Buscar

Signo a luz do espelho - Lúcia Santaella

Prévia do material em texto

O SIGNO Á LUZ DO ESPELHO 
 
O mito de Narciso como paradigma de uma questão que está na medula de toda e qualquer atividade de 
linguagem' 
 
Lúcia Santaella 
 
Procedo a uma inversão. Ao invés de utilizar a Semiótica (que é a teoria dos signos, isto é, teoria de todas 
as formas, modalidades ou tipos de linguagem) como meio de leitura do mito de Narciso, faço o contrário: 
tomo o mito como meio de explicitação daquilo que, no meu modo de ver, subjaz na raiz de todo processo 
de linguagem. Trocando em miúdos: considero a estrutura lógica desse mito como paradigmática, 
exemplar e, portanto, hábil para ilustrar uma questão que está na medula mesma de toda e qualquer 
atividade de linguagem. Para tal, é necessário que façamos uma pequena viagem pelas entranhas do 
signo. Ao final dessa viagem, espera-se que esta inversão apareça como uma estratégia capaz de revelar 
que a lógica embutida nesse mito é aquela que talvez mais fundo mergulhou nos meandros mais 
recônditos da condição humana, ou seja, a condição de trazermos imprimida em nossa natureza a marca 
que faz de nós seres simbólicos, seres de linguagem. 
 
Os interiores do signo 
 
O signo como entidade elementar de toda e qualquer linguagem é alguma coisa que representa uma outra 
coisa para alguém. Quando digo que o signo é alguma coisa, quero dizer que todo signo é, em si mesmo, 
uma realidade concreta, material, física Essa materialidade pode tomar corpo, por exemplo, na fala oral, 
escrita ou impressa. Os sons que emitimos ao falar são realidades físicas a palavra inscrita em pedra, 
couro, papel ou tela eletrônica é um corpo material e sensível, como são materialidades sensíveis todas as 
outras formas de Linguagem Enumeremos algumas: a gestualidade ou paisagens em movimento que o 
corpo e o rosto vão desenhando em contraponto com o som da voz; as forças rítmicas que o corpo 
plasticamente configura na dança; uma simples mancha de cor num papel ou vidro, além de todos os 
desenhos, formas, imagens e gráficos que, desde as grutas de Lascaux, vêm crescentemente povoando a 
face do mundo. Enfim, seja em som, massas físicas linhas cores, luzes, volumes, movimentos, o signo é 
sempre uma realidade material, concreta. 
 
Contudo, um signo só é signo porque esse corpo material que o constitui está para alguma coisa que não é 
ele mesmo. Ele só funciona e age como signo porque substitui, representa, está no lugar de alguma coisa 
que não é ele. Nessa medida, o signo é tão material quanto tudo aquilo que chamamos de realidade, ao 
mesmo tempo que carrega o poder de representar para alguém isso mesmo que é chamado de realidade. 
Seu caráter, portanto, é o caráter de um duplo. Sem deixar de ser ele mesmo, ele simultaneamente 
representa, substitui, aponta para, ocupa o lugar de um outro que está fora dele. 
 
A imagem do espelho 
 
Por volta de fins dos anos vinte, um pensador marxista russo (ligado ao Círculo de Bakhtin), V. N.' 
Volochimov, forneceu-nos uma definição imagética capaz de esclarecer com precisão a duplicidade 
paradoxal do signo como algo que é, a um só tempo, ele mesmo e um outro. A definição fornecida. por 
Volochinov aproxima-se daquela que nos é dada pelo funcionamento do espelho. Todo signo é, em maior 
ou menor medida, uma espécie de imagem especular: o signo não é apenas um corpo físico que habita a 
realidade, mas também é capaz de refletir essa realidade de que ele é parte e que está fora dele. 
 
