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SINHÁS, PRETAS E ENGENHOS – REMINISCÊNCIAS DA ESCRAVIDÃO NO VALE DO CEARÁ-MIRIM EM OITEIRO DE MADALENA ANTUNES1 Giovannia Elaine Santos da Silva2 Julie Antoinette Cavignac3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO Este trabalho analisa, nas reminiscências de Madalena Antunes no romance Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça (2003), registro da infância da romancista nos fins do século XIX e início do século XX, elementos narrativos e culturais que registram a escravidão no Vale do Ceará- Mirim. A pesquisa foi feita em produções bibliográficas acerca da história da escravidão no Rio Grande do Norte e no Vale do Ceará-Mirim e publicações sobre a autora. Considerando os registros pôde-se perceber que a escravidão, nas lembranças da autora, foi um tanto fragmentada, entretanto não corroborou com o que alguns autores falam a respeito da pouca existência dela no referido Vale e não crueldade dos senhores de engenho com seus escravos. PALAVRAS-CHAVE: Escravidão. Romance. Literatura e Cultura. Ceará-Mirim. Rio Grande do Norte. RÉSUMÉ Ce travail analyse, dans les réminiscences de Madalena Antunes dans le roman Oiteiro: mémoires d’un sinhá-moça (2003), enregistrement de l’enfance du romancier à la fin du XIXe et au début du XXe siècle, éléments de récit et de culture relatant l’esclavage dans la vallée de la Ceará-Mirim. La recherche a été effectuée dans des productions bibliographiques sur l'histoire de l'esclavage dans le Rio Grande do Norte et la vallée de Ceará-Mirim, ainsi que dans des publications sur l'auteur. Compte tenu des archives, il était possible de penser que l'esclavage était, selon les souvenirs de l'auteur, quelque peu fragmenté, mais il ne corroborait pas ce que certains auteurs ont dit sur le peu d'existence de celui-ci dans la vallée et sur la cruauté des senhores de engenho avec leurs esclaves. MOST-CLÈS: L'esclavage. Romance. Littérature et culture. Ceará-Mirim. Rio Grande do Norte. INTRODUÇÃO O discurso literário não fica imune ao meio em que foi criado, mesmo a literatura não sendo um fiel retrato da sociedade em que é produzida, ela traz registros, rastros e ecos do seu período de produção. Quando se trata de um livro de memórias isso fica ainda mais latente, pois 1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Literatura e Cultura do Rio Grande do Norte. 2 E-mail: <giovanniaelaine@hotmail.com>. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9400336146634120>. 3 Orientadora: E-mail: juliecavgnac@gmail.com. Currículo Lattes: < http://lattes.cnpq.br/2111200163433960 >. nesse gênero há um resgate memorialístico de uma época por meio das lembranças pessoais do autor, fazendo uma relação entre o momento vivido no passado e como ele é lembrado no presente – momento da produção. Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça4 de Madalena Antunes não é diferente, nele a autora traz suas memórias do período de sua primeira infância no Vale do Ceará-Mirim, época do Ciclo da cana-de-açúcar, dos engenhos e do trabalho escravo. Não se fala muito da escravidão no Rio Grande do Norte onde historicamente trata-se como irrelevante a presença ou a expressividade dos negros nas narrativas da História do RN, provavelmente isso se dá pelo silenciamento dado pela história do papel dos negros na cultura, na economia e na construção da sociedade. No entanto, é possível encontrar a presença dos negros na situação de escravizados em diversos pontos da antiga Capitania do Rio Grande, espalhados nas Vilas – incluindo na Vila de Extremoz, mais tarde território que pertenceria a Ceará-Mirim – que compunham seu território. Em Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça é possível perceber os vestígios da escravidão, não somente nas personagens que acompanharam a infância da autora, mas também em diversos pontos do livro em que ela faz registros de “causos” e situações relacionadas à presença de escravos no Vale do Ceará-Mirim. Partindo da ausência constatada de pesquisas relacionadas à presença dos negros, ainda que os escravizados, na literatura e até nos dados Históricos, pretende-se neste trabalho analisar o romance Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça (1958; 2003) da escritora Ceará-mirinense Madalena Antunes Pereira trazendo uma análise dos dados históricos em relação à escravidão no Vale do Ceará-Mirim e o que a autora registra de suas memórias. 1. Madalena Antunes Maria Magdalena5 Antunes Pereira nasceu em Ceará-Mirim, no sítio Oiteiro, em 25 de maio de 1880. Filha do Coronel José Antunes de Oliveira e Joana Soares de Oliveira, família importante da região. 4 ANTUNES, Madalena. Oiteiro: Memórias de uma Sinhá-Moça. Natal: A.S. Editores, 2003. 5 Magdalena Grafado com G foi seu nome de registro, segundo seu neto Ruy Pereira Júnior. Grafia que aparece na 1ª Ed. de Oiteiro e na edição de 2003 aqui analisada. No sítio onde nasceu começou a ser educada, mas teve dificuldades para aprender a ler, pois não gostava de estudar, mesmo assim foi enviada para Recife para a Escola São José, onde tradicionalmente estudavam as moças ricas da região. A romancista conta o início desse episódio como um castigo, perpassando os momentos de desinteresse, provações. Depois reconhece a importância de estudar e “toma gosto” pelos estudos: “O ignorante é um cego! Eu era realmente uma cega de guia...” ANTUNES (2003, p. 194). Já amadurecida pelos estudos e de volta a sua cidade natal tem outra percepção do que viveu. Embora, em 1912, já houvesse publicado textos diversos e cartas que simulavam a correspondência entre duas amigas nos jornais de circulação local como “O Ceará-Mirim”, “O sonho” e “Esperança”, editados e de circulação na cidade de Ceará-Mirim, sob os pseudônimos de Corália Floresta, Hortênsia e Ildarisa Flores, é no contexto literário