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Economia do desejo_ A farsa da tese neoliberal

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1ª edição
Rio de Janeiro
2020
M837e
20-63994
Copyright © Eduardo Moreira, 2020
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Moreira, Eduardo
Economia do desejo [recurso eletrônico]: a farsa da tese neoliberal / Eduardo Moreira; [texto de orelha Betto]; [prefácio Luiz Gonzaga
Belluzzo]. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2020.
recurso digital
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 9788520014158 (recurso eletrônico)
1. Economia. 2. Consumo (Economia) – Aspectos sociais. 3. Capitalismo. 4. Neoliberalismo. 5. Livros eletrônicos. I. Betto. II. Belluzzo,
Luiz Gonzaga. III. Título.
CDD: 330.122
CDU: 330.142.1
Leandra Felix da Cruz Candido – Bibliotecária – CRB-7/6135
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização
por escrito.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direitos desta edição adquiridos pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Um selo da
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.
Seja um leitor preferencial Record.
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Atendimento e venda direta ao leitor:
sac@record.com.br
Produzido no Brasil
2020
mailto:sac@record.com.br
SUMÁRIO
Prefácio
Introdução
1. A lógica capitalista
2. A economia do desejo
3. O Estado e a economia da necessidade
4. A economia do ódio
5. Conclusão — paz e guerra
Dedico este livro a Juliana, Francisco, Catarina e Maria Eduarda, onde busco força e serenidade para seguir adiante.
PREFÁCIO
Luiz Gonzaga Belluzzo
Abrigado nas trincheiras domésticas para escapar da mortal artilharia do Coronavírus, recebi um gentil telefonema de
Eduardo. Sempre descontraído em seu sotaque carioca que me desperta agradáveis lembranças dos anos de Colégio Santo
Inácio, Eduardo sugeriu que eu assumisse o encargo de escrever o prefácio de seu novo livro.
O título Economia do desejo suscitou a esperança de encontrar uma narrativa que escapa aos espartilhos que
aprisionam a “razão econômica” nos calabouços de teorias ignorantes da complexidade da ação humana na sociedade dos
indivíduos. Foi, de fato, o que encontrei.
O espartilho é a fábula do indivíduo racional e maximizador da utilidade. Nas versões eruditas ou nas traduções
vulgares, a hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para
apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos
agentes.
Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos
indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-
Feira.
Ainda no alvorecer do século XVIII, A fábula das abelhas, de Bernard de Mandeville, buscou a sociedade ideal
trafegando na faixa da moral individualista, racionalista e utilitarista. Vícios privados, virtudes públicas. Mandeville conta
a história de uma colmeia próspera e progressista, ambiente em que prevaleciam os vícios egoístas de todos as habitantes,
incluído o roubo do produto alheio. Esse comportamento foi interceptado, em certo momento, pela nostalgia da moral
cristã, a nostalgia da virtude. As abelhas resolveram retroceder, voltar à prática da virtude. A prosperidade se converteu na
decadência.
Voltaire acolheu ironicamente as peregrinações de Leibniz e Mandeville. No Cândido, ou O otimismo, o ilustre
iluminista encarregou o professor Pangloss de justificar as múltiplas formas do mal: “Tudo isso era indispensável [...];
infortúnios particulares fazem o bem geral.” Isso permitiu que Cândido formulasse uma definição da filosofia de
Pangloss: é preciso dizer que está tudo bem quando as coisas andam mal.
Já no primeiro capítulo do livro, Eduardo oferece aos leitores a narrativa de um episódio revelador das insidiosas
práticas pseudocientíficas que abarrotam o mundo contemporâneo. Ao ministrar uma aula na Casa do Saber, foi
interpelado por um cavalheiro de fino trato a respeito das críticas do palestrante ao neoliberalismo. O gentil cavalheiro
manifestou sua discordância de forma cortês. Seu argumento foi ilustrado com o sucesso inequívoco das economias da
Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá.
Nos debates corriqueiros com amigos e colegas neoliberais, Eduardo era frequentemente contraditado com a
exibição do ranking dos países mais bem-sucedidos. Esse ranking era construído a partir de um índice elaborado pela
Heritage Foundation, conhecida e reconhecida por sua filiação aos princípios do liberalismo econômico. Cito Eduardo:
“O índice mais utilizado para definir o grau de ‘liberdade econômica’ de um país e embasar as teses neoliberais leva este
mesmo nome: Index of Economic Freedom. Um índice elaborado e calculado por uma fundação americana chamada
Heritage, que na primeira página de seu site define sua missão como ‘formular e promover políticas públicas
conservadoras baseadas nos princípios do livre mercado, Estado mínimo, liberdades individuais, valores tradicionais
estadunidenses e fortalecimento da defesa estadunidense’.”
Surpreso com a afirmação peremptória do cavalheiro elegante, Eduardo empenhou-se em examinar de forma mais
acurada a construção do índice de liberdade econômica e descobriu que nos bastidores da precisão estatística abrigava-se
uma fraude conceitual.
“Percebe-se, ao final da análise, que o índice funciona como uma ‘conta de chegada’, criada para atribuir aos países
mais ricos e desenvolvidos o rótulo de ‘livres’ ou ‘majoritariamente livres’ economicamente, e gerar uma relação enviesada
e equivocada nas pessoas de relação de causa e efeito, num típico exemplo da falácia cum hoc ergo propter hoc (se ambos
acontecem juntos, um causa o outro).”
Ao ler as considerações mencionadas, a respeito da construção do índice, recorri à psicanalista francesa Élisabeth
Roudinesco, autora, entre outras obras, de uma imperdível biografia de Sigmund Freud.
Exímia em percorrer os caminhos perigosos da filosofia e da psicanálise, Roudinesco ausculta, na aurora do século
XXI, rumores cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Descobre que a sociabilidade competitiva de
nossos tempos entrega razão a Mandeville.
Diz Roudinesco que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais
medíocres, as mais charlatãs, as mais criminosas? Classificar, ranquear, calcular, medir, colocar um preço, homogeneizar:
esse é o nada absoluto das investigações contemporâneas, impondo-se sem limites em nome de uma modernidade falsa
que solapa todas as formas de inteligência, como a crítica fundamentada na análise da complexidade das coisas e das
pessoas.
Roudinesco desvela os desencantos da sexualidade pós-moderna. “Nunca a sexualidade foi tão desenfreada, e nunca
a ciência avançou tanto na exploração do corpo e do cérebro. No entanto, nunca o sofrimento psicológico foi tão intenso:
solidão, uso de drogas que alteram a mente, tédio, fadiga, dieta, obesidade, medicalização de cada segundo da existência.
A liberdade do eu, tão necessária, e conquistada à custa de tanta luta durante o século XX, parece ter se transformado em
uma demanda por contenção puritana.”
Quanto ao sofrimento social, diz Roudinesco, é cada vez mais difícil de suportar, porque parece estar
constantemente em ascensão, num contexto de desemprego juvenil e trágicos fechamentos de fábricas. O sexo não é
experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho, uma ginástica, como a higiene para os
órgãos, o que só pode levar à confusão afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis?
Com que frequência? Quantos parceiros em uma vida, em uma semana, em um único dia, minuto a minuto?” O avanço
exasperado da “quantidade” encolhe o espaçode fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um
aumento nas queixas de todos os tipos.
Ainda no primeiro capítulo, Eduardo recorre a Facebook, Google e demais gigantes da Internet para nos
proporcionar uma análise excelente a respeito do processo de concorrência no capitalismo de todos os tempos. No
capitalismo de ontem, hoje e sempre, a concorrência é o caminho mais curto para o monopólio.
Ele escreve: “Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o ‘livre mercado’ passa longe de
existir. E isso é decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no
longo prazo ao monopólio ou ao oligopólio. O segundo vem da ideia de que, ao concentrar poder econômico, concentra-
se também poder político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras
que impedem a competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da sua falta.”
O processo de concorrência é, ao mesmo tempo, um processo que envolve a alteração do tamanho da firma, a
diversificação da estrutura produtiva e a existência de formas financeiras aptas a “descongelar” o capital já empregado e
mobilizá-lo na direção de novos empreendimentos. Em outras palavras, o crucial na concorrência generalizada é a maior
ou menor capacidade que as diversas unidades de capital apresentam para superar barreiras à sua expansão.
Aqui, peço licença para a reprodução de um trecho do meu livro O capital e suas metamorfoses. Lá eu dizia que a
modalidade de organização da empresa capitalista que torna possível a fusão de interesses entre os gestores capital-
dinheiro e os administradores do capital produtivo é a sociedade anônima, cujo caráter “coletivista” se sobrepõe aos
capitais dispersos e, ao mesmo tempo, reforça sua rivalidade.
Essa forma desenvolvida de existência do capital dá origem ao monopólio, às formas mais escandalosas de controle
político e à submissão do Estado aos ditames da finança. O desenvolvimento do capital financeiro depende da
constituição dos mercados secundários de negociação dos títulos de dívida e ações que “regulam” a transferência da
propriedade entre os capitalistas. Isso supõe o desenvolvimento dos mercados financeiros e de capitais incumbidos da
avaliação dos títulos de dívida e dos direitos de propriedade sobre a riqueza e a renda.
Esse “sistema” garante a reprodução do regime de apropriação privada da riqueza e, ao mesmo tempo, ameaça
continuamente de aniquilação os proprietários individuais que não conseguem acompanhar a corrida imposta pelas
“normas” técnicas, econômicas, políticas e financeiras que caracterizam o processo de concorrência. Os direitos de
propriedade são também direitos à expropriação.
O coração do livro bate mais acelerado quando Eduardo trata das relações entre utilidade, desejo, dinheiro e ódio.
