 a
formação	 dos	 tempos	 compostos	 são	 ter	 e	 haver.	 O	 verbo	 haver,	 no
entanto,	 já	desapareceu	da	 fala	espontânea,	 tanto	como	auxliar	quanto
como	“existencial”,	substituído	por	ter.	Como	auxiliar,	ele	sobrevive,	na
escrita	 formal,	 em	 alguns	 poucos	 tempos	 compostos,	 especialmente	 o
chamado	 pretérito-mais-que-perfeito	 (havia	 falado,	 havíamos	 chegado
etc.).
É	 perfeitamente	 legítimo	 empregar	 o	 verbo	 haver	 como	 auxiliar	 na
formação	 dos	 tempos	 compostos.	 O	 que	 não	 é	 legítimo	 nem	 tem
justificativa	é	a	atitude,	assumida	recentemente	por	muitas	pessoas,	de
considerar	que	no	pretérito-mais-que-perfeito	composto	só	se	deve	usar
haver,	 como	 se	 formas	 do	 tipo	 tinha	 falado,	 tinha	 comprado,	 tinham
reagido	etc.	fossem	menos	“elegantes”	ou	mais	“coloquiais”.	Não	são:	elas
estão	 registradas	 há	 séculos	 na	 língua,	 e	 na	 literatura	moderna	 são	 de
longe	as	mais	empregadas.
Observe	que	 vai	 ser	difícil	 encontrar	quem	 fale	 ou	 escreva	 “hei	 viajado
muito	esse	ano”,	“eu	haveria	aceitado	o	convite”	ou	“às	dez	horas	vocês	já
haverão	 chegado	a	Brasília”.	O	uso	 auxiliar	de	haver	 vai	 se	 confinando
cada	vez	mais	 a	 alguns	poucos	 tempos	compostos.	Quem	preferir	usar
“havia	falado”,	fique	à	vontade,	mas	não	tente	convencer	ninguém	de	que
“tinha	falado”	deve	ser	evitado,	porque	não	deve.
18.	O	PORQUÊ
Uma	dificuldade	 comum	para	 quem	 escreve	—	 incluindo	profissionais
da	escrita	—	é	saber	distinguir	por	que,	por	quê,	porque	e	porquê.	A	dica
mais	 conhecida	 é	 de	 que,	 nas	 interrogações,	 se	 escreve	 por	 que,
separado,	enquanto	nas	respostas	se	usa	porque,	junto12.	Quando	o	que
é	a	última	palavra	da	frase,	ele	vem	acentuado:	“Ele	se	aborreceu	comigo
sem	me	explicar	por	quê”.
Por	 sua	 vez,	 a	 palavra	 porquê	 é	 um	 substantivo	 e	 sempre	 vem
acompanhada	 do	 artigo	 o:	 “Ele	 não	 quis	 me	 explicar	 o	 porquê	 de	 seu
aborrecimento	comigo”.	E	com	muita	frequência,	como	no	exemplo,	vem
seguido	da	preposição	de,	sozinha	ou	combinada	com	os	artigos	(do	/	da	/
dos	/	das).
Talvez	 por	 causa	 da	 dificuldade	 de	 distinguir	 entre	 por	 que	 e	 porque,
muitas	 pessoas	 vêm	 empregando,	 nas	 perguntas	 indiretas,	 a	 forma	 o
porquê,	quando	um	simples	por	que	bastaria:
	Gostaria	que	o	Banco	Itaú	me	esclarecesse	o	porquê	de	meu	CPF	constar	no
registro	do	SIS-Bacen
	 Gostaria	 que	 o	 Banco	 Itaú	 me	 esclarecesse	 por	 que	 meu	 CPF	 consta	 no
registro	do	SIS-Bacen.
	 Explique	 o	 porquê	 a	 Resistência	 Medicamentosa	 pode	 ser	 um	 processo
vantajoso.
	 Explique	 por	 que	 a	 Resistência	 Medicamentosa	 pode	 ser	 um	 processo
vantajoso.
[Para	 empregar	 “o	 porquê”	 teria	 sido	 necessário	 formular	 a	 frase	 assim:
“Explique	o	porquê	da	[ou	de	a]	Resistência	Medicamentosa	poder	 ser	um
processo	vantajoso”.	O	uso	de	por	que	simplifica	a	redação,	além	de	evitar
prováveis	erros.]
	Meu	 boleto	 veio	mais	 caro	 do	 que	 o	 anunciado	 no	 site	 da	 loja:	 pode	me
explicar	o	porquê?
