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Fichamento “O olho e o espírito” - Maurice Merleau-Ponty ‘Ela é, sempre foi , esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como "objeto em geral ", isto é, ao mesmo tempo como se ele nada fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifícios. Mas a ciência clássica conservava o sentimento da opacidade do mundo, e é a este que ela entendia juntar-se por suas construções, razão pela qual se acreditava obrigada a buscar para suas operações um fundamento transcendente ou transcendental.’ (p. 13). ‘Dizer que o mundo é por definição nominal o objeto x de nossas operações é levar ao absoluto a situação de conhecimento do cientista, como se tudo o que existiu ou existe jamais tivesse existido senão para entrar no laboratório.’ (p. 14). ‘É de sobrevôo, preciso que o pensamento de ciência - pensamento pensamento do objeto em geral- torne a se colocar num "há" prévio, tais na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado esse possível que como são em nossa vida, por nosso corpo, não corpo mas esse corpo é lícito afirmar ser uma máquina de informação, atual se silenciosamente sob que chamo meu, a sentinela que posta minhas meus atos. É meu corpo despertem palavras e sob preciso que com os corpos associados, os "outros", que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me freqüentam, que freqüento, com os quais freqüento um único Ser atual, presente, como animal nenhum freqüentou os de sua espécie, seu território ou seu meio. Nessa historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a ponderar sobre as coisas e sobre si mesmo, voltará a ser filosofia…’ (pp. 14, 15). ‘É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura. [...] Basta que eu veja alguma coisa para saber juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se produz na máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com o mundo visível, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visível. [...] O mundo visível e de meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser.’ (p. 16). ‘Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo. E esse mundo, do qual ele faz parte, não é, por seu lado, em si ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer absoluto, que decretaria, do fundo do retiro subjetivo, uma mudança de lugar milagrosamente executada na extensão. Ele é a sequência natural e o amadurecimento de uma visão… Digo de uma coisa que ela é movida, mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve. Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, ele irradia de um si…’ (p. 16). ‘Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa.’ (p. 17) ‘Mas a humanidade não é produzida como um efeito por nossas articulações, pela implantação de nossos olhos (e muito menos pela existência dos espelhos que, não obstante, são os únicos a tornar visível para nós nosso corpo inteiro). Essas contingências e outras semelhantes, sem as quais não haveria homem, não fazem, por simples soma, que haja um só homem.’ (p. 17) ‘Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão a uma certa distância diante de nós, só estão aí porque despertam um eco em nosso corpo, porque este as acolhe. Esse equivalente interno, essa fórmula carnal de sua presença que as coisas suscitam em mim, por que não suscitariam por sua vez um traçado, visível ainda, onde qualquer outro olhar reencontrará os motivos que sustentam sua inspecção do mundo.’ (p. 18) ‘A palavra imagem é mal-afamada porque se julgou irrefletidamente que um desenho fosse um decalque, uma cópia, uma segunda coisa, e a imagem mental um desenho desse gênero em nosso bricabraque privado. Mas se de fato ela não é nada disso, o desenho e o quadro não pertencem mais que ela ao em si. Eles são o dentro do fora e o fora do dentro, que a duplicidade do sentir torna possível, e sem os quais jamais se compreenderá a quase-presença e a visibilidade iminente que constituem todo o problema do imaginário. [...] O imaginário está muito mais perto e muito mais longe do atual: mais perto, porque é o diagrama de sua vida em meu corpo, sua polpa ou seu avesso carnal pela primeira vez expostos aos olhares, e nesse sentido, como o diz energicamente Giacometti "o que me interessa em todas as pinturas é a semelhança, isto é, o que para mim é a semelhança: o que me faz descobrir um pouco o mundo exterior". Muito mais longe, porque o quadro só é um análogo segundo o corpo, porque ele não oferece ao espírito uma ocasião de repensar as relações constitutivas das coisas, mas sim ao olhar, para que as espose, os traços da visão do dentro, à visão o que a forra interiormente, a textura imaginária do real.’ (p. 19) ‘Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade.’ (pp. 19, 20) ‘A pintura desperta, leva à sua última potência um delírio que é a visão mesma, pois ver é ter à distância, e a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que devem de algum modo se fazer visíveis para entrar nela.’ (p. 20) ‘Permaneçamos no visível no sentido estrito e prosaico: o pintor, qualquer que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão. Ele precisa admitir que as coisas entram nele ou que, segundo o dilema sarcástico de Malebranche, o espírito sai pelos olhos para passear pelas coisas, uma vez que não cessa de ajustar sobre elas sua vidência. [...] Ele precisa reconhecer, como disse um filósofo, que a visão é espelho ou concentração do universo, ou que, como disse um outro, o ídios kósmos dá acesso por ela a um lcoinos lcósmos,* que a mesma coisa se encontra lá no cerne do mundo e aqui no cerne da visão, a mesma ou, se preferirem, uma coisa semelhante, mas segundo uma similitude eficaz, que é parente, gênese, metamorfose do ser em sua visão. É a própria montanha que, lá distante, se mostra ao pintor, é a ela que ele interroga com o olhar.’ (pp. 20, 21) ‘"Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam [...] Eu estava ali, escutando [...] Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e não querer transpassá-lo [...] Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir".’ (p. 22) ‘Doravante meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim. [...] Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura confunde todas as nossas categorias ao desdobrar seu universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de significações mudas.’ (p. 23) ‘A própria obra inaugurou o campo onde se mostra sob uma outra luz, ela é que se metamorfoseia e se torna a seqüência, as reinterpretações intermináveis das quais ela é legitimamente suscetível não a transformam senão em si mesma; e, se o historiador redescobre sob o conteúdo manifesto o excesso e a espessura de sentido, a textura que lhe preparava um longo futuro, essa maneira ativa de ser, essa possibilidade que ele desvenda na obra, esse monograma que nela encontra fundam uma meditação filosófica.’ (p. 34) ‘Quatro séculos após as "soluções" do Renascimento e três séculos após Descartes, a profundidadecontinua sendo nova, e exige que a busquem, não "uma vez na vida", mas durante toda uma vida. [...] O que constitui enigma é a ligação delas, é o que está entre elas - é que eu vejo as coisas cada uma em seu lugar precisamente porque elas se eclipsam uma à outra - , é que elas sejam rivais diante de meu olhar precisamente por estarem cada uma em seu lugar.’ (p. 35) ‘A visão do pintor não é mais olhar posto sobre um fora, relação meramente "físico-óptica" com o mundo. O mundo não está mais diante dele por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível, e o quadro finalmente só se relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a condição de ser primeiramente "auto figurativo"; ele só é espetáculo de alguma coisa sendo "espetáculo de nada", arrebentando a "pele das coisas" para mostrar como as coisas se fazem coisas e o mundo, mundo. [...] A arte não é construção, artifício, relação industriosa a um e paço e a um mundo de fora. [...] Quando vejo através da espessura da água o revestimento de azulejos no fundo da piscina, não o vejo apesar da água, dos reflexos, vejo-o justamente através deles, por eles.’ (p. 37) ‘A linha não é mais, como em geometria clássica, o aparecimento de um ser sobre o vazio do fundo; ela é, como nas geometrias modernas, restrição segregação, modulação de uma espacialidade prévia.’ (p. 40) ‘Assim como criou a linha latente, à pintura atribuiu-se um movimento sem deslocamento, por vibração ou irradiação.’ (p. 40) ‘A fotografia mantém abertos os instantes que o avanço do tempo torna a fechar em seguida, ela destrói a ultrapassagem, a imbricação, a "metamorfose" do tempo, que a pintura, ao contrário, torna visíveis, porque os cavalos têm dentro deles o "deixar aqui, ir ali" porque têm um pé, em cada instante.’ (p. 42) ‘"O olho [...] pelo qual a beleza do universo é revelada à nossa contemplação, é de tal excelência que todo aquele que se resignasse à sua perda se privaria de conhecer todas as obras da natureza cuja visão faz a alma ficar contente na prisão do corpo, graças aos olhos que lhe apresentam a infinita variedade da criação: quem os perde abandona essa alma numa escura prisão onde cessa toda esperança de rever o sol, luz do universo." O olho realiza o prodígio de abrir à alma o que não é alma, o bem-aventurado domínio das coisas, e seu deus, o sol. [...] É preciso tomar ao pé da letra o que nos ensina a visão: que por ela tocamos o sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em toda parte, tão perto dos lugares distantes quanto das coisas próximas, e que mesmo nosso poder de imaginarmo-nos alhures. [...] [O] próprio do visível é ter um forro de invisível em sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência.’ (p. 43) ‘Mas a decepção é a do falso imaginário, que reclama uma positividade que preencha exatamente seu vazio. É o lamento de não ser tudo. Lamento que nem sequer é inteiramente fundado.’ (p. 46)
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