Começo com o dinheiro. Georg Simmel, em seu livro A filosofia do dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo
amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela
sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele.
Suas preferências, seus sentimentos e desejos são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.
É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e sua subjetividade em
simples coágulos monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da moderação, da
frugalidade, da solidariedade. Então, como podemos falar de sentimentos como honradez, dignidade, autorrespeito,
numa sociedade em que todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de riqueza
monetária que cada um consegue acumular?
Volto a Roudinesco. Ela registra o descompasso entre as promessas e as realizações da sociedade competitiva
utilitarista. Quanto mais se promete aos indivíduos felicidade e segurança, mais a infelicidade persiste, mais as vítimas das
promessas não cumpridas se revoltam contra “aqueles que os traíram”. Parece impossível não detectar, nessa curiosa
psicologização da existência que tomou conta da sociedade e que está contribuindo para o surgimento da despolitização e
do ódio à política, a expressão mais insidiosa do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de pequeno fascismo
cotidiano, íntimo, desejado, admitido e celebrado pelo próprio indivíduo, que é seu protagonista e sua vítima. Um pouco
de fascismo, que naturalmente não tem nada a ver com os grandes sistemas fascistas, uma vez que desliza dentro de cada
indivíduo sem que ele perceba, sem nunca pôr em causa os princípios sacrossantos dos direitos do homem, do
humanismo, da democracia.
As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pós-moderno levam à morte o indivíduo
iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele foi
substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses
maciças de Prozac, a essência de todo o conflito.
Diante das misérias da vida e de uma vida de misérias, as vítimas dos deuses mundanos buscam refúgio no
Incompreensível. No livro As ruínas do neoliberalismo, Wendy Brown ultrapassa as banalidades dos diagnósticos que
gritam, em debandada, “Polarização!!! Populismo!!!”. Brown vai mais fundo: os valores e instituições ocidentais —
progresso, iluminismo e democracia liberal — batem em retirada diante da ofensiva das milícias que reúnem, no mesmo
pelotão, mercenários e buchas de canhão na defesa do liberalismo econômico, do moralismo, do autoritarismo, do
nacionalismo, do ódio ao Estado, do conservadorismo cristão e do racismo. Essa turba combina o discurso moralista com
a conduta amoral, brutalizada e incivilizada.
INTRODUÇÃO
“Agora, finalmente, estamos nos colocando seriamente a perguntar se de fato é necessário existir as chamadas ‘classes
baixas’ na sociedade: ou seja, se é preciso existir um grande número de pessoas condenadas desde seu nascimento a um
trabalho duro, para prover a outros os requisitos de uma vida refinada e privilegiada; enquanto eles próprios são
proibidos, por sua pobreza, de ter qualquer fatia dessa vida.
A esperança de que a pobreza e a ignorância possam ser gradualmente extintas tem, na verdade, bastante
fundamento no progresso contínuo da classe trabalhadora ao longo do último século. As novas tecnologias os têm
aliviado da maior parte dos trabalhos exaustivos e degradantes. Os salários têm crescido. A educação tem melhorado e se
tornado disponível a um maior número de pessoas; os sistemas de transporte e de comunicação têm permitido que
negócios em diferentes partes do país possam se comunicar facilmente uns com os outros e desenvolver metodologias e
políticas amplas e transparentes; ao mesmo tempo, a crescente demanda por tarefas intelectuais exige tantos
trabalhadores, que esses agora superam os que são totalmente despreparados. Uma boa parte dos que fazem trabalhos
braçais deixou de fazer parte das ‘classes baixas’, no sentido original em que o termo usualmente é utilizado; e alguns deles
já levam hoje uma vida mais refinada e nobre do que a maioria dos membros das ‘classes altas’ tinham há um século.
Esse progresso tem feito mais do que qualquer outra coisa para trazer atenção ao questionamento de se é realmente
impossível que todos possam começar a vida no mundo com uma chance justa de ter uma vida com cultura, livre das
dores da pobreza e das influências nocivas dos trabalhos braçais; e essa questão tem sido chave pelo aumento da
responsabilidade de nossa era.”1
O texto acima poderia ter sido escrito por qualquer um dos renomados economistas neoliberais dos dias de hoje.
Vários desses argumentos são, com muita frequência, repetidos incansavelmente por muitos daqueles que defendem o
modelo capitalista — que prepondera na maior parte do mundo — para rebater as críticasque recaem sobre um sistema
que acumula tanta riqueza nas mãos de poucos e tão pouca riqueza oferece para ser distribuída pela maioria. “Uma pessoa
pobre vive hoje com mais qualidade e por mais tempo do que um rei costumava viver na Idade Média”, dizem uns. “A
extrema pobreza tem sido brutalmente diminuída ao longo das últimas décadas, graças ao avanço do capitalismo”, dizem
outros. E assim, alimentados pela esperança de que “as coisas têm melhorado” nas últimas décadas, e renovando a
confiança no sistema que os condenou a uma vida cheia de restrições e sofrimento, muitos seguem defendendo seus
cruéis algozes e fortalecendo um sistema que ganha cada vez mais força e deixa um rastro de destruição cada vez maior.
O fato curioso a respeito do texto inicial deste capítulo, porém, não é o modo como resume bem os argumentos
utilizados por boa parte dos economistas liberais para defender o modelo capitalista vigente no mundo. O intrigante é o
fato desse texto ter sido escrito por um economista no final do século XIX, há quase 150 anos. É um trecho do livro
Principle of Economics (Princípio da Economia), de Alfred Marshall, um dos maiores economistas de sua época e ainda
um pensador extremamente influente, graças à capacidade que seus trabalhos têm de organizar e integrar os conceitos de
demanda, oferta, utilidade marginal e custos de produção.
Infelizmente, existe uma enorme distância entre o discurso esperançoso dos economistas neoliberais e a realidade
vivida pela maior parte da população mundial. Apesar de, realmente, ter havido uma diminuição relevante do número de
pessoas que vivem na extrema pobreza (as que recebem menos de US$ 1,90 por dia) ao longo das últimas décadas — fato
celebrado também por instituições como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e outros notórios defensores
das políticas de livre mercado e Estado mínimo —, a parcela da população mundial que vive em situação de pobreza (a
que recebe menos de US$ 5,50 por dia) é ainda assustadora,2 pois representa quase 50% da população mundial, ou quase
4 bilhões de pessoas.
Mesmo os avanços registrados no caso da diminuição das taxas de extrema pobreza não deveriam ser comemorados
ou associados ao “sucesso” do modelo capitalista. E são vários os motivos que levam a essa conclusão. Primeiro porque
aconteceram em um ritmo absolutamente desproporcional ao aumento da produção da riqueza mundial (e em muitos
casos sem correlação com ele). Um simples cálculo pode demonstrar que o mundo não suportaria a geração de riqueza
necessária para, com o modelo capitalista de distribuição de riqueza, acabar com a pobreza. Basta observar que da década
de 1960 à década de 2010 a quantidade de riqueza gerada no mundo (PIB Global), já descontada a inflação do período,
multiplicou-se por mais de 8 vezes (800%). Se, mesmo multiplicando a quantidade de riqueza gerada no mundo por
tantas vezes (o que levou a vários recursos naturais darem sinais claros de esgotamento), temos ainda metade da
população vivendo em situação de pobreza, como imaginar um mundo capaz de oferecer os recursos naturais necessários
para tirar toda a população dessa situação?
PIB Global (Produto Mundial Bruto) 1960-2017
Fonte: https://www.worldometers.info/gdp/
Fonte: www.researchgate.net/figure/Global-poverty-pyramid-Prahalad-2009_fig3_325704218
Pirâmide global de riqueza
Uma visão geral da distribuição de renda (US$)
Fonte: www.statista.com/chart/11857/the-global-pyramid-of-wealth/
Em segundo lugar, é importante destacar que boa parte das pessoas que têm saído da situação de extrema pobreza
ao longo das últimas décadas é de chineses; são de um país com um modelo econômico diferente do defendido pelos
economistas neoliberais, que creditam ao sucesso do capitalismo a diminuição dessas estatísticas. Aliás, quando
observamos os indicadores relativos ao ganho de qualidade de vida utilizados pelos defensores do regime neoliberal,
encontramos também pouca correlação com o sucesso do capitalismo. Percebam que da década de 1960, logo após a
revolução cubana, até 2016, a expectativa de vida dos moradores da ilha do Caribe subiu de 63/83 anos para 79/74 anos.
Enquanto isso, a expectativa de vida nos Estados Unidos, que em 1960 era de 69/77 anos, quase 6 anos a mais do que a
dos cubanos, em 2016 era de 78/69 anos, inferior à de seus “vizinhos comunistas”.
Por fim, devemos voltar novamente ao texto inicial deste capítulo e nos perguntar qual deve ser o objetivo de uma
sociedade justa e solidária. Elevar a parcela pobre da população a um nível logo acima da linha que define
estatisticamente “pobreza” e deixá-los vivendo ainda em condições de escassez e sofrimento, ou realmente permitir que
“todos possam começar a vida no mundo com uma chance justa de ter uma vida com cultura, livre das dores da pobreza
e das influências nocivas dos trabalhos braçais”, como sonhava Alfred Marshall?
Notas
1. A. Marshall, Principles of Economics (Palgrave Classics in Economics), Kindle Edition, Londres, Palgrave Macmillan UK, 2013. p. 9. Tradução livre do autor.
2. www.worldbank.org/en/topic/poverty/overview
1. A LÓGICA CAPITALISTA
A lógica defendida pelo sistema capitalista é sedutora e, no papel, aparentemente inquestionável. O sistema deveria
funcionar, pelo menos em tese, gerando e distribuindo riqueza entre todos seus participantes da maneira mais rápida e
meritocrática possível. É tão bem estruturada e simples que, em poucas linhas, qualquer um pode entendê-la.