	Meu	boleto	veio	mais	 caro	do	que	o	anunciado	no	site	 da	 loja:	 pode	me
explicar	por	quê?
	O	deputado	quis	saber	o	porquê	seu	voto	não	apareceu	no	painel	eletrônico.
	O	deputado	quis	saber	por	que	seu	voto	não	apareceu	no	painel	eletrônico.
[Aqui,	 novamente,	 teria	 sido	 necessário	 usar	 de	 e	 o	 verbo	 no	 infinitivo
passado:	O	deputado	quis	saber	o	porquê	de	seu	voto	não	ter	aparecido	no
painel	eletrônico.]
Em	perguntas	 indiretas,	portanto,	a	 forma	escrita	que	ocorre	é	sempre
por	que,	separado.	Se	for	a	última	palavra	da	frase,	por	quê.	O	uso	de	o
porquê	 torna	o	 texto	desnecessariamente	pesado,	 já	que	exigiria,	 como
vimos	 acima,	 o	 emprego	 da	 preposição	de	 e	 a	 reformulação	 do	 tempo
verbal	no	infinitivo.	Para	que	complicar?	Não	há	por	quê.
19.	USO	DA	PREPOSIÇÃO	SOBRE	À	MANEIRA	DO	INGLÊS
O	 predomínio	 praticamente	 absoluto	 do	 inglês	 como	 língua	 de
comunicação	 mundial	 —	 algo	 que	 algumas	 pessoas	 têm	 chamado	 de
imperialismo	 linguístico	 —	 tem,	 entre	 outras	 consequências,	 a
impregnação	de	construções	próprias	daquela	 língua	na	morfossintaxe
de	outras	línguas,	além,	é	claro,	da	adoçãode	incontáveis	palavras.
Recentemente,	 no	 Brasil,	 um	 dos	 resultados	 dessa	 “colonização”
gramatical	 é	 um	 uso	 da	 preposição	 sobre	 completamente	 estranho	 à
gramática	 do	 português.	 Trata-se,	 evidentemente,	 de	 uma	 tentativa
capenga	de	traduzir	frases	do	inglês	em	que	aparece	a	preposição	about.
Embora	 em	 muitas	 circunstâncias	 seja	 possível	 traduzir	 about	 por
sobre,	 existem	diversos	usos	muito	específicos	de	about	em	 inglês	que
não	correspondem	ao	nosso	sobre.
Em	 inglês,	 por	 exemplo,	 é	 absolutamente	 normal	 dizer:	 “Love	 is	 about
sharing	all	the	good	and	bad	moments	in	life”.	Uma	boa	tradução	para	isso
seria:	“Amar	é	compartilhar	todos	os	bons	e	maus	momentos	da	vida”.	Veja
que	nessa	 tradução	 simplesmente	não	 aparece	nada	no	 lugar	 do	about
inglês:	o	verbo	é	basta.	Uma	tradução	como	“Amar	é	sobre	compartilhar
todos	os	bons	e	maus	momentos	da	vida”	faz	um	uso	da	preposição	sobre
que	não	corresponde	a	nenhuma	das	possibilidades	autênticas	previstas
em	português.
Outro	erro	frequente	na	tradução	do	about	inglês	é	o	emprego	de	trata-
se	de.	Como	vimos	acima,	trata-se	de	é	impessoal,	não	admite	sujeito.	No
entanto,	 muita	 gente,	 ao	 querer	 traduzir	 about	 por	 trata-se	 de,	 acaba
caindo	 no	 erro	 de	 atribuir	 sujeito	 à	 locução	 do	 português.	 Algo	 como:
“Amar	trata-se	de	compartilhar	todos	os	bons	e	maus	momentos	da	vida”.
O	escritor	Sérgio	Rodrigues	censurou,	com	razão,	esse	uso	de	sobre	num
texto	intitulado:	“Ser	brasileiro	é	sobre	imitar	o	inglês”13.	Ele	analisa	esse
uso	 equivocado	 de	 sobre	 como	 reflexo	 na	 nossa	 baixa	 autoestima
cultural	 e,	 consequentemente,	 linguística.	 Essa	 interpretação	 do
fenômeno	vai	na	mesma	linha,	me	parece,	da	definição	que	venho	dando
aqui	de	hipercorreção:	o	desejo	de	parecer	mais	“sofisticado”	que	leva	ao
erro	puro	e	simples.
