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61 ANALISANDO O CONCEITO DE PAISAGEM URBANA DE GORDON CULLEN ROBERTO SABATELLA ADAM Professor – Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal do Paraná/UFPR e Universidade Positivo/UP rsa@mps.com.br da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 200862 ANALISANDO O CONCEITO DE PAISAGEM URBANA DE GORDON CULLEN RESUMO Esse artigo analisa o potencial do conceito de paisagem urbana de Gordon Cullen, como instrumento de observação, diagnóstico e prognóstico para intervenções e estudos de arquitetura, urbanismo, engenharia e meio ambiente. Palavras-chave: Arquitetura, paisagem urbana, Gordon Cullen. ABSTRACT This article analysis the potential of Gordon Cullen’s townscape concept, like an instrument of observation, diagnosis and prognosis for interventions and studies about ar- chitecture, urbanism, engineering and environment. Keywords: Architecture, townscape, Gordon Cullen. da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 2008 63 ROBERTO SABATELLA ADAM ANALISANDO O CONCEITO DE PAISAGEM URBANA DE GORDON CULLEN1 Roberto Sabatella Adam 1 INTRODUÇÃO Esse estudo foi estruturado em três partes: a primeira, apresenta o conceito de paisagem urbana de Gordon Cullen; a segunda, avalia esse instrumento de observação, diag- nóstico e prognóstico para intervenções e estudos de arquitetura, urbanismo, engenharia e meio ambiente; e a terceira parte, apresenta conclusões. 2 GORDON CULLEN E A PAISAGEM URBANA O conceito de paisagem urbana de Gordon Cullen, por sua simplicidade e obje- tividade, é uma das propostas mais difundidas como instrumento de avaliação dos espaços urbanos e talvez seja uma das formas de compreender e analisar o espaço, intuitivamente ou não, mais usadas vulgarmente ou por especialistas (CULLEN, 1983). De acordo com Cullen, paisagem urbana é a arte de tornar coerente e organizado, visualmente, o emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o ambiente urbano. Esse conceito de paisagem, elaborado nos anos 1960, exerce forte influência em arquitetos e urbanistas exatamente porque possibilita análises seqüenciais e dinâmicas da paisagem a par- tir de premissas estéticas, isto é, quando os elementos e jogos urbanos provocam impactos de ordem emocional. Cullen dá alguns exemplos desse conceito, uma rua ou avenida em linha reta, cuja perspectiva visual seja assimilada rapidamente, torna-se monótona ou então grandiosa. O autor também cita a experiência de uma tela de Corot na qual uma paisagem monocromática em verde possui uma minúscula figura vermelha, que, segundo ele, “é talvez a coisa mais vermelha que eu já vi” (idem, p. 14, 1983). Para estruturar esse conceito de paisagem Cullen recorre a três aspectos. O primei- ro é a ótica, que é a visão serial propriamente dita, e é formada por percepções sequenciais dos espaços urbanos, primeiro se avista uma rua, em seguida se entra em um pátio, que suge- re um novo ponto de vista de um monumento e assim por diante. O segundo fator é o local, 1Gordon Cullen trabalhou em empresas de arquitetura em Londres, foi ilustrador e diretor artístico de exposições na Grã-Bre- tanha e Índias Ocidentais, subchefe de redação do periódico The Architectural Review, consultor paisagista junto a instituições britânicas como a Fundação Ford e em projetos de urbanismo em Nova Déli e Calcutá, e também foi membro honorário do Instituto Real de Arquitetos Britânicos. da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 200864 ANALISANDO O CONCEITO DE PAISAGEM URBANA DE GORDON CULLEN que diz respeito às reações do sujeito com relação a sua posição no espaço, vulgarmente denominado sentido de localização, “estou aqui fora”, e posteriormente, “vou entrar em um novo espaço”, e finalmente, “estou cá, dentro”; esse aspecto refere-se às sensações provo- cadas pelos espaços; abertos, fechados, altos, baixos etc. O terceiro aspecto é o conteúdo, que se relaciona com a construção da cidade, cores, texturas, escalas, estilos que caracterizam edifícios e setores da malha urbana. Com base no conceito de paisagem como elemento organizador, Cullen apresenta vários temas para as paisagens urbanas. A título de exemplificação, alguns temas são apre- sentados a seguir, por meio de ilustrações e conteúdos explicativos. Esta soma entre imagens e teor