Ao refletir, no entanto, o signo, necessariamente e sem escapatória possível, também refrata essa 
realidade, isto é, ao refletir o signo transforma, transfigura e, até um certo ponto e numa certa medida, 
deforma aquilo que ele reflete. Esse processo é inevitável pelo simples fato de que por mais 
aproximadamente fiel que o signo possa ser em relação àquilo que ele reflete ou representa, ele não pode 
ser, em si mesmo, esse outro. Sendo sua função a de representar, o signo só pode expressar, substituir 
ou, quando muito, apontar para esse outro. Entre o signo e aquilo que ele representa abre-se a brecha, o 
hiato, a fissura da diferença. 
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha poligonal
daniel
Linha
daniel
Realce
daniel
Linha poligonal
 
Imagem técnica e realidade 
 
Mas são as imagens técnicas, essas que vão da fotografia, cinema, televisão, até a holografia, que se 
tornam capazes de ilustrar exemplarmente essa questão. Mal podemos hoje avaliar o enorme impacto 
sobre o ser humano provocado pela invenção da fotografia. Por se tratar de uma fixação fotoquímica dos 
sinais de luz emitidos pelos próprios objetos do mundo, à maneira de um espelho, a fotografia estabelece 
uma conexão fisica, dinâmica, factual e existencial com os objetos reais que ela registra. Não foi e não 
continua sendo casual a euforia dos ingênuos e incautos diante da fotografia: através de um processo 
fisico-químico de correspondência ponto-a-ponto, finalmente é a própria realidade que o homem se tornou 
capaz de flagrar. Parece, enfim, transposta a brecha da diferença entre o signo e o objeto por ele 
representado. 
 
Não é também casual o processo de aperfeiçoamento das imagens técnicas. É a realidade "tal qual é" que 
precisa ser agarrada, capturada. Se o mundo é para nós colorido, a fotografia imediatamente virou cor. Se 
o mundo é dinâmico, o cinema tratou de processar as imagens num movimento fiel ao movimento das 
coisas tal como ocorre nas cenas da nossa percepção real. No entanto, faltava ainda vencer o 
descompasso do tempo. Veio, então, a televisão: o mundo flagrado no instante mesmo do seu ir existindo. 
 
A cena da representação 
 
Entretanto, entre esses antepassados, alguns menos ingênuos, na maior parte artistas e pensadores, 
introjetaram criticamente a invenção da imagem técnica, convertendo e traduzindo-a instantaneamente em 
termos de consciência da linguagem. Enquanto os ingênuos se compraziam na festa ilusionista da 
realidade, estes tiraram proveito da ilusão para virá-la ao avesso, descarnando a cena da representação. 
Mas que cena é essa? Não parece ser outra senão aquela que habita o coração do mito de Narciso e que, 
como todo mito, cifra no seu bojo a sabedoria de um ensinamento. 
 
É assim que, enquanto os hipnotizados acreditavam ter, na fotografia e congêneres, a própria realidade 
diante dos olhos, os artistas, por seu lado - estes que, por fatalidade congênita, estão vetoriados 
exatamente para o pulsar da brecha entre signo e realidade -, foram, sem muito alarde, povoando o 
mundo com novas versões, releituras do mito de Narciso. (Parece estar certo Borges ao dizer que as 
grandes metáforas, leituras do mundo, são poucas, muito poucas, e quase todas se perfizeram no mundo 
grego. O resto são representações dessas metáforas sob uma nova entonação.). 
 
Não é por acaso que é contemporânea à invenção da fotografia a invasão dos duplos na literatura, de que 
a obra de Edgar Poe é exemplo exemplar. São esses duplos justamente que, quando lidos à luz do signo, 
ou melhor, à luz do espelho sígnico, escancararam para nós a fratura da linguagem. Senão vejamos. 
 
