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Trecho escolhido: Caio Prado Jr. - Formação do Brasil contemporâneo Millena Benicio Silva Brasil: país tropical e bonito por natureza. Essa descrição são dizeres do cantor e compositor carioca, Jorge Ben Jor, na música País Tropical; certamente é possível concordar com a canção de Jorge em relação à geografia física do território brasileiro, composta por impressionantes paisagens, como o litoral e as chapadas. Mas e quanto à geografia humana, isto é, os aspectos políticos, econômicos e sociais do Brasil? Para isso, não prendamo-nos mais na canção citada, mas sim busquemos entender e discutir as ideias daquele que é considerado um dos maiores intérpretes brasileiros do século XX, Caio Prado Jr. Em um artigo escrito em 2007 para a Revista Teoria e Debate, o professor Lincoln Secco afirma que Caio Prado Jr. é o marxista mais original do Brasil, pois seu método de análise buscava primeiro conhecer o objeto, no caso, nosso país, depois, importava descrever processos e especialmente ser fiel aos fatos. Fazendo jus à citação, é dessa forma que ele escreve Formação do Brasil contemporâneo, sua obra mais notável. Entende-se, a começar pelo seu título, que o propósito do autor é trazer uma análise, ou interpretação, de como se deu o processo de construção dos setores que compõem a conjuntura brasileira contemporânea – o Brasil de 1942 –, buscando referências nas estruturas históricas que foram impostas ou criadas desde a chegada dos portugueses na América. Na primeira nota de rodapé da introdução de Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Jr. conta da vez em que um professor estrangeiro disse-lhe o quanto invejava os historiadores brasileiros, o motivo era que eles podiam ainda vislumbrar muitos elementos do passado histórico no presente. Mas quais são esses elementos? Por que eles ainda continuam vivos? Respondendo a segunda pergunta, a resposta pode até parecer simples: porque não houve, de fato, uma ruptura ou uma quebra com as estruturas impostas, resultando assim em feridas coloniais que permanecem abertas até os dias atuais. Por quê “feridas coloniais''? Pertinente dizer que é aqui onde entra uma das ideias principais do livro, tendo como base o trecho a ser discutido: o Brasil hodierno continua sendo uma reprodução, salvo algumas transformações ocorridas no meio do processo, do antigo sistema colonial; nas palavras de Caio Prado Jr. (1989, p.6): “O Brasil contemporâneo se define assim: o passado colonial que se balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual.” Em relação à primeira questão [quais são esses elementos?], tomemos como foco na discussão a análise dos campos político, econômico e social do Brasil contemporâneo e seus processos históricos de formação. Caracterizando-se como um país de dimensões continentais, sabe-se que no Brasil há muita terra. Mas sabe-se também que há muita terra concentrada nas mãos de uma aristocracia rural que nunca deixou de existir. Posto isso, é possível ver este aspecto como uma herança – ou ferida colonial – na política administrativa, visto que desde o momento que os portugueses decidiram ocupar definitivamente a colônia do continente americano, a concentração de terras se fez presente no território dos tupiniquim, começando com as Capitanias Hereditárias, passando pelas sesmarias, chegando até a promulgação da Lei de Terras de 1850, pelo imperador Dom Pedro II, entre outros. Retomando então a ideia inicial, compreende-se que a concentração de terras do Brasil contemporâneo é consequência direta desses fatores do passado colonial e das políticas da fase imperial brasileira. É plausível falarmos do âmbito econômico neste momento, especialmente porque o que há para ser discutido relaciona-se com a questão agrária. Como foi dito anteriormente, o processo de ocupação e colonização do território foi iniciado com as Capitanias hereditárias, um sistema que concedia grandes extensões a um donatário, e que resultou na concentração da terra. Concomitantemente, outra característica do antigo sistema colonial era a monocultura de exportação, ou seja, o que era produzido na colônia tinha como destino o mercado externo. Dada essa definição, nota-se que o conceito não é tão estranho, basta ligar a televisão para ouvir a frase “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”, uma clara referência ao agronegócio, estrutura responsável por sustentar a atual monocultura de exportação, salvo algumas mudanças, a exemplo, a soja no lugar da cana-de-açúcar. Dito isso, conclui-se que há uma manutenção de elementos de caráter econômico no Brasil contemporâneo, sendo assim, “aquele passado que parece longínquo [...] ainda nos cerca de todos os lados.” (PRADO JR., 1989, p.9). Quanto ao âmbito social, é possível observar heranças de elementos que foram característicos do sistema colonial que ainda estão presentes no dia a dia dos brasileiros, mas que na contemporaneidade ganharam uma cara nova, isto é, eles têm se manifestado de outras formas. Para exemplificar essa afirmação, tomemos como exemplo a escravidão negra e o racismo. A base da mão de obra utilizada, durante os quase 300 anos de colônia, foi a de africanos inseridos em um regime de trabalho escravo, mas a escravidão não foi apenas um evento econômico, na verdade, foi um evento social, cultural e político também, pois entende-se que a sociedade colonial foi uma sociedade escravista. Quando o Brasil tornou-se independente e, consequentemente, império, em 1822, a escravidão africana continuou sendo permitida, na verdade, ela só foi abolida em 1888, um ano antes do Brasil tornar-se uma república. Não houve nenhum projeto político que visava a desconstrução do pensamento escravista e a integração social daqueles considerados ex-escravos no Brasil República, gerando, dessa forma, uma das mazelas da sociedade brasileira atual: o racismo estrutural, configurando-se, assim, como uma ferida colonial. Como relatou o filósofo e professor Silvio de Almeida em seu livro intitulado Racismo Estrutural: “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares [...]. O racismo é estrutural”. Em suma, é possível enxergar muitos traços do passado brasileiro, seja do período colonial, império e república, ainda no tempo e espaço entendido como presente. É com base nos argumentos apresentados nessa discussão que Caio Prado Jr (1989, p.10-11) afirma: Analisem-se os elementos da vida brasileira contemporânea; ‘elementos’ no seu sentido mais amplo, geográfico, econômico, social, político. O passado, aquele passado colonial que referi acima, aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir.
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