conceitual é justamente o que caracteriza a proposta do autor em análise. a) Recintos, pátios e pracetas – são espa- ços urbanos interiores caracterizados pelo sossego e a tranquilidade, em que o vai e vem das ruas não é tão notado, a praceta (ou recinto, ou pátio) tem escala humana e geralmente é um espaço pontuado por ár- vores e bancos, que permitem descanso e contato humano. Figura 1 – Esquema síntese da visão serial Fonte: Adaptado por Adam (2007) de Cullen (1983). Figura 2 – Recintos e pracetas Fonte: Adaptado por Adam (2007) de Cullen (1983). da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 2008 65 ROBERTO SABATELLA ADAM b) Ponto focal – é um símbolo de conver- gência, que define a situação urbana. Cullen reforça esta ideia e diz que em geral as pessoas diante de um ponto focal afirmam: “É aqui”, “Pare”. É um elemento de força que se mate- rializa de forma isolada e por vezes marca pela verticalidade. Figura 3 – Ponto focal Fonte: Adaptado por Adam (2007) de Cullen (1983). Figura 4 – Perspectiva grandiosa Fonte: Adaptado por Adam (2007) de Cullen (1983). c) Perspectiva grandiosa – é um descortí- nio imediato entre o “aqui e o além”, como a perspectiva visual dos eixos monumentais, dos grandes bulevares. Essa paisagem funde o primeiro plano ao longínquo, produzindo sensação de imensidão, grandiosidade e oni- presença. Figura 5 – Animismo Fonte: Adaptado por Adam (2007) de Stroeter (1986). d) Animismo – é uma configuração poética em que “isto é aquilo”, ou seja, a sugestão de que a porta é um rosto, ou de que a fachada tem uma face na qual a porta é a boca, as jane- las os olhos, etc. As manifestações de animis- mo transmitem sensação de estranheza e até irritação. É um artifício por vezes usado no expressionismo. da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 200866 ANALISANDO O CONCEITO DE PAISAGEM URBANA DE GORDON CULLEN Cabe ressaltar que a proposta de Cullen não é somente de crônica imagética, como em geral ocorre em registros fotográficos, pictóricos, entre outros, mas se revela como um registro interativo entre percepção humana, teoria da arquitetura e urbanismo e os espaços urbanos construídos. 3 ANÁLISE DO CONCEITO Apesar de Cullen observar muitos temas para suas paisagens urbanas, a poten- cialidade de seu conceito, especialmente para aqueles que têm por incumbência avaliações urbanas, é inegável, porque faculta sentimento, criatividade, racionalidade e liberdade se inte- grarem em um mesmo meio de observação. Esse conceito de paisagem urbana, neste compreendido como ferramenta de aná- lise e observação, é recurso bastante versátil para coleta de dados, informações e referências, especialmente pela interação que promove entre ser humano e ambiente urbano aguçando e despertando a percepção e a consciência à paisagem pelo ato de atenção ao espaço urbano e às próprias emoções dos indivíduos. Entre as virtudes do sistema proposto por Cullen para análise, estudo e interven- ção, podem citar-se: a) a articulação na observação tanto de princípios organizadores de ordem geral, quanto de princípios particulares de ordenação (ver sequência de quadros —- Figura 1); b) a rapidez de processamento na percepção da paisagem, pela facilidade de intera- ção entre sujeito e objeto, interação essa que se torna atraente porque envolve os sentimentos e as emoções com que o sujeito deflagra a paisagem e isso desperta o espírito de flâneur, por meio do qual o indivíduo percorre a cidade com caminhare olhar poéticos de renovados matizes; c) como suporte faculta elaborar em uma linguagem síntese vários elementos, da- dos e referenciais históricos, socioculturais e espaciais das cidades por meio de notas, fotos, documentos, croquis, imagens, desenhos e conteúdos teóricos. Como reflexão acerca, não do conceito proposto por Cullen, mas do uso da in- terface entre diversas linguagens, cabe salientar que a ideia da paisagem urbana por vezes focalizada, fragmentada e fortemente embasada na interface entre percurso, faculdade visual e emoções, tem sido intensa, e por vezes, perversamente explorada no city marketing de várias cidades, como paisagem urbana idealizada, e ainda como paisagem mental manipulada. Como crítica a sistematização serial da paisagem, nota-se que esse forte vínculo com o sentido da visão não estimula a captura de certos