pós-guerra que se destaca a figura da escritora Madalena Antunes com o romance Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça (1958), obra que se tornaria a mais significativa do gênero no estado. (SILVA6, 2016) Casou-se com o industrial da cana-de- açúcar Olímpio Varela Pereira, do engenho Oiteiro, e mudou-se com a família, para Natal, na casa da Av. Hermes da Fonseca, 700, Tirol. Teve cinco filhos: Rui, Abel, Maria Antonieta, Vicente e Joana d’Arc. Em 1958 lançou seu único livro Oiteiro: Memórias de uma sinhá-moça editado com o apoio da Casa Euclides da Cunha, Coleção Nísia Floresta, lançado pela Editora Irmãos Pongetti – Rio de Janeiro. Madalena é considerada a autora do primeiro livro de memórias feminino do Nordeste. Este livro inclui-se numa modalidade literária de livro de reminiscências, pouco praticada naquela época, em nosso país, principalmente pelas mulheres. A principal referência a esse tipo de literatura é Minha vida de menina, de Helena Morley, por sinal muito semelhante ao realizado pela autora potiguar. (DUARTE; MACÊDO, 2001, p. 148.)7 Após uma longa enfermidade, Maria Madalena Antunes Pereira faleceu em 11 de junho de 1959, em Natal. 6 SILVA, Ananília Meire Estevão da. Representações negras em Oiteiro de Madalena Antunes. (TCC / Artigo – Especialização em História e Cultura Africana e Afro-brasileira) – Departamento de História – UFRN. Caicó/RN: 2016. 7 DUARTE, Constância; MACÊDO, Diva Cunha Pereira (Org.). Literatura Feminina no Rio Grande do Norte: Antologia. 2ª ed. rev. e aum. – Natal: Governo do Rio Grande do Norte. Fundação José Augusto, Secretaria de Estado e Tributação. 2001. 2. Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça A autora suas memórias sem a pretensão de publicá-las, escreveu com ointuito de eternizar momentos por ela vividos na sua vida de menina e por incentivo de Câmara Cascudo, Nilo Pereira e Palmira Wanderley resolveu publicar. Em Oiteiro escreve sua própria história. Este livro nada mais é do que o testamento espiritual de uma menina do Ceará-Mirim que cuidou guardar e acumular as suas riquezas interiores, tecidas na lírica e branca almofada da sua alma luminosa. É o cenário romântico e emocional da sua afeição e fidelidade ao passado – a lição imperecível que nenhuma circunstância apaga e que a vida vai registrando e a história imortalizando. (PEREIRA8, 2003) O livro não traz somente as reminiscências da romancista, mas, através do seu relato, iniciado do período de sua primeira infância, registra um recorte da História do Vale do Ceará- Mirim com seus engenhos, religiosidade, escravidão – período histórico que ela presenciou já no final: “O enredo está distribuído numa sequência cronológica, mostrando linearidade temporal, através da qual se pode acompanhar a infância, juventude e início da vida adulta da narradora (...)” (MEDEIROS, 20109) As lembranças por ela relatadas são de uma “subjetividade latente, com as frases pontuadas quase todo o tempo por exclamações” (MEDEIROS10, 2010), contudo, isso não diminui o caráter do registro Histórico e cultural nele contido. Há uma nostalgia em todo o texto, nas descrições da cidade, do sítio Oiteiro, da feira, dos personagens que compunham a cidade à época e que, de uma forma ou de outra, marcaram a autora. Ela faz questão de narrar as lembranças sobre os diferentes perfis de sua convivência e/ou trajetória de vida, desde as escravas de sua infância, as freiras do Colégio São José, moradores de rua – conhecidos de toda cidade a seu tempo –, vizinhos que visitam sua família, intelectuais que frequentavam o sobrado – construído em 1889 –, a sua primeira mestra, o primeiro dentista, até os trabalhadores do engenho. Muitas vezes quando relata sobre as pessoas de sua convivência ela mostra a transformação do sentimento que tinha por eles, essa transformação se dá através do 8 PEREIRA, Lúcia Helena. Prefácio da 2ª edição In: ANTUNES, Madalena. Oiteiro: Memórias de uma Sinhá- Moça. Natal: A.S. Editores, 2003. 9 MEDEIROS, Aldinida. Memória e autoria feminina em Oiteiro. Imburana – Revista do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses/UFRN. Nº 1 Fev. 2010. 10 Ibidem autoconhecimento e amadurecimento por ela adquiridos no decorrer dos anos. Isso pode ser visto, por exemplo, quando ela fala sobre Antônio Mossoró: “Se a Sinhá Lica, na idade infantil, tivesse a percepção da verdadeira miséria, em vez de lhe ter medo, teria compaixão.” (ANTUNES, 2003. p. 321) 3. Breve histórico sobre a escravidão É de amplo conhecimento, através dos inúmeros livros de História do Brasil, que a escravidão em território nacional começou por volta de 1550 através do grande tráfico de escravos que se implantou, embora haja “indícios de que desde as instalações das primeiras feitorias os portugueses já contavam com mão-de-obra de escravos africanos que trabalhavam em Portugal e nas ilhas atlânticas, transferidos para o Brasil” (BENJAMIN, 2006. p. 10411). Por volta de 1570 estima-se que já havia 3000 mil africanos trabalhando como escravos no Brasil. Esse número só cresceu ao longo dos séculos – XVI, XVII, XVIII e XIX –, já que os escravizados eram destinados ao trabalho nos latifúndios de cana de açúcar, nas minas de ouro e diamantes, nas fazendas de café ou mesmo no trabalho doméstico. No território nacional, “em 1818, de seus 3.817.900 habitantes, 1.887.900 eram livres (sendo 1.043.000 brancos, 585.500 negros e mestiços e 259.400 índios), e 1.930.000, escravos.” (LINHARES et al, 1990, p. 12512). A escravidão prosseguiu mesmo depois da assinatura de leis que tentavam barrar a escravidão. A primeira delas, de 07 de novembro de 1831, decretava a Abolição do tráfico negreiro internacional. Entretanto, a lei não foi cumprida fazendo-se necessária, no decorrer do século, a criação de outras leis que ajudassem no processo de erradicação da escravidão. Foi então que surgiram: Lei Eusébio de Queiróz (1850) – extinguiu oficialmente o tráfico de escravos no Brasil; Lei do Ventre Livre (1871) – tornou livres os filhos de escravos nascidos após a promulgação da lei; Lei dos Sexagenários (1885) – dava liberdade aos escravos ao completarem 65 anos de idade. Em 1880 – ano de nascimento de Madalena Antunes – iniciou a derrocada do Segundo Reinado (D. Pedro II) quando começou uma aceleração do desgaste do sistema político imperial que não atendia mais às demandas políticas e sociais, em especial, à questão da Abolição que estava no centro dessas demandas. Muitos foram os movimentos que se articularam pedindo a 11 BENJAMIN, Roberto Emerson Câmara. A África está em nós: História e cultura afro-brasileira. – João Pessoa, PB: Editora Grafset, 2006. 