Por mais fisica e quimicamente perfeito que possa ser o registro de um objeto, situação ou aquilo que 
chamamos de realidade, este registro não é "a realidade". Um simples passeio pelos interiores da 
representação nas imagens técnicas é, por si só, capaz de tornar evidente essa questão. As imagens são 
produzidas por aparelhos que, por sua própria natureza, têm potencialidades e limites e, como tal, só 
podem registrar o "real" numa certa medida e dentro de uma certa capacidade. Esses aparelhos são 
máquinas que necessariamente introjetaram sistemas codificados de representação que, longe de nos fazer 
ver o "real" tal qual, representam-no, ao contrário, de acordo com a mediação de uma determinada 
codificação da visualidade. Isso se não enfatizarmos o fato de que esses registros dependem do ponto de 
vista do observador, da visão de mundo que sua condição de classe social lhe dá, do enquadramento e 
angulaçãoescolhidos, enfim, revelam alguns traços do "real", ocultando outros, conforme já o demonstrou 
lucidamente Arlindo Machado no seu ensaio sobre A Ilusão Especular na fotografia (Brasìliense). Esses 
registros são, portanto, duplos. E, diante desses duplos, a realidade é aquilo que continuamente escapa, 
recua, escorrega 
 
Por outro lado, enquanto podem ser reproduzidos e reencenados indefinidamente (esse o caráter 
primordial da imagem técnica), o objeto do registro, o objeto da representação, ou seja, a chamada 
daniel
Linha poligonal
daniel
Linha poligonal
daniel
Linha poligonal
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha poligonal
daniel
Linha
realidade, por ser aquilo que foi capturado e congelado no flagrante do registro, é justo aquilo que não 
pode ser repetido, que ficou para trás e, como tal, já morreu. 
 
Como se pode ver, quanto mais estreito aparece o vínculo físico entre o registro e o objeto registrado, mais 
se alarga a fenda aberta entre signo e realidade, colocando-nos cara-a-cara com a fugacidade do vivido e 
dilatando a nossa consciência da morte. Se o registro técnico é capaz de congelar o instante num flagrante 
eterno, esta eternização inevitavelmente aponta para seu avesso: a irrepetibilidade e morte irremediável do 
flagrante errado. A vida aparece para morrer a cada instante. O que a imagem captura é o rapto da vida. 
Esta que é habitada pelo tempo e que se consuma como morte em cada átimo de tempo. Não é preciso 
mencionar aqui o quanto estamos perto daquela superstição primitiva de que a imagem rouba um pedaço 
da vida. Não é preciso enfatizar que é por este caminho que encontramos uma das portas de entrada para 
o coração de Narciso. Aliás, sob este aspecto da dialética morte e vida inclusa no signo, foi através de uma 
novela de A. B. Casares, A Invenção de Morei, para nós considerada uma das mais perscrutantes versões 
contemporâneas do mito de Narciso, que essa porta de entrada nos foi aberta. 
 
Narciso reencenado 
 
Trata-se, na novela, da invenção de uma máquina fantástica, muito mais fantástica do que sonharia 
qualquer holografia. Enquanto na representação holográfica tem-se o registro em luz impalpável e 
flutuante da tridimensionalidade dos objetos, a invenção de Morel, por sua vez, vai muito além. Essa 
máquina é capaz de registrar cada coisa e cada ser existente não apenas no seu volume e proporção 
tridimensionais reais, mas em toda a sua completude de ser até o limite da sutileza do cheiro e da 
transpiração. Cada situação e instante vivido, ao ser colhido pelo registro dessa máquina, pode se repetir 
ao infinito. Prendada parece, enfim, a vida pela eternidade. No entanto, algo estranho começa a acontecer. 
Cada palmo de terra, a vegetação, as plantas, flores e seres humanos que foram capturados e, portanto, 
duplicados por esse registro infinitamente perfeito e repetível, começam a passar por um lento processo de 
extinção até o desaparecimento na morte. Nos seres humanos, a deterioração inicia-se pela extremidade 
dos dedos: a morte de fora para dentro. 
 