Funciona assim: o objetivo final de toda empresa e pessoa em suas atividades comerciais é o lucro. O lucro, por sua
vez, é definido pela diferença entre o preço pago pelos insumos necessários para a confecção de um produto (ou
elaboração de um serviço) e o preço pelo qual ele é oferecido e vendido no mercado. Já esse preço pelo qual o produto é
vendido no mercado varia em função, principalmente, do quanto as pessoas estão dispostas a pagar por aquilo que o
produto pode lhes oferecer. Na teoria econômica, chama-se isto de utilidade marginal. Ou seja, qual é a utilidade
adicional que uma pessoa passa a ter ao adquirir aquilo que está sendo oferecido. Quanto maior essa utilidade, maior será
sua disposição para trocar uma fatia mais gorda de sua riqueza pelo objeto. Em outras palavras, maior será o preço que
aceitará pagar.
Ao estimular o lucro, o sistema fará com que as empresas foquem suas atividades nos produtos e serviços que
oferecem maior utilidade para as pessoas e que, portanto, podem ser vendidos pelos maiores preços. Isso fará com que, ao
concentrar seus esforços em atender a essa utilidade buscada pelos compradores, o mercado concentre também seus
esforços em atividades que são úteis para a vida das pessoas (e em tese a melhoram). Ao oferecer um lucro cada vez maior
para aqueles que se dedicam a ofertar, com a própria empresa, esses produtos e serviços, essas atividades irão atrair uma
competição de novos interessados em participar desses grandes lucros. E é essa competição que fará com que a demanda
pelos insumos, entre eles a mão de obra utilizada para confeccionar esses produtos, também cresça. Com maior demanda,
o preço desses insumos crescerá, consumindo parte do lucro que antes ficava concentrado nos donos das empresas e o
distribuindo para toda a cadeia. Esse “transbordamento” do lucro que inicialmente concentra-se no dono do capital, mas
que depois, ao longo do tempo e por meio da competição pelas atividades de maior lucro, é distribuído por toda a cadeia,
é o que a teoria econômica chama de trickle-down economics. E é através desse mecanismo que o capitalismo consegue
maximizar a utilidade oferecida com seus bens e serviços à sociedade e ao mesmo tempo distribuir riquezas de maneira
justa e meritocrática (de acordo com os méritos de cada um ao longo do processo). É inegável que é uma bela e bem-
construída história.
Para que isso aconteça, defendem aqueles que acreditam no modelo, é preciso que a competição aconteça da
maneira mais livre possível. E é essa competição livre, sem interferências, que permiteque a “mágica” aconteça e os
recursos sejam distribuídos de maneira ótima e justa. Como numa daquelas experiências que alguns de nós fizemos no
colégio, em que uma série de tubos verticais tem pequenos vasos intercomunicantes em sua base. Enchemos então os
tubos com quantidades de água diferentes e abrimos esses pequenos vasos que os ligam. A água então flui daqueles que
tem mais para os que tem menos, fazendo com que a distribuição fique igual entre todos. Quanto menos livre for a
comunicação entre os vasos (menos aberta estiver a passagem), mais demorado será o processo para se chegar até a
condição final de igualdade. Apesar de não defender que todos os “tubos” da sociedade tenham a mesma quantidade de
água ao final do processo, o discurso capitalista diz que indivíduos que se “esforcem” de maneira igual e tenham a mesma
“competência” chegarão ao final do processo com a mesma quantidade de água em seus tubos, a tão anunciada
meritocracia.
A preocupação deve ser então a de garantir que o mercado tenha as condições de existir da maneira mais “livre”
possível e com a menor (idealmente sem nenhuma) interferência nos processos de negociação e formação de preços. Isso,
na prática, significa um ambiente com menos leis protegendo os trabalhadores, menos gastos sociais, menos impostos,
menos subsídios a qualquer atividade e, principalmente, menos estrutura de Estado. Dele, o Estado, deve sobrar somente
o mínimo. Daí a expressão “Estado mínimo” defendida pelos defensores dessa tese. E o “mínimo” que sobra deve ser
somente o suficiente para garantir as condições para que o “livre mercado” exista, ou seja, para que exista um Estado que
garanta os direitos à propriedade e tenha o monopólio do uso da força para impedir qualquer tentativa de sabotar o
funcionamento do sistema.
O sistema capitalista, portanto, baseia-se na afirmação, quase dogmática, de que só o livre mercado é capaz de gerar
riqueza, distribuí-la de forma justa e maximizar a utilidade das pessoas.
Por que será então que isso não acontece, e o mundo ainda sofre com a pobreza e a degradação da condição
humana? Será porque, como defendem os economistas neoliberais, temos de fazer o mercado ainda mais livre do que é
hoje? Diminuir a carga tributária, acabar com as leis do trabalho, reduzir o tamanho dos Estados e incentivar ainda mais
o lucro? Ou será que existe algo além?
A verdade é existem dois fatores-chave que, curiosamente, parecem passar despercebidos para boa parte dos
economistas e desmontam essa lógica neoliberal, que promete um mundo melhor, baseado na incessante busca pelo
lucro.
O primeiro deles é o fato de que o livre mercado, da forma como é descrito pela teoria, em um dado momento
acaba se sabotando no mundo real. E o segundo está relacionado à definição de “utilidade”, variável que se promete
maximizar com o modelo. Sobre o primeiro assunto, discorrerei nos parágrafos a seguir. Sobre o segundo, é o tema
principal desta obra.
O fato de que um mercado mais livre gera uma sociedade mais rica e justa é tido como uma verdade absoluta pelos
defensores da tese neoliberal. O curioso, porém, é notar a carência de evidências que demonstrem esse fato, quando
observamos a realidade dos diversos países do mundo e os modelos econômicos que adotam. Talvez, em relação a serem
os mais ricos, ou seja, os que mais produzem riquezas por habitante — o que é medido pelo valor de seu Produto Interno
Bruto (PIB)/per capita —, haja sim alguma correlação, apesar de não tão clara como alardeiam. Mas, certamente, não há
correlação alguma entre aqueles que são os mais justos, ou os que têm melhor qualidade de vida de seus habitantes, e a
adoção de políticas neoliberais.
O índice mais utilizado para definir o grau de “liberdade econômica” de um país e embasar as teses neoliberais leva
este mesmo nome: Index of Economic Freedom. Um índice elaborado e calculado por uma fundação americana chamada
Heritage, que, na primeira página de seu site, define sua missão como “formular e promover políticas públicas
conservadoras baseadas nos princípios do livre mercado, Estado mínimo, liberdades individuais, valores tradicionais
estadunidenses e fortalecimento da defesa estadunidense”.3 Navegando um pouco mais no site, encontra-se a descrição
dos membros da direção e do conselho de administração (board of trustees) da instituição com uma foto em que
aparecem dezenove pessoas, das quais quinze são homens brancos, quatro são mulheres e somente uma pessoa é negra (o
tal livre mercado parece não estar funcionando na própria instituição que o defende com tanto afinco, oferecendo
oportunidade a todos de maneira igual). Acessando o nome dos integrantes para analisar seu currículo, nota-se que são
todos ex-executivos de grandes grupos empresariais ou de grupos políticos conservadores e ultraconservadores
estadunidenses.
Mas voltemos ao índice em si, divulgado pela fundação Heritage, o Index of Economic Freedom. Sempre ouvi em
minhas discussões com colegas defensores das teses neoliberais o argumento de que os países pior ranqueados no índice
eram em sua maioria países muito pobres, a maior parte deles africanos, o que seria uma demonstração clara e inequívoca
de que quanto menor a liberdade econômica de um país, menor a prosperidade experimentada por seu povo. O mesmo
índice também é utilizado insistentemente para justificar a urgência de reformas no Brasil que tornem nossa economia
mais “livre”, permitindo assim que alcancemos a prosperidade como nação. Somos um dos últimos colocados na lista,
ocupando em 2019 a posição 150 entre os 180 países ranqueados.4
O curioso é notar que eu nunca havia parado para compreender como era calculado o tal índice de liberdade
econômica. Eu simplesmente ouvia os argumentos dos colegas e, ao atribuir ao índice um significado sinônimo de
liberdade econômica, imaginava que tinham certa razão em seus comentários. Afinal de contas a relação apresentada era
direta e inequívoca.
Mas como será que essa fundação fazia para quantificar um conceito qualitativo como liberdade econômica? Essa
era a pergunta que eu deveria ter feito desde o começo, mas que nunca havia me vindo à cabeça. Até o dia em que fui
realizar uma palestra na Casa do Saber, em São Paulo, e fui questionado de uma maneira nova, por um dos participantes,
sobre o tal índice.
Era um senhor, na casa de seus 50 anos, vestindo roupas sociais, e com uma postura firme, mas serena, quase
profissional. Levantou a mão sinalizando que tinha uma dúvida sobre o que eu tinha falado e, ao receber a palavra,
começou: “Olá, Eduardo, como vai? Eu percebo que a maior parte dos que lhe assistem hoje compartilham de suas ideias
e visões de mundo. Eu, porém, não compartilho. Talvez seja o único nesta sala.” Houve certa surpresa nos presentes, mas
nenhum constrangimento, dada a educação e o cuidado com os quais o senhor colocava suas palavras. Ele continuou:
“Eu sou um adepto do liberalismo econômico. E os países que você citou em sua palestra como sendo os países que mais
distribuem renda e que têm melhores indicadores de qualidade de vida adotam todos políticas liberais na economia.
Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Canadá... Todos têm um grau de liberdade econômica muito grande,
o que pode ser visto pela posição que ocupam no ranking de liberdade econômica. É por isso que eu sou contra a
interferência do Estado na economia, sou a favor de uma legislação trabalhista menos rigorosa e também a favor de uma
menor carga tributária pesando sobre a população.” E me passou de volta a palavra.
Uau! E agora, o que dizer? Eu havia estudado a economia de quase todos esses países, a maior parte deles, sociais-
democracias, e jamais achei que um dia iria ouvir que eram exemplos do sucesso da tese neoliberal. Era óbvio para mim
que não eram. Em quase todos os citados eu sabia que o Estado exercia um papel fundamental na oferta de serviços
públicos, redistribuição de riqueza e proteção dos trabalhadores. Mas eis que o ranking, sinônimo de liberdade
econômica, os trazia bem colocados! A provade que eram neoliberais! Havia algo de errado no reino da Dinamarca...
Literalmente.
Resolvi chegar em casa e estudar o índice na internet. Algo tão simples (e certamente tão fácil hoje em dia, dada a
facilidade de acesso às informações), que me surpreende que eu nunca houvesse feito. E, ao descobrir como era calculado
o índice, tive uma enorme surpresa. O índice era absolutamente enganoso em relação à correlação entre o quão
“neoliberais” eram as economias dos países e o lugar que ocupavam no ranking. Uma farsa! Mas uma farsa tão bem
elaborada e propagandeada que, ao que parece, nunca nenhum de meus colegas havia feito aquilo que eu decidira fazer:
pesquisado sobre como o índice era calculado. Simplesmente o tinham como uma medida do grau que um país adotava
da tese do Estado mínimo e do livre mercado.
O índice é calculado de uma maneira incrivelmente simplória. Elegem-se doze temas para avaliar o grau de
liberdade econômica de um país, divididos em quatro categorias: Estado de Direito, Tamanho do Governo, Eficiência
Regulatória e Abertura dos Mercados. Faz-se, então, uma média simples, sem qualquer definição de pesos, com os
resultados dos doze temas. Curiosamente, vários dos temas parecem ter muito pouco a ver com o conceito de liberdade
econômica que imaginamos. Ou pelo menos não com o peso que daríamos. Por exemplo, o tema Integridade do
Governo (Government Integrity, uma medida da percepção da corrupção no país), tem o mesmo peso do tema Liberdade
do Comércio (Trade Freedom). Vários dos temas têm conceitos qualitativos, difíceis de se mensurar, e acabam por gerar
relações de proporcionalidade absolutamente absurdas. Percebe-se, ao final da análise, que o índice funciona como uma
“conta de chegada”, criada para atribuir aos países mais ricos e desenvolvidos o rótulo de “livres” ou “majoritariamente
livres” economicamente, e gerar uma relação enviesada e equivocada nas pessoas de relação de causa e efeito, num típico
exemplo da falácia cum hoc ergo propter hoc (se ambos acontecem juntos, um causa o outro).
Países como a Dinamarca, Suécia e Noruega, que lideram os rankings que medem a qualidade de vida da população
(como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano, IDH), são todos “majoritariamente livres” no ranking de
liberdade econômica. Ao acessar, porém, a memória de cálculo de suas notas, podemos observar que têm uma
combinação de notas altas em itens como Integridade do Governo, Saúde Fiscal e Eficiência do Judiciário, e notas baixas
(às vezes muito baixas) em Gastos Governamentais, Liberdade das Leis Trabalhistas e Carga Tributária. Ou seja, esses
países — indicados levianamente por muitos como exemplo do sucesso das políticas neoliberais —, praticam, nos temas-
chave — foco das reformas propostas como solução dos problemas de países como o Brasil — o contrário do receituário
neoliberal, a saber, relevantes gastos sociais, alta carga tributária (concentrada nos indivíduos mais ricos da população) e
legislação trabalhista rigorosa, defendendo os direitos dos que não têm acesso ao capital.
Por outro lado, se o Brasil passasse a ter uma nota boa no quesito Integridade do Governo e passasse a ter um
resultado fiscal melhor (passando por exemplo de déficit para superávit primário), mesmo sem alterar em nada a
burocracia existente para as empresas no país, sem alterar os impostos cobrados, sem mexer nas regras de importação e
sem melhorar seu sistema legal de proteção à propriedade, ou seja, sem alterar na prática nada relativo àquilo que é tido
como um ambiente de liberdade econômica, subiria mais de cinquenta posições no ranking...
Mesmo nos países tidos como praticantes de políticas neoliberais, o livre mercado passa longe de existir. E isso é
decorrência de dois motivos. O primeiro, o fato de que todo mercado sem regulação alguma tende no longo prazo ao
monopólio ou oligopólio. O segundo vem do fato de que, ao concentrar poder econômico, concentra-se também poder
político, e é esse poder político que é utilizado para fazer do Estado um agente protetor das barreiras que impedem a
competição tão defendida pelos discursos dos mesmos grupos que se beneficiam da falta dela.
Analisemos o primeiro motivo, o dos mercados não regulados tenderem no longo prazo ao monopólio, ou, usando
linguagem econômica, à consolidação. Vejamos um exemplo incrivelmente didático ocorrido ao longo das últimas
décadas: as empresas pontocom. A internet, que tem suas raízes em tecnologias desenvolvidas pelo sistema de defesa
americano nas décadas de 1960 e 1970, transformou-se rapidamente, a partir da segunda metade da década de 1990, em
uma plataforma de negócios que desafiava as fronteiras do mundo físico. Criou-se, rapidamente, um ambiente de
negócios muito pouco regulado e com pouquíssimas barreiras de entrada, o sonho da tese neoliberal. Nesse ambiente,
jovens universitários em suas garagens podiam competir em pé de igualdade com as maiores empresas do mundo, criando
um ambiente competitivo meritocrático e quase utópico.
O resultado, depois de poucas décadas, foi um território dominado quase que totalmente por monopólios. Com
uma taxa de mortalidade e consolidação sem precedentes na história, se as empresas que se lançaram na “livre
competição” da internet fossem pessoas numa guerra, não haveria cemitérios suficientes para enterrá-las. Facebook
tornou-se um monopólio, Google, Instagram, Linkedin, Amazon, WhatsApp, Twitter e tantos outros também. Todas as
outras que tentaram competir morreram ou foram absorvidas, fazendo com que o grau de dependência do mercado a
essas empresas que se transformaram em monopólios explodisse ao longo dos anos. Isso permitiu que o preço dos serviços
oferecidos por elas pudesse ser aumentado também exponencialmente, quebrando várias empresas e capturando boa parte
da lucratividade das que resistiram. E fazendo de alguns jovens de 20 ou 30 anos algumas das pessoas mais ricas do
mundo, acumulando dezenas e dezenas de bilhões de dólares.
Mas como esse processo de consolidação acontece? Um simples exemplo pode explicar ao leitor e à leitora. Imagine
que existam duas empresas que realizam uma mesma atividade, por exemplo, a venda de roupas esportivas. Imagine ainda
que essas duas empresas tiveram ao longo do último ano um mesmo resultado, R$ 1 milhão de lucro. Agora imagine que
as duas empresas têm também algumas características distintas. A primeira vinha de um lucro de somente R$ 200 mil no
ano anterior, quando foi inaugurada, e a segunda vem há vários anos tendo um lucro parecido. A primeira desenvolveu
uma marca que caiu no gosto da parcela jovem da população, grande usuária de artigos esportivos, sendo inclusive usada
por vários atletas de ponta, formadores de opinião. A segunda é uma marca antiga, já com menos apelo nos formadores
de opinião. A primeira tem sistemas de gerenciamento de estoque modernos e é mais eficiente do que a segunda. Tudo
isso vai fazer com que a primeira seja percebida pelo mercado como tendo um valor maior do que a segunda. Na
linguagem de mercado, dizemos que a primeira empresa tem um “múltiplo” maior do que a segunda. Isso porque o valor
dela será um múltiplo maior do seu resultado do que o da segunda. Digamos que a primeira tenha um múltiplo de 10 e a
segunda um múltiplo de 5. Isso fará a primeira ter um valor de mercado de R$ 10 milhões enquanto a segunda terá um
valor de mercado de R$ 5 milhões.
Imagine então que o dono da primeira empresa tem uma ideia genial. Ele liga para o dono da segunda empresa e
pergunta se ele não quer juntar as duas operações. Assim, a segunda empresa poderá utilizar os sistemas de gerenciamento
da primeira e poderá reformular e modernizar sua marca com a equipe de marketing da primeira, aumentando assim seu
crescimento. A primeira, com a união das duas, poderá ampliar sua capacidade produtiva e acabar com um de seus
competidores. Mas o melhor ainda está por vir. Ao absorver a segunda empresa, a primeira passa a consolidar os dois
resultados, e o seu múltiplo passa a valer para a operação conjunta. Se antes as duasempresas somadas valiam R$ 15
milhões, agora, juntas, terão um lucro de R$ 2 milhões com um múltiplo de 10, ou seja, um valor de R$ 20 milhões.
Esse ganho imediato, de R$ 5 milhões, resultante da consolidação das empresas é dividido entre os dois donos e todos
saem ganhando. A história parece linda dentro da lógica capitalista. E por algum tempo pode até ser.
O fato de o mercado ter perdido um competidor e ficado concentrado na primeira empresa é, a princípio, visto
pelos defensores da tese neoliberal até com bons olhos. Afinal, ao consolidar as empresas debaixo daquela que tem maior
eficiência operacional, maior crescimento, melhor reputação e melhores práticas, o que se está fazendo, na verdade,
defendem eles, é concentrar os recursos disponíveis onde eles são mais bem utilizados, gerando ganho para todos.