12 LINHARES, Maria Yedda (Org.). História geral do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. Abolição e, com a exigência do capital industrial inglês, essa foi conseguida – em 13 de maio de 1888 com a assinatura do projeto da Lei áurea pela então regente Isabel. Porém, sem uma política de integração e propostas para inserir o negro livre no mercado de trabalho ou na sociedade, as propostas que se entendiam para a transição de uma sociedade escravocrata para uma democrática ocorreram de forma complexa e desestruturada. Então, se compreende que os negros escravizados que foram libertos não foram inseridos diretamente na sociedade como muitos acreditavam: “E então, Zefa, não vens conosco? Estamos livres! Vamos viver a vida que todos têm direito na sagrada igualdade. Já não seremos mais “coisa”, somos gente.” (ANTUNES, 2003. p. 100). Em algumas regiões do país a preferência pelo imigrante europeu e em outras as poucas oportunidades aos ex-escravos mostra que a Abolição não resolveu o problema da desigualdade social e racial no país. 4. Colonização e escravidão na Capitania do Rio Grande 4.1. Capitania do Rio Grande Nas primeiras décadas do século XVI Portugal não se preocupava com o povoamento do Brasil, pois o território colonial era para extrativismo, entretanto por causa das ameaças de invasão, a colônia foi dividida em quinze faixas de terra – as capitanias hereditárias, entre elas a capitania do Rio Grande. Os capitães donatários que receberam as terras foram João de Barros e Aires da Cunha que enfrentaram dificuldades para a sua exploração, essa só foi possível “quando o rei da Espanha Felipe II tomou posse do Rio Grande, e indenizou a família do donatário João de barros.” (PIMENTEL, 201513), conseguindo vencer os franceses que haviam invadido o território. Assim, após a conquista podia ser notado na região da capitania do Rio Grande basicamente três grupos, os aborígenes que eram escravos, os aldeados que viviam no mato, e os invasores que eram homens brancos livres proprietários, e livres não proprietários e alguns escravos fugidos da África, assim contruiu- se uma sociedade agrária que girava em torno dos homens livres proprietários, que era quem determinava as regras do local. PIMENTEL, 201514) 13 PIMENTEL, Eugênio. História da História da capitania do Rio Grande (do Norte). 2015. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/historia-da-historia-da-capitania-do-rio-grande-do-norte/ 14 Ibidem https://www.infoescola.com/sociologia/desigualdade-social/ https://www.infoescola.com/sociologia/desigualdade-social/ https://jornalggn.com.br/noticia/historia-da-historia-da-capitania-do-rio-grande-do-norte/ Essa conquista foi comandada pelo capitães-mores Mascarenhas Homem e Feliciano Coelho. Após esse fato MascarenhasHomem recebeu ordem para construir um forte e em 1598 foi iniciada a construção da Fortaleza dos Reis Magos – que deu origem ao povoado que depois se transformou na cidade de Natal – para proteger o litoral de invasões, porém não impediu a invasão dos holandeses em 1624/1625. A colonização da capitania do Rio Grande foi reassumida após a expulsão dos holandeses, em 1654, pelos portugueses. Após a recuperação do território, foi retomada a distribuição de sesmarias15, sendo priorizado o litoral com lavouras e plantação de macaxeira – para a produção de farinha –, assim como criação de gado, já que o litoral não se mostrava bom para o cultivo da cana-de-açúcar não sendo, por isso, inexistente o cultivo dela, no entanto “a criação de gado tornou-se uma atividade que contribuiu para o avanço na ocupação das terras para além do litoral” DIAS (2015 apud DIAS; ALVEAL, 201716. p. 61). Foi no período conturbado após a Guerra dos Bárbaros17 que a colonização no interior se consolidou, entre 1680 e 1720, através de algumas atividades econômicas, como a pecuária, a pescaria, a salineira e a pequena produção agrícola, com o uso da mão-de-obra escrava. 4.2 Escravidão na capitania do Rio Grande Falar da escravidão na Capitania do Rio Grande não é tarefa fácil. Primeiro porque há um consenso de que não houve presença maciça de negros e isso acarretou um apagamento da memória desse povo. Segundo, porque, “tradicionalmente, os estudos são direcionados para as populações urbanas e privilegiam os aspectos religiosos” (CAVIGNAC18, 2003. p. 31) e, por último, pela dificuldade de acesso aos dados/documentos relacionados à escravidão. Ainda assim é possível encontrar informações que mostram, ainda que de maneira parcial e/ou fragmentada o histórico da escravidão no Rio Grande do Norte: 15 lote de terras distribuído a um beneficiário, em nome do rei de Portugal, com o objetivo de cultivar terras virgens. 16 DIAS, Dayane J.C; ALVEAL, Carmen M. O. Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714) In: História Econômica & Demografia Histórica. Dossiê – Parte 1. Resgate – Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 17 faz referência ao período em que houve um incremento no avanço dos sertões no interior das capitanias da Paraíba, Rio Grande e Ceará, havendo choques entre os desbravadores e os indígenas que habitavam a região. 