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de entendimento e ação: são os chamados criminosos comuns. Entretanto, o termo periculosidade aparece à época e por consequência dos crimes que mencionamos no início deste capítulo, remetidos a uma conotação patológica, acrescentando-o um novo aspecto conceitual: a periculosidade passa, agora, a ser entendida também como uma característica intrínseca ao indivíduo. Cria-se então a figura do sujeito ‘intrinsecamente perigoso’, não mais aquele eventual ou circunstancialmente perigoso - o criminoso comum -, mas o ‘inerentemente perigoso’. É como se o louco já viesse, desde sempre, determinado por uma periculosidade; é como se o louco fosse potencialmente capaz de cometer atos criminosos (Foucault, 1978 a). Surge, assim, uma preocupação em demonstrar a existência da loucura-homicida e da importância em ter que controlá-la. Mas de que maneira isto deveria ser feito? Inicialmente demonstrando que nos limites últimos da loucura, lá está presente o crime, ou seja, por trás de um louco oculta-se sempre um criminoso. Ora, era preciso não somente punir e transformar esse indivíduo, como também proteger a sociedade de seus instintos obscuros e inexplicáveis. Assim, a este louco-criminoso, designado como ‘inimputável’, só resta a internação compulsiva em manicômio judiciário. Aquele que, inscrito como sujeito perigoso, deverá ser afastado do convívio social como forma de se defender a sociedade, e a quem deverá manter-se encarcerado com propósitos curativos e como estratégia de transformação de sua essência mesma. Contudo, não estou interessada, no momento, em deter-me na construção histórica do conceito de periculosidade, mas tão somente em tentar situá-la em nosso panorama, a fim de entender seus efeitos sobre o paciente inimputável. O conceito de perigo surge, segundo Heleno Fragoso, com o positivismo criminológico. A periculosidade é um juízo de probabilidade que se formula diante de certos indícios. Trata-se de juízo empiricamente formulado e, portanto, sujeito a erros graves. Pressupõe sempre, como é óbvio, uma ordem social determinada a que o sujeito deve ajustar-se e que não é questionada (FRAGOSO, 1984). A questão da periculosidade se apresenta muito bem colocada - apesar de sub- repticiamente - nos laudos de Pierre Rivière 24 , onde os alienistas usam-na como 24 Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (1977 b). Estamos nos referindo ao caso - compilado por Michel Foucault - de Pierre Rivière, jovem de 20 anos que, em 1835, assassinou 32 argumento de justificação para a existência de instituições próprias ao tratamento e reclusão dos doentes mentais no início do século XIX. Assim Castel se refere a ela: “um certificado médico [...] controlado pela possibilidade de uma inspeção judiciária, vai poder detectar estados potencialmente perigosos” (Castel, 1977, p. 275). Dito de outra maneira, a periculosidade é definida como probabilidade de que novos crimes sejam praticados; ela é uma categoria cuja função é a de demonstrar os níveis individuais de propensão ao crime. Para alguns juristas, a periculosidade criminal traz consigo a idéia de que o louco-infrator, motivado por apetites e impulsos que lhe são próprios, certamente irá cometer novos ilícitos. Torna-se muito clara essa idéia, ao observarmos as conclusões nos laudos de alguns profissionais do campo psicojurídico, quanto à certeza de reincidência do estado de perigo por parte do paciente inimputável. É como se, uma vez diagnosticado como perigoso, perigoso ele sempre seria. Não resta dúvida de que se trata de um juízo sobre o comportamento futuro do indivíduo. Segundo Heleno Fragoso, está-se diante de uma ficção jurídica, pois não existe justificação científica do conceito de periculosidade, mas sim, “um caráter profético da noção de estado perigoso” (Fragoso, 1984). Portanto, ela se estabelece probabilisticamente, sendo, por sua própria natureza, de caráter relativo. Concordamos com a idéia de que “a noção de periculosidade está indissociavelmente ligada a um certo exercício de futurologia pseudocientífica” (Rauter, 1997, p.73). O princípio da presunção de periculosidade penaliza, portanto, o louco- criminoso pelo o que é, e não pelo crime que ele cometeu. A medida tem como seu principal objetivo dominar o indivíduo, e não apenas o seu ato: é a loucura que é julgada e condenada. No entorno da noção de periculosidade pode-se observar com clareza uma rede de relações que envolvem saberes e práticas, que acabam por atuar no sentido da formação de determinadas subjetividades: a saber, o sujeito perigoso, como já mencionado no início desse capítulo. Ora, não pareceria absurdo constatar que - no consenso popular -, é exatamente esse sujeito que se espera encontrar para além dos portões de ferro batido do MJ. Falávamos, anteriormente, como a opinião pública considera estas pessoas inerentemente perigosas. Da mesma forma, o sistema penal sempre partiu da presunção de periculosidade desses pacientes, entendendo-os também como indivíduos perigosos sua mãe, sua irmã e seu irmão, todos a golpes de foice. Neste livro, Foucault - segundo ele próprio diz -, teve como objetivo essencial, fazer aparecer a engrenagem médica e jurídica que cercou a estória. 33 e, por este motivo, os mesmos deveriam ser alijados do processo social. O dispositivo do internamento aparece, então, como a única saída possível. Como nos mostra Michel Foucault, a psiquiatria sempre funcionou, a partir do século XIX, como mecanismo e instância de defesa social. Os questionamentos do poder judiciário dirigidos a ela preocupavam-se em saber se tais indivíduos eram perigosos e se seriam curáveis. Questionamentos, segundo o autor, isentos de significação, mas “que têm um sentido muito preciso a partir do momento em que são feitos a uma psiquiatria que funciona essencialmente como defesa social ou, para tomar os termos do século XIX, que funciona como ‘caça aos degenerados’. E o degenerado é aquele que é portador de perigo”. (Foucault, 2001, p. 404). Isto mostra como a psiquiatria, que deveria ater-se à doença, passa a funcionar como um dispositivo de ‘caça ao perigoso’: A psiquiatria não funciona – no inicio do século XIX e até tarde no século XIX, talvez até meados do século XIX – como uma especialização do saber ou da teoria médica, mas antes como um ramo especializado da higiene pública. Antes de ser uma especialidade da medicina, a psiquiatria se institucionalizou como domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que o fato da doença, ou de tudo o que se possa assimilar direta ou indiretamente à doença, pode acarretar à sociedade. Foi como precaução social, foi como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou (FOUCAULT, 2001, p. 148. Grifo nosso). Nessa medida, o campo psiquiátrico se obstinou em reivindicar como loucos aqueles que até então ele tinha considerado como simples criminosos, tão somente pela ambição de conseguir a sua autonomia e a conquistar uma modalidade de poder que viria a se expressar através dos dispositivos de controle. Dispositivos estes, implementados sob as formas de higiene pública e de defesa da sociedade, como também expressos pelo saber do médico, o único a poder avaliar não somente o motivo do sujeito, mas associá-lo à sua ‘história de vida’, integrando o ato à conduta global do sujeito. Neste sistema específico de encarceramento iremos, em capítulo posterior, apresentar e discutir a utilização, tanto pela psicologia quanto pelo direito, dos dispositivos travestidos de cientificidade, que pretendem aferir o normal e o patológico. Portanto, é claro o objetivo da intervenção