Conforme se pode ver, o que é aí anunciado na mais fantástica metáfora ficcional é a impossibilidade de se 
subverter o caráter do signo como duplo, visto que se este, o signo, fosse capaz de atingir a mais absoluta 
identidade e completude em relação ao objeto que representa, então não seria mais um signo, seria o 
próprio objeto, o qual estaria fadado ao desaparecimento. É devido à fenda da diferença que a realidade, 
na sua completude complexa, resiste como realidade. É devido a essa fenda entre querer ser o objeto, sem 
no entanto poder sê-lo, que o signo insiste na incompletude de signo. É por isso que a mera presença do 
signo delata a ausência daquilo que ele representa. A presença do signo, portanto, é uma espécie de 
morte, porque, ao representar alguma coisa, a representação vive vicariamente no lugar daquilo que é por 
ela representado. 
 
Não se poderia deixar de lembrar aqui que não é senão ocultando a fratura da diferença, ocultamento 
desse vão entre signo e realidade, que se alimentam todas as ideologias deformantes e todas as mentiras 
que, escondendo, disfarçando ou mistificando seu caráter de signo, fazem-se passar por realidade. Em 
razão disso, é no dilaceramento dessa diferença que reside, por outro lado, nossa sede de verdade, nossa 
aspiração por revelar o real, assim como a mola do nosso desejo. O signo não é e nem pode ser aquilo que 
ele representa. O objeto da representação, o real, só é parcialmente capturado pelo signo. O real na sua 
verdade, portanto, é sempre algo inatingível, mas, em menor ou maior medida, sempre aproximável pela 
mediação do signo. É nessa aproximação como meta que reside nossa responsabilidade ética com a 
linguagem. 
 
O investimento simbólico 
 
Nesse ponto, porém, inevitavelmente surge em nosso espírito uma indagação cujas possíveis respostas são 
exatamente aquelas que nos conduzem para uma adentramento pelas camadas mais interiores do mito de 
Narciso. A pergunta inevitável (essa que já deve estar rondando o espírito dos que me lêem) pode ser 
formulada do seguinte modo: - Se o signo é tão problemático, por que não o relegamos ao abandono, 
daniel
Linha
daniel
Linha
daniel
Linha poligonal
buscando viver diretamente as coisas, sentir diretamente o mundo, captar a realidade tal qual ela é? Mas 
eis aí o nó da questão, laço que ata, a um só tempo, a tragédia e a grandeza de nossa condição humana. 
O homem, este animal - talvez o mais frágil quando surgiu na biosfera -, só pode nela sobreviver porque, 
sendo o mais frágil, desenvolveu uma força de que todos os outros .animais são desprovidos: a capacidade 
de projetar, planejar, programar o futuro. O homem é o único animal cotado com os armazéns da memória 
e capaz de colonizar o futuro, isto é, o único animal investido da capacidade simbólica ou faculdade da 
linguagem. Se, por um lado, esta faculdade permite ao homem o acesso à compreensão, à busca do 
conhecimento, permitindo-lhe projetar o que fará a cada instante e corrigir o que fez ontem (esta a 
grandeza), por outro lado, toda e qualquer apreensão do mundo para ele se dá inelutavelmente pela 
mediação da linguagem: entre o homem e o mundo, entre o eu e o outro, entre o eu e o próprio eu, 
interpõem-se as telas e as redes do signo (esta a miséria). 
 