18 CAVIGNAC, Julie A. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte In Mneme – Revista de Humanidades. Publicação do Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ensino Superior do Seridó – Campus de Caicó. V.4 - N.8 - abr./set. de 2003– Semestral. A capitania do Rio Grande, mesmo não tendo prioritariamente lavouras de grande extensão voltadas para a exportação, estava inserida em um contexto escravista, no qual, quando possível, para os conquistadores foi importante ter escravos, no sentido de se diferenciarem socialmente, uma vez que, na colônia, ser senhor de terras e escravos os distinguia na hierarquia social. (DIAS; ALVEAL19, 2017) Os primeiros registros da escravidão em terras potiguares constam “desde 1607, quando os jesuítas obtiveram uma sesmaria, já indicavam que traziam consigo quatro escravos negros da guiné, inaugurando a escravidão de origem africana nessa região.” (DIAS; ALVEAL20. 2017) Com a consolidação da Capitania, após a Guerra dos Bárbaros – já citada anteriormente, segundo DIAS e ALVEAL21 (2017), apesar de o Rio Grande não ter tido uma atividade econômica vinculada à exportação, não deixou de utilizar mão de obra escrava em outras atividades; embora o elemento indígena tenha sido utilizado como mão de obra escrava, muito em decorrência da própria Guerra dos Bárbaros, vários foram os escravos negros utilizados também como mão de obra, evidenciando que, mesmo não fazendo parte dos grandes lucros da economia açucareira, as famílias tinham cabedal para possuir escravos negros, considerados mais caros que os indígenas, inclusive alguns vindo diretamente da África, ou seja, negros não nascidos na América portuguesa. A população de escravos na Capitania do Rio Grande, entre 1681-1714, era de 36%22 o que correspondia ao número de 342 pessoas, 271 negros e 71 indígenas. Nesse período na Capitania não havia atividades voltadas para exportação, o que causou a falta de busca incessante por escravos, sendo perceptível que a população livre era superior a população escrava: 64%23. Em 1805, no Mapa da Capitania do Rio Grande, “mandado confeccionar pelo capitão- mor José Francisco de Paula Cavalcante, pouco menos de 50 anos depois da fundação das novas vilas, já havia um contingente de escravos significativo nelas” (DIAS, 201124) – Cidades de 19 DIAS, Dayane J.C; ALVEAL, Carmen M. O. Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714) In: História Econômica & Demografia Histórica. Dossiê – Parte 1. Resgate – Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 25, n. 2 [34], p. 57-80, jul./dez. 2017 20 Ibidem 21 Ibidem 22 Segundo gráfico elaborado por DIAS e ALVEAL, através de registros de batismos 23 Ibidem 24DIAS, Thiago Alves. Dinâmicas mercantis coloniais: Capitania do Rio Grande do Norte (1760-1821). (Dissertação – Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFRN. Natal/RN: 2010. Natal, Vilas de São José e Extremoz, Vila de Arêz e Vila Flor, Vila de Portalegre e Vila do Príncipe – totalizando 4.586 escravos, homens e mulheres. O aumento significativo do número de escravos na Capitania – em um curto espaço de tempo – se deu após o surto algodoeiro de 1776 A primeira fase seria aquela iniciada pelo colonizador branco, do cultivo e processamento do algodão nativo já feito pelo indígena e que inclui o primeiro surto de exploração em fins do século XVIII, motivado pela Revolução Industrial Inglesa. A segunda fase tem início com o grande surto exportador da década de 1860, quando verifica-se nova transformação na cotonicultura no RN. (...) A terceira fase seria iniciada após a grande seca, 1877/79 que, pelos prejuízos que acarretou à pecuária, permitiu nova expansão espacial do algodão. (PAIVA, 201625) No princípio do século XVII, os primeiros engenhos de açúcar foram instalados e O número de escravos subiu à proporção que aumentou a produção de açúcar; assim, em 1835, havia na Província26 10.240 escravos, continuando o número a ascender até 1870. O avanço da cultura do algodão e a grande seca de 1877, determinou a venda de grande quantidade de escravos, para o Sul, a ponto de em 1884 restarem apenas 7.623 cativos em toda a Província. (ANDRADE, 2011. p. 111 apud CRUZ, 2015. p. 5127) Entre os anos de 1855 e 1888 os números vão de 20.244 escravos para 482 escravos, segundo MATTOS (1994, p. 137 apud PEREIRA, 2014, p. 5028), pois ao ser aprovada a Lei Áurea o processo de transição para o trabalho livre já havia sido feito. Dentre as mudanças econômicas, do cultivo do algodão, açúcar, secas e crises, vendas de escravos para outras regiões, estão a causa para números tão diferentes em um período de apenas 33 anos. Embora os dados sobre a escravidão na Capitania do Rio Grande seja uma grande colcha de retalhos, no sentido de que se encontram espalhados e fragmentados em documentos que não são exatamente sobre a escravidão – como de batizados nas igrejas, inventários – percebe- se que a escravidão não passou tão aquém do que se pensa em território potiguar. 25 PAIVA, Lara. História da plantação de algodãono RN. 2016. Disponível em: https://www.brechando.com/2016/04/historia-da-plantacao-de-algodao-no-rn/ 26 As capitanias receberam o nome de Província em 1821, sendo confirmada a mudança com a Constituição de 1824, no Primeiro Reinado. 27 CRUZ, Luana Honório. Os caminhos do açúcar no Rio Grande do Norte: o papel dos engenhos na formação território potiguar (Séc. XVII ao início do séc. XX). (Tese – Doutorado em Arquitetura) – Centro de tecnologia, Departamento de Arquitetura – UFRN. Natal/RN: 2015. 