O tempo então decorre, e a consolidação das empresas faz com que os empregados da nova empresa consolidada
tenham menos lugares para trabalhar. Passam a ser, então, mais dependentes das condições de emprego oferecidas pelo
dono da empresa. Os consumidores têm agora menos poder de barganha (e, portanto, menor influência sobre os preços),
dado que possuem menos opções para comparar, na hora de comprar. Com uma estrutura de ativos maior e com um
maior resultado, a nova empresa passa a ter acesso a crédito mais farto e barato, e passa a comprar de seus fornecedores
quantidades maiores, conseguindo melhores preços na negociação e criando uma importante barreira de entrada a
eventuais novos competidores que tentem participar do mercado. Mas o pior efeito, e aquele que mais trará resultados
contrários aos apregoados pela teoria do livre mercado, será o resultante daquilo que passa a ser acumulado junto com o
lucro resultante da nova operação pela nova empresa. Estamos falando do poder, principalmente político, que passará
também a estar acumulado nessa nova empresa.
É exatamente esse poder político, fruto do poder econômico acumulado e da capacidade de influenciar os mercados
de trabalho, de insumos e de consumo, que essa empresa usará para manipular o Estado, controlando as decisões políticas
que serão tomadas a partir daquele momento e transformando-o no seu maior aliado, para impedir que o livre mercado
exista e barreiras de entrada ainda mais fortes sejam criadas para novos potenciais competidores. Estão formados o
monopólio e o pior cenário possível para trabalhadores, consumidores e empresas menores. E o melhor possível para a
lucratividade da empresa que largou na frente das demais no processo de consolidação. Todos os ganhos iniciais vão
sendo perdidos ao longo do tempo, e o resultado final é um desastre.
Este é, talvez, o principal problema decorrente do acúmulo extremo de riqueza dentro do modelo capitalista. Não é
somente, como pensam muitos, o fato de algumas dezenas de ricos terem mais riquezas do que algumas centenas de
milhões de pobres. Isso, claro, não é algo saudável para o sistema, pelo fato de a riqueza existente a ser distribuída ser de
natureza finita, como descrito em meu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa. Lá, demonstro como
a abundância excessiva de poucos necessariamente significa a escassez de muitos. O pior problema da concentração
extrema de riqueza é o fato de que, junto com essa riqueza, é também acumulado poder. E é esse poder que toma posse
do Estado, destruindo completamente a representatividade do poder público e a possibilidade de uma sociedade que
distribua oportunidades de maneira justa.
Engana-se quem pensa que a reforma da Previdência a ser aprovada em um país extremamente desigual será a
melhor para a maior parcela da população. Que os impostos existentes no país serão aqueles que melhor distribuírem a
riqueza e as oportunidades entre seus habitantes. Que as leis e punições aprovadas pelos legisladores limitarão de maneira
equivalente diferentes grupos econômicos e classes sociais. A verdade é que as decisões de governo num país onde a
riqueza é muito concentrada passam a ser sempre aquelas que mais beneficiarem aqueles já privilegiados por
concentrarem a maior parte da riqueza daquele grupo.
Vejamos um exemplo incrivelmente didático, o do poder político do agronegócio no Brasil. Segundo dados do
Censo Agropecuário de 2017, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de
estabelecimentos (propriedades) no campo com mais de 1 mil hectares era de 51.203, cerca de 1% do número total. Se
considerarmos a população de proprietários desses latifúndios sendo igual ao número de estabelecimentos (é, na verdade,
menor, dado que a mesma pessoa pode ter mais de um estabelecimento), estamos falando de um número que representa
0,02% da população brasileira. Num parlamento com 513 deputados federais divididos proporcionalmente entre os
interesses da população, esses proprietários de latifúndios deveriam ter no máximo um representante. Seus trabalhadores,
alguns. E os pequenos e médios agricultores, também alguns. A realidade, porém, passa longe disso, fazendo com que a
chamada Bancada do Agronegócio tenha mais de duzentos deputados representando o interesse dos grandes produtores,5
enquanto os pequenos agricultores não tenham quase representante algum no Congresso Nacional para defender seus
interesses. As condições de competição, já desiguais, ficam ainda mais prejudicadas pelas leis, incentivos e subsídios
aprovados por esses deputados, favorecendo sempre os grandes agricultores, em detrimento dos pequenos. E o discurso
político de todos, inclusive o desses grandes latifundiários, segue sendo o de que o problema do Brasil é a pouca liberdade
econômica e a falta de competição entre as empresas.
Notas
3. www.heritage.org/about-heritage/mission
4. https://www.heritage.org/index/ranking
5. especiais.estadao.com.br/canal-agro/agrocenarios/agronegocio-tem-a-bancada-mais-bem-organizada/
2. A ECONOMIA DO DESEJO
Existe uma simpática anedota na qual um menino pergunta ao outro:
“Você já percebeu que todas as vezes que procuramos alguma coisa encontramos no último lugar em que fomos
procurar?”
“É verdade. Comigo sempre acontece isso mesmo”, responde o amigo.
“Sabe o porquê?”, insiste o primeiro
“Não tenho ideia.”
“Porque depois que você encontra não precisa mais procurar, bobo!”
Sempre fiquei intrigado com a explicação oferecida pelos defensores do capitalismo, mais especificamente das políticas
neoliberais. Por um simples, mas forte, motivo: elas fazem sentido! São de uma coerência sedutora e de uma lógica
matemática quase inconteste. Como vimos no capítulo anterior, o estímulo ao lucro deveria fazer as empresas oferecerem
serviços e produtos que proporcionassem maior lucratividade. Essa maior lucratividade viria, em boa parte, da capacidade
de vendê-los por preços altos para os compradores. Esses preços altos seriam função da utilidade que ofereceriam para as
pessoas que os adquirissem. E, assim, todo o sistema ficaria voltado para oferecer, distribuindo seus recursos e capacidade
em ordem de prioridade, aquilo que fosse mais útil para as pessoas. A competição para participar dos mercados mais
lucrativos aumentaria a demanda pelos insumos desse mercado (como mão de obra e matéria-prima), elevando assim os
seus preços, consumindo parte dos lucros dos donos das empresas e distribuindo a riqueza gerada pelo sistema.
Nessa lógica realmente fica difícil encontrar um erro. E tudo estaria bem se não fosse por um pequeno detalhe: o
resultado dá errado! É intrigante ver uma máquina toda montada para produzir hambúrgueres, com todas as peças
conhecidas, a engrenagem bem encaixada, e ao olhar o resultado na esteira final ver sair... salsicha! O resultado final nos
diz que alguma coisa está errada! Mas o que?
Afinal, um sistema que promete maximizar a utilidade das pessoas não poderia gerar um mundo com tanta
pobreza, sofrimento e individualismo. No que diz respeito à capacidade demonstrada de geração de riqueza do modelo,
pode-se até argumentar que existe, sim, uma história de sucesso. Apesar dos economistasneoliberais serem enfáticos em
dizer que o mundo ainda está longe do modelo ideal defendido por eles, é inquestionável que é nessa direção que o
capitalismo tem caminhado. Cada vez menos riqueza acumulada pelo Estado e mais nas mãos da iniciativa privada,6
maior comércio entre os países, bancos centrais com maior autonomia, cargas tributárias menores e uma competição cada
vez maior e menos regulada entre as empresas. A direção é inequívoca. E é possível, talvez até muito provável, que esses
fatores expliquem boa parte do crescimento exponencial na capacidade de geração de riqueza no mundo. Como já foi
mencionado, da década de 1960 até a década de 2010, o mundo multiplicou sua capacidade de gerar riqueza mais de oito
vezes em termos reais. Em apenas duas gerações, uma mudança brutal no tamanho do bolo a ser distribuído.
Mas é esse mesmo bolo que segue não alimentando boa parte da população mundial, deixando metade dos quase 8
bilhões de habitantes do planeta na condição de pobreza. Por que será que a segunda parte da promessa, a de maximizar a
utilidade das pessoas, não está sendo cumprida? O que não estaria funcionando na equação? Essa passou a ser minha
busca. Até que um dia... encontrei! No último lugar que resolvi procurar.
Na verdade, a solução foi fruto de dois fatores. E o primeiro deles um tanto quanto inusitado.
Já faz três anos que minha vida deu uma enorme guinada. Uma cirurgia malsucedida me fez flertar com a morte e
conhecer os limites da dor. Fiquei internado algumas semanas no hospital e alguns acontecimentos durante essa semana
me fizeram repensar minha vida e enxergar o sistema capitalista de uma forma como nunca havia enxergado antes. A
história de como o processo aconteceu está em meu livro O que os donos do poder não querem que você saiba, não faria
sentido repeti-la aqui. O que não está naquele livro, nem no seguinte, Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais
justa, é o que eu atravessei em minha vida pessoal depois de tomar essa decisão de mergulhar nos estudos sobre a
desigualdade, convivendo com os mais pobres e oferecendo a eles minha voz na luta por um sistema mais justo e
humano.
Foram anos difíceis. Não são fáceis ainda, acho que nunca serão. Mas já foram muito mais difíceis do que são hoje.
A primeira fase foi talvez a mais difícil. Aquela onde foi preciso atravessar o vale da solidão e incompreensão das pessoas
próximas. Sim, porque tomar a decisão de lutar junto aos que sofriam com os efeitos da pobreza e da desigualdade
automaticamente me colocava como adversário daqueles que se beneficiavam dela. Esses, todo o meu ciclo de amizades
até então. E aí, o que aconteceu no começo da caminhada foi que perdi os amigos e amigas que tinha, e demorei um
tempo até fazer os novos. E exatamente nesse período, o de maior solidão, que vieram os maiores ataques. Na verdade
contra-ataques, reconheço, dado que quem estava atacando o sistema com discursos e livros era eu. A diferença, porém,
entre os ataques e os contra-ataques era a forma. Enquanto eu atacava os donos do poder com firmeza, mas dentro das
regras, eu era atacado de volta com um número absolutamente assustador de ameaças incrivelmente agressivas. Para se ter
ideia, houve um episódio quando em somente um dia recebi mais de 1.500 ameaças. Algumas delas ameaçando a minha
vida, explicitamente.