Não há conhecimento sem linguagem. Se pararmos no terreno desta afirmação, tudo parece tácito e nosso 
estar no mundo não produz tremores. Avancemos um pouco, contudo: não há percepção sem linguagem. 
O simples ato de estar diante das coisas, na aparência tão inocente, o simples ato de roçar ou apertar as 
coisas, aparentemente tão palpável, já são inevitavelmente atos de elaboração cognitiva. Entre aquele que 
percebe e o objeto percebido interpõe-se a camada do reconhecimento e do assentimento que a 
linguagem produz. Quando pensamos estar nas coisas, estamos no signo. O signo representa alguma 
coisa, que não é ele mesmo, para alguém. Isto é, produz nesse alguém um efeito de pensamento ou quase 
pensamento. Este efeito já é um outro signo. Respondemos ao signo com outro signo. Somos presas dessa 
cadeia infinita da qual não podemos escapar. A qualquer momento, acordados ou dormindo, somos 
linguagem, somos pensamento. Dormindo sonhamos e o sonho é linguagem, uma estranha espécie de 
pensamento. Não há linguagem sem signos, não há qualquer atividade de consciência que não seja signo. 
Estamos no mundo como qualquer outro animal, corpos físicos e sensíveis que respondem e reagem. 
Contudo, nossas respostas, mesmo quando parecem diretas e imediatas, são mediadas pelo pensamento 
que é signo. Vivemos nessa oscilação: entre estar nas coisas e estar fora delas, entre estar no outro e 
estar fora dele, entre estar em nós e fora de nós. "Sou onde não estou, estou onde não sou", disse 
sabiamente Lacan. 
 
A fratura da auto-identidade 
 
E aqui encontramos talvez a vereda mais recôndita de Narciso: a identidade do eu consigo mesmo,a 
autoidentidade. Trata-se da ânsia de estar e ser tão só e puramente eu mesmo, flagrante de uma imagem 
integral de si, que fatalmente nos aparece sob a forma de miragem e eclipse, relâmpago e escuridão. 
Trata-se do enigma de se conhecer a si mesmo que inevitavelmente nos aparece como um mosaico, colcha 
de fragmentos cujas formas, a cada instante de cada hora, incessantemente, para reconstituir, 
reconstruímos. 
 
Conhecer o próprio eu é traduzí-lo em pensamento. O eu representado no pensamento não é o mesmo eu 
que pensa. Ambos parecem se cruzar, mas só parecem. Tangenciam-se, apenas, pois entre o eu que pensa 
e o eu objetivado no pensamento introduz-se o imperceptível descompasso da temporalidade: o jogo do 
tempo. O eu, enquanto pensa, é presente vetoriado para o futuro e, portanto, está sempre além do eu 
objetivado no pensamento que está sempre aquém (já é passado). Esse eu que pensa caminha 
incondicionalmente no fluxo do tempo. Para observar o eu como objeto do pensamento, uma ação 
reflexiva tem de ser executada. Nessa ação reflexiva o eu irremediavelmente se duplica. Há um eu que 
avança na corrente da vida, ao mesmo tempo que se volta para o próprio pensamento a fim de observar a 
imagem do eu que aí se projeta. Nessa imagem, o eu necessariamente aparece como outro, diferente 
daquele eu que, enquanto pensa, avança no fluxo da vida. E porque avança pensando, só pode conhecer a 
imagem do eu que se objetiva no pensamento, traduzindo-a num pensamento subseqüente. Não apenas o 
pensamento é diálogo, o próprio eu é dialógico. Pensar o eu é inevitavelmente apreendê-lo como um outro 
do eu. Este outro funciona como uma espécie de signo, isto é, como uma representação do eu para si 
mesmo. A auto-identidade está, portanto, fraturada pela diferença e alteridade. E essa alteridade não se 
reduz à atividade do pensamento, mas penetra também nos meandros desse grande mito que chamamos 
sentimento. Sentir é aquilo que consubstancia e dá corpo ao eu que avança no fluxo da vida. Ao mesmo 
tempo que o sentir não pode ser separado do pensamento porque o eu avança pensando, o sentir se 
constitui numa espécie de contraponto melódico do pensamento e, como tal, é justamente aquilo que não 
dá para ser pensado. Pensar o sentimento é transformar sentimento em pensamento e, portanto, perder 
exatamente aquilo que faz dele sentimento. Isso se não mencionarmos que cada pensamento se faz 
indissoluvelmente acompanhado por uma tonalidade de sentimento que lhe é própria. Isso se não 
mencionarmos que o sentir congrega todas as camadas mais profundas e mais indefinidas da consciência 
(lá onde estão as pulsões), sobre as quais não podemos exercer autocontrole e em relação às quais o eu é 
uma espécie de barquinho navegando em águas tempestuosas. 
 