28 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em ação na Comarca do Príncipe – Província do Rio Grande do Norte (1870-1888). (Dissertação – Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFRN. Natal/RN: 2014. https://www.brechando.com/2016/04/historia-da-plantacao-de-algodao-no-rn/ 5. Escravidão em Ceará-Mirim Antes de entrar no assunto escravidão no Vale do Ceará-Mirim, é necessário um pouco da história da Vila que lhe deu origem. A região era, inicialmente, habitada pelos índios potiguares que viviam às margens do rio Seara, posteriormente rio Ceará-Mirim. Os portugueses, juntamente com Antônio Felipe Camarão, o famoso índio Poty, que chefiava a tribo dos Potiguares tomaram a iniciativa de organizar um povoamento, assim foi fundado, pelos padres jesuítas, um convento, na aldeia do Guajiru. Em 3 de setembro de 1759, o município foi criado oficialmente, através de alvará, e instalado em 3 de maio de 1760, na antiga aldeia de Guajiru, tendo por sede a Vila de Extremoz. Em 18 de agosto de 1855, a sede foi transferida para a povoação de Boca da Mata e passou a chamar-se Vila do Ceará-Mirim. A transferência para Vila de Ceará-Mirim foi suspensa através da Lei n° 345, de 4 de setembro de 1856. Após dois anos foi novamente confirmada pela Lei n° 370, de 30 de julho de 1858. Em 9 de junho de 1882, através da Lei n° 837, Ceará-Mirim recebeu foros de cidade. A região, nos primeiros anos de ocupação, teve sua atividade voltada à criação de gado, seguida pela agricultura de subsistência. A indústria açucareira nasceu antes de 1843, quando a sede do Município ainda era Extremoz, a tirar pela instalação nesse ano por Antônio Bento Viana no Engenho “Carnaubal”, da primeira moenda de ferro Horizontal. Depois veio a indústria de aguardente, a princípio em alambique de barro e logo mais substituído por destilarias de cobre. Ainda na base açucareira, existe uma pequena fábrica de doce de banana e balas na cidade. (SENNA, 1974, p. 154 e 155) Porém, a economia e paisagem do Vale do Ceará-Mirim foi sendo moldada pelos engenhos de açúcar que, antes restritos à faixa litorânea de Natal ao Sul, agora se expandiam para o Norte ocupando uma área que seria a principal produtora de açúcar da então Província do Rio Grande. Em pouco tempo, o número de engenhos de açúcar no Rio Grande do Norte passou de 45 em 1845, para 173 em 1860. Nesse período, os engenhos de açúcar ocuparam praticamente todo o litoral oriental potiguar, com destaque para os municípios de Ceará-Mirim e São José de Mipibu. (CRUZ, 2015. p. 46) A implantação e expansão do comércio de açúcar não só modificou significativamente a paisagem local, mas também impactou econômica e socialmente a região. Para manter o funcionamento das usinas de processamento da cana-de-açúcar, os senhores de engenho contavam, em grande parte, com a mão de obra escrava, entretanto também eram usados homens livres em funções específicas. Em 1855, Ceará-Mirim, ainda atrelada à Vila de Extremoz, contava com o número de 1.126 escravos que até o ano de 1888 iria cair gradativamente. Diversos fatores foram responsáveis pela queda: em 1850 a assinatura da Lei Eusébio de Queiróz, proibindo o tráfico de escravos vindo da África, causando o alto custo no preço dos escravos, pois o tráfico não acabou de maneira abrupta e continuou sendo feito de maneira clandestina; em 1877 houve uma grande seca obrigando muitos senhores a venderem seus escravos para outras províncias; e a campanha abolicionista no Brasil. O número de escravos foi diminuindo ainda mais. A grande adesão popular e de outros setores da sociedade (como imprensa e igreja) apoiando à Abolição da escravidão, tornou a prática escravista cada vez mais repudiada. Segundo Angela Alonso, a partir da década de 1880 socialmente a escravidão já era considerada ilegítima, estando amparada somente nas bases da lei. (SANTOS, 2016.29 p. 27) Em 1º de janeiro de 1888 foi fundada a Sociedade Libertadora Norte-Rio-Grandense, através de convocação feita no Teatro Santa Cruz. A intenção com a criação do grupo era eliminar a escravidão da província do Rio Grande do Norte, embora existisse já, às vésperas da Abolição, um número bastante reduzido de escravos no território potiguar – se comparado a outras províncias onde havia comércio de exportação: “uma população de 3.167 cativos registrados em toda a província, segundo o relatório do ministério da agricultura de 1887.” (SANTOS, 201630. p. 29) O número de escravos em Ceará-Mirim também havia declinado, segundo BERTRAND31 (2010, p. 38) constava de 777 escravos em 1884 e 201 em 1888, esse número é justificado não somente pelos fatores econômicos citados anteriormente, mas também pela luta 29 SANTOS, Silvanei da Silva. Sociedade Libertadora Norte Rio-grandense e o fim da escravidão no Rio Grande do Norte. (Monografia – Graduação em História) – Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas – UnB. Brasília/DF: 2016. 30 Ibidem 31 BERTRAND, Daniel. Patrimônio, Memória e Espaço: A construção da paisagem açucareira do Vale do Ceará-Mirim. (Dissertação – Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFRN. Natal/RN: 2010. iniciada pela Sociedade Libertadora de Ceará-Mirim, fundada em 05 de fevereiro de 1888 que antecipou a libertação de alguns escravos. Foi nesse cenário político e social que Madalena Antunes nasceu e viveu sua primeira infância, tendo como companhia sua mãe preta Patica e a escrava Tonha32 – “(...) já de ‘ventre livre’, minha companheira permanente nas travessuras e mais velha do que eu dois anos (...)” (ANTUNES, 2003. p. 38) – que estavam dentre os 201 escravos que foram libertos após a assinatura da Lei Áurea. 