Minha família, o único porto seguro que eu ainda tinha, sentiu o golpe. Não foram poucos os dias em que eu
chegava em casa e minha esposa, Juliana, estava chorando no quarto com medo de que algo me acontecesse. Meu filho
mais velho, com 8 anos à época, já usava a internet e assistia naturalmente a alguns de meus vídeos. Como lia os
comentários aos vídeos, passou a ter uma enorme dificuldade de dormir e medo de que alguém entrasse em nossa casa e
nos fizesse algum mal. E eu, além dos ataques, sentia o peso de ter sido o responsável, talvez mesmo culpado, por ter
trazido esse desequilíbrio e medo para dentro de casa.
Resolvi então diversificar meus estudos. As leituras, que antes eram todas sobre o tema da desigualdade econômica,
passaram a ser divididas entre os textos econômicos e os textos espirituais. Eu me inscrevi num curso de formação e
aprofundamento em meditação e ioga e convidei minha esposa a fazê-lo comigo. Tudo numa tentativa de fortalecer o
espírito para a jornada que havia escolhido e enfrentar as dificuldades que haviam surgido (e que eu imaginava que
seguiriam surgindo).
Ao longo dos meses seguintes fui me interessando cada vez mais pelos textos religiosos. Comecei meus estudos pelos
livros sagrados das grandes religiões. Li o Antigo e o Novo Testamento da Bíblia Sagrada. Depois o Alcorão. O
Mahabharata, um dos grandes épicos do hinduísmo, e, separadamente a Bhagavad Gita (a Canção do Senhor), seu trecho
mais famoso. Os Yogas Sutras de Patanjali. E, então, entrei no estudo dos trabalhos e biografias dos mais famosos santos,
figuras religiosas, teólogos e filósofos de nossa era. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, São
João Crisóstomo, Santa Teresa D’Ávila, San Juan de la Cruz, Santo Inácio de Loyola, Santo Antônio de Pádua, Søren
Kierkegaard, Thomas More, Ashoka... Foram dezenas de livros, lidos compulsivamente durante as viagens de avião e as
noites em que passava fora de casa. E apesar de terem sido escritos em épocas diferentes, alguns deles separados por
milhares de anos, todos traziam uma mensagem em comum. A de que o caminho do crescimento espiritual é o caminho
da humildade e do desapego. Uma vida cada vez mais limitada às verdadeiras necessidades e cada vez menos dependente
(e identificada) com os desejos. E foi durante uma dessas leituras, logo após ter lido o trecho de um outro livro que
discorria sobre os conceitos de utilidade marginal, que me veio o estalo!
E se eu estivesse fazendo durante esse tempo todo a pergunta errada? Este, aliás, um alerta de Voltaire: as perguntas
são mais importantes do que as respostas. Aconteceu então o segundo fator que me fez chegar à solução do problema que
não me abandonava, sobre onde estava o erro da tese neoliberal do capitalismo. E a solução para o problema foi ver que
não havia erro na lógica defendida. Ela estava absolutamente correta. E funcionando, melhor do que todos poderiam
imaginar. O mundo realmente estava, cada vez mais, maximizando a utilidade disponível para seus habitantes. A questão
era, o que queria dizer essa tal “utilidade”? Esse, o lampejo! A pergunta correta!
Alfred Marshall, um dos pais da teoria moderna de oferta, demanda e utilidade marginal, já dera a dica em seu livro
citado nesta obra, Principle of Economics, de 1890. Diz o autor no texto original: “Utility is taken to be correlative to Desire
or Want. It has been already argued that desires cannot be measured directly, but only indirectly by the outward phenomena to
which they give rise: and that in those cases with which economics is chiefly concerned the measure is found in the price which a
person is willing to pay for the fulfillment or satisfaction of his desire.” Ou, em tradução livre: “A Utilidade é tida como
relacionada ao desejo ou necessidade. Já foi argumentado que desejos não podem ser medidos diretamente, mas somente
indiretamente pelo fenômeno externo a que eles dão origem: esse com o qual a economia está principalmente preocupada
em medir e é encontrado no preço que uma pessoa está disposta a pagar para preencher ou satisfazer seu desejo.”
Era isso! Era tudo uma questão de nomes. Era óbvio e estava na minha frente esse tempo todo! O que é
maximizado no sistema capitalista não é “utilidade”, esse conceito abstrato, difícil de ser definido, mas relacionado
sempre a algo positivo. Aliás, essa correlação justifica o uso do termo e sua capacidade de convencimento de que, quanto
maior a utilidade, melhor para todos, chancelando assim toda a lógica do sistema. O que é maximizado no sistema
capitalista é o desejo! Não a necessidade! E existe um motivo claro para que assim seja. Tão claro que vem há milhares de
anos sendo repetido por todosaqueles que se aventuraram na caminhada espiritual. Mas que parece ter passado
despercebido por Marshall, dado que em seu texto comete um deslize enorme bem no final do parágrafo, quando diz
“para preencher ou satisfazer seu desejo”. Isso porque, por definição, desejos não podem ser satisfeitos. Necessidades
podem. E como o preço será sempre função da vontade de ter mais de alguma coisa para poder adquirir a tal “utilidade
marginal”, uma economia que incentiva lucros focará exclusivamente em desejos, esse pote sem fundo, impossível de ser
preenchido, ao passo que, se focasse nas necessidades, jamais maximizaria seus lucros.
São vários os trechos e passagens dos livros religiosos que nos falam sobre essa natureza dos desejos. Como a
passagem da Bhagavad Gita, em que Krishna diz ao guerreiro Arjuna: “Aquele que não se perturba com o incessante
fluxo dos desejos — que entram como os rios no oceano, o qual está sempre sendo enchido mas sempre permanece calmo
— pode alcançar a paz, e não o homem que se esforça para satisfazer tais desejos. Aquele que abandonou todos os desejos
para o prazer dos sentidos, que vive livre de desejos, que abandonou todo o sentimento de propriedade e não tem falso
ego — só ele pode conseguir a verdadeira paz.” O texto deixa claro: quem é movido pelo desejo não encontrará jamais a
paz. Não terá nunca o suficiente. Viverá uma vida inteira se esforçando para satisfazer tais desejos que são como os rios
entrando no oceano, nunca cessam, e jamais são capazes de enchê-lo.
Há também este interessante trecho do Alcorão Sagrado sobre o tema: “Ao contrário, quem tiver temido o
comparecimento ante o seu Senhor e coibiu a alma dos desejos terá o Paraíso por morada.”7 Sem a capacidade de coibir a
alma dos desejos, impossível encontrar a morada da paz. Em outras palavras, o caminho do desejo não tem chegada,
destino, é infinito e sempre incompleto.
Temos então um novo problema, que é o de encontrar a linha que separa estes dois conceitos, desejo e necessidade.
Essa tarefa não é tão simples como parece. Isso porque há o argumento de que os desejos surgem de uma prévia
necessidade humana.
O sexo, por exemplo, deveria ser considerado como necessidade ou desejo? Certamente até certo ponto uma
necessidade, dado que sem ele não seria possível ao homem perpetuar-se como espécie. Mas, claramente, a partir de certo
ponto, um puro desejo, já livre de qualquer necessidade, dado que existe toda uma indústria focada somente no aspecto
de prazer do sexo. Alguns diriam que o prazer, porém, é também uma necessidade, e é um argumento a ser levado em
consideração. Daí a dificuldade de traçar essa linha de argumentação.
Dada minha formação em engenharia, tenho a tendência de levar as situações aos seus limites, para buscar uma
visão mais clara sobre elas. Levando ao limite, fica fácil compreender os conceitos de desejo e necessidade, e também os
efeitos de cada um dos dois que têm orientado a economia. Imagine o mundo inteiro, por exemplo, vivendo uma vida de
renúncia aos desejos, como foi a vida de São Francisco de Assis. Ou como a de vários ascetas, que já passaram pelo
mundo se abstendo dos desejos. Certamente não experimentaríamos guerra alguma. Os recursos naturais seriam
utilizados num ritmo centenas de vezes menor do que hoje. O ar estaria mais limpo. E, muitos dirão, a vida seria mais
chata. Mas, acalmem-se, o exercício de levar uma variável ao limite não busca defender um cenário, mas somente
entender a função e a sensibilidade das variáveis numa equação.
Imaginemos agora um mundo inteiro formado de indivíduos como Donald Trump, talvez um dos ícones no
mundo daquilo que resolvi batizar neste livro como economia do desejo. Provavelmente não duraríamos muito.
Explodiríamos em guerras, nos destruiríamos através de uma louca competição e acabaríamos com os recursos naturais do
mundo para fazer mansões, iates, carros luxuosos e festas em uma questão de meses. Fica claro, ao utilizar esses dois
exemplos extremos, o que é uma economia da necessidade e uma economia do desejo.