O jogo parece infernal. Não por acaso o "conhece-te a ti mesmo" persegue a vida de cada ser e a vida da 
humanidade inteira desde tempos imemoriais. Não é senão sob a insígnia da alteridade, mediação do outro 
do eu para o eu, que Lacan estruturou seu magnifico ensaio sobre o estágio do espelho, no qual a 
constituição da identidade dialeticamente se instaura na fratura da alteridade. Não nos deteremos em 
comentários sobre esse ensaio, visto que os especialistas em Lacan podem fazê-lo muito melhor do que 
nós. Seguimos, pois, para uma outra breve consideração que, então, nos colocará frente a frente com o 
mito de Narciso. 
 
Amor como espelho cruzado 
 
Queremos nos referir à fascinação que o sentimento de amor exerce sobre nós. Trata-se aí talvez (digo 
talvez porque nesses terrenos movediços nada afirmo, só formulo hipóteses) de uma das únicas 
possibilidades (a outra seria a da criação) de estreitamento da fenda do eu que, como alteridade, atravessa 
a identidade. "A realização do amor", nos diz Lacan, "não é fruto da natureza, mas da graça, isto é, de um 
acordo intersubjetivo impondo sua harmonia à natureza dilacerada que a suporta.". 
 
Para compreendermos essa harmonia, basta lembrar ou imaginar a marca inconfundível do amor na face 
dos olhos do outro ao se endereçar para o eu. O que essa marca projeta não é senão a imagem do eu 
imprimida na tela do olhar do outro. Mas Lacan fala na realização do amor, o que pressupõe a 
reciprocidade. Temos de imaginar, portanto, dois olhares que se cruzam e sintonizam na troca. No ponto 
exato desse cruzamento (algo semelhante às bodas alquímicas de dois corpos que se abraçam), é que 
instaura a chance de harmonia, sobrepondo-se ao dilaceramento de nossa condição simbólica: a imagem 
do outro que seu olhar projeta cruza-se na imagem do seu eu projetada pelo olhar do outro. 
 
Não é difícil perceber que Narciso se esvai pela carência desse cruzamento. Narciso se esquece de si 
porque confunde sua imagem, um signo do eu, com o próprio eu. Aliena-se no signo, toma a imagem por 
realidade e desvanece como objetivo, isto é, como realidade que fora da imagem, determina a imagem. 
Perde-se de si por não perceber a fenda, a brecha da diferença entre o próprio eu, este que avança no 
fluxo da vida, e a imagem (representação) do eu. Perde-se por não perceber a imagem como outro do eu, 
isto é, fragmento parcial e incompleto que, como toda imagem, pode estar no lugar do eu, substituí-lo, 
representá-lo, sem que, no entanto, possa ser o eu. Perde-se, enfim, porque lhe falta a experiência 
amorosa, essa via cruzada na qual, tal como Narciso, também nos perdemos para nos ganhar. Única 
instância talvez em que nos perdemos no outro enquanto o outro se perde em nós. Única instância, 
sempre muito frágil, tenra e transitória, em que nosso olhar é o espelho do outro, enquanto o olhar do 
outro nos espelha. Única instância, enfim, em que, num lampejo, a fenda da alteridade estreita-se até a 
fina película da quase identidade. 
 
 
LÚCIA SANTAELLA é ensaísta, professora no curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da 
PUC-SP e autora de "Produção de Linguagem e Ideologia" e "Arte e Cultura Equívocos” e "O que é 
Semiótica" (Brasiliense). 
 
' FOLHETIM, 16 de setembro de 1984

Continue navegando