6. A escravidão em Oiteiro Como foi explanado, a escravidão no Rio Grande do Norte não foi tão ínfima como acreditavam os historiadores de um passado recente e ela foi presente nas diversas regiões do território potiguar, como em Ceará-Mirim, também já citado. Em 9 de junho de 1882, a Vila de Ceará-Mirim fora elevada à categoria de cidade, então, “revelou-se como um locus de desenvolvimento urbano atrelado a uma economia rural.” (HORA NETO, 201533. p. 39) Nascida em 1880, foi nesse território recém nomeado de cidade que Madalena Antunes cresceu e viveu sua primeira infância no Sítio Oiteiro com o engenho, os trabalhadores livres e os escravos, ainda não libertos. Nessa sociedade patriarcal dos engenhos (...) tudo girava em torno do senhor de engenho, que era ao mesmo tempo o chefe e o patriarca, ao qual toda a família, esposa, filhos e dependentes, todos os trabalhadores assalariados avulsos e toda a escravaria respeitava com temor, sendo sua vontade a lei maior. A ele competia dirigir com pulso de ferro os trabalhos nas lavouras e nos engenhos, promover a comercialização do açúcar, determinar os castigos corporais a serem aplicados aos escravos, (...) O engenho era o seu mundo e seu ponto central era a Casa Grande (...). Na fazendo do açúcar, sob os olhares implacáveis do senhor, todos trabalhavam: havia escravos nos canaviais, (...) conduzindo cana-de-açúcar nos carros de boi para as instalações processadoras e para as moendas, (...) cuidando dos serviços domésticos na casa grande (afazeres esses geralmente executadas por escravas jovens e melhorafeiçoadas – as mucamas –, ou por menores cativos – os moleques ou nigrinhas) e zelando pelas crianças brancas em suas brincadeiras infantis (...)34. (OSCAR, 1985. p.137/13835) 32 A autora diz que Tonha não era escrava: “Nunca fora cativa, apenas era filha e neta de escrava.” (p. 96), pois nasceu depois de 1871, data da Lei do Ventre Livre. 33 HORA NETO, José Avelino da. Dinâmica de expansão urbana de Ceará-Mirim/RN: aspectos locais e metropolitanos? (Dissertação – Mestrado em Estudos Urbanos e Regionais) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFRN. Natal/RN: 2015. 34 Grifos do autor 35 OSCAR, João. Escravidão & Engenhos – Campos; São João da Barra; Macaé; São Fidélis. Rio de Janeiro. Editora Achimaé: 1985. No sítio Oiteiro, embora – provavelmente – em proporções menores a vida da autora se assemelha à descrição acima, as escravas que zelaram por ela foram Tonha, companhia das brincadeiras infantis, e Patica, a mãe preta. É possível perceber a presença de escravos durante a sua infância já no início do livro, no Capítulo 2, quando ela conta: “As escravas rodeavam-me pedindo que lhe contasse. Eu então tomava ares de literata e exibia os meus conhecimentos perante o único auditório que achava que eu sabia ler...” (ANTUNES, 2003. p. 37/38). O papel de Patica como mãe preta, dito anteriormente, fica evidente e bastante destacado no capítulo 5 – que autora dedicou às duas escravas mais queridas de sua infância intitulando- o Tonha e Patica – no segundo parágrafo referindo-se a Patica: Penteava-me os cabelos, vestia-me com esmero, zelava pelo asseio corporal, cuidava da higiene alimentar e foram sem conta as noites passadas em claro, quando eu, doente, embalando-me o punho da rede, sonolenta, cantarolava, maviosa (...). (ANTUNES, 2003. p. 75). Sobre Tonha ela começa contando que “Tomava parte em nossos serões a negrinha Tonha, esparralhada no chão, coçando os pés e não perdendo uma só história da Patica.” (ANTUNES, 2003. p. 81). No Capítulo 6 é abordado o tema libertação e a autora, falando sobre Patica, diz o seguinte: “Dir-se-ia viver ela a vida dos personagens das referidas lendas, esperando talvez a visita das fadas, cujo miraculoso gênio poderia transformar a senzala36 num ‘palácio de cristal’(...).” e, falando sobre o dia da libertação: “os negros mostravam-se nas senzalas37 vizinhas com semblantes alegres”. (ANTUNES, 2003. p. 89/96). O termo senzala citado pela autora traz uma questão interessante: a maioria dos historiadores ceará-mirinenses – senão todos – têm a teoria de que em Ceará-Mirim não existiram senzalas. Certo que na primeira passagem Madalena pode ter usado uma linguagem figurada para a situação vivida pela escrava. No entanto, há uma informação no trabalho de CRUZ38 (2015. p. 218), quando ela cita um inventário feito pelo IPHAN39/RN em 2013, que relata que 36 Grifo meu 37 Grifo meu 38 CRUZ, Luana Honório. Os caminhos do açúcar no Rio Grande do Norte: o papel dos engenhos na formação território potiguar (Séc. XVII ao início do séc. XX). (Tese – Doutorado em Arquitetura) – Centro de tecnologia, Departamento de Arquitetura – UFRN. Natal/RN: 2015. 39 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Entre 62 complexos açucareiros inventariados, foram identificadas 48 casas grandes, 13 capelas, 28 fábricas e nenhuma senzala. Esse fato se explica tanto pelos materiais precários normalmente empregados nas senzalas, o que fazia com que essas construções fossem pouco duráveis, quanto pela abolição da escravidão, tornando essas construções obsoletas e/ou indesejadas, retrato de um passado obscuro que se queria apagar. Além disso, alguns engenhos norte- rio-grandenses nunca possuíram senzala (...). Contudo, pelo relato da autora em citar a senzala – também em outros trechos – e pela falta de registros e dados para confirmação da existência ou não de senzalas em Ceará-Mirim, fica a dúvida se houve, e o tempo destruiu, ou simplesmente nunca foram construídas. Ainda no capítulo 6, sobre a libertação, a autora conta o dia da morte de Patica e lamenta o fato dela não ter sido liberta “antes do 13 de maio, quando o Martinho, escravo menos digno, a conseguira.” (ANTUNES, 2003. p. 90), ainda transcreve dois documentos que julga de interesse público: Um documento do enterro de um escravo e a carta de alforria do escravo Martinho40, liberto em 24 de junho de 1887. Prosseguindo no capítulo 6, é contado – pela percepção própria da idade na época – o Dia da Abolição dos escravos, descrevendo episódios anteriores até o dia exato em que a Lei Áurea fora assinada pela Princesa Regente Isabel: “Os escravos tinham no olhar brilho estranho e nas fisionomias tonalidades benditas, olhos abertos à esperança...”; “Data da abolição! (...) Os senhores atônitos abriram as