Um outro texto religioso que traz uma boa visão sobre os conceitos de necessidade e desejo é a Bíblia Sagrada. Já
em seu primeiro livro, o de Gênesis, lemos a história de Adão e sua companheira, Eva, no jardim do Éden. Ambos viviam
uma vida de paz e fartura. Tinham comida à vontade: “O Senhor Deus fez nascer então do solo todo tipo de árvores
agradáveis aos olhos e boas para alimento” (Gênesis 2:9). Tinham riqueza em abundância: “O ouro daquela terra é
excelente; lá também existem o bdélio e a pedra de ônix” (Gênesis 2:12). Tinham liberdade: “Coma livremente de
qualquer árvore do jardim” (Gênesis 2:16). Tinham companhia: “Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor
Deus fez uma mulher e a trouxe a ele” (Gênesis 2:22). E viviam em harmonia com o meio ambiente e com todos os
animais. Até que um dia surge uma serpente, “o mais astuto de todos os animais” (Gênesis 3:1), a mãe do capitalismo
selvagem moderno (ironia minha), e desperta no homem e na mulher algo novo. Algo que ia além de toda a necessidade
que lhes era suprida por tudo aquilo que Deus, pacientemente, durante seis dias de trabalho, havia criado. O desejo!
Disse a serpente sobre o fruto da árvore do conhecimento: “no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês
serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gênesis 3:5). Uau! Não era um desejo qualquer que estava sendo
gerado. Era o desejo de, literalmente, ser como Deus! Não resistindo ao convite, Eva prova do fruto. E ali surge,
simbolicamente, a economia do desejo.
A Bíblia traz ainda diversas passagens que, assim como outros textos sagrados, discorrem sobre a natureza insaciável
do desejo e saciável (e, portanto, capaz de trazer a paz de espírito) da necessidade. A mais clara de todas, escrita por aquele
tido pela tradição judaico-cristã como o mais sábio homem que já pisou sobre a Terra, nos diz que “Quem ama o
dinheiro jamais terá o suficiente; quem ama as riquezas jamais ficará satisfeito com os seus rendimentos” (Eclesiastes
5:10). Por fim, nos mostra que temos de fazer uma escolha. São Mateus diz que não é possível ter um modelo que
maximize ambos, desejo e necessidade, um conceito que é também matemático. Afinal, num sistema de equações com
mais variáveis do que equações, em que se busca maximizar uma variável, deve-se se escolher uma, e somente uma,
variável a ser maximizada. São Mateus escreve no capítulo 6, versículo 24 de seu Evangelho: “Ninguém pode servir a dois
senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e
ao Dinheiro.”
Escolhemos servir ao dinheiro (desejo), e não a Deus (necessidade). Esse, um fato inequívoco. Mais do que isso,
criamos um sistema econômico que a todo instante alimenta esse desejo, fazendo com que não só ele siga existindo, mas
siga existindo cada vez maior. De modo que alguém que mantenha determinado padrão de vida vá ao longo do tempo se
sentindo mais pobre. Porque a distância entre aquilo que ela tem e o que deseja não se mantém constante, ela aumenta,
dado que o que possui se mantém igual, mas a lista do que falta não para de crescer. Daí, outro conceito milenar, este do
budismo, diz que o mais rico não é aquele que mais tem, e sim o que menos precisa. Ao precisar cada vez de mais,
ficamos cada vez mais pobres. E desejamos, assim, cada vez mais.
Há ainda um motivo fundamental para que o desejo, e não a necessidade, seja a base econômica do capitalismo. E
esse motivo é o fato de o desejo inspirar aquela que é assumidamente a mola mestra do sistema: a competição! Caso fosse
focado nas necessidades, o sistema rapidamente “encheria o pote” das pessoas, como simbolicamente no exemplo do
Jardim de Éden. Ao “encher o pote”, eliminaria a necessidade do “adicional”. Ao diminuir (ou zerar) a utilidade marginal
das coisas, causaria um impacto enorme (zerando no limite) o preço disposto a ser pago por elas. E afetaria assim a
lucratividade dos negócios. Percebam que estamos percorrendo a mesma espiraldefendida pela lógica do neoliberalismo,
só que agora no sentido contrário. Sem a possibilidade do lucro, sobraria somente como mola mestra a solidariedade.
Animais seguem vivendo um mundo parecido com esse baseado na economia das necessidades. Em algumas
regiões, as poucas onde o homem ainda não chegou, vivem em total equilíbrio entre si e com a natureza que os envolve.
Talvez seja porque nenhum dos animais na história bíblica do Jardim do Éden tenha comido a maçã e se entregado aos
desejos como o homem. Animais vivem uma vida em que o único objetivo é “preencher o pote” das necessidades. Um
mundo onde existe, sim, competição para atender as necessidades, que, quando saciadas, permitem que eles possam fazer
algo imensamente estranho ao homem moderno: viver.
Notas
6. wir2018.wid.world/files/download/wir2018-full-report-english.pdf (p. 14)
7. Alcorão Sagrado (79:40-41).
3. O ESTADO E A ECONOMIA DA NECESSIDADE
Se levarmos em conta o papel simbólico, mitológico, da história de Adão e Eva no Jardim do Éden (respeitando, claro,
aqueles que a tem como verdade histórica), ficará a questão: quando então a economia do desejo surge como o modelo
econômico dominante para o homem?
Jean-Jacques Rousseau oferece uma resposta em seu livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. O filósofo suíço começa a segunda parte de seu discurso assim: “O primeiro que, ao cercar um terreno,
teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano
aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Não escutem esse impostor!
Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra, de ninguém!’ Mas é muito provável que as coisas já
houvessem chegado então ao ponto de não poderem mais durar como eram.”
A semelhança com a história do Jardim de Éden é enorme. Ao final da primeira frase, se trocarmos o termo
“sociedade civil” por “economia do desejo” veremos que a origem da economia do desejo coincide com a da propriedade
privada. Ideia corroborada por John Locke, outro importante filósofo liberal contemporâneo a Rousseau que, em seu
Ensaio sobre o entendimento humano, escreve “não poderia haver injúria onde não há propriedade”.
Em meu livro Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa, discorro sobre esse caminho que nos trouxe
de uma sociedade solidária para uma egoísta e individualista, baseada no poder que é diretamente relacionado ao
acúmulo de posses dos indivíduos.
Nesta obra, gostaria de voltar a abordar o papel do Estado e discorrer sobre como ele pode se inserir num mundo
onde prepondera a economia do desejo, contrapondo-a e praticando a economia da necessidade.
Deveria ser quase pleonástico falar sobre o Estado praticar a economia da necessidade. Isso porque o Estado nada
mais é do que uma figura institucional, jurídica e fictícia (criada pelo homem) para coordenar e representar um grupo.
Não existe um ser vivente chamado Estado, daqueles que podemos ver na rua andando com uma camiseta amarela ou
vermelha. O que existe é uma organização, uma estrutura, que tem o poder de coordenar as decisões que serão tomadas
para fortalecer e proteger um grupo. Pelo menos, em tese, deveria ser assim. E tudo indica que antes de existir a
propriedade privada era.
Existe um petróglifo em Utah, Estados Unidos, datado de alguns milhares de anos antes dos dias atuais, que sempre
me comove. Foi batizado de “Circle of Friends”. Nele, um grupo de membros da tribo é retratado em um círculo
perfeito. São indivíduos claramente diferentes, uns maiores que outros, com características diferentes, mas todos ocupam
exatamente a mesma posição em relação ao círculo. Era assim que viviam nossos antepassados antes de surgir a
propriedade privada. Gosto muito de ver o Estado como sendo a invenção do homem para substituir o círculo que ocupa
o centro desse pictograma. Aquele diante de qual todos têm a mesma importância, e que nos une e fortalece.
Na verdade, depois da invenção da propriedade privada, passou a ser somente pelo Estado que continuamos a ter o
sentido de grupo. Pense bem, não faz sentido algum o conceito de “nosso território” hoje em dia, como existia nos
tempos do pictógrafo. Os tais “frutos [que] são de todos, e a terra, de ninguém”, narrados por Rousseau, estão perdidos
em algum lugar num longínquo passado. Cada um hoje tem o seu território. E muitos nem isso têm. Se ainda tem
alguma dúvida sobre isso, entre num prédio e invada um apartamento onde mora uma família e veja se será bem-vindo
ou bem-vinda. Pule a cerca de uma fazenda e colha alguns vegetais e frutas para se alimentar e perceba a reação do dono
da fazenda. Provavelmente não será nada amigável.
E o motivo é o fato de não existir mais nosso território, nossa religião (o número de religiões do mundo é estimado
em milhares8), nosso time de futebol... Na prática não existe, praticamente, “nosso” nada. A não ser o nosso Estado. É
nele, e somente nele, que, nas sociedades democráticas, cada pessoa tem direito, em tese, a exercer a mesma influência
(com seu voto) e pode viver sob as mesmas regras dos demais. Fora dele, o que existe é uma guerra. A guerra inerente à
economia do desejo.
Fora do Estado, os objetivos são somente dois, conquistar e se defender, numa guerra que, longe de ser metafórica,
é absolutamente real. Thomas Hobbes, em seu clássico Leviatã, coloca o Estado como aquele que, através do “contrato
social” acordado pelo grupo, garante a paz entre as pessoas que vivem sob suas regras. Mas sabemos que o Estado não
garante a paz. Basta olhar ao redor e notar as pessoas vivendo nas ruas, os assassinatos, as brigas, as fraudes, a competição
entre as empresas, os ataques verbais... O que existe é uma clara e evidente guerra. Que é sim, regulada pelo Estado
através das leis que constam do “contrato social” descrito por Hobbes.
Nessa guerra, a maior de todas as armas é o dinheiro. É através dele que se pode, entre outras coisas, estabelecer as
leis que regulam a guerra. Como os que ganham mais dinheiro podem definir quais serão as leis da guerra, de onde tiram
sua riqueza, entra-se em um círculo vicioso de busca por mais lucro, mais poder e, pasmem, mais guerra.
Como pano de fundo, cumprindo o papel de alimentar a característica mais típica e importante de uma guerra, a
saber, a competição, está o desejo. Aqueles que detêm o poder passam então a concentrar o uso de todos os seus recursos
em atividades que possam atiçar o desejo das pessoas, dando falsamente a sensação de saciá-los e criando novos desejos no
lugar em que antes não havia, principalmente através da propaganda.