Em	muitas	ocasiões,	como	lembra	o	mesmo	Sérgio	Rodrigues,	é	possível
traduzir	“is	about”	 por	tem	a	 ver	 com	ou	ter	 relação	 com.	 Ele	 critica,
por	exemplo,	uma	pessoa	que	escreveu:	“Liberdade	não	 é	sobre	 transar
na	primeira	noite,	 e	 sim	sobre	não	querer	 transar	e	não	 transar”.	Muito
melhor	 teria	 sido	 escrever:	 “Liberdade	 não	 tem	 a	 ver	 com	 transar	 na
primeira	noite,	e	sim	com	não	querer	transar	e	não	transar”.
Hipercorreção	 com	 colonização	 linguística	 é	 um	 problema	 em	 dose
dupla	para	a	boa	produção	de	 textos	escritos	 formais.	Se	na	prática	da
tradução	 esse	 uso	 de	 sobre	 à	 inglesa	 é	 dispensável,	 porque	 em	 tudo
contrário	às	regras	da	língua,	ainda	pior	é	fazer	esse	uso	diretamente	em
português,	 como	 numa	 musiquinha	 bem	 autoajuda	 que	 andou
circulando	um	tempo	atrás:
Não	é	sobre	ter	todas	pessoas	do	mundo	pra	si
É	sobre	saber	que	em	algum	lugar	alguém	zela	por	ti
É	sobre	cantar	e	poder	escutar	mais	do	que	a	própria	voz
É	sobre	dançar	na	chuva	de	vida	que	cai	sobre	nós…
O	que	vai	na	contramão	da	gramática	do	português	são	esses	é	sobre	sem
sujeito.	 Aqui	 ficaria	mais	 adequada	 a	 locução	 trata-se	 de,	 porque	 ela,
sim,	como	vimos,	é	 impessoal:	 “Não	se	 trata	de	 ter	 todas	as	pessoas	do
mundo	para	si”.
Em	inglês	é	muito	comum	a	construção	“X	is	all	about”,	que	reforça	o	“X
is	 about”.	 Por	 exemplo,	 depois	 de	 explicar	 o	 que	 faz	 em	 seu	 trabalho,
uma	pessoa	pode	dizer:	 “That’s	what	my	 job	 is	 all	 about”.	Um	modo	de
traduzir	 isso	 seria:	 “É	 disso	 que	 consiste	 todo	 o	 meu	 trabalho”	 ou	 algo
semelhante.	 Nunca	 jamais:	 “Meu	 trabalho	 é	 sobre	 tudo	 isso”	 —	 menos
ainda:	“Meu	trabalho	trata-se	de	tudo	isso”.
Na	conclusão,	bem	irônica,	de	seu	texto,	Sérgio	Rodrigues	escreve:
Vai	 ver	 que	 o	 errado	 sou	 eu	 e	 que	 um	 dia	 teremos	 de	 traduzir	 para	 o	 “sobrismo”	 diversas	 frases
famosas	de	nossa	história:	“Um	país	é	sobre	homens	e	livros”	(Monteiro	Lobato);	“Governar	é	sobre
abrir	estradas”	(Washington	Luís);	“O	mundo	é	sobre	um	moinho”	(Cartola).	
Na	 história	 do	 português,	 foram	 adotadas	 algumas	 construções
sintáticas	 vindas	 de	 outras	 línguas,	 especialmente	 do	 francês	 e	 do
espanhol.	Mas	são	idiomas	próximos,	da	mesma	família,	de	maneira	que
essas	 adoções	 não	 constituíram	 um	 “corpo	 estranho”	 na	 gramática	 do
português.	O	mesmo	não	se	pode	dizer	desse	uso	de	sobre,	que	resulta,
na	 verdade,	 de	 tradução	 malfeita	 e,	 muito	 provavelmente,	 de	 uma
subserviência	ao	que	vem	do	centro	do	império.	Talvez	isso	garanta	que	a
hipótese	lançada	por	Sérgio	Rodrigues	não	se	confirme	e	que	o	modismo
passe	logo.
20.	O	QUÃO
Um	caso	parecido	com	o	uso	do	sobre	“à	inglesa”	e	também	de	o	porquê
que	já	vimos	é	o	da	presença	cada	vez	mais	frequente	em	textos	escritos
da	forma	o	quão.	Acredito	que	essa	reaparição	de	um	advérbio	que	tinha
desaparecido	 da	 prática	 escrita	 contemporânea	 também	 se	 deve	 a
traduções	apressadas	e	capengas	do	inglês,	neste	caso	do	advérbio	how.