cancelas e por elas passaram para o campo da igualdade democrática todos os mártires da desigualdade sinistra. As senzalas esvaziaram-se por encanto.” (ANTUNES, 2003. p. 95/99) Há um fato interessante que se pode tratar também que é a “fama” que o Estado do Rio Grande do Norte carrega de não ter tido senhores cruéis com seus escravos. Isso se deu porque autores como Câmara Cascudo e Nilo Pereira abordaram o tema de maneira muito branda, perpetuando essa ideia. LOPES41(2011) diz que Câmara Cascudo explica as relações de senhores e escravos quase como relações consensuais e cita: Em qualquer solenidade lembrava-se o negro. Nos testamentos, alegrias domésticas, muitos escravos ganhavam a liberdade incondicional. Na hora do batizado era comum a criancinha levar na mão a carta de alforria da madrinha de apresentar, quase sempre uma velha negra criadeira dos ioiôs brancos, mãe preta, legítima e generosa. Vezes por outra o padrinho libertava, na pia, o 40 Documento encontrado pela autora nos objetos de Patica, pois Martinho fora seu marido. 41LOPES, Michele Soares. Escravidão na Vila do Príncipe: Província do Rio Grande do Norte (1850-1888). (Dissertação – Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFRN. Natal/RN: 2011. afilhado escravo, para que entrasse na igreja livre como deveria ser CASCUDO (1984, p.188 apud LOPES42, 2011. p. 15). Esse fato citado por Câmara Cascudo é bem significativo, pois através de muitos desses documentos da igreja é que pesquisadores já conseguiram mapear e quantificar números dos relacionados aos escravos nas várias regiões do território potiguar. Já Nilo Pereira (198943. p.110) fala que “o fato de haver escravo já era uma humilhação. Mas também não se deve exagerar em termos falsamente históricos (...) à base de “história contadas” (...).” e “Não se podia dizer que o Rio Grande do Norte primasse pela escravaria. Pelo contrário. O exemplo de Mossoró, libertando os seus escravos em 30 de setembro de 1883, é duma beleza a toda prova.” (PEREIRA44, 1989. p. 112). Para mostrar que o povo potiguar não era cruel com seus escravos, há uma certa generalização dos dados e um certo desprezo com a memória do povo que também traz recordações e histórias, muitas reais, que mostravam a maldade dos senhores de escravos, como as que Madalena conta Em nossa casa chegavam comadres pobres, de minha mãe, as que nunca tiveram escravos, abordando com disfarce o assunto da abolição, que a todos empolgava. Contavam coisas incríveis dos “Senhores”. Imaginavam como iria ficar a dona Dondon, que queimava as negras com ferro de engomar em brasa, quando lhe tostavam os vestidos; a dona Joaquina, que prendia o lóbulo da escrava no portal, e, depois chamava-a a certa distância, imperiosamente, tendo a escrava que atender, senão seria pior... E a infeliz ia ao seu encontro deixando na porta o pedaço da orelha!(ANTUNES, 2003. p. 98) Com o trecho acima não se pretende atestar que todos os senhores de escravos eram cruéis, pois faz-se necessário registros históricos para tal afirmação. No entanto os castigos eram um costume para que servissem de exemplo para os outros escravos e um sinal da presença da escravização de negros, além de tudo fizeram parte da memória da autora que conta um momento em que foi aplicado um castigo a Tonha que havia fugido para conhecer a cidade de Olindra que tanto falava: Acordei mais tarde com um ruído no quintal, a cancela batendo, tropel de cavalos, e logo após gritos partidos da cozinha. (...) – Não durmo, Patiquinha! Parece-me que ouvi gritos da Tonha. (...) – É a negrinha apanhando pancada para não ser cavilosa... Pois não é que a pegaram já perto de Santa Cruz dos Gois? (ANTUNES, 2003. p. 85/86) 42 Ibidem 43 PEREIRA, Nilo. Imagens do Ceará-Mirim. 3ª Ed. Natal/RN: Fundação José Augusto, 1989. 44 Ibidem Mesmo tendo nascido e sido criada em um ambiente com escravos, a autora não tinha a visão deles como seres inferiores e chegou a comparar a escrava Patica com a irmã Barreto do Colégio São José: Assistindo àquelas aulas, reportei-me muitas vezes ao Oiteiro, e a Patica, minha mãe-preta, surgia à mente (...). Comparava-a a Irmã Barreto, apesar das diferenças físicas e sociais. Uma era serva do Senhor, culta e de família ilustre. A outra, escrava, humilde, descendente de africanos. Mas, o que expressavam e diziam, na essência, era igual. Tinha igual beleza e sedução. É que, no domínio da espiritualidade, raças e grilhões não influem. Ambas para mim eram gênios. (ANTUNES, 2003. p. 73/74) E ainda acrescenta que “Não é, portanto, de admirar, sem profanação, que as aulas da Irmã Barreto, tão cheias de encanto, me lembrasse as histórias de Patica, confundindo-se a alma do branco com a do negro, acordes de ópera, com batuques de maracatus...” (ANTUNES, 2003. p. 126) Em outro trecho Madalena se mostra insatisfeita com a condição de Patica “jungida ao cativeiro pelos nefandos laços da bárbara e inconcebível lei” (ANTUNES, 2003. p. 89) que, depois é confirmado com a incompreensão do fato dela não ter sido alforriada antes do 13 de maio, trecho já citado anteriormente. Das lembranças ela conta outro episódio vivido com sua irmã mais nova, já em internato no mesmo Colégio São José: (...) as outras datas passavam despercebidas, até mesmo as nacionais, das quais não tínhamos a menor ideia, como o 13 de maio, por exemplo. Um dia, encontrei minha irmãzinha chorando porque as colegas a chocaram, ao saber que ela havia nascido a 13 de maio. – Data dos negros! Exclamaram, vaiando-a. (...) Mas, o meu espírito recordou Patica na sua sóbria alegria; Tonha, assustada, correndo de uma lado para o outro, contando o que ouvia; a sua avó, dançando na cozinha e dizendo que, tão depressa se libertasse, a levaria consigo; a Quitéria, pretendendo ir para o Pará; as comadres de minha mãe contando os martírios dos cativos e o delírio ruidoso dos negros