Como o lucro é diretamente função do desejo não saciado, atividades que atendem as necessidades das pessoas
passam a ter uma procura e atenção infinitamente menor, por não terem a mesma lucratividade.
Percebam que 1 litro de água pura, talvez a maior necessidade fisiológica do ser humano para sobreviver, custa
pouco mais de R$ 1. Enquanto isso, a mesma quantidade (1 quilo) de cocaína, um produto criado exclusivamente para
atender a um dos maiores desejos que o homem é capaz de sentir, advindo do vício pelas drogas, pode chegar ao
inimaginável valor de US$ 500 mil em alguns lugares do mundo. Com uma lucratividade em relação ao preço de
produção que pode chegar a mais de 30.000%.9 Um valor literalmente milhões de vezes maior para um produto que
atende muito menos (ou nada) a necessidades das pessoas, mas que, na equação capitalista que rebatiza desejo como
“utilidade”, faz com que se gere uma quantidade estratosférica de “utilidade” adicional ao sistema.
Preço de compra no atacado (US$/kg) Preço de venda no varejo (US$/kg)
Bolívia 2.500,00
Colômbia 1.504,00
Equador 1.800,00
Paraguai 2.200,00
Peru 643,00
China 370.000,00
Arábia Saudita 507.000,00
Emirados Árabes 476.000,00
Nova Zelândia 496.000,00
Fonte: https://dataunodc.un.org/drugs/prices-2017É por isso que, mesmo proibido, o mercado de drogas ilegais é tão grande, estimado em quase US$ 0,5 trilhão,10 mesmo
sendo combatido por todos os países e governos. Curiosamente, um mercado de tamanho similar a esse, que cria e
estimula nas pessoas o desejo, o da propaganda, é estimado também em pouco mais de US$ 0,5 trilhão por ano.11 Um
gerando desejos e o outro prometendo saciá-los por alguns instantes.
A verdade é que o mercado de drogas não é combatido pelo mundo. Ele é, a todo instante, incentivado pela
economia do desejo. De fato, não existe jamais, na prática, o conceito de proibição na economia do desejo. O que existe é
somente uma definição de quantos recursos serão necessários para participar desse ou daquele mercado. Quanto mais
proibido e lucrativo um mercado, mais recursos serão destinados a ele e menos sobrarão para atender as necessidades. É
por isso que, enquanto a água limpa e potável que temos disponível no mundo é cada vez mais escassa, a quantidade de
drogas que existe para consumo é cada vez mais farta.
Ainda como exemplo de como o mercado, dentro da lógica neoliberal, maximiza a variável desejo, concentrando
recursos nos negócios dessa natureza, e não naqueles que contribuiriam para uma garantia de acesso para todos às
necessidades básicas, temos o fato de o homem mais rico do nosso país ser o dono de uma empresa que fabrica cervejas.
Quando perguntado o motivo de ter se envolvido com esse mercado (dado que seu passado profissional é ligado ao
mercado de investimentos), ele disse que resolveu pesquisar em vários outros países e notou que os homens mais ricos de
todos eles eram donos de empresas de cerveja. É a tal “utilidade” das equações neoliberais sendo maximizada mundo
afora.
Voltemos agora ao Estado. Além de definir as regras da guerra que os homens travarão entre si na busca por poder e
por satisfazer seus insaciáveis desejos, o Estado tem outra função importante, que é a de realocar recursos. Em termos de
execução, ou seja, através de seu poder executivo, é só isso que faz o Estado. Pensando bem, talvez “só” não seja um bom
advérbio para esse papel do Estado. Isso porque é exatamente esse papel que pode ser “tudo” numa sociedade. É por meio
dessa realocação de recursos que uma parcela do sistema poderá viver verdadeiramente em paz. Então pessoas cuidam
uma das outras, se protegem e vivem na prática o sentido de grupo. É com parte dos impostos que você paga ao Estado,
por exemplo, que uma criança que você nunca viu nem verá na vida será educada. É através de uma taxa que você paga
ao Estado que um senhor de idade que mora a milhares de quilômetros poderá ser poupado da dor, sem jamais ter a
possibilidade de lhe agradecer. Simplesmente porque vocês fazem parte de um mesmo grupo! E é exatamente exercendo
adequadamente esse papel de realocador de riquezas que o Estado pode, se bem organizado, cumprir o papel de
mantenedor da economia da necessidade.
O papel do Estado como realocador reside em escolher de quem irá tirar riquezas, para quem irá entregar e qual
legado deixará como resultado. E, em cada um desses passos, existe a possibilidade de promover a economia da
necessidade, ou de abdicar a ela, e de frear ou estimular a economia do desejo. Vejamos um exemplo bem simples.
Imaginemos que um Estado resolva recolher compulsoriamente R$ 1 bilhão das pessoas que vivem sob sua tutela,
através de impostos (que tem esse nome exatamente por não serem uma opção, serem uma imposição). Começa aí o
processo de escolha: atender as necessidades ou estimular o desejo das pessoas? Isso porque o Estado pode, por exemplo,
tirar essa riqueza das pessoas que têm riqueza acumulada em quantidade muito acima daquilo que teriam a necessidade
de ter (ricos) e redistribuí-la àqueles que estão com as necessidades mais básicas não atendidas (pobres), ou pode, mesmo
parecendo cruel e desumano, tirar daqueles que sequer têm essas necessidades atendidas, para entregar essas riquezas
manchadas com sangue e sofrimento aos que não farão qualquer uso dela, senão acumular ainda mais poder e saciar
momentaneamente ainda mais desejos supérfluos. Poderia também tirar dos ricos e entregar de volta para os ricos, ou
tirar dos pobres e entregar de volta para os pobres, mas como esses casos não resultariam em mudança significativa
alguma na condição geral do grupo, vamos nos ater às duas primeiras possibilidades.
Esse processo de redistribuição feito pelo Estado pode, porém, ser mais do que simplesmente tirar riquezas de uns
para dar a outros. Ele pode também resultar em um legado. Sigamos ainda no exemplo que acabamos de ver. Podemos
imaginar que esse R$ 1 bilhão seja recolhido ao longo do ano, cobrando-se impostos de um milhão de pobres, cabendo a
cada um o pagamento de R$ 1 mil, para ser distribuído a mil ricos, recebendo cada um deles a quantia de R$ 1 milhão.
Ou podemos imaginar uma segunda opção diametralmente oposta, em que mil ricos pagam, ao longo do ano, R$ 1
milhão cada um em impostos, que serão redistribuídos para um milhão de pobres, que receberão cada um a quantia de
R$ 1 mil. Esses R$ 1 mil podem ser recebidos como um depósito em conta no banco, em troca de nada, como por
exemplo acontece em programas sociais de transferência de renda. Terão certamente um efeito prático de permitir que
essas pessoas possam adquirir produtos e serviços que atendam parte (ou o todo) de suas necessidades e aliviem, assim,
uma boa parcela de seu sofrimento. Como a parcela tirada dos mais ricos não afetará sua capacidade de adquirir aquilo
que atende as suas necessidades básicas e ao mesmo tempo atenderá a necessidade básica dos mais pobres, o sistema como
um todo ganhou em necessidade atendida (ou, em “utilidade”, no sentido que muitos imaginam ter a palavra na equação
neoliberal). O curioso é notar que, em termos de percentual de desejos atendidos, nada muda no sistema, dado que por
causa de sua natureza infinita, ilimitada, qualquer numerador que coloquemos sobre ele dará um resultado nulo de
saciedade no longo prazo.
Existe ainda uma outra possibilidade. Em vez de simplesmente dar esse dinheiro aos mais pobres, distribuindo R$ 1
mil para cada um em troca de nada, eles são contratados para construir escolas, hospitais, cuidar de doentes, transmitir
conhecimento e atender a outras necessidades básicas do grupo. Veja que esses R$ 1 mil continuarão chegando ao mesmo
grupo de pessoas, permitindo que elas possam usá-los para adquirir aquilo que lhes falta em termos de necessidades
básicas. Mas nesse caso fica um legado que também ajuda a suprir necessidades das quais o grupo carece. O processo
ganha eficiência e mais pessoas são poupadas do sofrimento e podem seguir sua jornada com as necessidades atendidas.
Tudo isso parece óbvio e incrivelmente simples. Mas não é. As pessoas tendem a imaginar o Estado realmente
como um ser vivente. E, ao personificarem o Estado, atribuem a ele características impossíveis, simplesmente por ser
somente uma figura fictícia. O Estado não pode ser “perdulário” como dizem uns. Não pode ser “corrupto” como dizem
outros. Nem mesmo estar “enriquecendo” ou “empobrecendo” como alardeiam as notícias. Quem se corrompe,
enriquece ou empobrece são as pessoas. E são elas que deveriam ser cobradas ou julgadas por fortalecerem ou
enfraquecerem o grupo. Mas, ao darem vida ao ente “Estado”, escondem-se atrás deles e transferem a culpa para um ser
que não existe.
Costumo usar como exemplo um caso polêmico que aconteceu no Brasil não muito tempo atrás, para explicar
como funciona o papel redistribuidor de renda do Estado e como as pessoas costumam lhe atribuir características que não
são dele. Em abril de 2019, o Supremo Tribunal Federal brasileiro abriu uma licitação para a compra de refeições
institucionais que incluíam lagosta e bons vinhos. O valor da compra superava R$ 1 milhão. O fato, em meio a uma das
maiores crises econômicas do país, que vivia à época números recordes de desemprego e estatísticas de pobreza extrema
voltando a crescer, ganhou as páginas de jornais e sites e causou

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