Uma	 frase	 como	 “You	 don’t	 know	 how	 difficult	 my	 life	 is”	 seria	 bem
traduzida	por	“Você	não	sabe	o	quanto	é	difícil	a	minha	vida”	ou	“o	quanto
a	minha	vida	é	difícil”,	ainda	mais	natural.	Traduzir	por	“o	quão	difícil	é	a
minha	 vida”	 deixa	 um	 cheiro	 de	 mofo	 no	 ar,	 além	 de	 estar	 errado.	 E
assim	como	ocorre	frequentemente	com	os	casos	de	hipercorreção,	não
corresponde	 aos	 usos	 correntes,	 espontâneos,	 à	 fala	 autenticamente
brasileira,	mesmo	das	pessoas	ditas	“cultas”.	É	pouco	provável	que	numa
conversa	 entre	 essas	 pessoas,	 ainda	 que	 marcada	 por	 algum	 grau	 de
formalidade,	 apareça	 “o	 quão”.	 Já	 disse	 e	 repito:	 um	 texto	 escrito	 que
tenha	a	fluidez,	o	ritmo	e	a	naturalidade	da	fala	é	sempre	um	prazer	para
os	olhos	e	para	os	ouvidos,	se	lido	em	voz	alta14.
Da	 tradução	 ruim	 para	 a	 produção	 de	 textos	 diretamente	 mal
ajambrados	em	português	foi	um	pulo.	Seguem	alguns	exemplos:
	Eleições	nos	EUA:	O	quão	diferente	seria	um	segundo	mandato	de	Trump	(e
por	que	essa	perspectiva	assusta	tanto	seus	críticos)?
	Mr.	Perfect:	O	quão	perfeito	você	é?	[título	de	um	livro,	evidentemente	{mal}
traduzido!]
	O	quão	efetivos	são	os	mandatos	de	financiadores	para	o	acesso	aberto?
	Não	 importa	o	quão	bonita	 são	 as	 suas	 fotos	 ou	o	quão	 reais	 são	 as	 suas
citações,	algumas	pessoas	nunca	vão	apertar	o	botão	“CURTIR”	só	porque	é
você.
	O	quão	perigoso	é	o	coronavírus	comparado	a	outras	doenças?
Quais	são	os	problemas	com	esses	exemplos?
O	 primeiro	 deles	 é	 que,	 no	 uso	 tradicional	 de	 quão	 em	 português,
especialmente	em	interrogações,	não	se	emprega	o	artigo	o,	mas	apenas
quão	seguido	do	adjetivo:	“quão	diferente	seria	um	segundo	mandato?”,
“quão	 perfeito	 você	 é?”,	 “quão	 perigoso	 é	 o	 coronavírus?”.	 Outro	 erro
presente	num	dos	exemplos	é	o	modo	verbal:	“não	importa	quão	bonitas
sejam	as	suas	fotos	ou	quão	reais	sejam	as	suas	citações…”.
A	 forma	 o	 quão,	 com	 o	 artigo	 o,	 tem	 o	 valor	 de	 uma	 conjunção
integrante,	isto	é,	que	une	duas	orações:
A	 principal	 conjunção	 integrante	 é	 que	 e	 pode	 ser	 substituída	 por	 o
quão	se	o	objetivo	for	intensificar	o	adjetivo:
Para	 usar	 o	 quão,	 com	 o	 artigo,	 é	 necessário,	 portanto,	 haver	 duas
orações	que	precisam	ser	“integradas”.
O	 segundo	 problema	 é	 que,	 como	 já	 adiantei,	 esse	 uso	 de	 [o]	 quão	 +
adjetivo	 foi	 abandonado	 há	 bom	 tempo	 na	 escrita	 literária,	 ensaística
etc.	e	é	sentido	pelos	bons	estilistas	da	língua	como	“cafona”,	antiquado,
tanto	 quanto	 a	 mesóclise	 e	 palavras	 do	 tipo	 outrossim,	 destarte,
entrementes	etc.	A	construção	que	se	firmou	entre	nós	é	o	quanto	+	ser	+
adjetivo:	 “O	 quanto	 é	 perigoso	 o	 coronavírus	 se	 comparado	 a	 outras
doenças?”.	Também	é	possível	ocorrer	na	fórmula	o	quanto	+	sujeito	+
ser	+	adjetivo:	“O	quanto	o	coronavírus	é	perigoso	se	comparado	a	outras
doenças?”.	 Também	 como	 integrante:	 “Ele	 deixou	 claro	 o	 quanto	 ficou
decepcionado	 com	 o	 resultado	 do	 trabalho”.	 Leia	 em	 voz	 alta:	 não	 soa
mais	natural?
De	 novo,	 a	 pergunta:	 para	 que	 usar	 uma	 forma	 antiquada	 —	 e,	 para
piorar,	 de	maneira	 errada

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