nas senzalas, sambando, loucos de alegria! Aquilo era o 13 de maio. E, mentalmente, ajoelhei-me diante da maior data do Brasil e lamentei minha irmã não poder festejar seu aniversário em tão grande dia! (ANTUNES, 2003. p. 131/132) Nota-se que a autora lamenta o fato da irmã não entender o que significou verdadeiramente aquela data que, para ela, era sinônimo de festa e alegria. Posteriormente ela alegra-se ao reconhecer, em suas leituras, grandes heróis da revolução de 24 e 48 como “todos genuinamente nortistas!” e completa: “E que diria da epopeia dos jangadeiros cearenses45? E onde mais brilhante a campanha da Abolição e da República? Como me orgulho de ser nortista!” (ANTUNES, 2003. p. 147/148). Recordando o que Tonha lhe dizia, ela se mostra convencida quando diz que “A negrinha tinha razão...” falando sobre o bueiro ainda ereto no meio das ruínas do engenho Timbó como sendo “marco da primeira riqueza açucareira de Ceará-Mirim, auxiliada pela maior escravatura que o vale possui, guiada pela inteligência, cultura e firmeza dos seus primitivos donos, nos quais recaiu a injustiça de uma propalada crueldade que se assemelhava às casas de correção de hoje... Quem tinha seu negro ruim, ia vende-lo ao Zumba do Timbó...” (ANTUNES, 2003. p. 248) Diversos são os trechos em que há a presença dos escravos fazendo parte do dia a dia da vida da romancista: As escravas (p. 37); Tonha e Patica (mais citadas, com capítulo exclusivo para elas); avó de Tonha (p. 38); a negra Virgínia – trabalhava na cozinha (p. 45/225); Martinho (p. 90/315); as negas da cozinha (p. 95); Zefa Mulambo (p. 100); as mulatas da feira no mercado (p. 200); preta velha Emiliana – do colégio (p. 228); os escravos do Major Miguel Ribeiro (p. 272); Antonio de Gangorra – escravo de estimação dos barões e que conduziu a caleça com o D. José quando visitou Ceará-Mirim (p. 275); negrinhas das famílias que estavam invernando (p.291). Apenas com algumas passagens citadas é possível perceber que o tempo do período da escravidão vivido por Madalena marcou suas lembranças mostrando que, embora ela fosse muito criança e tenha vivido somente 7 anos do período, a presença dos escravos foi significativa na sua vida e que ela se mostrou sensível à causa da Abolição, depois de adulta, relembrando os infortúnios vividos por eles – que ela presenciou ou ouviu contar nas histórias conversadas no sítio Oiteiro. Fica perceptível, pelos diversos trechos citados, a ocorrência da escravidão em Ceará- Mirim, ainda que Oiteiro não seja um livro documental e histórico do período. 45 Referindo-se ao jangadeiro conhecido como Dragão do Mar – de quem saiu a ordem de que ninguém mais poderia embarcar escravos no Porto – e ao pioneirismo do Ceará como primeira província a decretar, oficialmente, o fim da escravidão no Brasil, em 25 de março de 1884, anos antes da Abolição no restante do Brasil CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a análise feita é possível chegar a conclusão de que a literatura, mesmo não sendo um documento histórico no sentido de registrar a realidade exatamente como ela ocorreu, pode servir como um lume para questões ainda sem respostas ou com respostas em construção. Chalhoub diz que Há questões políticas “minúsculas” a considerar nas situações de compra e venda de escravos – “minúsculas” não no sentido de serem pouco decisivas ou potencialmente transformadoras, mas na medida em que aparentemente envolvem ações articuladas apenas em função de objetivos imediatos. Essas questões permanecem quase sempre invisíveis nas descrições panorâmicas ou nos quadros estatísticos que, de resto, não têm geralmente como objetivos análise de tramas ou significações mais particulares. Há muita coisa ainda a destrinchar sobre os negócios da escravidão46. (CHALOUB47, 2011. p. 57) Essa passagem se encaixa perfeitamente quando se trata do assunto escravidão no Rio Grande do Norte. Algumas pesquisas já foram feitas, outras estão em andamento, mas ainda há muitas coisas a se descobrir de fato sobre isso. Em Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça, durante toda a sua narrativa, Madalena vai tecendo um enredo maravilhoso em que costura às suas memórias as percepções atuais dos momentos vividos por ela. O sentimento de respeito, amor e reconhecimento se mostram gradativamente maiores a cada novo episódio contado, não somente sobre Tonha e Patica, mas também outros “personagens” que por ela, na infância, eram considerados miseráveis e sem valor. No livro analisado, as memórias da autora mostram apenas um pequeno sinal do que pode ter sido a escravidão em Ceará-Mirim, pois o que ela relata mostra já o período de certa decadência da escravidão em vésperas de ser assinada a Abolição,confirmando os dados estatísticos de poucos escravos no vale na data da assinatura da Lei Áurea. Ainda assim, é uma amostra de como funcionou a escravidão na sociedade açucareira cearamirinense. Madalena (2003, p. 245) diz que “Só deixamos de existir quando na terra não há quem nos recorde”, então é nas reminiscências das memórias que também se (re)conhece a História. 46 Grifo meu 47 CHALOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. REFERÊNCIAS ANTUNES, Madalena. Oiteiro: Memórias de uma Sinhá-Moça. Natal: A.S. Editores, 2003. BENJAMIN, Roberto Emerson Câmara. A África está em nós: História e cultura afro- brasileira. – João Pessoa, PB: Editora Grafset, 2006. BERTRAND, Daniel. Patrimônio, Memória e Espaço: A construção da paisagem açucareira do Vale do Ceará-Mirim. (Dissertação – Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – UFRN. Natal/RN: 2010. CAVIGNAC, Julie A. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte In Mneme – Revista de Humanidades. Publicação do Departamento de História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 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