fenômenos paisagísticos com a mente e os outros sentidos, como sons, vibrações, ritmos, crenças, odores, discursos, mundo vivido, etc. Ou seja, a visão serial como método, carece de procedimentos complementares, tais quais, passeios, entrevistas (CALVINO, 1990), questionários, desejos de cenários futuros, 2 O city marketing vincula, de modo nem sempre ético, a cidade real e a cidade mental, visto que se introjetam imagens escolhidas segundo interesses e discursos político-administrativos, como se essas imagens e ideias mentais que penetram cotidianamente no imaginário do cidadão fossem condizentes com a realidade urbana (GARCIA, 1996). da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 2008 67 ROBERTO SABATELLA ADAM mapeamentos mentais (LYNCH, 1982), observação comportamental incorporada (VARE- LA, THOMPSON E ROSCH, 2003); procedimentos estes que, além de incorporarem múl- tiplas inteligências (GARDNER, 1985), podem ampliar o painel de informações dispondo de diversos suportes, por exemplo, vídeo, áudio, diário, entre outros. O sujeito para Cullen é passivo, o autor trata o sujeito como um observador que constrói e levanta dados na interação com a cidade, mas não interfere, não é um agente e participante ativo diante das ocorrências urbanas. É antes um fruidor, que um agente trans- formador profundo observador de sua própria consciência. Ou seja, esse conceito passivo de paisagem, ao mesmo tempo que promove um tipo de aproximação entre sujeito e paisagem, promove um afastamento da totalidade da realidade ambiental, porquanto o sujeito pode ficar restrito a certos padrões perceptivos que reorgani- zam e ordenam as paisagens externas, mas nem sempre permitem o sujeito observar-se como parte da paisagem, percebendo o que organiza as suas “paisagens internas”, podendo a partir das suas paisagens internas transformar a realidade externa. Esta distância entre as paisagens mentais e urbanas está diretamente ligada à ca- rência de estudos ambientais, arquitetônicos e paisagísticos que incluam o pertencimento ambiente-ser humano em sua totalidade e multidimensionalidade, sem isso a complexidade ambiental fica restrita aos instrumentos e conceitos que capturam parcialmente a paisagem e assim efetuam reducionismos da mesma; e são exatamente essas limitações as responsáveis pelas atuais degradações ambientais e da paisagem (LEFF, 2001). Ao considerarmos o panorama atual de urgências ambientais urbanas, observa-se que o método de Cullen, precisa ser conjugado a um painel sistêmico e mais amplo de infor- mações ecológicas, humanas, sociais, perceptivas, culturais, antropológicas, econômicas, etc., para então compor em conjunto um cenário de dados, a partir dos quais se podem organizar diagnósticos, propostas e quaisquer ações ambientais de dimensões sistêmicas (FRANCO, 2001). 4 CONCLUSÕES As utilidades do expediente serial proposto são inúmeras, podem ser adaptadas às mudanças de suporte como vídeo, cinema etc., ou mesmo conjugadas a visões sistêmicas de diagnósticos e propostas. O que há de mais precioso na proposta de Cullen é o estímulo que promove à per- cepção da cidade, pois esteja o sujeito no espaço que for e em qualquer velocidade de apre- ciação, pode fruir poéticas urbanas nem sempre vasloradas. A visão serial como instrumento faz surgir um novo observador mais atento às suas emoções e aos espaços urbanos, contudo não concita este observador, a ser um sujeito integral, pleno, ativo e transformador, que se constrói ao mesmo tempo em que age no mundo. Mesmo com o passar do tempo, a proposta serial de apreciação da paisagem per- manece significativa e estimulante, especialmente por sua exaltação estética às emoções e à afetividade, o que enseja uma constante redescoberta das poéticas urbanas; por isso, sempre se enxerga algum fragmento das paisagens de Cullen, no cinema, na literatura, na pintura, no design, na escultura, enfim nas artes em geral. da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 61-68, 200868 ANALISANDO O CONCEITO DE PAISAGEM URBANA DE GORDON CULLEN REFERÊNCIAS CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CULLEN, G. Paisagem urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1983. DEL RIO, V. ; OLIVEIRA, L. Percepção ambiental: a experiência brasileira. 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